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1 Entrevista 9_ A. S. Data: 8 de fevereiro de 2019 Local: residência da entrevistada (Abóboda) Em casa de Anabela. Anabela recebe um telefonema. Espero que o telefonema acabe. Estão presentes na casa, o filho e a irmã de Anabela. Esta, está com o seu próprio filho, bebé prematuro, ao colo. Retiram-se ambos, pouco depois de iniciada a entrevista. AS - Podemos começar. E Podemos? AS Podemos. Eles não podem vir aqui, não é? E - Podem. O problema é o barulho que depois AS (voltando-se para a família) Gente, não podem fazer barulho. Vamos fazer a entrevista! (fala em crioulo) E Anabela, nós estamos a pensar fazer, e vamos fazer, os ensaios vão começar dia 16 deste mês, os ensaios com as pessoas que vão participar, uma peça de teatro sobre a mulher guineense. E a mim interessa-me, para pôr nesta peça de teatro, não vai ter os nomes das pessoas, não vai ter nadapode haver um pormenor em que se identifique, mas ninguém sabe que é seu, porque as entrevistas não são para mostrar a ninguém e os registos são para construir a peça de teatro, está bem? Concorda? AS Concordo. E Pronto. Quero incidir nesta história da mulher guineense migrante, sim? Há quanto tempo está cá em Portugal? AS Eu estou aqui há catorze anos, já. E Já há catorze anos. Quer-me contar como é que veio? AS Eu, eu vim cá para férias porque o meu marido está cá a trabalhar, de vez em quando ele vai para a Guiné, depois, ele vai só por um mês, dois meses, assim um tempo curto,

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Entrevista 9_ A. S.

Data: 8 de fevereiro de 2019

Local: residência da entrevistada (Abóboda)

Em casa de Anabela. Anabela recebe um telefonema. Espero que o telefonema acabe.

Estão presentes na casa, o filho e a irmã de Anabela. Esta, está com o seu próprio filho,

bebé prematuro, ao colo. Retiram-se ambos, pouco depois de iniciada a entrevista.

AS - Podemos começar.

E – Podemos?

AS – Podemos. Eles não podem vir aqui, não é?

E - Podem. O problema é o barulho que depois …

AS – (voltando-se para a família) Gente, não podem fazer barulho. Vamos fazer a

entrevista!

(fala em crioulo)

E – Anabela, nós estamos a pensar fazer, e vamos fazer, os ensaios vão começar dia 16

deste mês, os ensaios com as pessoas que vão participar, uma peça de teatro sobre a

mulher guineense. E a mim interessa-me, para pôr nesta peça de teatro, não vai ter os

nomes das pessoas, não vai ter nada… pode haver um pormenor em que se identifique,

mas ninguém sabe que é seu, porque as entrevistas não são para mostrar a ninguém e os

registos são para construir a peça de teatro, está bem? Concorda?

AS – Concordo.

E – Pronto. Quero incidir nesta história da mulher guineense migrante, sim? Há quanto

tempo está cá em Portugal?

AS – Eu estou aqui há catorze anos, já.

E – Já há catorze anos. Quer-me contar como é que veio?

AS – Eu, eu vim cá para férias porque o meu marido está cá a trabalhar, de vez em quando

ele vai para a Guiné, depois, ele vai só por um mês, dois meses, assim um tempo curto,

Page 2: Entrevista 9 A. S. Data: 8 de fevereiro de 2019 Local ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/44140/12/ulfl_tm_entrevista 9... · E – Já há catorze anos. Quer-me contar como é que

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por causa do trabalho. Eu falei com o meu cunhado e eu disse, “Olha, isso não é solução,

porque o meu marido está noutra zona e eu estou noutro sítio. Não está bem. Eu prefiro

de ficar lá com o meu marido, assim para ver se eu vou conseguir ter filhos.” Porque

quando ele foi para a Guiné, ele deixa-me grávida, depois de seis, sete meses, fico com…

tinha tipo um aborto espontâneo.

E – Sim.

AS – É por isso que eu vim cá para fazer tratamentos. Cheguei aqui, graças a Deus,

comecei a tratar numa clínica em Lisboa, em São sebastião, indicado por um senhor que

estava na Guiné, um médico, Dr. Cilo, ele é português. Acabaram a descobrir que eu não

tinha nenhum problema de ter filhos. Eu disse “Ainda bem”. Cheguei cá, um mês, dois,

fiquei grávida do meu primeiro filho, o Miguel.

E – Que tem agora treze anos?

AS – Tem treze. Ele fez, dia 24 de janeiro, treze anos. E nunca mais voltei. Mas eu saí da

Guiné, pedi visto, para vir cá passar férias, quarenta e cinco dias. Lembro até de o

consulado me gozar, “Quando voltares para a Guiné, passas aqui na embaixada para ser

aqui comigo”, eu disse “’Tá bem, vou lá ter” e nunca mais voltei. Até hoje.

E - (risos) Ficou cá?

AS – Quero continuar. (risos) Graças a Deus, tenho três filhos.

E – Ai que bom!

AS – Sim, o primeiro tem treze anos, o segundo tem nove, a terceira, que é menina, tem

sete anos.

E – Tem sete?

AS – E chega.

E – E chega?

AS – Agora, é para fazer crescer, ajudar eles crescerem.

E – Educá-los, não é?

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AS – Educar, sim. Dar educação. E tenho um menino, também, que a mãe morreu, que

está comigo desde os oito anos, agora já tem catorze. Graças a Deus estamos a andar, aos

poucos.

E – Já tem, na verdade, quatro, não é?

