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234 UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAÇÃO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CÉSAR GUIMARÃES CSOnline Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012 UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAÇÃO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CÉSAR GUIMARÃES Entrevistadores: Thais Florêncio de Aguiar 1 , Pedro Luiz Lima 2 , Rafael Abreu 3 Foto 1: César Guimarães Fonte: Arquivos dos Entrevistadores

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Entrevista.

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM

    DEFESA DA DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    Entrevistadores:

    Thais Florncio de Aguiar1, Pedro Luiz Lima

    2, Rafael Abreu

    3

    Foto 1: Csar Guimares

    Fonte: Arquivos dos Entrevistadores

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Inspirado na novela Tonio

    Krger, de Thomas Mann, Csar

    Guimares tece um comentrio a propsito

    de sua trajetria acadmica, com a fina

    ironia que o caracteriza: h personagens

    que no tm jeito. Lana mo, assim, do

    mestre da literatura para dizer que no se

    considera um profissional cannico das

    cincias sociais e, sim, antes de mais

    nada, um professor que divulga

    conhecimento e faz tudo o que puder

    para que seus alunos criem. Foi nessa

    atmosfera de generosidade que o professor

    recebeu, na tarde de 8 de setembro de

    2011, seus entrevistadores Thais Florencio

    de Aguiar, Pedro Luiz Lima e Rafael

    Abreu em sua pequena sala de trabalho no

    Instituto de Estudos Sociais e Polticos

    (IESP), da UERJ. A entrevista, sugerida

    pelos editores deste nmero, publicada

    pela revista CSOnline como gesto em

    homenagem a esse personagem especial

    das cincias sociais no Brasil.

    Aos 72 anos de idade, Csar

    dedicou quase dois teros da vida ao

    ensino e pesquisa na ps-graduao em

    cincias sociais. Trata-se, nas suas

    palavras, de parcela significativa da

    minha vida de esprito. Aps testemunhar

    o efervescente ano de 1968 em solo

    estadunidense, Csar retornou ao Rio de

    Janeiro munido do ttulo de mestre em

    Cincias Polticas pela Universidade da

    Califrnia para continuar a organizar o

    Instituto Universitrio de Pesquisas do

    Estado do Rio de Janeiro (IUPERJ), da

    Universidade Cndido Mendes (UCAM),

    ao qual estava vinculado desde 1965. Em

    2002, recebeu o ttulo de Notrio Saber.

    Durante esse perodo, vinculou-se tambm

    a Pontifcia Universidade Catlica (PUC-

    RJ) (1988 a 1996). Em 2010 deixou o

    IUPERJ junto com todo o corpo docente

    para constituir o Instituto de Estudos

    Sociais e Polticos (IESP), na UERJ, onde

    hoje professor/pesquisador visitante.

    Nesta entrevista, Csar menciona

    algumas de suas teses e discute a

    academia, a teoria poltica e social e,

    sobretudo, reflete a vida e a condio

    humana.

    A todos, uma boa leitura.

    Pedro Luiz Lima: Partindo de Mannheim,

    voc costuma tratar da distino entre

    intelectual e acadmico. E, talvez, o

    dilema de todos ns aqui seja o de como

    agir no sentido de fortalecer o papel do

    intelectual em um mundo em que os

    imperativos para ser um acadmico, para

    quem est na ps-graduao, como

    professor ou como aluno, so muito

    grandes Haveria uma maneira de evitar

    isso?

    Csar Guimares: , eu costumo operar

    com essa distino que, alis, no minha.

    de Mannheim e de um autor menor, ou

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    melhor, esquecido, chamado Lewis Coser

    [autor do livro The function of social

    conflicts]. A distino tem vrias

    dimenses, mas talvez a mais relevante

    seja: a quem voc fala? A quem voc

    dirige a sua palavra, seus escritos, seu

    falar. E a idia de intelectual est ligada a

    dirigir-se ao pblico. Trata-se de estar na

    esfera pblica. E estando nela, no pblico,

    voc distingue seus destinatrios; os

    pblicos no so homogneos, porque as

    sociedades no so. Enquanto na vida

    acadmica, a resposta elementar: voc

    fala com seus pares. Quando autores e

    estudiosos dessa questo falam pares, h

    um pouco de ironia. Porque pares a

    traduo de peers e h certa caracterstica

    aristocratizante j partida. Mas isso no

    to relevante. H ainda uma dimenso

    contraditria, j que pares so idnticos,

    iguais. Mas eles no so. A academia, por

    definio, sociologicamente

    hierarquizada e intelectualmente

    determinada pela autoridade. por a que

    vem a noo, por exemplo, de paradigma

    do [Thomas] Kuhn; no s dele, mas de

    tantos autores que estudaram esta coisa.

    Isso significa que voc, enquanto

    acadmico, por necessidade, aceita uma

    certa disciplina, um certo tipo de trabalho.

    Isso da vida. Voc no forma fsicos

    vamos tratar de fsicos? sem esse modo

    de ser acadmico. Talvez forme, mas no

    no momento, no o que ocorre. O

    trabalho intelectual em geral, no no

    sentido do intelectual precisamente, mas

    como trabalho da mente, est, hoje, antes

    de mais nada, entregue academia,

    universidade. assim em qualquer lugar.

    Ento, preciso considerar que quando

    voc fala em intelectual profissional,

    profissional acadmico, voc est tratando

    com dois modos de ser que perfeitamente

    coexistem no mesmo ser humano. H

    aqueles que esto apenas voltados para si

    mesmos, perdoe-me, para seus pares. E h

    aqueles que esto voltados para o pblico.

    Mas, de qualquer maneira, h um mundo

    o de estar voltado para seus pares que

    cresceu. Isto no era assim. Fiquemos no

    Brasil h uma, duas geraes. Havia e

    continua a haver , na intelectualidade, o

    jornalista, ou o artista etc., que falavam...

    Porque quem diz intelectual, diz poltica.

    De alguma maneira, trata-se do exerccio

    de alguma atividade crtica que envolve o

    poder ou o influenciar. Continua a haver

    esse tipo de intelectual, mas hoje, quando

    se abre um rgo de imprensa, repara-se

    que o intelectual jornalista lana mo com

    freqncia do profissional acadmico para

    reforar seus argumentos. O argumento

    intelectual no se oculta, nem pode ocultar-

    se. Ele tem um lado. O profissional

    acadmico diz que ele pertence ao mundo

    da doxa, que mera opinio, enquanto este

    profissional acadmico no estaria

    praticando nunca a doxa, no fato? Ns

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    sabemos que no bem assim. No

    escapamos da humanidade, portanto no

    escapamos da opinio. Acabamos que

    carregamos, s vezes, opinies tcitas em

    nossos argumentos cientficos... Mas o

    ponto este: impressionante como

    crescente a demanda sobre o profissional

    acadmico e, agora, em nossa rea, nas

    cincias sociais. impressionante. um

    sistema de produo que deve ter sua

    rentabilidade, sua importncia. Eu no

    consigo ver, muitas das vezes; porque

    muita coisa que se requer do acadmico.

    At ele se transformar em um professor

    relativamente bem sucedido, em um

    pesquisador, h um caminho longo a

    percorrer com toda sorte de avaliaes, de

    tal maneira que quando ele chega l, ele

    no precisa mais de avaliaes ele est

    perfeitamente normalizado, digamos

    assim. E pronto. De qualquer maneira, a

    uma mera questo minha, pessoal: muito

    difcil pensar a vida social, pensar a vida

    humana, sem que se pense de alguma

    maneira que se est exercendo, de uma

    forma ou de outra, o papel de intelectual.

    Como faz-lo, como conciliar? Eu digo

    que voc o faz s vezes quando est

    fazendo o seu trabalho acadmico, quando

    fala para os seus pares mas h coisas que

    voc fala para seus pares que acabam,

    digamos assim, escapando desse pblico,

    dada a relevncia do que voc est falando.

    O que relevante? No sei. O que o para

    a esfera pblica e para o seu pblico na

    hora em que voc fala. {} Sempre h um

    juzo de relevncia e irrelevncia. Ento,

    como fazer? impossvel e tolo imaginar

    que voc vai tornar, em meio a uma vida

    social mais complexa, os papis

    claramente definidos como no passado.

    Isso no existe, isso acabou. Essa mquina

    acadmica veio para ficar. Ela vai se tornar

    mais complexa ainda, evidentemente, com

    o mundo de informatizao, que permite a

    voc ler 800 coisas, das quais,

    possivelmente, 80 tm alguma

    importncia. Mas voc tem que ler as 800.

    E, mais do que isso, ela se torna mais

    competitiva, pelo menos por enquanto: de

    um lado, h mais gente na vida acadmica

    e, por outro lado, a competio do mundo

    em que vivemos penetra todos os

    ambientes. E na universidade muito

    especialmente. Eu nunca vi tanta

    competio no mundo universitrio...

    Thais Florncio de Aguiar: E como

    pensar competindo?

    Csar: Exatamente. As pessoas j pensam

    competindo, j pensam: qual o lugar em

    que eu vou publicar, de tal forma que meu

    currculo Lattes (ou seu semelhante, em

    qualquer outro lugar sempre tem uma

    coisa parecida) engorde... Eu fico

    preocupado: ser que h tempo, alm de

    tudo, para parar para pensar?

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Thais: Nessa discusso, h espao para

    uma cincia social dita mais engajada?

    Csar: A cincia social sempre

    envolvida e comprometida com algum

    olhar. Isso pode ser explcito. E veja,

    portanto, que a distino entre o

    profissional acadmico e o intelectual

    comea a se transformar em um problema.

    O ponto que, quando explcito, o

    profissional acadmico que esteja

    exercendo seu papel de intelectual pode ser

    acusado de parcialidade, de vis, de

    ideologia, de faltar aos cnones do rigor.

    Bem, tudo isso pode acontecer, de fato; e

    pode no acontecer. Com freqncia, h

    um nmero de profissionais acadmicos,

    eu no sei quo grande ou quo pequeno,

    que acha que est operando estritamente na

    lgica do saber, que seus pares bem

    entendem: eles formam pessoas assim,

    foram formados por pessoas assim, sem se

    aperceber das implicaes do que esto

    dizendo. No h uma coisa que se fale

    sobre o humano que no tenha uma

    implicao de natureza intelectual. Pelo

    simples fato de que humano. E algum

    disse demasiado humano.

