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Entre Textos,Língua e Ensino

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ReitorNaomar Monteiro de Almeida Filho

Vice-ReitorFrancisco Mesquita

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

DiretoraFlávia Goullart Mota Garcia Rosa

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de Pesquisa: Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica

GELING - GRUPO DE PESQUISAEM EDUCAÇÃO E LINGUAGEM

Conselho EditorialAngelo Szaniecki Perret Serpa

Carmen Fontes TeixeiraDante Eustachio Lucchesi Ramacciotti

Fernando da Rocha PeresMaria Vidal de Negreiros Camargo

Sérgio Coelho Borges Farias

SuplentesBouzid Izerrougene

Cleise Furtado MendesJosé Fernandes Silva Andrade

Nancy Elizabeth OdonneOlival Freire JuniorSilvia Lúcia Ferreira

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Entre Textos,Língua e Ensino

Dinéa Maria Sobral MunizEmília Helena P. M. de Souza

Lícia Maria Freire BeltrãoOrganizadoras

saladeaula 5

EDUFBASalvador, 2007

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©2007, by autoresDireitos para esta edição cedidos à EDUFBA.

Feito o depósito Legal.

Projeto gráficoAlana Gonçalves de Carvalho

Editoração eletrônica e arte finalGenilson Lima

Preparação de Originais e Revisão de TextoDinéa Maria Sobral Muniz

Emília Helena Portella Monteiro de SouzaLícia Maria Freire Beltrão

NormalizaçãoSônia Chagas Vieira

Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa – UFBA

EDUFBARua Barão de Geremoabo, s/n

Campus de Ondina, Salvador-BACEP 40170-290

Tel/fax: (71) 3283-6164www.edufba.ufba.br

[email protected]

E61 Entre textos, língua e ensino / Dinéa Maria Sobral Muniz, Emília Helena P. M. deSouza, Lícia Maria Freire Beltrão, organizadoras. - Salvador : EDUFBA,2007.198 p. - (Saladeaula ; 5)

ISBN 978-85-232-0472-3

1. Ensaios. 2. Linguagem e educação. 3. Leitura. 4. Língua portuguesa -Estudo e ensino. 5. Leitura - Meios auxiliares. 6. Leitura (Ensino do 2º grau). I.Muniz, Dinéa Maria Sobral. II. Souza, Emília Helena P. M. de. III. Beltrão, LíciaMaria Freire.

CDD - 372

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Sumário

Apresentação da Coleção... 7

Apresentação do Livro... 9

Sobre os autores... 13

Narrativas fazem sentidos... 15Mary Arapiraca

A prática da expressão oral na escola básica... 27Dinéa Maria Sobral Muniz

Alfabetização... 49Iara Rosa FariasRenato Izidoro da SilvaDjárcia Brito de Santana

O ONDE em estruturas relativas no português atual... 75Emília Helena Portella Monteiro de Souza

Produção de textos na escola... 101Lícia Maria Freire Beltrão

Leitura, diálogo e educação... 143Dinéa Maria Sobral MunizMaria Lucileide Mota Lima

A literatura na escola como presença de outros... 165Dinéa Maria Sobral MunizGiselly Lima de Moraes

Histórias de leitura de alunos e alunas da roça... 179Dinéa Maria Sobral MunizJane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios

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Apresentaçãoda Coleção

A Coleção Sala de Aula, que a Editora da UFBA (EDUFBA) passou a

publicar, busca incentivar a divulgação da produção elaborada pelos

professores para o seu trabalho cotidiano de ensino. Nosso objetivo é

de que esses materiais acadêmico-pedagógicos, voltados especialmen-

te para os estudantes, possam apoiar e aprimorar o ensino de gradu-

ação, suprindo lacunas de bibliografia especializada em determinadas

disciplinas ou cursos.

Dotar a EDUFBA de uma política cultural e editorial consistente tem

sido uma das preocupações do atual Reitorado. Esta coleção é mais

um passo dado na construção desta política que, a partir da formação

dos conselhos Deliberativo e Editorial, previstos no regimento da Edi-

tora, decidiu investir na criação de coleções específicas que possam

estimular e apoiar um trabalho acadêmico de qualidade como uma

das missões do Compromisso Social da UFBA.

O caráter pedagógico e didático desta nova Coleção implica em um

trabalho rigoroso e em um esforço de síntese dos autores, todos eles

especialistas qualificados em suas áreas de trabalho docente. Os auto-

res, cujos textos estão aqui publicados, partem, portanto, de experiên-

cias vividas, com isso, buscando cumprir o seu fundamental papel na

formação acadêmica e incentivar a criação de uma biblioteca discen-

te de referência que possa se transformar em uma biblioteca do estu-

dante.

Enfim, com a criação da Coleção Sala de Aula, a EDUFBA e a UFBA

buscam colaborar para o aprimoramento e a atualização da forma-

ção universitária, especialmente em seu patamar de graduação.

Flávia Goullart Mota Garcia RosaDiretora da EDUFBA

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Apresentaçãodo Livro

É com a alegria dos que estão começando que nós, integrantes do

Grupo de Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING – da Linha de

Pesquisa, Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica, Programa de Pós-

Graduação em Educação da Faced/Ufba, apresentamos (ao público

interessado) nossa primeira publicação. Trata-se de um conjunto de

ensaios dedicados às questões que relacionam educação e lingua-

gem, binômio com o qual estão envolvidos todos os pesquisadores-

autores dos estudos aqui divulgados.

O Grupo de Educação e Linguagem, cadastrado no CNPq desde o ano

de 2004, vem procurando contribuir para a formação de pesquisado-

res cujo interesse seja a compreensão de como a prática educativa

pode ser desenvolvida com base em estudos realizados no campo da

linguagem, sem desconhecer que esse se insere em uma prática filo-

sófica.

A presente publicação oferece resultados de estudos que estabele-

cem a relação entre educação e linguagem, em uma linha filosófica

que considera a práxis pedagógica e busca compreender as lacunas

para as quais as reflexões aqui apresentadas se constituem em cami-

nhos informados pela pesquisa.

Assim é que, entre os textos, a língua e o ensino, podem ser vistos

numa perspectiva em que estão reunidos pela teoria e pela prática

pedagógica. Por isso, os ensaios aqui apresentados se seguem em

uma ordem em que, no primeiro, o de Mary Arapiraca, a língua é

considerada sob o aspecto da narrativa. Trata-se de uma reflexão da

autora sobre como a arte de narrar se relaciona com o fazer pedagó-

gico e desse fazer como dizendo respeito a todos – às crianças, prin-

cipalmente – que são regidos pelo simbólico e que vivem à procura de

sentidos para histórias verdadeiras, para as quais todo final pode ser

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apenas o começo. Em Narrativas fazem sentidos são trazidas duas

situações que são analisadas de modo exemplar.

O texto A prática da expressão oral na escola básica, de Dinéa

Maria Sobral Muniz, resulta de um trabalho de investigação na escola

fundamental, onde o ensino da língua, considerando a modalidade

oral como expressão livre, se revela, de modo singular na prática de

uma professora.

Em Alfabetização: processos históricos, lingüísticos e psicogenéticosna leitura e na escrita, Iara Rosa Farias, Renato Izidoro da Silva e

Djárcia Brito de Santana, autores do terceiro texto deste livro, resolve-

ram tomar estudos realizados no âmbito de uma disciplina (Alfabeti-

zação), para refletirem sobre a escrita da língua como objetivo de

quem a ensina aos que se iniciam na compreensão de um processo

que é, ao mesmo tempo, histórico, lingüístico e psicogenético.

Apresentando resultados de pesquisa no campo da língua portugue-

sa, Emília Helena Portella Monteiro de Souza nos traz um estudo so-

bre o uso do ONDE intitulado: O ONDE em estruturas relativas noportuguês atual: evidências de variação e mudança. Trata-se de

resultado de investigação lingüística, de interesse para quem ensina a

língua portuguesa, disciplina cuja prática pedagógica precisa buscar

inspiração em teorias menos contraditórias ou simplificadoras e mais

coerentes e informadas cientificamente.

Produção de textos na escola: trabalho pesado?, de Lícia Maria Freire

Beltrão, instaura o diálogo necessário com aqueles que, atentos às

questões pedagógicas da produção de textos escritos na escola, se per-

guntam se há motivos para que estudantes, quando não professores,

reconheçam essa atividade como um trabalho pesado. Para isso, a au-

tora toma a produção escrita do texto Trabalho pesado, apresentado

por um estudante do 3o ano do Ensino Médio, visando a corresponder

à consigna proposta por seu professor, que se confunde com um frag-

mento da obra de Clarice Lispector, A hora da estrela, a analisa, na

perspectiva discursiva, e, se deslocando dele, vai a textos produzidos

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por estudantes do Ensino Fundamental, para propor discussão amplia-

da, considerando três dos importantes aspetos pedagógicos da escrita

escolar: a aprendizagem, o ensino e a avaliação.

Em Leitura, diálogo e educação, Dinéa Maria Sobral Muniz e Maria

Lucileide Mota Lima tomam a leitura como prática que, na escola,

tendo um significado expressivo para a vida do ser humano, contribui

de modo relevante para o seu desenvolvimento, quando se associa

às práticas pedagógicas a noção de dialogia e quando essa é tomada

como uma inter-relação possível.

Tratando da literatura na escola, Dinéa Maria Sobral Muniz e Giselly

Lima de Moraes, a partir da pergunta “para que a literatura na esco-

la?”, fazem uma reflexão no texto intitulado A literatura na escolacomo presença de outros. As autoras consideram que a leitura do

texto literário, mais do que a de outro tipo de texto, possibilita ao

leitor um rico contato com o mundo em que a partilha de experiênci-

as e valores resulta de um confronto com as vozes dos outros presen-

tes no texto.