AS – Sim. E tenho um enteado, que está lá.

E – É este menino que me abriu a porta?

AS – Sim, o rapaz.

E – Sim. E está feliz?

AS – Estou, graças a Deus.

E – Ainda bem. Não pensa voltar para a Guiné?

AS – Eu? Por enquanto, não vou voltar, porque a minha intenção é ajudar a criar os meus

filhos, ajudar a educá-los e ajudar a aparecer um homem ou uma mulher para …

(impercetível) para o futuro deles. Sim, porque o ensino na Guiné está, não está bom. É

muito complicado, toda a hora greve, greve, não vou tirar uma criança daqui, para levar

e ficar lá, não. Eu faço os meus negócios na Guiné, todos os anos eu vou lá, de dez em

dez meses, ou de um ano a um ano, vou para a Guiné, mas isso é só para fazer, tipo, passar

férias, um mês e alguns dias, e voltar. Mas, para voltar para ficar lá, não vou voltar, por

enquanto. Não vou ficar.

E – Mas deseja, a longo prazo, voltar?

AS – Sim. Vou voltar. Quando os meus filhos crescerem e eles são capazes de aguentar.

E – Sim.

AS – Sim. Eu vou deixar eles e vou, mas vou, tipo, de seis em seis meses, e vou voltar

para cá. (risos)

E – Faz visitas cá?

AS – Sim, para passar férias. Nunca me posso esquecer daqui. Sim.

E – Qual foi a sua primeira reação quando chegou cá?

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AS – Quando eu cheguei cá eu tinha vontade de regressar para a minha terra, porque

cheguei, quando eu cheguei da Guiné, não tinha documentos. O visto caducou, fiquei à

espera que qualquer dia ia conseguir papelada. Fiquei um ano e tal sem documentos.

Através do meu marido, depois, consegui documentos. Mas a minha intenção, naquela

altura, era só de voltar para a Guiné. Como é que eu estou aqui, não estou a fazer nada?

Eu não estou habituada disso, porque eu tenho o meu trabalho na Guiné, tenho a minha

profissão, que eu faço as minhas coisas.

E – E o que é que faz como profissão?

AS – Na Guiné?

E – Sim.

AS – Eu era animadora rural, responsável de Banco de Crédito.

E – Sim. Banco…?

AS – Banco de Crédito de ONG.

E – Sim.

AS – Eu sou a responsável do Banco de Crédito. Eu faço empréstimo às mulheres

camponesas e aos homens também.

E – Está a falar de microcrédito?

AS – Sim. Microcrédito, sim. É um programa de microcrédito. Sou a responsável.

E – Então, ajudou a fazer nascer muitos projetos, lá?

AS – Sim. Tem muitos projetos. E depois, eu fui também professora lá.

E – Sim.

AS– Sete anos, na Guiné. Decidi ficar no Projeto porque eles pagam mais.

E – E gostou de fazer esse trabalho?

AS – Gostei. E adorei.

E – Adorou.

AS – Sim.

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E – Neste momento, o que está a fazer cá não é isso?

AS – Não é isso. Não tem nada a ver. Mas tenho que fazer porque eu preciso, não é?

E – Claro.

AS – O salário também é diferente. Aqui, mesmo que faz um trabalho que não é a tua

área, ganhas melhor em relação à Guiné, que é um trabalho na minha área, recebo tipo

uma miséria, é pouco.

E – Sim. Uma das coisas que eu gostava de focar na peça é a diferença entre homens e

mulheres, o valor que é atribuído ao homem e à mulher na sociedade. O que é que acha?

AS – Na Guiné, a gente sabe que os homens é, tipo, eles é que mandam nas mulheres.

Mas, aqui, é diferente. Mas há uma etnia, que é etnia muçulmana… religião, religião

muçulmana na Guiné, que os homens mandam, as mulheres ficam sempre inferiores.

Mesmo num sítio, vão encontrar num sítio, as mulheres têm que ficar por trás, vão sentar

aí afastado, para não ficar ao pé dos maridos, dos homens. Depois, as mulheres vão para

o campo, para cultivar, depois chegam a casa têm que ajoelhar, para cumprimentar os

homens. Eu acho que isso é muito…

E – Têm que ajoelhar?

AS – Sim! Têm que ajoelhar. Chegas aí ao pé do teu marido, tens que cumprimentar, tens

que dizer… aqui a gente dá beijo, mas ali não é beijo. Vais chegar lá, na etnia muçulmana,

na religião muçulmana, vais chegar lá, vais baixar para cumprimentar o teu marido, para

dizer “Boa tarde”, tipo, “boa tarde”. Ele vai te responder e podes levantar. É assim. É tipo

assim.

E – E a mulher trabalha muito, não é?

AS – Na Guiné, elas trabalham muito. No campo, as mulheres trabalham muito. Mais do

que os homens.

E – Quer-me contar alguma experiência que tenha tido, quando avaliou projetos de

microcrédito?

AS – Sim. No meu caso, no projeto em que eu estava, as mulheres trabalham mais do que

os homens, porque as mulheres fazem, cultivam arroz, fazem aquele tipo, … uma cova,

não sei como é que os portugueses dizem, … cultivam a terra

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E – Sim.

AS – Uns tantos quilómetros, vais ver só mulheres no campo.

E – É?

AS – Nem um homem vai encontrar lá! Nem um! Depois, para tirar o arroz também, para

cortar, é só as mulheres, para transportar, num charrete de burro, é só as mulheres.