    Pedro: Voc falou em normalizao do

    intelectual. E falou da relao com o

    pblico, pois a diferena entre o acadmico

    e o intelectual seria exatamente o pblico.

    Muitas vezes, o discurso do intelectual d

    ares de cientificidade a uma ideologia

    normalizadora... Ento, talvez seja essa a

    grande armadilha e a vem a pergunta: h

    como fugir dela? A soluo seria esvaziar

    esse espao miditico?

    Csar: s vezes ns imaginamos que o

    espao miditico , por exemplo, a mdia

    eletrnica. Bom, isso sempre ocorreu, no

    ? Antes o meio era a imprensa escrita (o

    que continua a meu juzo, a grande

    imprensa ainda pauta a mdia eletrnica).

    Agora muda um pouco, por conta de outros

    recursos, a internet, o mundo da web. De

    qualquer maneira, voc sempre tem o

    problema de que algumas opinies esto

    melhor representadas, digamos assim, por

    rgos de imprensa do que outras. Sendo o

    mundo o que , a grande imprensa, a

    grande mdia, empresa. Ento, ela tem

    suas escolhas. E a o caminho no de

    mo dupla: eu no sei quantas mos tem.

    H profissionais que querem estar

    presentes na mdia pelo simples fato de l

    estarem. H outros que querem porque

    querem efetivamente expressar sua posio

    pblica intelectual. H outros que esto

    porque so chamados a estarem, so

    entrevistados, so procurados para serem

    citados. H hoje colunistas da imprensa

    que vivem de ouvir profissionais

    acadmicos e reproduzir parte do que

    dizem para organizar sua opinio. Ento,

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    armadilhas existem sempre. E h pessoas

    que adoram armadilhas; ento, no uma

    armadilha. H pessoas que caem em

    armadilhas. E h pessoas que, ao contrrio,

    valem-se da armadilha para dela sair. E

    se ns nos restringimos rea de poltica

    eu no gosto de me restringir, porque

    afinal muito complicado... Socilogos

    dizem coisas de impacto poltico s vezes

    muito mais relevantes. Pensem nas

    questes relacionadas classe,

    estratificao, discriminaes, etnias. Mas

    de qualquer forma, no caso dos cientistas

    polticos, h um problema um pouquinho

    complicado que a vocao da nossa

    disciplina, a vocao de falar do poder. E

    com freqncia ns falamos ao poder

    como intelectuais. No falamos do, mas

    ao. No sei se foi Plato que nos ensinou

    isso. O platonizar nesse sentido de falar

    para o poder, de ter solues de poder:

    quais so as melhores instituies, como

    devem ser os partidos, como a vida poltica

    deve se organizar? No como a vida deve

    organizar a poltica, mas como a poltica

    deve organizar a vida, no verdade?

    Ento, esse olhar tem estes 2.500 anos

    platnicos que tm um peso muito grande

    sobre ns, mesmo que no nos

    apercebamos. s vezes, as pessoas esto

    reclamando da participao intelectual de

    profissionais acadmicos da rea poltica

    porque, com freqncia, as opinies podem

    ser mais conservadoras em virtude,

    digamos, do trauma de origem do nosso

    pensar, pelo menos no que chamamos de

    Ocidente. Ento, a sua questo inicial

    mais complicada: como desplatonizar o

    nosso olhar? Como falar a partir da vida

    e no de como organiz-la de maneira que

    ela seja estvel, tranqila e feliz? Quer

    como profissionais acadmicos em nossos

    estudos, sem ceder no rigor; quer como

    intelectuais que falamos ao pblico em

    geral. Porque as duas coisas somam-se.

    Evidentemente a essa altura eu j disse

    vrias coisas contraditrias. isso mesmo.

    As coisas envolvem dilemas, aporias e

    contradies, inevitavelmente.

    Thais: Para aproveitar a discusso sobre o

    acadmico e o intelectual, vale perguntar:

    cabe hoje alguma crtica metodologia das

    cincias sociais, ou melhor, ao mtodo

    utilizado para se fazer cincia poltica em

    nossos dias?

    Csar: Aqui eu me ponho no lugar do

    acadmico. O que eu quero saber? Tendo

    em vista o que eu queira saber, me importa

    qual o melhor caminho. Qual o melhor

    caminho para saber o que eu quero saber?

    Se esse caminho passa pela matemtica,

    pela estatstica, pela filosofia, pela histria

    tanto faz. Como que eu melhor sei?

    Quem manda o meu desejo de saber. De

    saber o qu? O problema no sermos

    prisioneiros da idia de que h o

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    caminho para ir a algum lugar. Porque a

    deixa de ser um caminho mtodo, se no

    me engano, quer dizer caminho , e passa a

    ser o caminho que leva a um lugar s,

    tambm chamado dogma se voc me

    permite uma metfora. As pessoas s vezes

    so dogmticas, acham que h um

    paradigma nico das cincias sociais. Isso

    impossvel. As cincias sociais, por

    definio, tm paradigmas concorrentes e

    tem que ter. Isso o nome da nossa

    liberdade de pensar no plano da reflexo

    cientfica ou da reflexo intelectual. Por

    vezes, um paradigma predomina, por vezes

    outro, no me importa. H sempre a

    possibilidade de disjuno. No h o

    caminho real, se que existe na qumica,

    na fsica o que eu duvido, mas no sei.

    Porque certamente na biologia j no

    assim. Enfim, ns no vivemos mais no

    mundo do crculo de Viena. Isso foi em

    1929. O lugar do puro positivismo

    lgico isso acabou. H pessoas que

    falam como se estivessem em 1929, na

    ustria. estranho. Mas isso cada vez

    mais incomum. Tambm no consigo

    entender algum que diga: s h uma

    frmula, que a marxista; a dialtica

    marxista resolve isso aqui... Eu sei l.

    Uma das coisas boas a respeito do mundo

    em que vivemos que h um nmero to

    grande de certezas que nada certo. Quer

    dizer, ns podemos com muita

    tranqilidade exercer certa dvida

    metdica, que vem das origens da reflexo

    moderna, e com isso nos liberarmos para

    pensar, a despeito da opresso do trabalho,

    esse lado duro a que as pessoas so

    foradas. Eu no me foro muito a nada, na

    realidade, salvo por ser preocupado...

    Thais: Voc acha que h algum mtodo

    relegado, descartado, sobrevalorizado, que

    deveria ser resgatado hoje em dia?

    Csar: Sempre h quem valorize isso ou

    aquilo outro. O ponto que se voc

    percorre uma biblioteca relativamente

    grande, ou pesquisa no computador, voc

    descobre a pletora de conhecimentos das

    mais diversas procedncias tericas,

    metodolgicas ou de ponto de vista

    mesmo, de ontologia pressuposta, que a

    esto. Se as pessoas resolvem esquecer

    ou porque seu objeto no o demanda e a,

    tudo bem , ou por preconceito. E, neste

    caso, eu lamento muito. Preconceitos no

    fazem parte do mundo do trabalho

    acadmico, no isso? No podem fazer

    parte de maneira nenhuma. E do ponto de

    vista intelectual, as pessoas deixam claro o

    que no querem. Eu posso estar fazendo

    uma coisa muito estranha, abstrata e

    ecltica. Mas porque, realmente, para

    mim assim. Eu no consigo mais ver

    caminhos reais. Tem gente que at busca,

    mas uma bobagem. Quando voc

    pergunta: mas para saber tal coisa que se

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    tem interesse, tal teoria no melhor ou

    pior? Eu digo: talvez... que a grande

    teoria, no sentido de um personagem

    esquecido da cincia social americana,

    chamado Wright Mills, acabou. O mundo

    se revelou um pouquinho mais confuso, na

    medida em que se imaginava que ele ia se

    tornar homogneo. Alguma coisa

    homognea nele, mas outras no: essa

    homogeneidade globalizante revela

    diversidades nunca dantes percebidas.

    bom que contraditrio, e por a a gente

    descobre algumas coisas... Ento, a grande

    teoria, ou a grande filosofia da histria, ou

    a grande reflexo que vai importar da

    economia ou da filosofia a explicao do

    mundo as pessoas as fazem. Mas, a no

    ser em casos de pessoas geniais, elas fazem

    e se esquece. Alis, esse um problema

    complicado da vida acadmica, na medida

    em que ela se tornou muito ampla, muito

    grande e massificou-se, ela relega a um

    esquecimento muito rpido aqueles que

    esto envolvidos nela. Esse o preo

    inevitvel da democratizao do saber

    acadmico. da vida. interessantssimo

    que as pessoas faam hoje um esforo

    enorme para concorrerem, para no serem

    esquecidas, porque afinal exatamente o que

    as pessoas buscam quando fazem trabalho

    intelectual, sejam elas artistas ou cientistas

    sociais, reconhecimento por mais longo

    tempo possvel. Mas nem todo mundo

    Plato, no ? [risos].

    Pedro: Vamos mudar um pouco o registro

    para fazer uma pergunta mais biogrfica:

    como se deu sua passagem do direito para

    as cincias sociais?

    Csar: O problema que eu no estive no

    direito. Eu freqentei uma faculdade de

    direito e l me fiz bacharel [ttulo recebido

    pela Universidade Federal do Rio de

    Janeiro em 1963]. Mas, no momento em

    que eu estava me fazendo bacharel em

    direito, eu no estava fazendo a faculdade

    de direito. Eu ia l. Eu adquiri um diploma.