Finalmente, para fechar esta publicação que abre para novas reflexões

que ainda precisam ser feitas, Dinéa Maria Sobral Muniz e Jane Adriana

Vasconcelos Pacheco Rios oferecem ao leitor interessado nas práticas

de ensino da língua na escola as noções de leitura que, em Históriasde leitura de alunos e alunas da roça: itinerários de leitura numasemiótica da terra, se apresentam nas representações de alunos e

alunas, estudantes do Programa de Educação de Jovens e Adultos no

município de Serrolândia-BA. Trata-se de uma recolha preliminar de da-

dos de pesquisa que possibilitou às autoras compreenderem como, a

depender da história pessoal, cada um constrói um sentido para a prá-

tica de ler e como se revela o estágio de leitura que cada aluno acede

em sua trajetória de vida. A análise das autoras abre possibilidades de

mais reflexões sobre o ensino, quando se trata de tomar a língua em

sua distribuição através da leitura de textos. A leitura é vista, aqui, como

uma prática social em que o sujeito-leitor se forma, mesmo que em

condições adversas. Fica a certeza de que há muito por ser des-velado,

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quando se trata de questões relacionadas com a língua e seu ensino,

quando se trata das práticas de leitura na escola, quando se trata da

relação entre educação e linguagem.

As respostas a essas questões vão continuar dependendo de pesqui-

sas e publicações que representem o esforço dos que, assim como no

caso dos autores da presente obra/trabalho, procuram apresentar suas

reflexões a partir de investigações teóricas e práticas.

Dinéa Maria Sobral Muniz

Emília Helena Portella Monteiro de Souza

Lícia Maria Freire Beltrão

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Sobre os autores

Dinéa Maria Sobral MunizGraduada em Letras pela UFBA. Mestre e Doutora em Educação pelaFaculdade de Educação da UFBA. Professora adjunta da Faculdade deEducação da UFBA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educa-ção e Linguagem – GELING. [email protected]

Djárcia Brito de SantanaGraduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feirade Santana. Professora da Escolas Reunidas Antonio Carlos Pedreira.Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da FACED/UFBA. [email protected]

Emília Helena Portella Monteiro de SouzaGraduada em Letras pela UFBA. Mestre e Doutora em Lingüística peloInstituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Professora adjun-ta da Faculdade de Educação da UFBA. Pesquisadora do PROHPOR –ILUFBA e do GELING. [email protected] e [email protected]

Giselly Lima de MoraesGraduada em Pedagogia. Mestranda do Programa de Pós-graduaçãoem Educação da Faculdade de Educação da UFBA. Professora substitu-ta da Faculdade de Educação da UFBA. [email protected]

Iara Rosa FariasGraduada em Letras. Mestre em Língua Portuguesa e Lingüística Geralpela UNESP/CAr e Doutora em Semiótica Francesa e Lingüística Geralpela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Lingua-gem – GELING. Professora da FACED – UFBA. [email protected]

Jane Adriana Vasconcelos Pacheco RiosGraduada em Letras. Mestre em Educação pela Universidade doQuébec. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educaçãoda UFBA; professora da Universidade do Estado da [email protected]

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14

Lícia Maria Freire BeltrãoGraduada em Letras pela UCSAL. Mestre e Doutora em Educação pelaFaculdade de Educação da UFBA. Professora adjunta da Faculdade deEducação da UFBA. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educaçãoe Linguagem – GELING. [email protected]

Maria Lucileide Mota LimaGraduada em Filosofia. Mestre em Desenvolvimento Humano.Professora da FIB - Centro Universitário da Bahia. Colaboradora doGELING. [email protected]

Mary ArapiracaGraduada em Pedagogia. Mestre e Doutora em Educação pelaFaculdade de Educação da UFBA. Professora Associada da Faculdadede Educação da UFBA. Pesquisadora e Vice-Coordenadora do Grupode Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING. [email protected]

Renato Izidoro Da SilvaMestre em Educação pelo do Programa de Pós-Graduação emEducação da Faculdade de Educação da UFBA. [email protected]

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Mary Arapiraca 15

Narrativas fazem sentidos

Mary Arapiraca

O começo...

Todo mundo possui histórias para narrar – esta é aprincipal premissa deste texto. O mesmo fato podeser narrado de maneiras variadas, a partir do con-texto da narração, do lugar e implicação do narrador.Isso, de certo modo, coloca em cheque o dito po-pular de que contra fatos não há argumentos. JoãoUbaldo Ribeiro, (1984, p. 7), no seu romance Vivao povo brasileiro, chega a afirmar “O segredo da ver-dade é o seguinte: não existem fatos, só existemhistórias”.

Todos gostamos de ouvir e contar causos, muitasdas vezes sem outra utilidade que não a de erguernossa alma aos vários céus que criamos na terra,até o “da boca da onça”.1

As narrativas existiram desde sempre e começamcom a própria história da humanidade. As oraisprecederam os livros, e a tradição oral salvou do

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16 Narrativas fazem sentido

esquecimento boa parte do caminhar humano. Mesmo com oadvento do livro e da internet, a oralidade permanece exercen-do seu papel na constituição das histórias individuais e coletivas.Cecília Meireles, com quem concordo, assim se refere ao le-gado da tradição oral:

Não há quem não possua, entre suas aquisições da infância,a riqueza das tradições recebidas por via oral. Elasprecederam aos livros, e muitas vezes os substituíram. Emcertos casos, elas mesmas foram os conteúdos desses livros.O negro na sua choça, o índio na sua aldeia, o lapão metidono gelo, o príncipe em seu palácio, o camponês à sua mesa,o homem da cidade em sua casa, aqui, ali, por toda partedesde que o mundo é mundo, estão contando uns aos outroso que ouviram contar, o que lhes vêm de longe, o queserviu a seus antepassados, o que vai servir a seus netos,nesta marcha de vida. (MEIRELES, 1984, p. 48-49)

E por que as narrativas são tão presentes em nossa vida? Porque vivemos à cata do “disse me disse”, embora não nos con-sideremos as mais fofoqueiras das pessoas? Arrisco dizer queé pelo fato de sermos regidos pelo simbólico, de sermos seresem busca de sentidos e rumos para a nossa trilha e explicaçõespara tudo o que acontece aqui, ali e acolá. Desde sempre, acriatura humana buscou explicações para as coisas que lhe tra-zem inquietação, que a aterrorizam, como a morte, a origemda vida e do universo; e, como nunca encontrou um manualque desse conta dos sucedidos e não sucedidos na sua existên-cia concreta, passou a inventar o que já tinha sido inventado,dando-lhe conotação de novidade. Assim, as angústias existen-ciais e o desejo de compreender as coisas, de encontrar expli-cação para os problemas do ser e da vida, têm induzido o espíritohumano a produzir narrativas. Porque nascem da inquietação,elas constituem condição fundamental para o ser humano de-

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Mary Arapiraca 17

senvolver suas capacidades e seguir apaziguando-se, isso des-de infinitas léguas de tempo. No dizer de Benjamin, no seuensaio O narrador:

Quando ‘bom conselho era caro’, a lenda sabia dá-lo equando ‘os cuidados eram extremos’, a sua ajuda era a maispróxima. Esses cuidados eram os do mito. A lenda conta-nos das primeiras medidas tomadas pela humanidade paralibertar-se do pesadelo que lhe foi imposto pelo mito.(BENJAMIN, 1975, p.76)

Para ele, o primeiro narrador é e continua sendo o de lendas.“A lenda, que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças,por já ter sido em tempos passados o primeiro da humanida-de, sobrevive na narrativa”. Indicando o fascínio libertador doqual dispõe a lenda, diz:

O mais conveniente, e é isto o que a lenda ensinou hámuitos e muitos séculos à humanidade e ainda hoje àscrianças, é enfrentar as forças do mundo mítico com astúciae arrogância. (Assim a lenda polariza a coragem, e istodialeticamente: em subestimação da força, e daí a argúcia, eem superestimação, de onde surge a arrogância). O fascíniolibertador, do qual dispõe a lenda, não envolve de maneiramítica a natureza, mas é uma indicação da sua cumplicidadecom o indivíduo libertado. (BENJAMIN, 1975, p. 76)

Portanto, nesse importante ensaio, o autor qualifica o narradorde conselheiro, como deixa entrever no excerto anterior, sendoexplícito no seguinte: “o narrador é um homem que dá conse-lhos ao ouvinte”. (BENJAMIN, 1975, p. 59). E dar conselho“significa muito menos responder a uma pergunta do que fazeruma proposta sobre a continuidade de uma estória que nesteinstante está a se desenrolar. [...] Um conselho, fiado no tecidoda existência vivida, é sabedoria”. (BENJAMIN, 1975, p. 65)

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18 Narrativas fazem sentido

Esse pensador identifica o interesse prático como um traçocaracterístico de muitos narradores, entendendo-se que a nar-rativa carrega consigo, de forma clara ou oculta, sua utilidade.“Pode tratar da transmissão de uma moral, de um ensinamentoprático, da ilustração de um provérbio ou de uma regra funda-mental da existência”. (BENJAMIN, 1975, p. 65)

É interessante que Benjamin tenha identificado nas narrativasantigas “uma forma artesanal de comunicação”. Para ele, foi PaulValéry quem mais apropriadamente classificou a imagem espiri-tual da esfera artesanal de que procede o narrador, comparandoo seu fazer com as coisas perfeitas encontradas na natureza “depérolas imaculadas, de uvas plenamente amadurecidas...”, escla-recendo que “Esse procedimento paciente da natureza foi imi-tado há tempos pelo ser humano”. E tomando algumaspalavras-chave de uma observação do poeta sobre a obra de arte,Benjamin as compara com o habitat da arte de narrar:

Aquela velha coordenação de ‘alma, olho e mão’ que apare-ce nas palavras de Valèry, é a coordenação artesanal queencontramos no habitat da arte de narrar. Pode-se até darum passo adiante e perguntar: a relação que o narradormantém com sua matéria, a vida humana, não é ela própriauma relação artesanal? Sua tarefa não consiste justamenteem trabalhar de maneira sólida, útil e única, a matéria dasexperiências – próprias ou alheias? (BENJAMIN, 1975,p.73-74)

Faz sentido a forma exata das narrativas, por isso, tão prenhede sentidos, diferenciando-as das informações que carecem deexplicações, conforme se lê:

O extraordinário e o maravilhoso são sempre relatadoscom a maior exatidão, mas o relacionamento psicológicodos fios da ação não é oferecido à força ao ouvinte ou ao

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Mary Arapiraca 19

leitor. Fica a seu critério interpretar a situação tal como aentende, e assim a narrativa alcança uma envergadura am-pla que falta à informação. (BENJAMIN, 1975, p. 67)

Benjamin conclui seu ensaio, considerando que o narrador en-tra na categoria dos professores e dos sábios. “Ele dá conselho– não como o provérbio: para alguns – mas como o sábio: paramuitos. Pois lhe é dado recorrer a toda uma vida (uma vida,aliás, que abarca não só a própria existência, mas também a dosoutros)” (BENJAMIN, 1975, p. 74). Quando o produziu, eletomou por referência um narrador especial Nicolau Lescov, nas-cido em 1919 em São Petersburgo, escritor cujos contos reve-lam interesses e simpatias pelos camponeses, reconhecido, porisso mesmo, por Gorki, como “o escritor mais arraigado nopovo, totalmente a salvo de qualquer influência estrangeira”.(BENJAMIN, 1975, p.75). As criaturas que lideram a fileira daspersonagens de Lescov, segundo, ainda, Benjamin,

‘milagrosamente salvos’: os justos. Pawlin, o peruqueiro, oguarda dos ursos, o guarda prestimoso – todos eles, querepresentam a sabedoria, a bondade, o consolo do mundo,envolvem o narrador. É nitidamente reconhecível que sãoperpassados pela imagem da mãe deste. ‘Era ela’ assim a descreveLescov ‘tão bondosa, que era incapaz de fazer mal a qualquerser, fosse gente ou animal’. (BENJAMIN, 1975, p. 77)

Neste texto, estou considerando por narrador todo o ser hu-mano, porque são todos, como já disse, regidos pelo simbóli-co e vivem à procura de sentidos para rumar sua existência.Cada humano tem coisas para contar porque guarda na cabeçae no coração tudo o que marcou, de modo positivo ou negati-vo, seu mundo vivido. Sabiamente, Gabriel García Márqueznos ensina que “A vida não é o que a gente viveu, e sim o que agente recorda, e como recorda para contá-la”.

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20 Narrativas fazem sentido

Nada mais apropriado para efetivar a arte de narrar do quetorná-la um ofício artesanal, prolongado, colocando tempo notempo que não se tem na atualidade, em face das muitas tare-fas que cada humano empreende com medo de não dar contada vida. Faz sentido, então, considerar que uma das funda-mentais tarefas de quem se dedica à educação (pais, professo-res, sacerdotes...) é a de estimular e acolher narrativas que,apesar de não serem explicativas, explicam o modo de ser decada qual e de seu entorno.

Certa feita, ouvi num “café filosófico” da TV Cultura, que ca-rente não é só quem não recebe presentes, mas principalmentequem não tem para quem dar presentes. Acolher as narrativascomo presentes preciosos, porque todo mundo precisa ter paraquem ofertar os sentidos que constrói, constitui-se num sa-boroso ato de generosidade para com o outro. Qualquer um,letrado ou não, diante de um evento ou da ausência dele pro-duz sua narrativa, e ninguém é principiante nessa arte. Achoadmirável o texto de Drummond de Andrade, A incapacidadede ser verdadeiro, porque ele apresenta o cerne da alma humanaque é o de olhar a vida compridamente. Do mesmo modo quepara Cecília Meireles “as escadas medievais sem balaústres esem patamares” convidam-na e afligem-na, o cotidiano de cadapessoa, no universo de suas interações sociais, está aíconvidando-a e afligindo-a o tempo todo, induzindo-a a mil euma histórias, numa teia que não tem início e nem fim. Ficarindiferente a esses apelos é desperdiçar o espetáculo dassensações próprias e alheias que dão o colorido da vida.

As narrativas não envelhecem, não caducam. Embora expres-sem a complexidade dos vários tempos e espaços ocupadospelo homem, existe um ponto comum: compõem um legadoético e estético.

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Mary Arapiraca 21

Eu sou eu e minhas circunstâncias, disse com propriedade Ortegay Gasset. As narrativas são instauradas por sujeitos concretos,constituídos de “cabeça, corpo e desejos”, com traços deexpressividade e discurso enunciador circunstanciado porquevive em interação com outros, representando-os, ora em atitu-de de confirmação, ora de negação, considerando que a singula-ridade dos sujeitos se inscreve no uso social da língua. Dessemodo, as narrativas são povoadas de convicções, permanentesou passageiras, não importa, expressam juízo de valores, os quaissão construídos na dialogia, encerrando vozes sociais.

História de verdade

Três crianças vendiam canetas na porta do Banco do Brasil postoda UFBA. Vendiam esse objeto de escrita, mas não escreviam.Uma professora resolveu ensinar-lhes os segredos da línguaescrita. E começou fazendo leituras de histórias e poemas queela considerava interessantes. Machado (1986) Menina bonita dolaço de fita, Orthof (1990) Uxa, ora fada ora bruxa, Ziraldo (1980)O menino maluquinho, Meireles (1979) As meninas e por aí foi.Perguntando o que sentiam com aqueles textos, a mais novarespondeu: Eu gostei mais de Arabela do que de Maria, porqueeu não conhecia o nome e é bonita feito Vera Fischer. Agora euqueria uma história de verdade. Apanhada de susto, a professoradisse: Está certo, mas conte você primeiro uma história deverdade. E foi mais ou menos assim a sua narrativa: Uma mãe,que tinha muitos filhos e não tinha nada para dar de comer,resolveu vender uma vaca que era só o que tinha. Mandou oirmão mais velho vender a vaca na feira. Ele passou o dia todoe ninguém comprou a vaca. No fim do dia, alguém pediu para

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22 Narrativas fazem sentido

ele trocar a vaca por um punhado de feijão. E ele trocou. Amãe ficou zangada e lhe bateu muito, dizendo que não podiafazer nada com aquele pouquinho de feijão. O menino choroumuito e foi se deitar no sótão, e da janela jogou o feijão. Quan-do ele acordou, tinha nascido um restaurante com todo tipode comida boa e as crianças foram servidas por primeiro.

Caro leitor, o que é uma história de verdade? O que é maisverdadeiro, a tristeza ou o desejo? O que alimenta mais asnarrativas: a desesperança ou a angústia? É possível indicar nar-rativas de verdade para os outros?

Pensando na capacidade de simbolizar dessa criança e em suaextraordinária facilidade de verbalizar “uma história de verdade”,fico a imaginar a pequenez do significado do autoritarismo. Su-por que o outro só tem ouvidos e olhos e boca para admirar econcordar e que não tem cérebro que vê, ouve e fala o que demais profundo toca os seus sentimentos, quer sejam de indigna-ção, de tristeza, de alegria, de angústia ou de desejo, é imaginarque o autoritarismo é capaz de resolver os problemas das pesso-as, das coisas e dos mundos. É não entender que o desejo funda-mental em cada ser é o de ser desejado pelo outro, é o desejo detornar o outro próximo de suas coisas mais fundamentais.

Pode você nos dizer, caro leitor, que uma sala de aula não é umdivã, e vou ser obrigada a concordar com você. Mas, veja bem,as pessoas que povoam uma sala de aula estão ali para desen-volver estruturas de conhecimentos, para desvendar a ciência,para descobrir os segredos da língua e da matemática, enfim,desenvolver sua inteligência para melhorar sua qualidade devida. Só que a alma humana não é tão objetiva assim, é muitomais ambígua e extraordinária do que se pode supor, e se elanão se revela, tudo o mais fica complicado.

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Mary Arapiraca 23

O professor zeloso pode, e com razão, ficar preocupado com opouco tempo que tem para dar conta de tanta coisa importantepara fazer. Mas não existe nada tão importante quanto a educa-ção integral como perspectiva interminável, que se encaminha,necessariamente, pela subjetividade de cada um. A apropriaçãode conhecimentos passa pela metodologia interna ao sujeito queproduz sentidos sobre os significados que lhe são direta ouindiretamente apresentados. No coletivo esses sentidos sãomodificados pela plasticidade da mente humana. Por isso, nãoadianta correr naquilo que não pode ser abreviado, é preciso dartodo o tempo do mundo para que as pessoas, os nossos alunosapresentem suas narrativas e, a partir delas, possam construiroutras e firmar a sua história de leitor de seu mundo e do mun-do do outro, inscritos em toda parte, inclusive na página escrita.

Uma outra história de verdade

O Natal estava próximo e dona Elissa resolveu, como fazia to-dos os anos, brindar algumas crianças com presentes que elasdesejassem e que estivessem dentro das suas posses. Encon-trou uma criança na sinaleira e perguntou o que desejava paraaquele Natal. – Uma árvore bonita, cheia de bolas e de luzinhas.Dona Elissa providenciou o solicitado com muita alegria, pelanovidade do pedido. Depois do Natal, encontrou-se com a ga-rota e quis saber como havia sido seu Natal. – Foi a primeiravez que Papai Noel foi lá em casa. Todo mundo ganhou pre-sente. Você sabia que Papai Noel só aparece em casa que temárvore de Natal? Já guardei a minha para usar no outro ano.