Chegam a casa, elas é que vão pôr tudo para estender, para apanhar sol. Depois, quando

isso fica seco, depois, têm de fazer mais com mão [gesto de bater], fazer com a mão até

acabar, depois para pôr na panela, é só as mulheres. As mulheres fazem tudo. Na Guiné,

as mulheres estão lá tipo escravas. Tipo escravas. As mulheres, na Guiné. Hoje em dia,

as coisas estão a melhorar aos poucos, mas as mulheres, na Guiné trabalham muito!

E – É, não é? Também é a impressão que eu tenho. Mais no campo…

AS – Mais no campo. A diferença é mais no campo. Depois, em casa também há os

homens que nem fazem nada em casa. Vão dizer só “Isso tem que ver com as mulheres”.

Os homens não querem saber se vai ter comida ou não tem comida, tem dinheiro ou não

tem dinheiro, há os homens que são, tipo, parasitas, vivem na custa das mulheres. A

mulher é que tem que ir ao campo, depois, chegar e fazer comida, arranjar peixe, arranjar

carne, tudo!

E – Ainda hoje?

AS – Sim, ainda hoje. Até agora. Até agora.

E – Este seu trabalho, permitiu-lhe conhecer muitas zonas da Guiné?

AS – Sim. Eu, todos os dias quase, eu vou para a tabanca, para a aldeia. E tinha

motorizada, eu vou de mota fazer trabalho com as populações. Mas eu não fico tipo

concentrada só numa zona. Eu tenho que espalhar o meu trabalho para todas as zonas da

Guiné.

E – Claro. Fazia muitos quilómetros por dia?

AS – Sim. Sim.

E – Muitos?

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AS – Muitos. Cento e tal. Cento e tal quilómetros, eu vou para o meu trabalho com as

minhas colegas, depois volto para o centro, preparar relatórios, para fazer, para entregar.

Sou eu.

E – E houve famílias que tiveram sucesso?

AS – Há. Há muitas famílias que receberam aquele dinheiro, mas valeu a pena, porque

conseguiram atingir objetivos que a gente quer.

E – Quem concorria ao microcrédito? Eram mais mulheres ou homens?

AS – Não. As mulheres. O meu projeto também, eu ajudava mais as mulheres. Porque eu

vi que as mulheres estão interessadas em trabalhar.

E – Exato.

AS – Vais dar dinheiro a um homem, ele vai usar isso tudo, sem dar conta do recado,

porque tentámos muitas vezes, vimos que isso não está a dar certo, é prejuízo para o

projeto.

E – Claro.

AS – E parámos. Parámos e, agora, só com as mulheres na tabanca.

E – Essa ONG para a qual trabalhou, é uma ONG saída de onde?

AS – A ONG saiu da Suíça. Com uma etnia que está lá, camponesa, na Suíça, que foi

contactada. Fizemos projetos, elaborámos projetos, e conseguimos financiamento através

daquela coisa camponesa… depois, eles vieram para a Guiné avaliar o nosso projeto, o

nosso trabalho, eles viram que isso tem grande importância e continuaram a financiar.

E – Muito bem. E as pessoas conseguiam pagar os seus créditos?

AS – Sim, as pessoas também conseguiam pagar, as mulheres, principalmente. Elas

conseguiam pagar o dinheiro que foi emprestado. Até foram para a Suíça também passar

férias, fazer troca de experiências.

E – Boa! Ah, o projeto também incluía …

AS – Sim. Incluía despesas para ir para lá.

E – Na cidade, o microcrédito não teve aplicação?

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AS – Tem.

E – Tem?

A – Tem. Mas ali no território de Farim

E – Sim.

AS – Na Região de Oio, havia muito na cidade. Mas tem pouca rentabilidade porque, ali,

as mulheres pegam… tipo, vão fazer crédito, depois, metem dinheiro a fazer compras,

põe este dinheiro para vender. Se não dá certo, fica o dinheiro empatado.

E – Exato.

AS – Ficas a andar atrás deles para recuperar o dinheiro, não vais conseguir na totalidade.

Pode dar problemas e pode dar problemas para ir até à autoridade. É por isso que a gente,

nós optámos por fazer crédito nas tabancas, porque eles são capazes de pagar.

E – Sim.

AS – Eles cultivam muito, fazem muita horticultura. Damos mais crédito na parte da

horticultura.

E – Horticultura é arroz…?

AS – Não, horticultura é alface, tomate, … legumes.

E – Sim, sim. Como falou há pouco no arroz, pensei que era…

AS – Não, arroz é agricultura.

E – Exato. Tem razão, tem razão. Desculpe a minha ignorância.

AS – Não faz mal, não faz mal.

E – Há alguma situação que me queira contar da tabanca, que tenha observado, que a

tenha deixado espantada?

AS – Sim. Há.

E – Quer-me contar?

AS – Sim. Há uma tabanca onde a gente costuma ir trabalhar, fazemos crédito. Um dia

fomos lá, apanhámos umas senhoras que estavam, ali, a chorar. Perguntámos o que era,

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“Prenderam os nossos maridos, disseram que são bruxos”. Os maridos são bruxos,

apanharam muitas pessoas, na moranza, bateram.

E – Moranza?

AS – Sim, na casa, dessas pessoas.

E – Sim.

AS – Levaram, bateram, injetaram as pessoas cordas nos pés e mãos, às vezes, só por

falar, por explicar a vida dele. Seria bruxo ou não?

E – Ai é?

AS – Sim. Na minha terra, Farim, apanharam um senhor, na altura de fanado dos homens,

fizeram um buraco, meteram o senhor lá dentro, até ao peito, que o senhor era bruxo.

E – Mas porquê?