    Alis, uma boa escola. Mas eu estava

    totalmente envolvido em certas atividades

    de movimento estudantil (continuamos

    usando o termo, no ?), que tinha um

    pouco a ver com a atividade intelectual de

    imprensa, esse tipo de coisa, e isso me

    obrigou a ser uma coisa, que eu tenho a

    estranha impresso que continuo sendo,

    quando posso; me obrigou a

    autodidaticamente me envolver com coisas

    que no tem a ver com o direito. Eu

    tambm no troquei [o direito] pelas

    cincias sociais. Porque h personagens

    que no tm jeito Deixa para l. Enfim,

    estou me lembrando de no sei qual novela

    de Thomas Mann, acho que Tonio

    Krger... H pessoas que se perdem,

    fatalmente; no h caminho. Simplesmente

    havia coisas que eu tinha que resolver na

    minha cabea para pensar o mundo a

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    minha volta quando eu estava naquelas

    atividades de estudante. O empenho era um

    pouco na atividade intelectual ali

    envolvida. Eu tinha problema, por

    exemplo, com a origem catlica da minha

    formao enquanto estudante antes da

    universidade, com o meu afastamento da

    religio, mas ao mesmo tempo com o meu

    humano temor de abraar com muita

    rapidez o prximo dogma, religioso ou

    no. Ento, estranho que, sei l, o livro

    que me marcou quando jovem foi

    Ideologia e Utopia, na traduo do

    Emlio Willems (que muita gente nem sabe

    que existe, e boa, da Editora Globo).

    Interessantemente, como todo mundo sabe,

    o que quer que Ideologia e Utopia seja,

    um manual de relativismo, muito embora o

    autor passe pginas e pginas a dizer que

    dali no decorre um relativismo. Est bem.

    Bom, mas o relativismo tem suas aporias

    insolveis.... Est bem, deixe isso para os

    filsofos. O ponto no era ser relativista ou

    no. O ponto era no ser dogmtico.

    Agora, a peripcia pela qual eu acabei indo

    estudar cincia poltica nos Estados Unidos

    foi obra do acaso.

    Thais: E parece que voc, no tempo de

    faculdade, freqentava aulas na faculdade

    de filosofia. Era a busca de outra coisa que

    no o direito?

    Csar: Era interesse. O direito no me

    respondia. Hoje, por exemplo, eu entendo

    que para o cientista poltico, em alguns

    casos bvio, e para o socilogo, aquilo

    que se aprende em uma faculdade de

    direito til. Para o intelectual ativo, mais

    til ainda por motivos elementares. Acho

    que as pessoas querem que o mundo seja

    de certa maneira e o nome institucional do

    dever ser a lei. Seja l como se chega a

    ela, mas isso outra histria. Agora, a

    peripcia que me levou cincia poltica

    totalmente obra de um acaso. Acaso, em

    termos. Eu no fiz muitas escolhas. O ano

    de 1964 marcante em me fechar

    caminhos e s deixar abertos outros. Ou,

    pelo menos, s deixar abertos aqueles que

    eu pudesse perseguir. Havia vrios, mas

    alguns no podiam acontecer. Isso a

    estabelece como que se chama agora,

    independncia de trajetria? , voc segue

    o caminho que da vida. No era bem isso,

    eu ia estudar cincias sociais; de fato, ia.

    Mas no ia para onde fui, no houvesse o

    que houve em maro ou abril de 1964.

    Meu caminho para ir para a Frana se

    fechou, por motivos da vida.

    Posteriormente, fui para os Estados

    Unidos. A partir de 1965, eu j estava

    vinculado a uma instituio, que era o

    IUPERJ, onde trabalhei por tantos anos. E

    ainda no havia cursos. Ento as coisas

    seguiram esse rumo.

  • 243

    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Rafael: Em 1968, voc foi fazer o

    mestrado?

    Csar: Os cursos no IUPERJ comearam,

    creio, no segundo semestre de 1968, mas a

    o momento em que eu vou para os

    Estados Unidos. Comea com outras

    pessoas, outros professores. Vou com a

    obrigao de retornar e ingressar no quadro

    de professores da instituio. Deu-se que

    nela fiquei at recentemente, quando os

    membros da instituio saram. Um

    nmero deles est hoje vinculado ao

    IESP/UERJ [Instituto de Estudos Sociais e

    Polticos da Universidade Estadual do Rio

    de Janeiro], e outros seguiram caminhos

    diferentes. Ento, eu diria que a minha vida

    se vinculou a essa instituio como

    professor, na verdade isso. Minha vida de

    esprito, quer dizer, boa parcela

    significativa da minha vida de esprito se

    vinculou a isso de uma maneira, sei l, um

    pouco longa. a vida. So dois teros da

    minha vida. Como o outro tero intil

    [risos], infncia, adolescncia e o

    movimento estudantil, quando eu s fazia

    bobagem (agora eu estou brincando, com

    essa ltima parte, evidentemente; com a

    outra parte, no)... uma coisa estranha,

    que tambm engendrou uma coisa hbrida

    j antes que perguntem, eu vou logo

    avisando. Porque eu no me tornei um

    profissional cientista poltico ou um

    profissional das cincias sociais certinho,

    cannico, com os ttulos certos. Enfim, foi

    tudo meio confuso. E, no obstante, acho

    que a generosidade de meus colegas foi

    permitindo que eu por aqui ficasse e

    tivesse um papel. O que me leva a pensar...

    quo completo um cientista social

    acadmico? Depois disso, vem um outro

    problema: quo completo um homem de

    esprito, seja ele cientista social ou artista?

    So coisas diferentes. O que a vida

    acadmica passou a exigir a partir da

    minha gerao? Passou a exigir que as

    pessoas fossem, ao mesmo tempo,

    pesquisadores criativos e minha gerao

    tem um nmero notvel e muito grande de

    pessoas nessas circunstncias e

    professores competentes. Eu vi que nos

    Estados Unidos um grande nmero de

    pesquisadores criativos dificilmente

    conseguia ser professor competente porque

    no tinha tempo. E eu no diria que minha

    vida foi de intensa pesquisa criativa. Ento

    agora vamos botar isso em outro quadro...

    H uma definio de Ezra Pound que

    Haroldo de Campos utilizava mais ou

    menos assim: o criador, o divulgador, o

    diluidor. O professor , antes de mais nada,

    um divulgador e o que eu sou. Quando

    voc faz isso e est convencido, isso pode

    ser tomado como uma limitao. Bom,

    sendo ou no, o diabo, tem que fazer

    direito, porque a possibilidade de diluir

    enorme. E se voc divulga, quer dizer, se

    transmite e no cria, e se voc est cercado

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    de pessoas que esto criando (estou

    falando de alunos) e que podem vir a criar,

    faa tudo o que puder para que isso ocorra.

    A j uma questo de tica profissional

    de um intelectual um pouco manqu, um

    profissional um pouco gauche no sentido

    de Drummond, por favor... Sobre a

    diferena entre profissionais e

    intelectuais... Vamos falar de um msico?

    O nome dele Adrian Leverkhn. um

    msico imaginrio, um produto da fico,

    do livro mais importante, a meu juzo, de

    Thomas Mann, que o Doutor Fausto.

    o fausto dele. O sujeito se arrogar a

    escrever um fausto complicado, no ?

    Mas ele escreveu... E Lukcs escreveu

    vrios ensaios e trabalhos sobre Thomas

    Mann, a quem conheceu e com quem

    trocou correspondncias desde jovem.

    Recentemente, um aluno [Eduardo Matos]

    apresentou uma tese de mestrado aqui [no

    IESP-UERJ] sobre o jovem Lukcs falando

    do primeiro Mann. O artigo de Lukcs

    sobre o Fausto de Mann chama-se A

    tragdia do homem burgus, e h um

    momento em que ele se refere ao

    intelectual profissional da universidade

    alem e que na realidade, digamos assim,

    instancia aquilo que o intelectual alemo

    tpico. Ele diz que essa pessoa, por conta

    do contexto alemo, vive um ensimesmar-

    se, um pr-se para dentro, um olhar para

    dentro de si, protegido pelo poder. um

    pouco isso que ocorre com esse sofrido

    msico que se fechou dentro de si para

    fazer a grande obra. Vocs leram Doutor

    Fausto? terrvel: o narrador, Serenus

    Zeitblom, narra essa histria, que sempre

    na primeira pessoa. E ele vai narrando,

    narrando e, quando chega ao final do livro,

    diz: e eu nesta pequena cidade alem,

    agora que a guerra est terminando, onde

    me recolhi e consegui ficar ensinando

    nesta pequena universidade etc... Posso

    assim terminar a obra que escrevo sobre

    este meu amigo que h 20 anos perdeu a

    conscincia. Ele deixou de compor,

    simplesmente enlouqueceu depois de ter

    composto sua grande obra. Mas enfim,

    esta separao terrvel entre poder e

    trabalho da mente que freqentemente leva

    a essas situaes fusticas. De fato, ele se

    comporta como Fausto. Essa a troca que

    ele faz: eu quero compor algo

    imorredouro. E no v o que se passa. A

    tragdia do homem burgus... Mas por

    que esse tema agora?

    Thais: Por qu? Revele.

    Csar: Porque um tema que me perturba

    enormemente, embora eu no tenha

    nenhuma participao poltica

    significativa. Enfim, essa relao entre

    saber e poder: como isso terrvel e pode

    ser profundamente doentio... interessante

    que, por vezes, ns pessoas que

    trabalham intelectualmente (a palavra

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    intelectual est sendo usada aqui em dois

    sentidos, um muito amplo e um no sentido

    de uma funo; acho que fica clara a

    distino) nos conferimos uma

    onipotncia terrvel, como se as idias

    tivessem um poder notvel sobre o mundo.

    Esse olhar platnico, a idia que a

    realidade: no princpio, era Plato. Ento,

    as idias fazem e acontecem. Foi por isso

    que ele andou preso porque foi falar de

    idias com a pessoa errada. Mas essa no

    a parte importante da vida de Plato: o

    importante a idia, ser capaz de escapar

    da caverna. A gente escapa da caverna e a

    luz muito ofuscante: uma outra

    caverna. Nessa onipotncia de que

    sabemos mais, h uma certa arrogncia

    que freqentemente se torna intolervel. E

    j no importa se estou falando do

    profissional acadmico ou do intelectual

    militante. No meio disso, o sujeito no se

    apercebe que sim, de fato, idias contam e

    tm importncia, mas que freqentemente

    isso independe da sua vontade. Tm

    importncia porque vm a ter, porque se

    transformam em outra coisa, se

    transformam em parte da vida. Ento

    algo meio eu j falei a palavra

    contraditrio quantas vezes? Pois .

    algo meio contraditrio, a arrogncia do

    intelectual em torno de seu saber, que seria

    todo-poderoso, e ao mesmo tempo o poder

    que ele efetivamente tem, e que com

    freqncia no se apercebe qual . Porque

    no o que ele intenta pode ser o seu

    oposto. A gente pode dar alguns exemplos

    disso. Que tal um exemplo de economia?