Voltando à premissa do texto, a de que todo mundo tem his-tórias para narrar, considero que Dona Elissa não foge a essa

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24 Narrativas fazem sentido

regra. Agora quero exclamar: como ela ficava incomodada quan-do a chamavam de assistencialista pequeno burguesa! Às ve-zes, até confessava: Parece que quero apaziguar minha culpaque é minha e também coletiva com esses gestos. Mas, naque-le ano, ela encontrou um sentido diferente no que fazia: o deprovocadora de uma narrativa. Uma narrativa contextualizada,enviesada por valores de uma sociedade classista.

Estaria, caro leitor, dona Elissa contribuindo para a alienaçãodaquela criança? Teria essa criança uma outra dona Elissa paraescutar a continuidade de sua narrativa? Quantas crianças, comoessa, não têm seus olhos compridos sobre nós, querendo di-zer-nos - tenho uma história de verdade para lhes contar?

Você sabe? Eu não. Não sei de nada.

Isso não é o fim do mundo, e toda narrativa é o começo.

Notas

1 “Céu da boca da onça” era uma expressão muito corriqueira em minha terra,Vitória da Conquista, nos ambientes em que eu circulava, quando criança.

2 O volume 1 é o primeiro de uma série, todos resultantes

Referências

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Mary Arapiraca 25

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Dinéa Maria Sobral Muniz 27

A prática da expressãooral na escola básica

Dinéa Maria Sobral Muniz

Em pesquisa sobre o uso de textos nas atividadesde ensino-aprendizagem na escola, Chiappini(1997)1 destaca que um dos estudos realizados noâmbito do projeto teve como subtema a circulaçãode textos produzidos por alunos da escola básica.Como resultado de parte desse trabalho inves-tigativo, Azevedo e Tardelli (1997) apresentam umresumo descritivo sobre a situação da oralidade nasatividades pedagógicas da realidade escolar estu-dada. Consideram essas autoras que a oralidade,em situações como a desse caso, fica reduzida, jáque as vozes dos alunos termina sufo-cada pelosconteúdos previamente estabelecidos para o ensi-no e a aprendizagem.

Antes do estudo acima mencionado, nos anos 80,ocasião em que realizei uma investigação2 sobre aprática da expressão oral na escola, os dados indica-ram que, na escola de primeiro grau de então, hoje,escola básica de ensino fundamental, a atividade de

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expressão oral pelos alunos foi algo inexpressivo. As duas pes-quisas confirmam o que foi pensado por Ball (1973) quanto aohomem da sociedade moderna: “Condenado a escutar, sem di-reito de resposta, o homem da sociedade moderna está tantomais votado ao silêncio quanto mais rodeado está pela palavra equanto mais pode fazer-se rodear por ela”. (BALL, 1973, p.19).

O que Ball afirmava sobre o silêncio de que foi partícipe o ho-mem da sociedade moderna parece poder ser visto hoje na so-ciedade pós-moderna. Assim, meu objetivo neste texto édiscutir a questão da expressão oral na escola básica com basenos dados obtidos na pesquisa que realizei.

Durante o período do estudo, foi encontrado, em aulas ouatividades da disciplina Língua Portuguesa ou Comunicação emLíngua Portuguesa, nas oito turmas observadas, apenas um caso,dentre os investigados, em que atividades de expressão oralforam desenvolvidas. Isto é, apenas uma das professoras ob-servadas desenvolveu atividades de expressão oral com seus alu-nos. Isso considerando o sentido em que o termo foi tomado3.

Tendo sido a amostra de professores observados composta deoito sujeitos, considerei para a análise de dados, que um únicocaso poderia ser identificado e tratado individualmente. Trata-va-se de um dos sujeitos da pesquisa que, hoje, chamo de Pro-fessora E, tomando, para designá-la, a primeira letra de seuverdadeiro nome.

Fazendo a análise desse caso particular, verifiquei que a pro-fessora em questão constituiu-se em um dado, se não singu-lar, pelo menos incluído na minoria em virtude de algumasvariáveis.

De acordo com a sua caracterização, entre as seis professorasobservadas para a realização do estudo, era a única cujo estado

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civil correspondia a “solteira”. Não tendo dependentes, comoapenas seis do total das professoras da amostra de entrevista-das, poderia, na minha compreensão à época do estudo, termais condições de dedicar-se à profissão do que as outras, ecom melhores chances, por isso, de realizar um trabalho siste-matizado e mais proveitoso, já que lhe sobraria mais tempo,tendo menos ocupações domésticas e com a família. Não sen-do casada e não tendo dependentes, estaria, por essas condi-ções, entre as minorias, conforme revelam os dados tabuladose apresentados no texto da dissertação já referida.

Durante o período da coleta de dados – ano letivo de 1984 – aProfessora E estava cumprindo, como sua carga horária totalde trabalho, no estabelecimento de ensino4 onde foi desenvol-vida a investigação, as, então, chamadas horas obrigatórias, queeram correspondentes a 12 horas semanais, já que, na categoriade professor efetivo com 18 anos de magistério, a Professora Eobtinha direitos de redução de carga horária de aulas mantendoas já obtidas vantagens salariais. Das suas 12 horas semanais noestabelecimento, 10 destinavam-se ao trabalho em sala de aulae duas às reuniões de “coordenação pedagógica.” Isso significavaque a Professora E era regente de, apenas, duas turmas noestabelecimento, enquanto que a quase metade do conjuntodas demais professoras que compunham a amostra dos sujei-tos pesquisados (41,38%) cumpria uma carga horária entre 20 a24 horas de aulas semanais, e 34,48% cumpriam mais que isso:entre 30 a 44 horas de aulas semanais. Além das horas de docência,algumas das professoras da população de professoras, mais pre-cisamente quatro, acumulavam a carga horária de aulas com ho-ras em outras atividades. Isso significava que a Professora Eparecia estar em situação um pouco melhor, em relação às de-mais, se não em termos de vencimentos, já que quem mais

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horas trabalha maior rendimento obtém, pelo menos em ter-mos de volume de trabalho, em relação à sua vinculação com oesta­belecimento em estudo. Se se considerar que uma maiorcarga horária na escola representa um volume também maiorde trabalho extra (preparação de aulas, correção de provas eexercícios, etc), verifica-se que a situação da Professora E pa-recia a melhor em termos de trabalho. No entanto, como nocaso dos outros quatro, constatei que a informante em questãotambém desenvolvia atividade de docência, não em escola deensino fundamental, como os demais, mas no ensino superior.Ainda assim, sua carga horária total de docência (ensino básicoe superior) no período de coleta dos dados, não ultrapassava de22 horas semanais, tendo, por isso, ficado entre os dois infor-mantes cuja carga horária de aulas estava na faixa de 21 a 30horas semanais. Considerando-se que os demais informantestambém desenvolviam atividades de docência em outros esta-belecimentos dos níveis fundamental e médio, e que as horastotais de docência de 17 dos informantes (58,61%) ultrapassa-vam de 31 horas semanais, em alguns casos, chegando até afaixa de 51 a 60 horas, poder-se-ia concluir que a informante,ainda assim, ficava em melhor situação em relação aos demais.

Mas outro dado altamente relevante explica ainda o fato de sera Professora E um caso particular. Era a única cujas horas dedocência fora do estabelecimento estudado desenvolvia-se noensino superior, mais precisamente, em Metodologia de Portu-guês e Prática de Ensino de Português – tendo, para isso, tempointegral de 40 horas, das quais apenas 12 estavam dedicadas àregência, e as demais às atividades de preparação de aula eelabora­ção de plano de pesquisa. Isso, porque estava a Pro-fessora E pretendendo realizar curso de pós-graduação emnível de doutoramento e era o único caso de docente com cur-

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so de pós-graduação em nível de Mestrado. Pelo estudo feito,verifiquei, ainda, ter sido o seu curso de pós-graduação reali-zado na área de Lingüística, mais precisamente com linguagemoral. Vejamos essa informação nas suas representações em en-trevistas a respeito de pretensões profissionais:

“Eu acho que o ensino institucionalizado não tá mesatisfazendo. Eu não sei o que faria fora disso, mas, eugostaria de trabalhar numa coisa que eu sentisse que a gentetava transformando. Eu ainda tenho vontade de fazer algumacoisa que me faça vibrar mais, dentro daquilo que eu aprendi[...] Eu quero estudar porque a linguagem oral é uma coisaque me interessa. Quando eu fiz mestrado, eu trabalheicom a linguagem oral, com adolescente. Então, agora, euqueria trabalhar com a linguagem oral da criança, quandoela começa a ser alfabetizada, a criança de baixa renda.Porque é um dos problemas, além dos outros fatoresculturais e sócio econômicos, problemas de alimentação,tudo isso interfere na alfabetização, mas, o problemalingüístico, também, o problema da pronúncia deles, asconstruções, o vocabulário que eles usam ... [...] o que euquero estudar é isso.”

Como pude ver na ocasião da análise dos dados, a ProfessoraE correspondia a um caso singular que, se analisado em funçãode sua singularidade, poderia se constituir por si próprio emuma variável explicativa para o resultado geral, ou seja, a nãorealização da prática da expressão oral, decorrente do conceitode erro em língua e da concepção equivocada do que se tomavapor expressão na modalidade oral da língua.

Obviamente, não fiz uma análise da prática realizada pelo in-formante, visto que parecia irrelevante tal procedimento, umavez que, em se tratando de caso único, qualquer tentativa comesse objetivo se constituiria desnecessária, mesmo porque se-ria apenas um dos exemplos de trabalho pedagógico em ex-

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pressão oral, havendo muitas possibilidades de ser esse traba-lho realizado a depender da série, do interesse e de diversasnecessidades do aluno. Apenas para esclarecer, no entanto, in-formo que a atividade prática que foi realizada pela Professo-ra E com seus alunos em uma turma, dentre todas as aulasobservadas, foi uma atividade feita por equipes; envolveu to-dos os alunos da turma observada, e caracterizou-se por tersido uma prática na qual percebiam-se objetivos, critériosmetodológicos e sistema de avaliação.