AS – Porque, à noite, dizem que à noite, na casa onde fazem, na casa onde ficam

escondidos com as crianças, costumam ver aquele homem a fazer bruxedos. Apanharam

o homem, meteram o homem dentro do buraco, o homem começou a conversar, a dizer

que é verdade. Ele é assim, é assim, é assim. Depois soltaram o homem. Eu nunca

encontrei com aquele tipo de coisa. Eu fui assistir a isso, apanhei um susto, nunca mais

vou esquecer, porque eles maltrataram as pessoas. Até que eles metem lume na mão de

uma pessoa, queimam.

E – Mas as pessoas… não é a autoridade?

AS – Não é a autoridade, é a população da tabanca. É a população que faz isso, não é a

autoridade. Eles nem fazem… não querem saber o que é que se está a passar.

E – Exato. Assustador.

AS – Sim. É uma coisa que eles fazem entre eles, assim. Lá na zona.

E – Sim Teve medo?

AS – Sim, tenho. Tenho medo porque, um dia, se foram me parar na mota, e me disserem

“Ah, você também é bruxa”, tudo pode acontecer na vida.

E – Claro.

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AS – É.

E – Claro. Uma das coisas que a Associação tem trabalhado é aquele projeto da luta contra

o fanado.

AS – A MGF.

E – Sim. Mas tanto quanto sei, ou quanto me disseram, na parte rural, no interior, continua

a praticar-se.

AS – Sim, mas agora, com esse projeto que a gente está a fazer de mutilação genital

feminina, para pôr fim, praticamente, na minha terra, onde eu cresci, que é Farim, eu já

fui passar férias mais de cinco ou seis vezes, nunca ouvi as pessoas a dizerem “Essa

menina foi mutilada”, nunca.

E – Não.

AS – Nunca. Nunca. Graças a Deus.

E – Quer-me descrever a festa que há em torno disso? Porque algumas pessoas dizem-

me, por exemplo, que iam atrás dos tambores, que era festa, queriam ir, e depois, já era

tarde para voltar atrás, eram pequeninas. Como é que é a festa?

AS – Ah, eles fazem, tipo, pegam no tambor e começam a tocar. Quando toca esse tambor,

sai muita gente para ver.

E – Sim.

AS – As pessoas ficam a cantar ali, no tambor, as meninas ficam a ir atrás dele. Mas

muitas pessoas vão mais por causa de companhia. Tipo, se eu fui, eu fui e vou sensibilizar

a minha colega, ou a minha colega vai ficar com a impressão, uma coisa na cabeça a dizer

“Ah, a minha amiga já está lá dentro, eu também vou fugir para ir lá”. É assim. Mas agora

já não estão a fazer isso assim. Porque, como implantaram a Lei na Guiné-Bissau agora,

sobre mutilação, multa, prisão, eles têm medo. Mesmo que eles estão a fazer, vão-se

esconder.

E – Claro.

AS – Depois, eles estão a fazer, tipo, estão a fazer com crianças pequenas, que não sabem

falar. Tipo, vai pegar uma criança, e cortar. Mas com as crianças grandes já não, ninguém

vai aceitar isso. Porque a pessoa vai ficar com complexo.

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E – Quando está a falar de crianças pequenas, está a falar de que idade?

AS – Crianças bebé.

E – Bebé.

AS – Bebés recém-nascidos, até um ano. Só se for assim que eles fazem agora. Porque,

agora, as pessoas estão mesmo em cima deles.

E – Sim.

AS – Mesmo. Eles estão a esconder. Dantes, não há segredo. Começa a tocar tambor e

todo o mundo vai atrás. Vai atrás quando eles chegam, fazem, tipo, um risco [gesto de

risco no chão], chegas aqui, não pode passar aquele risco. Se ultrapassares o risco, não

sai mais, não vai voltar. Tens que entrar, tem que ficar.

E – Pois.

AS – Mas, agora, já eles não podem fazer isso.

E – Graças a Deus.

AS - Graças a Deus! Com esse projeto, eu acho que é difícil acabar de uma vez, mas aos

poucos, vamos tentar, até ao fim. Se Deus quiser, qualquer dia, vamos ficar livres disso.

E – Anabela, desculpe, vou-lhe perguntar a idade.

AS – Tenho quarenta e quatro.

E – Portanto, esteve na Guiné até aos trinta, não é?

AS – Trinta.

E – E do que observou, a educação de rapazes e raparigas, acha que há uma grande

diferença, no seu caso ou naquilo que observou?

AS – Há diferença. Há diferença porque as meninas são mais calmas, mais educadas, mais

concentradas que os rapazes. Os rapazes, na Guiné, são, tipo, não sei como é que eu posso

dizer, tipo selvagens, que gostam de insulto, problemas…

E – É?

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AS – Sim. As crianças na Guiné, os rapazes na Guiné, são bem mais assim… exaltados.

Uma coisa que é a “liambá”, tipo droga, está a estragar muitos rapazes de agora. Aqui

eles dizem “canábis”.

E – Sim.

AS – Sim, é aquele… na Guiné está a dar muito problema. Tu andas e vais encontrar um,

dois, três, andas e vais encontrar um jovem tipo maluco. Maluco de quê? É só fumar

aquela porcaria.

E – Isso na cidade?

AS – É, na cidade. Há muito. Há muito, isso agora está a estragar os jovens. Está a dar

cabo dos jovens essa porcaria.

E – É a primeira pessoa que me fala nisso.