    Digamos que numa cidade qualquer se

    descubra que em bairros mais pobres, onde

    haja insegurana no sentido que parte das

    pessoas usa essa palavra, de mais

    criminalidade, etc , as lojas de

    comestveis e supermercados cobram mais

    caro pelo que vendem, muito embora a

    populao seja mais pobre. E uma boa

    explicao econmica ela boa; no

    minha, portanto de que o fato de as

    coisas serem mais caras em lugares

    perigosos nada tem a ver com a procura,

    tem a ver com as condies da oferta, com

    a insegurana. Ento, aos custos de

    oportunidade, envolvida a a fixao de

    preos, agregam-se esses custos da

    insegurana. Ento natural, no

    natural? (Tudo em geral que se diz de

    natural nada tem com a natureza, no

    verdade?) Ento, natural que os preos

    sejam elevados quando as pessoas so mais

    pobres e moram em reas pobres de

    segurana. No uma explicao? Ok. Isso

    de fato d conta do recado de porqu tal

    coisa ocorre. Evidentemente, o sujeito

    tambm pode contar com o fato de que a

    populao seja menos atenta e menos

    demandante em relao a custos. A classe

    mdia, em geral, um pouco mais dura em

    negociaes. Sim, fato, mas esqueamos

    essa disjuntiva. Isto, portanto, uma

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    explicao boa. S que ele no se apercebe

    que acabou de formular a ideologia do

    vendedor. E, freqentemente, no sabe que

    o que est fazendo ali a ideologia do

    vendedor. No importa quem o vendedor,

    se voc quiser chamar de burgus,

    qualquer coisa assim, pouco se me d. Ele

    est racionalizando o comportamento que

    tem a ver com preos mais altos e,

    portanto, com dificuldades maiores para

    quem j dificuldades tem. Toda essa parte

    foi esquecida. A notvel arrogncia que

    fez com que, digamos, um economista de

    Chicago explicasse assim a formulao de

    preos em lugares mais pobres e at

    pudesse ganhar um prmio Nobel por

    coisas como essas lhe d uma auto-

    estima muito elevada e justa. Por outro

    lado, oculta essa outra parte do saber que

    tem esta funo que ele desconhece. E,

    contudo, para citar outro autor importante:

    ele no sabe, mas faz.

    Pedro: Voc falou dos problemas que no

    se resolveriam pelo direito. E voc falou en

    passant do seu envolvimento com o

    movimento estudantil. Hoje, voc

    freqentemente faz cursos e escreve textos

    sobre aquele perodo, sobre a democracia

    de 1946 a 1964 e suas questes. Ento, eu

    queria te perguntar: que questes so

    essas? E qual foi a sua atuao no

    movimento estudantil?

    Csar: Era s, e to s, intelectual.

    Participava de imprensa estudantil. Nunca

    participei sequer de um Diretrio

    [Acadmico]. No tinha a pacincia

    necessria para me envolver... no tinha

    mesmo. {} Escrever para a imprensa

    estudantil tinha certa importncia na

    poca...

    Rafael: Continua tendo...

    Csar: Tinha mais, talvez. Certamente

    tinha mais, porque o nmero de

    universitrios era muito pequeno. E,

    portanto, este conjunto de indivduos

    constitua o qu? Quisessem, ou no, uma

    elite. Alis, fcil ver por sua procedncia

    social. Mesmo na universidade pblica e,

    muito especialmente, nela. Continuamos a

    ter, at hoje, essa coisa estranha de que

    pessoas de origem social mais elevada

    ocupam espaos na universidade pblica.

    Porque ela melhor, em geral. Agora, por

    que me interesso por esse perodo? Ele me

    interessa intelectualmente mesmo. Mas eu

    acho que quando voc se interessa

    intelectualmente mesmo, sempre, no se

    trata de uma coisa que tem a ver com a

    razo. Alis, no h nada que tem a ver

    apenas com a razo, salvo as

    racionalizaes. O que, portanto, no tem a

    ver apenas com a razo... Porque me

    chama a ateno certo tipo de

    efervescncia que corresponde minha

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    juventude, o perodo, ali, dos anos 50 etc.

    E porque me aproxima de uma coisa

    chamada poltica. Puxa, existe poltica,

    verdade, as pessoas votam.... Essas

    coisas: votam, fazem greves, mas no

    muitas, porque, no fundo, as greves eram

    proibidas a despeito de serem permitidas

    pela lei no me pergunte por qu [risos].

    Ento, tambm o incio de uma

    movimentao em torno de um interesse

    intelectual e, no caso, poltico. Isso me faz

    hoje voltar para trs e ficar perguntando: o

    que era esse perodo? Eu o vejo s vezes

    meio maltratado [a democracia de 1946 a

    1964], se contrastarmos com o perodo do

    Estado Novo, com a Repblica Velha, ou

    mesmo com os governos militares que nos

    so prximos (no so to prximos, mas

    da minha gerao, certamente, foram at

    prximos demais, no verdade?). E

    foram objetos de estudo! Diversos grupos

    de estudo (uma coisa ainda que falta, falta

    estudar os militares, falta ainda muita coisa

    desse perodo). Mas essa coisa estranha,

    entre a Constituio de 1946 e o golpe de

    1964, menos estudada... H estudos

    crescentes, no ? Mas, veja, h pouco eu

    mostrava a primeira biografia de um

    presidente da Repblica do perodo [a

    recm-publicada biografia de Jango, escrita

    por Jorge Ferreira]. Agora, s agora... E,

    evidentemente, neste momento, esta coisa

    de estudantes tem um papel muito forte por

    isso, como acabei de dizer. Numa

    democracia eleitoral de participao

    restrita como aquela, em que metade da

    populao era excluda do voto

    simplesmente porque era analfabeta; em

    um mundo que ainda rural (e vocs

    conhecem os textos a respeito, no

    fato?); nesse lugar, essa participao tinha

    um peso de importncia maior. Querendo

    ou no, voc estava mais prximo de certa

    efetividade poltica, em certas

    circunstncias, e que depois se torna mais

    difcil na ditadura por conta da represso.

    Em alguns momentos, acabam sendo casos

    de herosmo: pessoas foram envolvidas em

    situaes de risco de vida. E,

    posteriormente, isso se d por espasmos,

    no ? Momentos. Muito embora o

    movimento estudantil tenha se

    reorganizado todo a UNE, e tudo mais ,

    o peso menor. Possivelmente ser maior:

    se eu estou olhando o que estou olhando, e

    olhando o mundo a minha volta, vai

    crescer este peso. E no como, digamos, se

    quer: ah, agora temos marchas contra a

    corrupo na Avenida Paulista. Bom,

    interessante, um bom lugar para marchar

    contra a corrupo, sem dvida. Mas eu

    estou pensando numa coisa mais

    espontaneamente estudantil que comeou a

    correr o mundo, no ? Ento, isso que foi

    to importante aqui, vai voltar a ser,

    possivelmente. Como agora na Espanha,

    por demais, esse que um lugar to

    agradvel para os imigrantes...

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    Thais: No Chile...

    Csar: No Chile, j h algum tempo.

    Talvez porque de novo se reponham

    questes, em regimes relativamente abertos

    politicamente em que o lugar da juventude

    seja importante. Sob duplo aspecto: h

    mais gente nas universidades, e isso

    importante, e h mais desempregados

    jovens, e isso importante. s vezes so

    os mesmos, s vezes no so. s vezes so

    imigrantes, s vezes so locais, s vezes, s

    vezes, s vezes. E quando digo que isso

    tende a ser generalizado por conta do fato

    de que o mundo est ficando parecido e,

    portanto, cada vez mais diferente (risos).

    Certos processos so muito parecidos.

    Quer dizer, afinal, estamos em um mundo

    que o capitalismo tomou como um todo.

    No se trata mais de uma geoeconomia. A

    economia capitalista ocupou todos os

    espaos territoriais que pde. Falta pouco,

    no isso? Isso simples, no ? Todo

    mundo sabe isso, no ? Muito embora o

    fundamento dessa reflexo seja marxista

    e, no caso, bastante adequada , ela [a

    economia capitalista] tambm apossou-se,

    o que mais importante e tambm uma

    reflexo de natureza marxista , de mais e

    mais atividades humanas. Ah, estamos

    falando da competio entre universitrios

    (risos)? Ah, bom, tinha me esquecido que

    tnhamos falado disso j, de alguma

    maneira, no verdade? Ento, de mais e

    mais atividades humanas. Mais mesmo.

    Escapar da mercantilizao, da mercadoria,

    desta forma, cada vez mais difcil. Mas,

    por outro lado, isso engendra reaes

    novas, porque ns no achamos que haja

    processos de submisso total das pessoas a

    uma boa ordem, objetividade, o que quer

    que isso seja. H o que parece reedio de

    coisas antigas, mas que so coisas novas;

    so outros jovens, so outras demandas,

    so outras questes e, s vezes, so as

    mesmas... Acho que eu fugi do assunto,

    no?

    Pedro: Existe uma forma de olhar para a

    cena, para o mundo contemporneo, que

    enxerga otimisticamente certa inovao, ou

    uma suposta inovao, nos meios de

    resistncia. E entende que as possibilidades

    tcnicas de uma nova forma de resistncia

    se exibiriam na Primavera rabe e em

    Barcelona tambm , por meio de um

    cyberativismo. Isso seria uma grande

    novidade no panorama da resistncia a essa

    subsuno do mundo ao capitalismo de que

    voc estava falando. O que voc acha

    disso?

    Thais: E tambm que uma resistncia, de

    alguma forma, a essa mercantilizao da

    vida, que voc falou. Em que medida?