Constituiu-se a prática de expressão oral em questão em umasérie de dramatizações sobre o tema “progresso”, realizada porgrupos de alunos, os quais tinham papéis particulares na apre-sentação da atividade. Ao final de três aulas, todos os gruposde alunos apresentaram sua atividade de dramatização, tendoessas atividades se constituído em um conjunto de quatro. Essaprática estendeu-se, ocupando o período correspondente aquatro aulas, em uma das turmas observadas – a da 6a série.5

Exatamente por ter-se distinguido como a única a desenvolveruma atividade prática em expressão oral, pareceu convenientelevantar, de acordo com a linha de análise que foi dada à disser-tação que resultou da pesquisa, os dados fornecidos pela infor-mante em questão. Assim sendo, inicialmente, foram destacadasas suas representações, no que dizia respeito à importânciaque dava à prática da expressão oral com seus alunos. Atravésda resposta à questão sobre o aspecto no ensino de linguagem,ao qual emprestava mais relevância, a Professora E revelou-se com a seguinte fala:

“Eu dou maior relevância à espontaneidade e à exatidão,vocabulário. Tanto quando eles escrevem, como quandoeles falam”.

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Considerando de igual importância tanto a expressão oral quantoa expressão escrita, a informante, segundo pude observar, nãoisolava os aspectos do ensino, atomizando-os, como foi feitopor alguns da amostra dos professores entrevistados, e comofoi assumido pelos demais professores informantes da amos-tra que responderam aos questionários. Por outro lado, a in-formante em questão, a Professora E, transferiu sua atenção,no ensino de língua, do código para o sistema de signos, oupara o sistema simbólico ou para a linguagem propriamente.Ou seja, para a informante, os aspectos aos quais dava maiorimportância constituiam-se na espontaneidade (o que revelavauma preocupação antes metodológica) e na exatidão (o que re-vela, então, uma postura epistemológica). Isso porque, referin-do-se à exatidão, a informante estava, me parecia, referindo-seao pensamento e, portanto, ao conhecimento que, para ser“exato”, precisava poder ser interpretado pelo professor. Era asua concepção de língua: a da expressão do pensamento6. Esseera, então, por mais essa razão, um caso, entre informantes doestudo, que se destacava dos demais. A despeito de uma con-cepção de língua hoje superada7, o caso da Professora E foi umcaso singular. Não havia de sua parte uma preocupação excessi-va com a língua como se essa fosse invariável, não havendo,portanto, preocupação com o erro.

Vale a pena, nesse instante, destacar que a informante estavaconferindo importância ao trabalho em expressão oral, acredi-tando que esse devia ser desenvolvido e achando muito poucoo que se fazia nesse sentido, disse, na ocasião do estudo, sobrese deveria realizar atividade de expressão oral:

“Eu acho (que deve) e acho que nós fazemos muito poucodisso. E uma deficiência no curso, no meu, inclusive [...]Eu acho que só quando eles dramatizam é que eles têmoportunidade de dizer alguma coisa”.

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Se a informante considerava que “muito pouco” realizava otrabalho, talvez fosse pelas razões a seguir. Talvez porque esti-vesse querendo evidenciar algo além do que foi testemunhado,ou até algo contrário ao que foi observado em suas aulas, quan-do de 33 das atividades orais realizadas, quatro (ou seja 12,12%)foram de expressão oral livre. Há que se ressaltar que essesresultados quantitativos não são suficientes para expressar ofenômeno encontrado. Na verdade, o percentual ao qual façoreferência pode ser considerado baixo e, portanto, irrelevante,em relação ao total. Se, no entanto considerar-se o número deaulas em que as atividades de expressão oral livre foram reali-zadas, vê-se que essas ocuparam três (portanto, 20%), de umtotal de 15 aulas observadas. Nesse caso, o percentual cresceum pouco e, considerando-se como acréscimo o fato de quenão houve caso algum além desse em que a prática da expres-são oral se deu, o resultado tornou-se altamente significativo.Levando em conta tal fato, perguntei na ocasião em que estetexto foi produzido em sua versão original e, ainda hoje per-gunto por que a informante acreditava que o que fazia era“muito pouco”. Será porque o fazia mesmo, e achava que ain-da era pouco, ou será porque nunca o fazia tanto, e só estavafazendo como forma de “colaborar” com a pesquisadora, pro-curando corresponder assim a um suposto nível de expectati-va? Ou será, ainda, porque, não podendo ter garantia de que oseu conceito de “pouco” fosse o mesmo da pesquisadora, mes-mo achando muito, dizia que era pouco?

A impressão que tive foi a de que a informante, quando diziaque fazia pouco, já que dizia se incluindo no coletivo, poderiaestar respondendo em nome do todo. Por outro lado, talvez,a informante costumasse realizar a prática em questão com amesma intensidade e regularidade, mas achava que precisava

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fazer mais vezes e fazer de modos diferentes, visto que reve-lou que, “só quando eles (os alunos) dramatizam é que [...]têm oportunidade de dizer alguma coisa”. Por se tratar deuma pessoa que já tinha expe­riência em pesquisa, afastei asuspeita de ter a informante tentado corresponder a uma su-posta expectativa da pesquisadora.

Com relação às demais informantes, no entanto, poder-se-iaperguntar, hoje ainda, por que não realizaram atividades prá-ticas em expressão oral. Não seria, então, por não terem acompetência necessária para o desenvolvimento desse aspec-to de ensino? Mas, será que, por não dominarem certos co-nhecimentos, foram levados, para corresponder ao supostonível de expectativa da pesquisadora, a realizar atividades emque apenas usaram a modalidade oral da língua, como se fos-sem efetivamente atividades de expressão oral, acreditandoestarem realizando atividades adequadas? Os conhecimentosaos quais faço referência equivalem às diferenças entre a mo-dalidade oral e escrita da língua, esta como substituta daquelae aquela como historicamente anterior a esta; conhecimentodo fenômeno da heterogeneidade lingüística oral e sua possí-vel interferência na escrita; conhecimentos dos fenômenosque de terminam variações no uso da modalidade oral da lín-gua e as implicações dessas variações, quando se dão em nívelde estrato social desprestigiado; conhecimento do significadodo que seja cultura e do valor social das culturas; relativizaçãodo conceito de cultura; conhecimento das diferentes corren-tes metodológicas e os princípios teórico-metodológicos a elacorrespondentes.

Se a hipótese de que as informantes quiseram corresponder àssupostas expectativas da pesquisadora é verdadeira, então, pode-se, ainda hoje, levantar outra hipótese: a de que os informan-

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tes observados não realizam tanto atividades orais, como foiobservado8. Em outras palavras, se a falta de conhecimentosteórico-metodológicos conduziu as professoras informan­tesobservadas a realizarem atividades orais, em alguns casos, maisdo que escritas, isso se deveu, talvez, ao fato de terem sentidonecessidade de corresponder às expectativas da pesquisadora.Acreditei, então, e hoje mais ainda, que a falta desses conheci-mentos, por outro lado, teria determinado que as informantesfossem levadas a pensar que, ao realizarem atividades orais,estavam realizando atividades de expressão propriamente dita9.Se não realizavam tanto atividades orais, como pude observar,é possível que alguns equívocos metodológicos também nãose tenham dado regularmente. Nesse caso, estou me referin-do, por exemplo, ao equívoco de tratar a questão do ensino deortografia do modo como foi visto nas séries iniciais10.

Se o que existe em termos de prática de expressão oral foipouco para a Professora E, que era quem estava, apare-ntemente, em condições funcionais e teórico-metodológicasfavoráveis para realizá-la, perguntei, na época do tratamentodos dados coletados, por quê.

Convém que novamente se vejam as representações de Pro-fessora E, para que se possa, ainda hoje, tentar uma explicaçãopara o fenômeno, sobre o que essa informante, diante da ques-tão “como realiza o trabalho em expressão oral”, respondeu:

“O que nós fazemos são dramatizações e discussões sobrealgum assunto. Mas, eu acho que isso devia ser maissistematizado, houvesse uma seqüência nesse tipo detrabalho. Isso é que seria um trabalho que concorresse paraa gente sentir que estava desenvolvendo a expressão oraldele [...] A gente se perde nas dificuldades de horário pratrabalhar em conjunto, e as dificuldades que surgem ... As

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vezes, a gente programa uma coisa e, depois, vêm outras,que têm que dar conta tem que dar não sei o quê de gramá-tica mas, eu acho que a gente não tem uma independênciaque precisava ter, porque existe até com relação a horário...Realmente, falta horas pra gente trabalhar em conjunto. Émelhor trabalhar em conjunto do que trabalhar só. Quan-do a gente trabalha só, a gente não agüenta. Agora, existeuma pressão sub-reptícia de que não se pode deixar de dargramática. Existe esse consenso de que é necessário dargramática. Mas, o que fica de gramática é tão pouco, que agente tem que trabalhar mais é em expressão. Talvez, numcontexto particular, quando há uma turma que já tem muitafacilidade de se expressar, a gente possa passar pra gramáti-ca, tranqüilo. Mas, não acontece isso com as turmas que agente tem, não. Eles não têm esse domínio de expressão,de tal forma que a gente possa estudar já a estrutura dalíngua com mais profundidade”.

Nesse caso, foi, e ainda é, possível ver nas representações deProfessora E, a confirmação do dado de que a dificuldademaior, em nível de escola, estaria no horário para planejar ou“trabalhar em conjunto”. Isso, confirma, talvez, em parte, porque os professores da amostra de professores observados nãodesenvolviam as atividades de expressão oral.