AS – É verdade, podes crer. Há muitas crianças que, hoje em dia, rapazes que ganham

coragem, têm coragem, mais por causa disso, dessa coisa que eles andam a fumar. E é

muita coisa. A polícia anda atrás deles e não conseguem. Não conseguem mesmo acabar

com isso. Aquilo é uma tristeza. Agora, eles não querem ir para a escola, não querem

trabalhar. Levantam de manhã e só sentam ali para fazer uma coisa que eles dizem “chá”,

arga, fazem, ficam ali a fazer o arga, na conversa.

E – O que é o “arga”?

AS – O arga é uma coisa, tipo chá, que eles fazem.

E – Eles, os jovens ou…

AS – Os jovens, os jovens. Até que eles metem, quando eles metem naquela coisa aí,

bebem e ficam também tontos.

E – Ai é?

AS – Fica, tipo, começas a dançar. Uma pessoa adulta, responsável, começa a dançar não

sabes porque é que estás a dançar.

E – Não fazia ideia. Chama-se o “arga”?

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A - Arga, sim. Um chá. Eles metem liambá no chá, eles metem no arga, ou fumam.

Quando eles fumam, têm coragem, mesmo de matar pessoas, eles têm. Aquela coisa é

tipo droga, é droga mesmo.

E – É droga.

AS – É droga. Mas é fraquinho. É droga. Mas é isso que está a dar muita, muita, muita

complicação na Guiné. Muita.

E – Quem é que deixou na Guiné, quando veio para cá?

AS – Eu?

E – Sim, da sua família?

AS – A minha mãe, as minhas irmãs, e os meus irmãos.

E – Quantas irmãs e quantos irmãos?

AS – Eu deixei lá cinco. Depois, dois irmãos.

E – É a mais velha, é a mais nova?

AS – Mais velha e mais nova.

E – Mas a Anabela está no meio?

AS – Eu estou no meio, quase no meio, quase no último.

E - (riso)

AS - Sim porque eu sou a irmã mais velha desta última, esta é a última. [Anabela refere-

se à irmã que está consigo, em casa]

E – E tem saudades da Guiné, tanto que vai lá todos os anos…

AS – Sim, tenho. Se eu tenho a possibilidade, de seis em seis meses ou de três em três

meses eu ia para lá.

E – Eu tenho ouvido muitas pessoas dizerem que ajudam a família, lá.

AS – É verdade.

E – É o seu caso?

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AS – Sim. Eu estou aqui a trabalhar, mas é mais para ajudar a minha família da Guiné

porque eles precisam. Precisam muito da minha ajuda. A Guiné é uma miséria. Quem não

está lá é que não sabe o que é. Mas as pessoas que costumam lá ir… a vida está muito

difícil na Guiné. As pessoas que estão lá precisam mesmo de ajuda. Tanto família como

não família, precisam de ajuda. Mesmo que… tipo, vais para a Guiné, enches um

contentor, chegas lá para distribuir, isso não chega para as pessoas. As pessoas estão

mesmo carenciadas. Estas roupas que a gente tira, metemos aí no caixote, no contentor,

ali no lixo, aquilo é um balúrdio na Guiné, é um balúrdio.

E – É muito caro?

AS – É muito caro. Levas aí e vendes. Tipo se levares cinco ou seis roupas, chegas lá,

uma peça disso que você já não quer usar e meteste ali no lixo, na Guiné pode vender a

dois mil, dois mil e quinhentos francos. Tipo pegas uma roupa aqui e vendes a cinco

euros, na Guiné. Cinco euros ou três euros é muito. É muito. Aqui não vais comprar uma

roupa usada. Quem é que vai comprar roupa usada? É só dada. Mas isso é tudo mais por

causa do governo, o estado da Guiné.

E – Por causa do governo.

AS - Do Governo. Eles não estão a trabalhar, não estão a fazer nada. Só ficam aí a dar

com a boca, não estão a fazer nada.

E – O que é que gostaria que um governo da Guiné fizesse?

AS – Eu? Para construir hospitais, escolas, para ajudar as pessoas que necessitam. É isso

que eu quero.

E – Acha que uma mulher no governo faria a diferença?

AS – Cem por cento, cem por cento.

E – Porquê?

AS – As mulheres têm mais, as mulheres pensam, têm pena das pessoas, têm coração.

Mais bom coração do que os homens. Os homens pensam só para eles. Não pensam para

outros. Uma mulher vai ganhar isso e vai dizer “Olha, tenho aqui cinco euros, deixa-me

tirar dois euros, ou um euro, para ajudar outro”. Mas os homens não, não vão pensar. Vão

pensar em comprar uma cerveja, um vinho, um cigarro, ou ir ter com outra moça. É,

assim, outra mulher. Os homens guineenses quando têm dinheiro, não pensam nada. Só

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pensam noutras mulheres. É, isso é difícil. Mas os governantes têm, vais ver quando

encontrar um governante, vai ter uma mulher aqui, oficialmente, outra escondida ali no

canto, outra ali. Isso não dá! Vai tirar o dinheiro aonde?

E – Exato.

AS – Não é dinheiro do povo?

E – Claro.

A – É dinheiro do povo! Porque o teu ordenado não vai chegar para fazer essas despesas!

Um ministro, para ter três, quatro mulheres, ‘pra quê? Não dá. Dizem “Casa um, casa

dois, casa três”, não, não tem piada.

E – Claro.

AS – As mulheres não fazem isso. As mulheres estavam no governo, é tão diferente como

a gente pensa! As mulheres são capazes de fazer tudo.

E – Eu tenho visto, e tenho mesmo admiração por algumas pessoas que tenho conhecido.

AS – Ah!

E – Mulheres de garra!