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Csar: Vamos comear pelo final. Eu

    passei uma parte grande da minha vida

    ouvindo pessoas que vulgarizavam o

    marxismo, praticamente transformando

    foras produtivas em tecnologia, e

    tecnologia em produtora de no sei bem o

    qu. Tecnologia a gente faz o que quer

    com ela, no fato? Quer dizer, o fato de

    que haja novos meios de comunicao, em

    que os seres humanos querem fazer alguma

    coisa coletivamente , evidentemente,

    importante. Mas me custa a crer que a

    derrubada do governo neocolonial, to

    prximo ao senhor Sarkozy, na Tunsia,

    tenha sido, como a mdia freqentemente

    nos conta, resultado de uso do twitter. Quer

    dizer, no foi um movimento apenas de

    classe mdia. No acredito que os jovens e

    a populao em geral da Tunsia que

    um pas relativamente pobre , que todos

    tenham esses recursos sua disposio.

    Mas, de qualquer maneira, movimentos

    sociais surgem pelo rumor... O boca a

    boca, hoje, se transforma no olha-a-tela,

    cell phone, ou o que bem seja, enfim,

    celular... Isso so apenas meios. Ento, eu

    comeo pelo comeo: desde os anos 70

    para os 80, e isso envolve a Queda do

    Muro [de Berlim] (o Muro caiu, como eu

    sempre digo e repito, em boa hora, sobre

    uma experincia fatdica de opresso em

    que se transformou o projeto socialista

    daquele perodo). O Muro caiu em boa

    hora. E que a histria no se repita, o que

    neste caso no apenas uma afirmao,

    que eu no sei se tem base factual.

    certamente um desejo: que no se repita

    essa histria). Mas, esse mundo todo que

    caiu permitiu, por outro lado, a expanso

    capitalista sem freios. Ns todos sabemos

    disso, e isso comentado por tanta gente,

    no mesmo? E, por outro lado, como no

    podemos mais falar de um lugar (podemos,

    mas vamos fazer bobagem, no ?), no d

    para ser eurocntrico, ocidentocntrico,

    ou o que bem seja. Quer dizer, esse mundo

    fragmentou-se. Fragmentou o que no

    passado poderia ser chamado de classes

    subalternas. Fragmentou o mundo dos

    dominados. Uma fragmentao que

    prpria da ordem capitalista. Sempre o

    processo de desorganizao, cotidiana,

    dos trabalhadores acho que eu estou

    citando Marx... S que hoje a questo no

    s os trabalhadores. A questo uma

    pletora de opresses que surgem. E essa

    fragmentao leva a formas diversas de

    resistncia. O ponto : resistir apenas o

    primeiro momento de transformar; e

    transformar s possvel quando a

    resistncia fragmentada de alguma forma

    se aproxima. Duvido que se torne coesa.

    No acredito na ressurgncia de algum tipo

    de partido que junta tudo, junta todas as

    opresses, e pe aquilo tudo e subsume a

    uma totalidade lukacsiana ou althusseriana.

    Ento, no isso, no por a. Como , eu

    no sei. Acho que tambm no vou ver

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    como ser. Mas as resistncias so

    crescentes. Agora, vamos ao norte da

    frica e, a, foram pases do mundo rabe,

    no ? Notem que so movimentos bem

    diversos. Ns sabemos muito pouco sobre

    eles. Por exemplo, ns sabemos sobre a

    Tunsia, que se tratava de um regime

    amigvel Frana. Eu diria que bem

    amigvel. O que muito importante a

    vrios ttulos, inclusive, digamos, impedir

    a imigrao etc. Ns sabemos em relao

    ao Egito que o presidente, o ditador

    derrubado, fora a pessoa que recebera, logo

    em seu primeiro ano de governo, o

    presidente Obama, no fato? L foi

    pronunciado o famoso discurso do Cairo

    em que os EUA e sua poltica externa, pela

    voz de seu primeiro mandatrio, se

    reconciliavam a expresso quase que

    literal com o mundo islmico. Eu no

    imaginava que era preciso um discurso de

    reconciliao com 1 bilho e 200 ou 300

    milhes de pessoas. Havia antagonismos

    entre os EUA e o mundo islmico em

    geral? Eu imaginava que no, no ? De

    qualquer maneira, eu suponho que no era

    bem isso que queria ser dito, era a questo

    da islamofobia etc. Mas isso foi dito no

    Cairo. Portanto, tratava-se, como todo

    mundo sabe, de um aliado notvel,

    fundamental para os EUA. E importante

    para a segurana do Estado de Israel, no

    verdade? De repente, seus amigos o

    abandonam, e o presidente Mubarak vai...

    alis, eu acho que mesmo com os amigos

    ele iria. A coisa da Lbia j mais

    complicada. A gente no sabe muito bem o

    que aquilo. Eu no sei. Fico procurando

    quem saiba, para saber o que aquilo. Eu

    sei que ele [Muammar Kadhafi] tinha

    entendimentos notveis com o seu scio,

    um associado seu italiano, o premier

    Berlusconi. E uma das operaes

    importantes, ali, era de novo impedir a

    imigrao. Controlar a imigrao ilegal

    para a Itlia. Alm dos interesses no

    petrleo, que o caso da Lbia e vrias

    outras questes que alguns desses pases

    tm , a questo toda de conter essa

    imigrao que vem por ali. Essas coisas

    so todas fluidas, e no deixam claro o que

    vai ocorrer num mundo em que um dos

    aspectos que, por exemplo, (a observao

    no minha, ouvia isso de meu amigo

    Fabiano Santos outro dia) voc at

    recentemente podia dizer que nos

    principais pases europeus o direito do voto

    era dado a praticamente todo mundo que

    podia votar, com exceo das crianas. J

    no mais assim, dado o fluxo de

    imigrao. Ento, os imigrantes em alguns

    lugares votam para certas coisas e, em

    outros lugares, no votam para nada. E

    essa grande imigrao apenas comeou,

    no isso? O trabalho vai aonde o capital

    est, no ? A fora de trabalho vendida

    onde ela possa ser comprada. Ento, as

    pessoas so destitudas a no vender a sua

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    fora de trabalho na Frana, na Inglaterra,

    na Noruega. E, de repente, temos um

    mundo assustador. O que assusta no o

    norte da frica, a Europa. O continente

    mais assustador no momento, em termos

    de potencial obscurantista, a Europa,

    dados os processos materiais que se deram,

    os processos sociais que se deram, dada a

    reao que isso engendra. H muito tempo

    que no eram pases de recepo de

    imigrantes, no ? Os imigrantes que

    entraram por ali entraram de outra maneira.

    Os chamados brbaros... ou seriam os

    sarracenos? Os pases europeus expeliam

    sua mo de obra excedente para as

    Amricas, para a Austrlia. Isso, por

    exemplo, possibilitou fortemente

    experimentos de socialdemocracia, porque

    a mo-de-obra remanescente, com as

    economias e com seu crescimento, menor

    e, portanto, tem maior poder de demanda.

    Enquanto isso, torna-se mais barata a mo

    de obra nos pases para onde esses

    europeus foram, nesse mundo que apenas

    parcialmente estava integrado. Estou

    falando de um processo que vem do final

    do sculo XIX, da primeira grande crise

    que nos deu tantos imigrantes. A primeira

    [crise] que engendra as migraes, e que

    faz a Amrica.

    Rafael: Os nacionalismos so tema de

    pesquisa importante para voc. No prprio

    site do IESP, os nacionalismos aparecem

    como uma de suas linhas de pesquisa, o

    que interessante por utilizar o plural, j

    demonstrando certa perspectiva. A

    propsito, no existiria uma combinao

    interessante entre o processo de formao

    do bloco regional europeu e os

    nacionalismos europeus?

    Csar: Sim, eles vo juntos, no ?

    Thais: Eu queria acrescentar uma questo

    a esta... Voc falou dos brbaros, falou

    desse continente assustador que a

    Europa; quais so as possibilidades de

    reinveno dessa Europa? Porque hoje a

    gente v acadmicos europeus estudando

    epistemologias do [hemisfrio] Sul...

    Csar: Eu no sei. Eu vejo uma coisa

    muito estranha... No sei por qu me veio

    cabea Joseph de Maistre comentando, em

    sua famosa passagem, que conhecia

    franceses, alemes, ingleses, mas no

    conhecia nenhum homem em geral. Ento,

    a pergunta clssica: quantos europeus

    voc conhece? Voc conhece franceses,

    alemes... De um lado, essa integrao j

    envolve, internamente, afirmaes

    culturalmente autnomas no interior de

    pases da Europa no contexto da Unio

    Europia pense na Espanha. Pense na

    recente deciso do Tribunal Supremo

    invalidando a emenda constitucional,

    votada h algum tempo atrs, que permitia

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    que houvesse estados e que a Catalunha

    fosse um estado. Isso no pode: foi votado,

    mas considerado inconstitucional. H,

    portanto, tenses internas em pases que

    sempre a tiveram, mas isto foi, de certa

    maneira, afogado pelo centro, pelas

    guerras. A Espanha o caso clssico. No

    interior da Europa, independentemente do

    sul, voc tem no governo um movimento

    que prega a formao da Padnia, a liga

    Norte. Seu ponto excluir da convivncia

    com o mundo esta gente do mezzogiorno,

    do sul. Veja bem, no s os nacionalismos

    das naes conhecidas continuam a existir,

    como no interior delas essas questes se

    do. So vrios movimentos que se

    superpem. Agora vamos falar da

    imigrao. A voc tem um movimento,

    digamos, europeu. Um exemplo do que eu

    quero dizer com isso: o que eu fao com a

    Turquia, se eu for europeu? A Turquia

    pode fazer parte da Organizao do

    Tratado do Atlntico Norte (OTAN), ou

    seja, eles podem perfeitamente morrer por

    ns, mas no podem fazer parte da Unio

    Europia, eles no podem se integrar aqui

    de maneira legtima. complicado, no ?