Por outro lado, observei, ainda, que a informante em questão– a Professora E – acrescentava em suas representações umdado que confirmava as suspeitas anteriormente levantadas. Apreocupação – fruto do que chamou de “pressão sub-reptícia”– para que não se deixasse de dar gramática a impedia de traba-lhar com a expressão do aluno. Provavelmente, a pressão deque falava a informante era a que, na escola, de­terminava queo ensino da língua tivesse que ser como o das outras discipli-nas, ou seja, repartido em matérias, como já dissera Ball (1973),a serem vistas como as partes que formam os programas dasdemais matérias.

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Acrescentemos ainda à representação anterior mais outra, quan-do a Professora E fala a respeito do modo como organizava otrabalho em sua disciplina;

“O que a gente faz é compreensão de textos, compreensão,às vezes, alguma coisa que eles escrevem. O texto é a basede tudo, porque, dali,você tira a idéia pra escrever... nóstrabalhamos com notícia de jornal. Em alguma coisa quecaracteriza. Esse ano, a campanha da fraternidade, a gentena 6a série... eles levantaram os problemas da cidade doSalva­dor. Depois, eles fizeram dramatização por cimadisso. Mas, às vezes, é um pretexto. Não é o texto. Dali,que a gente faz gramática, é baseado ou no texto ou nesseselementos que eles trazem, através do que eles escrevem,da dramatização deles”.

Segundo Lajolo (1984, p.52), “o texto não é pretexto para nada”,e diz melhor a autora; “não deve ser”. No entanto, o que ve-mos pela representação da professora informante é que o tex-to, nessa situação do estudo, como, provavelmente, em outrassituações, costumava ser pretexto para o ensino, quando a dis-ciplina era Língua Portuguesa. De modo que fica impossívelresistir fazer crítica à cultura grafocêntrica reproduzida na es-cola, quando se sabe que, por trás dessa reprodução, está a ques-tão dos usos lingüísticos, cuja disciplina ainda estava sendodeterminada pelo ensino de gramática normativa tradicional. 11

Observe-se que a professora informante fala em “pressão sub-reptícia” para que não se devesse “deixar de dar gramática”.Será que percebia haver algo mais, além dela própria, decidin-do o que deveria pedagogicamente desenvolver? Parece que ainformante se dava conta disso. Será que percebia, então, queera obrigada a reproduzir o conceito de certo e errado em lín-gua, que estava subjacente ao ensino da gramática normativatradicional? A essa questão não posso responder com absolutasegurança, mas acredito, ainda hoje, que sim.

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A mesma informante, que vê no texto a base de tudo, revela,em suas representações, a maneira como deveria se dar o tra-balho em expressão oral:

“É, se faz muito pouco. Eu acho que é porque a gente penetramuito pouco na vida deles. Tinha que dar mais opor-tunidade deles tomarem consciência da vida deles... Olha,eu acho que não é só dramatização até partir para uma formade teatro, acho que ajudava discussões sobre coisas no níveldeles...”

Parece que a informante tinha consciência de que a expressãooral do aluno deveria representar a leitura do mundo, e não aleitura da palavra, porque essa não es­taria ainda ao nível do alu-no, mas nem ela própria realizava o seu trabalho nesse sentido.

Desse modo, supus e, ainda hoje, suponho ser o que Luft (1985,p. 25) chama de “sacralidade da língua escrita” um fator queestaria impedindo as manifestações orais do aluno, tão própri-as dos indivíduos. Suponho, aqui, diferentemente de Luft(1985), que o fato de ser comum se ouvir dos alunos que essespreferem escrever mais do que falar, indica não que eles, “se jánão escreviam, agora não falam também”. Diferentemente,porque, o que parecia, de fato, acontecer era que, em vista denão poderem se expressar através da fala, seu instrumento maisnatural ou espontâneo, também não se expressavam através daescrita que, pela sua natureza conservadora, limitava os seuspensamentos e escondia a sua fala. O fato de não gostarem defalar e “não saberem” falar indicava a aceitação de uma atitudeimpositiva por parte do professor, por parte da escola, do sis-tema social como um todo, quando esses reproduzem a do-minação de um sistema onde poucos têm direito à palavra.Não me posso dispensar de dizer que caberia ao professortentar romper esse círculo vicioso, e caberia ao ensino superi-

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or possibilitar a compreensão do fenômeno. Caberia ainda aoprofessor, na condição de intelectual orgânico (HALL, 1980),reivindicar a mudança do sistema escolar, a fim de que estenão continuasse reproduzindo o poder político e econômicodominante na época em que este estudo foi feito e, quem sabe,existente ainda hoje.12

Também, alguns dos informantes da amostra de alunos13, narealidade estudada, demonstravam sofrer desse mal apontadopor Luft (1985). Quando perguntados sobre se tinham algumadificuldade de falar, embora informantes mais jovens tenhamrevelado que não, os mais velhos revelaram essa dificuldade.Vejam-se as representações e as respectivas idades e séries:

“Não” (A 1, 6 anos) – 1a série

“Não, porque falo depressa” (A 2, 8 anos) – 1a série.

“Falar é mais fácil, porque eu acho. Pego o livro pra ler efalar, e não demora” (A 4, 9 anos) – 2a série.

Aqui, já começa a “consciência” de que, “falando” através daleitura, se estaria de fato falando. Já começa, portanto, a ex-propriação da fala do aluno e a sua alienação. Por outro lado,embora alguns tenham revelado em suas representações quenão tinham dificuldade de falar, as suas respostas lacônicas de-monstraram o contrário.

Vejam-se outras representações dos informantes:

“Mais ou menos. Tem palavras muito grandes, aí fica mui-to difícil” (A 5, 9 anos) – 3a série.

“Não”. (A 6,11 anos) – 3a série

“Mais ou menos. Quando é palavra difícil ... aí ... “ (A 7, 12anos) – 4a série

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“Pouco, porque, na hora que a professora me pergunta, eufico nervosa, eu começo a ... fico pensando toda hora ...quando me pergun­ta, eu começo a me tremer toda. Nãosei ... porque eu não sou acostumada a ninguém ficar meperguntando as coisas [...]” (A 8, 11 anos) – 4a série.

“Não” (A 9,13 anos) – 5a série.

“Não” (A 10, 13 anos) – 5a série.

Se houve, em relação aos informantes das quatro primeirasséries, uma progressiva demonstração da dificuldade de falar,percebe-se que, a partir da 5a série para as últimas do ensinofundamental, reiniciava-se e repetia-se todo o processo de ex-propriação da fala que se dava nas primeiras séries. Isso pare-cia significar que os professores, tanto das primeiras séries donível I quanto das do nível II e III, poderiam estar sendo maistolerantes que os das séries finais, o que confirmou uma rup-tura conhecida e reconhecida entre as séries iniciais do 1o graue as quatro últimas. Os velhos “ensino primário” e “ginasial”ainda existiam no sistema escolar, apesar da implantação, naépoca do estudo, da recente Lei 5.692/71. Se não bastasse essedado, outros confirmaram essa ruptura: forma­ção do profes-sor, salário, divisão física do ambiente escolar, hierarquia pe-dagógica do sistema escolar, níveis de interação, e outros dadosmais. Não quis, no entanto, entrar no mérito da questão, seera ou não mais proveitoso para o aluno que isso se desse des-sa forma, ou seja, que a ruptura devesse existir. Acreditei, naocasião em que este estudo foi feito, que teria sido bom, po-rém, que houvesse quem se debruçasse sobre esse problema,para fazer um estudo de quais estavam sendo as vantagens edesvantagens da reforma introduzida pela referida Lei.

Voltando às representações dos alunos sobre se tinham difi-culdade de falar, destaquei algumas delas para considerações:

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“Não, porque, quando as pessoas me perguntam qualquercoisa, eu falo tudo direitinho, não gaguejo. Porque, antiga-mente, eu gaguejava. Aí, depois de um tempo pra cá, eudeixei de gaguejar”. (A 11) – 6a série.

Obviamente, no caso do aluno A11, nem é preciso dizer que,porque era aluno da 4a série, o informante que “gaguejava”, po-rém, já não gagueja mais, nem o porquê de não gaguejar, agora.

A seguir, representações dos informantes das últimas sériesdo ensino fundamental:

“Tenho às vezes” [...] Porque eu sou assim não gosto defalar, porque eu tenho um pouco de vergonha de falar. (A12, 14 anos) – 6a série.

Estes já são mais taxativos:

“Tenho. Inibição” (A 13, 14 anos) – 7a série.

“Tenho. Pronunciar as palavras. Eu não sei porquê. Voufalar com as pessoas ... eu não sei se é a minha imaginação,ou se eu mesmo que falo errado. Quando eu tô conversandocom uma pessoa [...] eu não tenho calma [...] então, euembolo, a frase fica toda embolada. Eu tento falar maiscom calma, mas, eu não consigo, não. Eu já acostumei, seeu tenho que., .. “ (A 14, 14 anos) – 7a série

O falante, inibido pela convicção de que fala “errado”, não te-ria bloqueios para escrever, como tem para falar? Acredito quesim, mas só uma pesquisa poderia melhor revelar se tal hipó-tese era verdadeira.

Os informantes, a seguir, completam o grupo:

“Falar? Um pouco, quando eu estou, assim, na frente dealguém, aí, eu, numa entrevista, qualquer coisa, como ago-ra mesmo, eu fico um pouco nervoso, mas, não é tanto,não. As pessoas que eu estou falando é: um professor, algu-

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ma coisa assim... alguma apresentação que eu tenho queapresentar, mas, em meio de colegas, assim, acho que não”.(A 15, 17 anos) – 8a série.

“Falar? Às vezes, sai palavras erradas umas palavras, assim,difícieis, que a gente não sabe pronunciar”. (A 6,16 anos) –8a série.