AS – É! Depois, as mulheres guineenses são mulheres batalhadoras. Batalham, são

mulheres batalhadoras, elas.

E – Tem orgulho nisso?

AS – Tenho, eu tenho orgulho de ser mulher guineense porque eu faço tudo por tudo para

conseguir. Conseguir e ajudar os outros que precisam.

E – Eu gosto muito desse aspeto.

AS – Eu sou assim. Eu sou uma pessoa que não gosto de ser, de a toda a hora ser ajudada,

não. Gosto de ser uma pessoa independente, que eu tenho de ser capaz de fazer as minhas

coisas. Não vou, a toda a hora, depender de alguém, não. Chega a hora para pagar as

despesas, eu não vou esperar meu marido. Se eu tenho dinheiro, eu pago as minhas contas,

porque eu também sou humana, estou a gastar, sei que tenho que pagar as minhas

despesas. Não vou pendurar a esperar o homem, não. Depois, as mulheres batalhadoras

nunca ficam por trás. Os homens sempre dão valor às mulheres que arranjam, que

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procuram e encontram. Não! O meu marido sabe qual é o tipo de mulher que ele tem!

Não, eu não sou mulher assim para depender de homem, não! Eu dependo de homem em

último caso, quando eu já não consigo. Mas graças a Deus, por enquanto, tenho o meu

trabalho, mesmo que fosse pouco, mas recebo alguma coisa, tenho alguma coisa para

resolver os meus problemas.

E – Muito bem.

AS – Os meus problemas, trato das minhas coisas, da minha maneira…

E – Acha que a sociedade guineense valoriza mais a mulher lá ou cá? A comunidade

guineense valoriza mais as mulheres, aqui, do que lá?

AS – Sim! Aqui eles têm que valorizar (risos). Porque as coisas, aqui, são diferentes. Aqui

não pode maltratar uma mulher, é violência doméstica!

E – Sim.

AS – Se for denunciado, como é que é? Ali, na Guiné, pode fazer o que quiser, ninguém

vai dizer nada. Mas aqui é diferente.

E – Há muita violência doméstica na Guiné?

AS – Há muito! Há muito, mesmo! Há muita, muita violência doméstica na Guiné. Bates

na tua mulher e ninguém vai-te dizer nada, ninguém vai queixar, nem a autoridade vai

intervir. Mas aqui é diferente.

E – A autoridade não vai intervir?

AS – Não! Tipo, estás a brigar com o teu marido na tua casa, achas que a autoridade vai

intervir? Não! Se eles foram chamados, eles vão lá, mas se não forem chamados, ninguém

vai.

E – Pois.

AS – Depois, ninguém vai querer denunciar, não vais ter coragem de denunciar o teu

marido perante o Estado, perante a autoridade, para dizer “Ah, ele me bateu”, não!

E – Porquê?

AS – Porque as mulheres ficam com medo, as mulheres da aldeia dizem que é respeito,

aquilo não é respeito! Eu, ninguém vai-me bater!

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E – Claro!

AS – Vamos conversar. Se não dá, não dá. Cada qual por Deus e Deus por todos.

E – É comum haver separações, na Guiné?

AS – Sim, há muitas.

E – Há muitas?

AS – Muitas separações.

E – E como é que é isso da separação? A mulher sai de casa…

AS – Sai.

E – E não leva nada.

AS – Não. Sai de casa e o homem não vai-te buscar se ele não quer que voltes para casa,

ele vai te deixar ficar lá. Mesmo se as pessoas vierem para falar com ele, ele vai dizer

“Não, eu já não quero”. Se ele não quer, não quer.

E – Sim. Mas a mulher, aí, sai prejudicada, porque sai sem nada.

AS – Sim. Sai sem nada. De mão a abanar.

E – Exato.

AS – É.

E – E os filhos, ficam com a mãe?

AS – Ficam com … alguns filhos ficam com o pai, os outros ficam com a mãe. Mas ficam

mais na casa do pai, ficam mais com o pai.

E – É?

AS – Sim, ficam mais com o pai. Porque eles dizem que a mulher saiu de casa, vai voltar

para casa de familiar. Nem todas as famílias vão-te receber com os miúdos.

E – Pois é.

AS – Por causa de situação financeira, económica.

E – Mas isso quer dizer que uma mulher até pode perder os filhos?

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AS – Perder os filhos, não vai perder, porque o filho vai sempre visitar. Mas aquela

amizade é que vai ter pouco porque não vão estar juntos, é. A distância também conta.

E – E as mulheres sofrem muito com isso?

AS – Sofrem. Sofrem. Imagina que eu tenho problema com o meu marido, estamos aqui,

a viver aqui em Cascais, tenho família em Viseu, fui para Viseu, um dia os filhos não vão

ter possibilidades de ir lá. Só se eu tenho possibilidade de vir visitar os meus filhos! Ou

o pai tem consciência que ele tem que levar os miúdos, senão não dá. Os miúdos não vão

ter dinheiro para apanhar o carro, o transporte, para ir visitar a mãe. Se a mãe for para

outra terra, não dá.

E – Estou chocada com isso que me diz. Até me está a doer o coração.

AS – É verdade, é.

E – Até faz doer… o que é que deseja para os seus filhos?

AS – Eu?

E – São três, mas são quatro, o que é que deseja para eles?

AS – Para eles estudarem até acabar, para eu ter condição de aguentar os estudos deles,

para fazer faculdade, depois cada um segue a vida dele. O meu desejo é isso. Os meus

filhos, para continuarem a estudar, que eu tenho possibilidade de ajudar eles até acabarem

a escola.