    E interessante que o papa (no me

    recordo se foi este ou o papa anterior)

    chamava a ateno para o fato de que a

    Europa crist. Como entrar, ento, um

    pas muulmano que seria a segunda maior

    populao da Unio Europia (a primeira

    a Alemanha)? H formas novas de

    nacionalismos sucedneos e agora eu

    estou falando apenas quando esses

    nacionalismos sucedneos so agressivos,

    so contra algum, no sentido de que

    ocupam um lugar direita. No me

    importam os seus portadores. Sabemos que

    muitos eleitores desses partidos que esto

    direita so oriundos da classe operria

    antiga e votavam na extrema esquerda. O

    mundo mudou, as pessoas mudam. Agora,

    olhe do nosso lado. evidente que h um

    movimento de populaes que querem

    integrar-se ali onde podem, supostamente,

    trabalhar melhor. Mas, nesse momento,

    no podem. Porque este mundo um

    mundo de crises cclicas continuadas e

    curtas o que parece, eu no sou

    economista. O que no quer dizer que v

    haver nenhuma catstrofe. No precisa. A

    catstrofe no sentido de que vai acabar

    no vai acabar nada. Isso assim mesmo:

    ups and downs, ups and downs, de maneira

    muito mais rpida. paralisante. Eu fico

    pensando no continente africano,

    especialmente, mas olho em volta... Como

    voc corta essa distino: freqentemente

    afirmando a nacionalidade. E a as relaes

    internacionais comeam a nos falar sobre

    potncias emergentes etc. o

    nacionalismo delas, dos BRICS, ou que

    nome tenha. Se cresce, se tem mais poder

    etc., esse nacionalismo deixa de ser

    defensivo, ganha outros aspectos. Ento,

    engraado: o tpico nacionalismo se torna

  • 253

    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    freqentemente mais forte e mais

    diversificado, com formas novas, num

    mundo que, por outro lado, feito

    homogneo sob o aspecto da economia em

    expanso que homogeneza e

    capitalista ela toda. por isso que quem

    trabalha com estudos subalternos j no

    opera com categorias de estudos

    nacionalistas, que so basicamente de

    origem europia. Quando no so, so

    releituras, recepes como o caso do

    ISEB. Uma das coisas mais interessantes a

    respeito do nacionalismo que todo

    nacionalismo , necessariamente, na vida e

    na prtica de um nacionalista, de um

    movimento nacionalista ou de um partido

    nacionalista, diverso por definio

    identitrio. O que ele est dizendo : eu

    sou o outro que voc no . o ns

    ideal do [Norbert] Elias. Mas se voc

    observar teoricamente, simplesmente

    estudando, todos se parecem. H certas

    proposies que so rigorosamente

    idnticas, evidente. Como que se pem

    essas questes a partir do Sul? No sei

    responder a isso, mas j uma outra

    histria.

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Foto 2: Csar Guimares

    Fonte: Arquivos dos Entrevistadores

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    Thais: interessante que nesse processo

    de reinveno se queira buscar essas

    epistemologias do Sul...

    Csar: interessante, portanto, que os

    intelectuais europeus e americanos

    comeam a se sentir inseguros a respeito

    das suas cincias, no ? Eu acho isso

    decisivo. A recepo que aconteceu e

    continua acontecendo, que se produz nos

    centros mais poderosos da riqueza e, pois,

    do saber ( sempre assim: poder-riqueza-

    saber com freqncia vo juntos,

    particularmente o saber acadmico

    institucionalizado), essa recepo tem sido

    tal que ela agora refeita. Ento, o saber

    do Sul mais antigo do que imaginamos.

    H toda a coisa de que estudos subalternos

    um exemplo (so indianos que a essa

    altura j escrevem em Nova Iorque). Mas o

    saber do sul vem de algum tempo, deste

    sculo. Quem se deu ao luxo de ler as

    memrias de Nehru? Faz tempo, no ?

    Quem foi o vietnamita que estudou em

    Paris? O Ho-Chi Min aplicou bem de

    maneira que ele no precisou ser reflexivo,

    ele s agiu, no ? Para vencer trs

    guerras, no fcil a guerra japonesa, a

    guerra francesa e a guerra americana.

    Prestemos uma homenagem ao povo do

    Vietn porque no Vietn assim que se

    chamam essas guerras. No se chama

    guerra do Vietn. So os americanos que

    chamam assim a guerra que ns fizemos

    l. Os vietnamitas chamam a guerra

    americana... muita guerra, muita morte.

    S na americana morreram dois milhes de

    vietnamitas, entre homens, mulheres e

    crianas. Soldados e no soldados. uma

    vitria estranha, essa... Nehru estudou na

    Inglaterra e diz uma frase que tem muito a

    ver com um sentimento que j no existe,

    nas suas memrias (eu li a biografia faz

    muito tempo; na realidade, eu li nos

    Estados Unidos nos anos 1970 eu no sei

    por que eu me dedicava a ler mais isso do

    que o que me mandavam ler em classe.

    Coisa estranha, no sei bem por qu ou

    talvez saiba...). Ele dizia: Sempre me

    senti, por mais integrado que fosse, um

    estrangeiro estudando na Inglaterra. Mas

    agora, em meu prprio pas, eu tenho um

    sentimento de exlio. Essa reflexo uma

    simples frase de alcance notvel sobre a

    condio colonial. Hoje, as coisas j no se

    do assim; h um movimento de reflexo

    afirmativa por parte do Sul, o que

    incomoda. Por que incomoda? Vamos ver

    isso na vida no na teoria, no no pensar,

    no na epistemologia, mas na existncia.

    Ento, o imigrante integrador,

    integrativozinho, que entrava ali pelo

    porto de Nova Iorque (sabemos isso pelo

    cinema, mas no s) e dizia o nome... E lhe

    falavam: Ill call you Smith, eu vou

    chamar voc de Smith, de agora em

    diante. No l um nome novo o sujeito

    tinha um nome polons desse tamanho...

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Isso acabou. A questo do

    multiculturalismo tem a ver um pouco com

    isso: as pessoas mudam de territrio, mas

    no mudam. Tem coisas, boas ou ms, de

    acordo com a nossa opinio, que elas

    levam e que no se fundem com as coisas

    boas ou ms do lugar de recepo. Ento,

    h formas novas de conflito, o que faz com

    que a Europa seja assustadora. Porque ela

    no estava acostumada, digamos, com o

    mau comportamento de seus colonos. Ela

    agora tem que se haver com o mau

    comportamento dos seus colonos. Isso, por

    um lado, assustador, a curto prazo. Pode

    levar a racismos e fascismos fascismo

    um termo genrico; e j est levando. Por

    outro lado, enormemente enriquecedor

    do ocidente. No h nada que melhore e

    que mais enriquea o mundo europeu do

    que esta invaso africana, sul-americana,

    do que a diversidade cultural, a riqueza

    com que, ao contrrio do que pensam

    muitos na Europa e nos Estados Unidos, o

    ocidente s tem a ganhar. Este s ter a

    ganhar freqentemente teorizado no Sul.

    E uma frase que incomoda. Voc pode

    imaginar pases da Europa cuja populao

    estagnou e que, de fato, se continuar a

    imigrao, vo mudar completamente em

    sua composio cultural, tnica (as pessoas

    dizem racial raa, nesse caso, um

    fenmeno poltico-social, j que isso no

    existe biologicamente). De fato, isso

    mesmo. Mas j ocorreu dantes. Isto

    ocorreu sempre! S que agora est

    ocorrendo ali, naquele lugar; naquela

    Europa j ocorreu tantas vezes... Invases,

    imigraes etc. a gente aprende isso no

    colgio, no ? Ento, esto com sorte,

    ainda no tem nenhum tila nessa histria.

    Os hunos ainda no chegaram. Mas os

    otomanos assustam, no ? E quando no

    so os otomanos, que j so parte da

    Europa armada que coisa estranha, a

    Turquia parte da Europa armada , so

    simplesmente pessoas desprovidas de

    qualquer poder. E assustam. E

    amedrontam. E provocam o pior que h

    nos seres humanos. E grave, porque seres

    humanos freqentemente so cultos. Uma

    das coisas importantes a respeito do

    intelectual, do homem culto e da mulher

    culta, que ele tem exatamente os mesmos

    dios, as mesmas raivas, os mesmos

    ressentimentos, o mesmo potencial de

    brutalidade do que qualquer um, com uma

    diferena: ele pior, porque racionaliza

    melhor. Ele mais sofisticado nisso.

    Ento, a arrogncia intelectual

    complicada... Eu estou falando uma poro

    de coisas repetitivas, mas agora a respeito

    de outro assunto. E, portanto, Csar, com

    o que voc se preocupava nos anos 1950?.

    Com tudo o que leva um jovem, nos anos

    50, a pensar nos trabalhadores, nas pessoas

    oprimidas. Um mero sentimento elementar

    de justia. Depois racionaliza-se isso, luta

    de classes, no sei o qu... No importa

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    no entra de outra maneira. Razo pela

    qual to tnue essa preocupao, essa

    entrada, desse tipo de ser humano que os

    comunistas do passado chamavam de

    sentimentos pequeno-burgueses... Mas

    evidente que eram pequeno-burgueses, s

    vezes eram gro-burgueses, e da? Eram

    sentimentos. Certamente, eram sentimentos

    que coisa terrvel, as coisas no so s

    razo. Eram sentimentos, tinham a ver com

    a sensibilidade. E por isso, exatamente,

    que, sim, eles tm razo: fcil voc

    mudar de sentimento. Os sentimentos

    mudam. E, de repente, se diz: pxa, esse

    povo com o qual eu me identifiquei tanto

    no corresponde ao meu desejo, ento ele

    est errado, e agora eu vou para o outro

    lado! O mundo est povoado, a minha

    gerao est povoada disso: a minha, as

    anteriores e as posteriores tambm.

    impressionante. Eu j disse isso em algum

    lugar por escrito, est para sair um trabalho

    em que eu falo isso levemente. Mas, enfim,

    isso me impressiona... e eu estou

    respondendo primeira pergunta...

    Thais: Voc falou de humano; estamos

    falando de humano, demasiado humano.

    Voc falou da condio existencial desse

    Nehru que vai ao estrangeiro e depois se

    sente estrangeiro no seu prprio pas. Falou

    do sentimento escondido atrs das razes...

    Em uma conversa, voc disse uma frase

    sobre condio humana mais ou menos

    assim: o dilogo que a vida impede que se

    d mesmo com as pessoas mais prximas.

    No sei se voc se lembra disso. Vejo

    questes polticas a envolvidas... Tem

    uma questo poltica? Em que medida?

    No sei se a colocao funciona para

    voc...

    Csar: No sei. A nica coisa que me

    ocorre que h dilogos na poltica que

    no se podem travar. Porque no se podem.