Quando perguntei se achava importante falar na escola, os infor-mantes da amostra de alunos responderam de uma forma tal que,através de suas representações, verifiquei que o grau de expropri-ação da fala nos alunos era tão alto que alguns deles tinham perdi-do a consciência da importância do falar. Isso ficou configurado,de modo bastante claro, na representação desse informante:

“Eu não acho muito, não, porque, aqui na escola, nós tamosaqui pra aprender. Eu acho que agente deve falar bem mesmoé na rua, quando a gente encontra uma pessoa”. (A 14)

Ou como disse esse outro informante de seis anos:

“Não,porque a professora fica reclamando com a gente.Porque é ruim quando a pro­fessora tá corrigindo o devera gente conversar. [...] porque na escola você não podeconversar na sala, só na hora do recreio”. (A 1)

Acrescento, ainda, o que disse esse informante, quando per-guntado se gostava de falar na escola.

“Não. Porque quando a professora manda, a gente tem deobedecer. [...] Ela manda fazer dever, cópia, manda fazer ...a gente tem que fazer tudo que ela manda”. (A 1)

Apesar disso, houve ainda quem conseguisse ver o contrário:

A gente falando é que a gente aprender. Tudo é importante.Se você quer saber de uma coisa e comenta. Eu acho que éimportante, sim” (A 15)

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O estudo forneceu algumas pistas válidas para o momento emque foi realizado, e para hoje, ainda.

Entendo que seria preciso restituir ao aluno a consciência daimportância de falar, já que, muitas vezes, há situações em quea escrita torna a comunicação difícil, por que não é imediata.Por outro lado, acredito que seria preciso devolver a palavra aoaluno, para que ele, de fato, construísse o seu próprio conhe-cimento e a sua subjetividade, sem que lhe fosse imposto imi-tar o comportamento verbal do professor. Isso é que seria umareal devolução da palavra que poderia se dar não só através doensino da língua na modalidade escrita, mas através da práticada modalidade oral. Isto é, através da expressão oral.

Se retomar a análise feita a partir dos dados fornecidos pelaProfessora E, verifico que, mesmo sendo a professora da es-cola do estudo competente para realizar a prática da expressãooral, e mesmo tendo mais condições de dedicar-se à profissão,ainda assim encontrou dificuldades em realizá-la.

Cheguei a essa conclusão, visto ter a Professora E reveladoencontrar dificuldades em desenvolver essa prática e, por isso,não a ter desenvolvido satisfatoriamente, no seu entender.Lembro que a informante em análise foi quem apresentou maisestudos específicos de língua – por sua formação – e era quemdominava os necessários conteúdos teórico-metodológicos –por sua experiência profissional. Apesar disso tudo, no entan-to, foi essa professora que, a despeito das dificuldades por elamesma encontradas, realizou a prática da expressão oral.

Perguntei-me, então, se, mesmo sendo essa uma das melho-res unidades do sistema escolar do Estado e quase não reali-zando a prática da expressão oral, estariam outras escolasrealizando.

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Se essa escola não estava realizando a prática da expressão oral,será que estaria desenvolvendo a prática da expressão escrita?Ou estaria desenvolvendo uma prática com vistas à formaçãodo leitor/crítico, através da leitura de textos escritos? As pes-quisas O ensino da redação na escola de 1o grau: uma análise diagnósticae/ou A leitura na escola de 1o grau e a formação do leitor crítico, feitassimultaneamente em conjunto com a pesquisa sobre a qualaqui fiz uma parte do relato, possibilitaram a composição deum quadro em que essas questões puderam ser respondidas.Perguntei isso em razão da necessidade de fazer outras per-guntas, para mim, inquietantes na época do estudo: Se nãoestiver fazendo nem uma coisa nem a outra, que estará fazen-do a escola? Pensava eu, – de que adianta sugerir técnicas sofis-ticadas, escrever sobre novos métodos de ensino, se nemmétodos simples são utilizados? A perplexidade era porque,depois de tudo, ainda havia quem preferisse entender que osalunos eram os culpados. Na verdade, o que eu acreditava, eainda acredito, é que essa era e, sempre, é a posição de quempreferia ou prefere transferir responsabilidades.

Iniciei este ensaio fazendo menção à pesquisa divulgada no fi-nal da década de 90 que ressalta a importância de se fazer usodos textos de alunos quando o que se deseja é aumentar a cir-culação dos textos na escola. Nos anos 80, o estudo por mimrealizado mostrou que em muito pouco a oralidade estava sendoconsiderada como relevante na escola pesquisada. Se, na déca-da seguinte, um outro estudo revelou um quadro pouco alen-tador quanto ao texto oral produzido pelos alunos, a primeiradécada do novo século está merecendo que novos estudos se-jam realizados, não apenas para diagnosticar a situação daoralidade14 na escola, mas para contribuir para uma mudança eo Projeto Salvador Lê15 já é uma iniciativa nesse sentido.

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Notas

1 O volume 1 é o primeiro de uma série, todos resultantes de pesquisa desenvolvidapor um grupo coordenado por Chiappini.

2 A pesquisa a que estou me referindo, um estudo de caso realizado em uma bemconceituada escola da rede pública da cidade de Salvador, Bahia, resultou nadissertação intitulada de A expressão oral na escola de primeiro grau: aspectoslingüísticos e educacionais de minha autoria.

3 O sentido do termo expressão oral tomado foi de atividade de produção livre,conforme está explicado em um dos capítulos do texto da dissertação referida nanota 2.

4 Cf. nota 2. Na ocasião em que a dissertação foi escrita, preferi omitir o nome daescola para preservar a identidade dos sujeitos envolvidos no estudo. Julgo,ainda hoje, desnecessário revelar esse dado.

5 Foram observadas atividades de aulas de professores de Português em duasturmas de cada série, da 1a até a 8a do ensino fundamental, antigo ensino de 1o

grau.6 A língua, aqui, tomada como expressão do pensamento e não como interação,

concepção, hoje, a mais corrente entre estudiosos do campo da lingüística e desua aplicação ao ensino da língua materna, (GERALDI, 1985; KOCH, 2000;TRAVAGLIA, 2001) caracterizou a concepção da Professora E.

7 Superada pela concepção interacionista bakhitiniana, assumida por autores comoos citados na nota anterior. Cf. , por exemplo, Koch (2000; 2002; 2006).

8 As atividades orais observadas foram, principalmente, as de leitura oral, tratadasno texto da dissertação como “fala do escrito”, e categorizada como atividade de“reprodução”. Sobre isso, cf. MUNIZ, D. M. S. A expressão oral na escola deprimeiro grau: aspectos lingüísticos e educacionais. 1986. Dissertação (Mestrado) –Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia.

9 Cf. nota 3.10 Nas aulas, falava-se da ortografia da palavra sem, contudo, escrevê-la. Cf.

MUNIZ, D. (1986).11 O que estará a escola, vinte anos depois deste estudo, fazendo em relação à

expressão oral? A pergunta poderá ser respondida por novas pesquisas que,acredito, precisam continuar sendo realizadas.

12 Os estudos que estão sendo desenvolvido por Rios (2006) para a sua Tese deDoutorado e por Souza (2006) para a sua Dissertação de Mestrado poderãoajudar a compor um quadro do que hoje acontece quanto ao tratamentopedagógico da expressão oral na escola básica.

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13 Os informantes da amostra de alunos foram codificados com a letra A seguidade um número de 1 a 16, já que foram dezesseis alunos entrevistados.

14 Magda Soares, no prefácio à obra de Gislayne Matos (2005) diz que “no mundografocêntrico em que vive hoje a quase totalidade das sociedades, suscitaestranheza a volta da narrativa oral e, conseqüentemente, da figura do contador[...]”. O que Soares percebe como já acontecendo é a volta à oralidade o que,segundo Walter Ong, torna-se possível graças à própria cultura escrita que asufocou.

15 O Projeto Salvador Lê resulta da iniciativa de professores do GELING, Grupode Pesquisa em Educação e Linguagem, vinculado à linha de pesquisa FilosofiaLinguagem e Práxis Pedagógica do Programa de Pós-Graduação em Educaçãoda Faculdade de Educação da UFBA. O projeto vem sendo desenvolvido, aindasem recursos financeiros próprios, por professores do Projeto Salvador de formaçãode professores em serviço.

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AlfabetizaçãoProcessos históricos, lingüísticos e

psicogenéticos na leitura e na escrita

Iara Rosa FariasRenato Izidoro da Silva

Djárcia Brito de Santana

Introdução

Este ensaio nasceu a partir das aulas da disciplinaEDC 285 – Alfabetização – do curso de Pedagogiada Faculdade de Educação da Universidade Fede-ral da Bahia. Além de estarmos discutindo concei-tos e metodologias visando à prática da alfabetização,começamos um trabalho que tenta deslocar o en-sino da língua escrita da redução técnica emetodológica às reflexões sobre suas implicaçõessociais, culturais e políticas. Partimos do pres-suposto de que o ensino da língua materna trans-borda seus aspectos gráficos-formais. Em termospráticos, estamos agindo de encontro a idéias pre-concebidas sobre o ensino da escrita muito pre-sentes, ainda, em alguns contextos escolares.Nosso objetivo é relativizar e até desconstruir de-

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terminados preconceitos a fim de possibilitar olhares que nãolimitem o aprender a ler e a escrever ao simples ato de decodificaçãoe associação natural entre palavra e mundo, fala e escrita, ca-muflando seu caráter arbitrário, pois cultural.1

Para atingirmos tal intento, neste ensaio, abordaremos o pro-cesso pelo qual passou a formação da civilização ocidentalgrafocêntrica, por meio de um viés histórico acerca do uso daescrita e das práticas de leitura desde suas origens até oRenascimento. Nossa preocupação é explicitar os aspectosconceituais, técnicos e metodológicos que o processo de alfa-betização exige e como a sociedade, a cultura e política estãopresentes nele. Nossos cursos de nível superior em licencia-tura ainda vêm confinando a formação do professor em seusentido técnico-profissional. Iniciar um trabalho em salas dealfabetização exige que os professores ajam inicialmente demaneira elementar, incentivando o exercício mais especulativodo que propriamente assertivo. É preciso, também, entenderque o rigor científico é uma conquista, e continua sendo, aduras penas de muitos ensaios que desembocam muitas vezesem equívocos, outras em acerto. Não há, pois, certezas abso-lutas, quando adentramos no campo da investigação e da apren-dizagem. Desse modo, não há um jeito certo de alfabetizar,bem como as hipóteses sobre a aquisição da língua escrita éuma investigação entre tantas outras.