E – Até acabar a escola. Noto que as mulheres valorizam muito, as mães valorizam muito

o estudo dos filhos. Aqui e lá.

AS – Sim. É aqui e lá. Aqui, como no meu caso, eu fico mais preocupada com os miúdos,

com a escola, o estudo dos meus filhos. Todas as coisas, eu sou Encarregada de Educação,

eu faço tudo.

E – Sim.

AS – Eu não tenho tempo, meti os meus filhos na explicação para não ficar assim sem

conseguir fazer trabalhos, porque eu não tenho tempo de ensinar quatro crianças.

E – Claro.

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A – Eu sei que aquilo é um balúrdio, mas tem que ser. Eu estou a trabalhar para o futuro

dos meus filhos. Tenho que pagar.

E – E está contente com o sucesso deles?

AS – Estou, estou, graças a Deus, O meu filho fez treze anos e já está no sétimo. Ele disse

no outro dia “Mãe, aos dezassete anos vou para a faculdade” e eu disse, “Espero que sim,

Deus te ajude”. Ontem falei com o pai e “Olha, ele disse que com dezassete anos vai para

a faculdade, a gente tem que pensar em guardar dinheiro para pagar a escola dele”.

E – Ai, Oxalá! Vou fazer figas para correr tudo bem!

AS – É.

E – Está feliz?

AS – Estou. Estou feliz, graças a Deus. Por enquanto.

E – Oxalá se mantenha, não é?

AS – Eu vou ver, vou tentar para me manter mesmo. Tenho que manter.

E – Sim.

AS – A minha felicidade tem que manter até às últimas horas, até quando Deus me chamar

para ir para outra zona.

E – Que não pense já, que tem muita coisa para fazer.

AS – Não, espero que não seja já.

E – Nota diferença, na educação que dá à sua menina e aos seus rapazes?

AS – Não.

E – Não?

AS – Não. Como a minha filha é pequenina, não noto ainda grande, não noto ainda

nenhuma diferença.

E – Nenhuma?

AS – Com o tempo já…

E – Os rapazes ajudam a mãe em casa?

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AS – Sim. Agora metem roupa na máquina, tiram roupa para estender, metem louça na

máquina, limpam a casa, ajudam a lavar a casa de banho, arrumam os quartos deles, é

assim.

E – E isso aconteceria também na Guiné?

AS – Na Guiné? Não, na Guiné é diferente. Na Guiné, os rapazes não vão limpar a casa.

E – Sim.

AS – Não, eles não vão. Só as meninas ficam a trabalhar em casa, a limpar a casa, arrumar,

fazer comida, engomar, lavar roupa. Há poucos rapazes que fazem isso, que ajudam.

E – Se ouvisse uma mulher da Guiné, da Guiné, cá ou lá, tanto dá, a dizer “Eu não me

quero casar”, acharia bem?

AS – Uma menina?

E – Sim.

AS – Ela disse que ela não quer casar?

E – Sim.

AS – Ela pode dizer que não quer casar porque ela não tem idade.

E – Vamos imaginar que ela tem vinte e oito anos.

AS – Ela disse que não quer casar? Não quer casar, ninguém vai obrigar.

E – Mas estranha?

AS – Não. Não é estranho, porque eu também, quando estou a estudar, eu disse que não

vou ter filhos.

E – Sim.

AS – Sim, eu disse “Não, eu não vou ter filhos, por enquanto estou na casa do meu pai.

Eu vou ter filhos só quando casar ou quando encontrar um homem, sair da casa do meu

pai”. Foi assim que eu fiz também.

E – Casou por amor? Escolheu?

AS – Sim, porque o meu namorado, o meu marido, agora, somos namorados desde os

quinze anos. A sério. Quando eu tinha sete anos, ele brincava comigo e dizia assim “Ai,

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eu vou-te casar”, porque o amigo dele estava a namorar com a minha irmã mais velha.

Quando ele foi lá com o amigo ele disse assim à minha irmã “Ah, eu é que vou casar a

tua irmã, eu é que vou casar ela”. Foi assim. Depois começamos a namorar com quinze

anos, é. E é até hoje. (risos) Já nos conhecemos um ao outro muito bem. (risos) Casei em

2007, aqui em Lisboa. Mas fizemos casamento tradicional em 98. Na altura de 7 de junho.

E – Pois é, na altura da guerra.

AS – Da guerra. Foi assim. Fizemos casamento tradicional. Depois, fiquei lá, continuei a

trabalhar, trabalhar. Depois, foi quando decidi ficar aqui.

E – Fez os seus estudos na Guiné?

A – Sim. Fiz na Guiné, depois, aqui em Lisboa. Fiz equivalência na escola de Carcavelos.

Décimo segundo.

E – Mas a sua mãe está cá, está lá?

AS – Sim, ela faleceu aqui em Lisboa.

E – Ah, não sabia.

AS – Mandei ela vir da Guiné, o meu irmão mandou para trazer ela porque ela estava com

um problema de tumor e diabetes. Ela chegou diretamente para o hospital, não conheceu

a minha casa, nunca chegou a subir a minha casa. Foi diretamente. Fui buscar ela no

aeroporto, foi direto para o hospital, liguei ao meu marido e disse “Olha, eu vi a minha

mãe numa situação grave, não dá para eu ir com ela para casa”. Ele disse, “Está bem,

chama a ambulância”. Eu chamei a ambulância, estava a demorar, apanhei táxi para o

hospital São Francisco Xavier, depois ela ficou lá até à tarde, depois pediram a minha

morada, dei a minha morada, transferiram logo para o hospital de Cascais, porque nós

pertencemos a esta zona de Cascais. Depois, ela ficou internada quarenta dias e faleceu.