    Porque basta uma frase para que a

    conversa termine. Por mais que a

    conversao seja to relevante para autores

    que eu respeito tanto (vamos usar a palavra

    conversao apenas para no perdermos

    muito tempo com complicaes). H

    coisas sobre as quais no h persuaso

    possvel. Esse um problema

    complicadssimo da poltica. Porque h

    coisas que so rigorosamente indizveis na

    esfera da interao humana. O que nos pe

    diante da questo complexa da tolerncia,

    do respeito pelo outro. Eu tenho um certo

    horror ao termo tolerncia por causa da

    sua ambigidade. No pelo lado positivo

    do termo, mas pelo lado de desigualdade

    que ele freqentemente envolve. Eu

    sempre brinco com isso: experimente dizer

    pessoa que est a teu lado eu te tolero.

    Isso j estabelece a desigualdade, no ?

    Portanto, trata-se do respeito pelo outro.

    H que tudo respeitar? No. No. No! Se

    o sujeito me diz uma coisa racista, quase

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    que meu dever intelectual responder mal,

    dizer que aquilo racista. Pode no ser

    conveniente, voc pode se machucar (mas

    isso um outro assunto). O adequado

    moralmente dizer: o que eu estou

    ouvindo? Por isso, muito difcil

    imaginar uma situao ideal de fala, a no

    ser como algo marcado por alguma forma

    de transcendentalismo. Mas que, em geral,

    quer eliminar esse aspecto. E a eu me

    complico, muito embora tenha enorme

    respeito por grandes filsofos do nosso

    tempo.

    Pedro: Eu queria talvez dar uma guinada,

    voltar para a questo do Sul. Hoje no

    Brasil vivemos sob o governo do Partido

    dos Trabalhadores, um governo que

    desperta as anlises mais variadas. Queria

    que voc falasse sobre o que estar sob um

    governo do PT h tanto tempo, o que isso

    representa para a esquerda brasileira, em

    termos de dificuldades: da dificuldade para

    a esquerda sobreviver diante disso e da

    dificuldade de governar.

    Csar: O ponto no o Partido dos

    Trabalhadores. O ponto : como definir a

    esquerda? Se voc define a esquerda de

    certa maneira, que supe transformaes

    fundamentais na ordem capitalista, ou a

    sua superao, ento por decerto no existe

    esquerda no poder em pas nenhum. Isto

    inclui a China, onde o Partido comunista,

    veja voc. No caso brasileiro, h diversos

    aspectos. De um lado, h uma adaptao

    do Partido dos Trabalhadores nova

    ordem mundial, amenizando-a,

    aprofundando certos tipos de programa que

    so parte dela. No sentido de que a poltica

    social que se faz no Brasil, se faz em

    outros pases da Amrica Latina com outro

    nome: no importa se o Mxico, se a

    Argentina, ou se a Venezuela. Alis, eu

    vou ver os valores relativos ao PIB em

    cada um desses pases para ver quem gasta

    mais assim... Se se trata desta outra

    esquerda: mas ela possvel? Vamos

    pensar em partidos de esquerda social-

    democratas europeus. Como se chama

    mesmo o partido social-democrata da

    Espanha? J mudou de nome ou no?

    Porque Partido Socialista Obrero

    Espanhol...

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Foto 3: Quadro de Csar Guimares

    Fonte: Arquivos dos Entrevistadores

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

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    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Thais: O nome continua o mesmo...

    Csar: Continua o mesmo. um nome

    muito denso, no ? Mas quando chegou

    ao poder, a poltica que ps em prtica foi

    a de entrada na Europa, se eu bem me

    recordo, ali pelos anos 1980. At porque,

    enfim, por acaso eu observei turistas

    observam coisas fora do roteiro , era um

    momento terrvel de desemprego etc.

    Depois se recupera, e agora volta mesma

    coisa... Esse um aspecto. O Partido dos

    Trabalhadores entra e, certamente, com

    relao populao mais pobre eu no

    estou falando sem refletir a palavra

    pobre, porque pobreza passou a ser o

    conceito-chave nessa histria toda... Ento,

    certamente h um sentido positivo, h

    circunstncias internacionais, h

    deliberaes internas, tudo isso fato. Por

    outro lado, isso um bloqueio a formas

    tradicionais anteriores de esquerda,

    possveis ou no; mas o bloqueio total.

    Grupamentos e partidos esquerda, quer l

    o que isso signifique, havero de demorar

    em consolidar-se particularmente

    tornando-se um todo. Eles so parte de

    uma vasta aliana que o PT comanda. Do

    ponto de vista do funcionamento

    institucional, impossvel ser de outra

    maneira. No h como lidar com mltiplos

    partidos e mltiplos interesses nesse

    contexto. Por exemplo, de acordo com o

    que eu leio, o Brasil assim: ou a crise j

    est aqui e ns no vemos porque somos

    cegos ou a crise aqui no chegar porque

    estamos perfeitamente protegidos. J ouvi

    isso dantes. Certamente no foi nesses

    ltimos 10 ou 15 anos. Aqui uma ilha de

    tranqilidade? No se trata de uma coisa

    nem de outra. J se tem problemas de crise.

    Neste momento, ento, comea a criar-se

    condies para outros tipos de

    movimentao poltica. Certamente, se no

    temos indignados a srio na praa

    porque, enfim, a crise no nos afetou. No

    estou dizendo que so apenas crises

    econmicas que nos afetam, mas afetam.

    Tudo indica que haver continuidade do

    governo do PT? No sei, no fao a menor

    idia. Noto, sim, que a oposio mais

    consistente est sem muito o que dizer.

    Rafael: A propsito das denncias de

    corrupo governamental veiculadas na

    imprensa, pode-se dizer a pauta da

    oposio jornalstica?

    Csar Guimares: . Isso incrvel. A

    oposio ao Lula ficou pulverizada e

    fragilizada, a despeito de seus

    governadores eleitos que, a propsito, no

    se entendem entre eles. H, no entanto,

    outra questo a falar do governo Lula, e

    no do PT. o choque simblico que

    representa a eleio de Luiz Incio Lula da

    Silva. Um choque terrvel sobre as elites

    tradicionais do pas, quaisquer que sejam.

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    UM PROFESSOR EM BUSCA DA CRIAO. UM INTELECTUAL EM DEFESA DA

    DIGNIDADE: ENTREVISTA COM CSAR GUIMARES

    CSOnline Revista Eletrnica de Cincias Sociais, ano 6, ed. 14, jan./abr. 2012

    Como que pode ocorrer sua eleio? Eu

    no sou especialista em saber como que

    pode; o fato que no h esse exemplar

    de chefe de Estado que tenha essa origem

    operria e, alm do mais, sem educao

    formal mnima ou adequada. Adequada a

    qu eu no sei Ento, isso um choque,

    a despeito de suas polticas no terem nada

    propriamente de radical. No so polticas

    radicais, ainda que algumas dessas

    polticas ferissem interesses, o que, por

    certo, diferente do governo anterior. E

    diferente. Esse choque provoca

    ressentimento, dio. Ento, muito

    complicado. Por outro lado, promove, seja

    ou no o desejo de Lula, uma valorizao

    da auto-estima da pessoa que se identifica

    com aquela condio. Isso por sua feita

    tem o aspecto positivo e o aspecto

    negativo, dependendo do lugar em que

    voc se pe na poltica. De um lado,

    integrativo, quer dizer, integra as massas.

    Por outro lado, valoriza o homem da

    massa, o homem que no podia estar l. E,

    portanto, se julga no direito de ter o direito

    que deveria ter, que o de falar. um jogo

    meio complicado. Por isso as pessoas

    falam em lulismo. No sei bem o que

    isso, mas eu entendo o impacto. Dizer que

    Ah, no tem importncia porque as

    polticas so. No tem importncia? O

    que no tem importncia? Weber? Olhem,

    uma coisa ungida, no?

    Rafael: Lulismo seria uma reintroduo

    da categoria populismo no Brasil?

    Csar: Algumas pessoas na verdade

    utilizam isso para falar de populismo o

    que quer que isso signifique , outras no.

    Com freqncia, populismo diz respeito a

    polticas populares de que a gente no

    gosta. Essa a definio que eu costumo

    usar. Corporativismo so os interesses

    organizados de que ns no gostamos, e

    assim por diante. Alguns conceitos tm

    essa capacidade de ser bastante livre de

    valores. [risos]

    Pedro: Algumas pessoas caracterizam o

    governo Lula como ps-neoliberal. Na sua

    disciplina, quando voc trata da

    democracia de 1946-1964, distingue o

    governo Vargas pelo nacional-

    desenvolvimentismo, tendo como smbolo

    mximo a Petrobras. Fala tambm de um

    outro desenvolvimentismo, dessa vez no

    no sentido propriamente nacional (ou

    nacional de um outro jeito), para se referir

    ao governo de Juscelino Kubitschek, cujo

    smbolo seria Braslia. Que

    desenvolvimentismo temos hoje? Ser que

    a categoria ps-neoliberalismo

    interessante? E qual seria o seu smbolo?

    Csar: Para comear, vamos esquecer dos

    anos 50 e depois voltamos para l. No h

    nada ps-neoliberal. Outro dia um amigo

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    me dizia: o neoliberalismo foi derrotado.

    Eu disse para ele: ele no foi derrotado, ele

    o ar que voc respira. Voc o derrotou no

    mundo da sua cabea, no mundo das

    idias. Na vida, ele o mundo. O que se

    faz so movimentos de adaptao.

    Neoliberalismo apenas um nome feio ou

    bonito para tratar da expanso capitalista

    no mundo, sob o comando do capital

    financeiro e por a vai. No h ps nada.

    Pode existir uma nfase maior (e a uma

    outra coisa), ou seja, certo temor de uma

    nova forma de diviso internacional do

    trabalho que deixa o pas ao relento em

    uma situao de crise. Esse temor ocorre

    porque o pas se torna, como no passado

    (digamos nos anos 50), exportador do que

    agora se chama commodities. Palavra

    estranha porque portuguesa e se torna

    inglesa e nos retorna em ingls.