Mas antes disso, ela fez duas semanas no hospital. O médico disse que a minha mãe não

tem salvação. Ele chegou lá e disse “A tua mãe, dia dezanove de janeiro, ela vai morrer”

Foi assim que ele disse “A tua mãe vai morrer a dezanove de janeiro”. A minha mãe

morreu mesmo, no dia dezanove de janeiro, às dez horas. Eu fiquei a andar na rua tipo

maluca, porque quando eu vou para o hospital vi a minha mãe estar melhor, fala muito

bem, e tenho esperança que ela vai levantar.

E – Melhorar

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AS – Hum-hum. Eu disse “Ela vai sair daquela doença” Depois, há dias que ela fica pior,

há dias que ela fica melhor. Depois, como era assim, eu disse “Não, isso não é verdade.

Eles disseram que a minha mãe vai morrer dia dezanove de janeiro, às dez horas, mas eu

não acredito”. Mas chegou aquele dia, eu fui visitar a minha mãe com irmãos dela, saímos

do hospital às oito e tal, às dez horas telefonaram-me a dizer que a minha mãe faleceu.

E – Foi…

AS– Foi, nem acredito!

E – Posso-lhe fazer mais uma pergunta?

AS – Pode, à vontade!

E – Se eu lhe perguntasse qual é a pessoa que mais admira… a pessoa pela qual tem mais

admiração? Ao longo da sua vida…

AS – Ao longo da minha vida, a pessoa que eu mais admiro? Sou eu própria! Eu admiro

a minha pessoa! É verdade, podes crer.

E – Então, conte-me.

AS – Eu? Eu admiro a minha pessoa porque há coisas que eu faço, que eu meto na minha

cabeça que eu sou capaz de fazer. Mas eu, graças a Deus, consigo tudo. É por isso que eu

fico admirada com a minha pessoa.

E – Sim.

AS – Eu não vou admirar outra pessoa mais do que eu. Primeiro sou eu, depois é que é

outra.

E – É uma lutadora?

AS – Sou, sou. Graças a Deus. Graças a Deus.

E – Eu gosto desse espírito. É um bom espírito.

AS – Obrigada.

E – Qual é a sua etnia, se posso perguntar?

AS – Eu sou da etnia mancanha.

E – Mancanha?

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AS – Mancanha, sim. Mancanha.

E – É uma etnia pequenina, não é?

AS – Não. É grande. Somos de Bula e Có, e Bulama. Somos uma etnia grande.

E – Pois, então, foi um nome que me passou.

AS – É. Raramente a gente fala nisso, dessa etnia, mas existe. As pessoas falam mais de

etnia de religião muçulmana, mais por causa de fanado, fanado, e essas coisas. Mas a

etnia mancanha é uma etnia grande, gostam também de fazer chorro, tocam chorro quando

uma pessoa morre, eles matam vaca, fazem aquele tipo carnaval.

E – Sim.

AS – Fazem aquelas cerimónias, rituais, eles gostam muito.

E – Mas não é muçulmana?

AS – Não, não. Não tem nada a ver. É católica.

E – Católica.

AS – É católica.

E – Mancanha. É a primeira vez que ouço.

A – É mancanha, é.

E – Tocam tina?

AS – Não. Chorro. Quando uma pessoa morre eles fazem aqueles rituais, compram vaca,

cabra, porco, arroz, bebidas, metem uma coisa tipo tambor, ficam começando a tocar, a

tocar, a fazer essas cerimónias, começam a dar voltas.

E – Não conhecia. Então tire-me uma curiosidade, a tina e o baile da tina, é típica de

alguma região?

AS – É típica de Cacheu.

E – Não se toca, por exemplo, em Farim?

AS – Toca em Farim, mas é pouco. Toca mais tambor do que a tina. Tina, em Farim, não

há. As pessoas vão sair de outra terra para ir lá fazer.

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E – Ah, ok. E é tocado mais por mulheres?

AS – Sim. Só as mulheres. Num grupo vai encontrar só dois homens ou quê, assim a

organizar, a orientar, mas é muito pouco.

E – Conhece alguma canção de embalar? Cantou canções aos seus filhos?

AS – Eu?

E – Sim.

AS – Se eu costumo cantar músicas a eles?

E – Sim. Para adormecer.

AS – Eu canto (riso).

E – Não sei se se importa de me cantar uma canção, mas gostava de conhecer, já conheço

uma, mas gostava de conhecer outra diferente

AS – Sim.

E – Uma canção de embalar.

AS – Eu canto uma música.

Ndita dinoite nka dormi

Nfica na tenda som, quim ku

Na codjim el ou ou ou nha fidju

Bajuda, garandis ta fala kuma

Kome ku mom bu kabanta ku kudjer

Pabu bu fidju badjuda

Amina dudu amina dudu pá muti

Na matu pá nha fidju badjuda

E – É muito bonita. Ai gosto tanto! Vai ter de me traduzir porque eu não percebi quase

nada.

AS - (riso) deitei à noite a dormir

Depois comecei a pensar na minha filha

Única filha que Deus me dá

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Eu disse, os velhos dizem

Quando comes com a mão

Sobra para a tua filha com colher

E – É muito bonita. Vai ter de me ajudar a escrever essa canção. É lindíssima, essa canção.

AS – Espera, deixa-me eu escrever.

[Anabela escreve a canção em crioulo]

E – Eu vou só desligar a máquina, está bem? Olhe, obrigada Anabela. Depois vamos

traduzir isso para português, combinado? Muito obrigada!

AS – De nada.