    Comodidade era uma palavra usada pelos

    comerciantes portugueses no sculo XVI e

    XVII. Mas ns preferimos mercadorias;

    ento, bolsa de mercadorias bolsa de

    commodities. As palavras andam de acordo

    com quem comanda o capitalismo

    mundial, as palavras que dizem respeito ao

    comrcio, indstria etc. Ento, h pessoas

    que se importam com o mercado interno e,

    portanto, com a indstria, com movimentos

    de desindustrializao que ocorreram em

    alguns pases. No Brasil, menos; na

    Argentina, mais. Ento, introduziu-se esse

    elemento e deve-se ter certo cuidado ao

    introduzi-lo, porque as coisas hoje vo

    muito juntas. Parte da indstria produz

    infra-estrutura e/ou bens utilizveis no

    mundo de uma agricultura e de uma

    minerao de exportao, e por a afora.

    Essas coisas esto mais e mais fundidas.

    Ento, o desenvolvimentismo de que se

    fala imediatamente remete infra-

    estrutura. Fala-se da reduo do custo

    Brasil: transporte, porto etc. Parece um

    plano de metas; digo isso mal comparando,

    no a mesma coisa, mas essa a idia.

    Esse movimento existe. Junto com ele,

    existe tambm o movimento de se

    preocupar com a indstria para o mercado

    interno. um equvoco achar que as

    economias crescem baseadas apenas na

    fora de sua exportao. Elas ficam

    frequentemente dependentes dos preos de

    commodities que podem variar muito.

    Ento, economias grandes que contam com

    um mercado interno em crescimento

    podem preocupar-se com essas questes. O

    que ocorre em contraste com os anos 50?

    Nesse caso, no o Brasil. A indstria era

    a soluo para todo e qualquer pas recm-

    independente ou de reas conhecidas como

    subdesenvolvidas, a exemplo da Amrica

    Latina. No importa o tamanho do pas, da

    populao: industrializa-se.

    Evidentemente, certos mercados eram

    muito pequenos, sendo preciso proteger

    essa indstria, de maneira que se protegia a

    indstria automobilstica local contra os

  • 263

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    carros da matriz dessa mesma indstria.

    Recorde-se, pois no faz tanto tempo, de o

    presidente Collor chamar os carros

    brasileiros de carroas. Assim, entra-se em

    um mundo de protecionismo que a meu

    juzo no favorece ningum, a no ser

    quem protegido por pouco tempo. Por

    outro lado, que idia desenvolvimentista?

    Que diabos isso, a bem da verdade? Eu

    no sei. Suponho que por desenvolvimento

    entende-se mesmo acumulao de capital.

    Ento, pretende-se que ela se amplie na

    rea da indstria, da chamada economia

    real. O que isso significa? Significa lucro

    para quem produz nessa rea.

    Simplesmente crescer isso o que

    significa, criar emprego e por a vai. Mas o

    crescimento acelerado tende a produzir

    uma diferenciao enorme na distribuio

    tanto de renda quando de ativos, de

    qualquer natureza, financeira ou no,

    acumulativa ou no. Isso evidente. Se

    ningum interfere Socialdemocratas no

    ps-guerra interferiram nesse processo,

    impedindo que milagres alemes se

    transformassem em milagres que

    enriquecessem os herdeiros da indstria

    alem. s vezes eram apenas filhos dos

    rapazes que antes forneceram coisas

    necessrias s tropas alems. As geraes

    se sucedem, voc sabe como . Na Itlia,

    quem financia o fascismo o pessoal de

    Turim. As empresas so as mesmas, tem os

    mesmos nomes, s vezes at o mesmo time

    de futebol. Os pneus so os mesmos. De

    volta ao assunto, se voc acrescenta apenas

    a palavra desenvolvimentismo, voc volta

    aos anos 50, em que a idia era essa. Estou

    falando com algum, me lembrem. O

    desenvolvimentismo era, digamos, a face

    terceiro-mundista da socialdemocracia.

    Nela havia a dupla fonte de salrio, uma

    fonte monetria e outra no monetria (a

    dos servios prestados pelo Estado Social).

    No desenvolvimentismo no havia isso.

    Havia empregos, alguns melhores do que

    os empregos rurais. E ponto. Supe-se que

    quem diz desenvolvimento, diz bem-estar.

    No me lembro mais o autor que li em

    Chicago, que dizia que desenvolvimento

    econmico com freqncia significa ill-

    fare, ou seja, mal-estar. Por si s,

    desenvolvimento econmico no diz nada.

    E isso no sentido tradicional. No estou

    pensando nas implicaes ambientais ou

    nada do tipo, o que complica mais ainda.

    Mas voc perguntou sobre os anos 50 e as

    minhas distines. Elas so mais ou menos

    simples. O industrialismo ganhou no final

    da Guerra. J vinha ganhando nos anos 30

    e no final da guerra ganhou. Ganha ainda

    no governo Dutra, porque as idias de que

    ns tnhamos, em uma rgida diviso

    internacional do trabalho, o papel de

    produzir caf, cacau e algodo foram

    derrotadas. Essas idias foram derrotadas,

    embora a importncia dessa produo fosse

    enorme, inclusive, financiando a

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    contragosto a industrializao. Alm dessa

    produo, tambm a inflao teve esse

    papel financiador, ou seja, ns, os que

    trabalhvamos. Inflao isso, o imposto

    mesmo. A questo : qual industrializao?

    O perodo Vargas parece ser marcado por

    essa industrializao que vinha associada a

    uma idia de autonomia nacional, ao

    nacionalismo econmico. No que

    Vargas fosse um nacionalista, muito

    embora seus discursos nesse perodo o

    sejam. Mas o governo uma peripcia

    muito complexa e contraditria. uma

    coisa em sua primeira parte e outra na

    segunda. Eu sei que a literatura diz o

    contrrio, mas, lamento, eu discordo da

    literatura. Meu problema no o que se

    votou no Congresso, as 35 mil coisas

    Houve a criao da Petrobras, do BNDE e

    as controvrsias em torno disso tudo. E

    em torno disso que se do as lutas polticas

    que levam ao golpe contra Vargas. em

    torno disso, do cmbio e de mais trs ou

    quatro assuntos, como sempre... No

    entanto, para os observadores que

    favoreciam Vargas e para os observadores

    que a ele se opunham, aquilo era um

    nacionalismo. E que hora ruim: Guerra da

    Coria, incio da Guerra Fria.

    Nacionalismo passa a ser uma coisa

    perigosa, mesmo quando nas mos de

    Vargas, que no podia ser chamado de um

    esquerdista notvel. O segundo perodo

    um perodo de adaptao. Alis, pobre se

    adapta. Pobre um leitor de Darwin sem

    saber. Ele vai se adaptando, caso contrrio,

    no sobrevive. Rico pode se dar ao luxo de

    ser um dinossauro. Ento, qual a

    adaptao? Adaptao significa indstria.

    De maneira mais dura mesmo, o problema

    industrialista. Mas retira-se o nacional.

    Quer dizer, a vem a demanda por capital

    estrangeiro, propiciada, alis, por medidas

    tomadas durante o governo Caf Filho,

    com a Instruo 113 [Portaria da

    Superintendncia da Moeda e do Crdito -

    SUMOC]. H toda a histria econmica j

    estabelecida sobre isso, no esquecendo do

    papel do ministro da Fazenda Eugnio

    Gudin. J que no tem jeito, pelo menos

    que no seja s capital estatal... Assim, o

    nacionalismo econmico estava presente

    na Amrica Latina daquele momento.

    Pensem no Mxico, no peronismo, na

    esquerda em geral, no Chile a partir de

    determinado momento. Pensem tambm no

    nacionalismo que, por motivos bvios, no

    era apenas econmico, como nas naes

    em descolonizao; ou, no nacionalismo

    que se funde com movimentos de

    orientao comunista, como o caso

    chins. So movimentos de libertao

    nacional no o nosso caso por aqui. J

    Cuba tem uma relao muito prpria com

    os Estados Unidos e no vale a pena

    adentrar nesse assunto. No a mesma

    coisa e bobagem misturar alhos com

    bugalhos. Ento se retira esse carter

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    nacional continua-se at falando nele,

    mas a poltica outra, muito embora a

    indstria permanea. Eu no comento o

    perodo Joo Goulart, em que h a

    introduo das reformas de base, que

    confirma o industrialismo, mas que passa a

    considerar o problema agrrio e esse

    problema no acaba. H integrao muito

    clara do movimento sindical dos

    trabalhadores, que no so mobilizados

    pelo Joo Goulart to-s. Essa uma m

    leitura. Deve-se olhar como uma via de

    mo dupla. Era uma transformao que

    vinha se operando, porque o movimento

    sindical era muito controlado. A represso

    era muito violenta em toda esta

    democracia. O ministro da Justia do

    general Geisel era o mesmo ministro da

    Justia do Juscelino Kubitschek. Era a

    mesma pessoa, s que mais jovem: as

    mesmas idias e nada a declarar. O povo

    convivia muito com a represso ao

    movimento das classes subalternas. Essa

    integrao, essa entrada em cena, para os

    tericos do populismo parece,

    incrivelmente, o pior momento. Imagina,

    greves polticas! li eu no me lembro

    em que autor. Eu penso: mesmo? Quer

    dizer que greve poltica no pode, que

    trabalhador deve fazer greve por salrio?

    Esses autores escrevem do ponto de vista

    da esquerda, o que torna para mim as

    coisas mais incompreensveis. Eu no

    entendo coisas muito sofisticadas. Para

    certas concepes do populismo, esse o

    pior perodo, o perodo em que ocorre

    manipulao etc. Sem este nome, a direita

    o dizia: Goulart est manipulando os

    sindicatos, estabelecendo o peronismo no

    Brasil etc. O termo populismo e as idias

    sobre populismo no Brasil so formulados

    antes do governo Joo Goulart,

    desenvolvendo-se mais posteriormente,

    como uma espcie de acerto de contas com

    esse passado em que, afinal, o que quer

    que se chamou de esquerda foi derrotado.

    Ento porque adotou as polticas

    erradas. Em geral, voc derrotado porque

    adota as polticas erradas, no verdade?

    No faz sentido nenhum dizer isso...

    Polticas certas so derrotadas exatamente

    por isso, no tm fora. Uma das questes

    atuai