Uma mostra de que o rigor científico vai se construindo aospoucos em uma sala de aula, está justamente no ponto de inter-secção entre a aula lecionada e o ensejo deste ensaio. Algumasreflexões remeteram à relação entre filogênese da civilização eontogênese do indivíduo no que concerne à aquisição da escrita eàs práticas de leitura.2 Com efeito, este ensaio tentará relacio-nar a filogênese e a ontogênese da escrita e tratar das questões da sua

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aquisição a partir das hipóteses de Emília Ferreiro (2001). Assimsendo, em primeiro lugar apresentaremos a problemática daevolução da escrita numa perspectiva histórica. Em segundo,buscaremos construir reflexões sobre a aquisição da língua es-crita, a partir das quais trataremos da evolução da escrita doponto de vista do sujeito que aprende. Finalmente, em terceirolugar, faremos algumas considerações sobre o assunto.

Horizonte histórico da escrita

Discorrendo agora conforme o trajeto realizado na aula, inici-emos pelos dois motes acerca da natureza da escrita. Primei-ro, temos a tese aristotélica que coloca a escrita como umatentativa de transcrição da fala. Em segundo, temos a tese his-tórica de que a escrita teria surgido e se desenvolvido por al-gum tempo destacada da fala. (OLSON, 1997)

Independente de considerarmos uma ou outra tese como equi-vocada ou correta, o que nos interessou foi explicitar os entre-laçamentos entre escrita e fala no interior das práticas sociais,culturais e políticas na história da formação da civilização oci-dental. Percebamos, portanto, que o dito entrelaçamento pres-supõe separação histórica – depois veremos que tambémcognitiva – entre o desenvolvimento de cada uma das atividadesem questão. É claro que tal afastamento é mais evidente nasegunda tese, já que a primeira expressa uma dependência daescrita com respeito à fala. Porém, olhando atentamente, ve-remos que, ao considerar a escrita como uma transcrição,Aristóteles aponta uma dependência de origem da escrita comrespeito à fala e não uma correspondência uniforme dela. Ques-tão que não iguala as mencionadas teses, mas as aproxima.

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Conforme a história da escrita, é impossível saber, com certe-za, o como e o porquê surgiram as primeiras representaçõesgráficas.3 Entretanto, nesse campo estamos acostumados a con-viver com hipóteses. A mais proeminente atualmente é reme-ter seu surgimento há quatro mil anos na Mesopotâmia comos sumérios. Expedições arqueológicas descobriram tábuas erolos de argila contendo sinais geométricos e desenhos. O in-teressante é pensar que apesar da existência de uma sintaxeem tais rolos e tábuas, eles não eram lidos em nosso sentidomoderno de leitura, mas diretamente interpretados, devido anão-correspondência direta entre figura e som, mas sim entrefigura e objeto, a ponto de serem passíveis de entendimentosem que o ato de fala entrasse em jogo.

Com o passar dos anos os pictogramas4 foram recebendo mar-cas em forma de traços simples até que um símbolo adquiris-se uma sintaxe. Um exemplo de tal escrita é o de Ur, datadode 2900 a.C. (classificado sob o número 10 496 no BritishMuseum). Trata-se do símbolo de um jarro sobre uma basepontiaguda que significa “cerveja”, mas não a palavra cerveja esim o líquido, ao passo que os registros de marcas arredonda-das representam a quantidade da bebida. Observa-se que háuma transcendência da simbolização para a construção de umasintaxe de texto, entre símbolos (“cerveja” + marcas arredon-dadas). (OLSON, 1997, p. 89-91)

Temos aí o exemplo de um encontro da fala com a escrita enão uma dependência de origem da segunda em relação à pri-meira, tal como na hipótese de Aristóteles. Não podemos des-cartar a tese aristotélica como um pensamento contraditório,pois o filósofo teve seus motivos sociais, culturais e políticos,sendo que seu pensamento não representa outra coisa senãoum dos entrelaçamentos entre fala e escrita. Destarte, a hipó-

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tese a ser lançada é a de que para cada tese temos um contextohistórico. Aristóteles lançou, inicialmente, uma teoria sobre oassunto que foi por muitos anos seguida. Tempos depois ar-queólogos e historiadores lançaram outra hipótese.

Apesar de a civilização ocidental ter se desenvolvido em gran-de parte sobre o solo da escrita grega, produzida por seus filó-sofos, cujos ícones mais eminentes são Sócrates, Platão eAristóteles, tal cultura não priorizava essa prática. Na verdade,o texto escrito não exercia muita influência como nos dias dehoje. Para eles a verdade estava na fala e somente dela poderiaser retirada.5 Lembremo-nos da maiêutica6 socrática, que alémde pressupor a verdade na fala, concebe-a como um mecanis-mo de fazer advir a verdade da boca do interlocutor.

Nesse contexto, a palavra escrita fora concebida como algo quenão significava por si, portanto dependia da fala verdadeira dealguém para pronunciá-la. Segundo Cavallo e Chartier (1998,p. 10), tal entendimento permitia que as leituras constituísseminterpretações diversas para cada leitor. Em suma, o sentido ea veracidade estavam no leitor. Muito diferente de nosso modode leitura contemporâneo, quando muitas vezes o conselhodidático é de suspendermos nosso juízo durante a leitura, paranão corromper a verdade da escrita. Esse tipo de disposiçãopara leitura é derivado da “maneira judia” de ler o Velho Testa-mento (OLSON, 1997, p. 165). Por conseguinte, fica uma ques-tão: como discorria o processo de alfabetização na Grécia?

No mundo grego, escrita e fala recebiam a denotação relacional.Para nascer a segunda tese, de que fala e escrita não são depen-dentes, os estudos tiveram que se distanciar não só deAristóteles, mas do contexto no qual ele pensava. Assim, aGrécia foi retirada do status de núcleo originário da cultura

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Ocidental e os olhares dos pesquisadores se voltaram para aantiguidade, isto é, para as terras não-gregas e não-européias,respectivamente.7

Na origem da escrita dos sumérios, tudo indica sua inde-pendência da fala, de modo que a escrita expressava uma funçãobem específica: registros, anotações e historietas logográficas8

pouco recorrendo ao princípio fonográfico (OLSON, 1997,p.94). Contudo, o primeiro silabário resultou do ajustamentoda logografia suméria a uma língua semítica, o acadiano, que dálugar ao cuneiforme9 babilônico e canaanita, a mais conhecidadas escritas (LARSEN, 1989, p. 131 apud OLSON, 1997, p. 94).Sendo o acadiano uma língua semítica, é possível ligar ossumérios com os hebreus. Os acádios e os sumérios fundiram-se em um só povo chamado caldeus, na Babilônica 2600 a.C.,conduzindo o acadiano à escrita cuneiforme babilônica e canaanitapraticada pelos cananeus também de linhagem semítica, queocuparam a Palestina antes dos hebreus; os fenícios e os árabes.Lembrando que o território desta última pode também serchamado de Terra de Canaã.

Já os Gregos têm sua origem datada de 1500 a.C., quando dainvasão da região da Ilha de Creta a Corinto pelos dórios, eólios,jônios e aqueus: povos de tradição oral. Tentemos com issoperceber que o paralelismo entre a tese aristotélica e a tesehistórica tem suas raízes no paralelismo entre os povos queoriginaram os gregos e aqueles que originaram os hebreus,que no caminho da intersecção social, política, cultural e religi-osa deu-se na origem do mundo Ocidental: o cruzamento en-tre hebreus (judeus), gregos e romanos.

Ora, a cultura Ocidental, tal como se iniciou com a queda deRoma e posterior Idade Média, possui duas ramas que duran-te muito tempo correram paralelas: os gregos e os hebreus

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cujo encontro podemos metaforizar como sendo mais umadas intersecções entre fala e escrita na história das civilizações.No entanto, nossa metáfora exige certa cautela na medida emque ambos os povos mencionados praticavam tanto a oralidadequanto a composição gráfica, a diferença está no modo comocada uma delas tratava tais “artes”. Como já visto, os gregosapresentavam como fonte da verdade a fala. Já os hebreus pau-taram suas incursões na escrita, mais precisamente naquilo quedenominaram Sagradas Escrituras. A leitura do Velho Testa-mento consistia em recontar o texto de acordo com as própri-as palavras (OLSON, 1997, p. 165). Se caso adviessem novasidéias em leituras diferentes, estas teriam sua origem no tex-to. Havia uma crença na ignorância por parte do leitor e nasabedoria absoluta da palavra sagrada.

Não se sabe de encontros marcantes entre hebreus e gregos. Écerto que, de uma forma ou de outra, eles se conheciam. Comefeito, o paralelismo entre esses povos é encerrado com o defini-tivo encontro dos judeus com os romanos, estes, os herdeiros dacultura grega, que funda o mundo greco-romano e cuja decadên-cia pode ser metaforicamente anunciada pelo nascimento de Je-sus Cristo.10 Noutros termos, o encontro entre oralidade e escrita,que ordenou em grande medida o desenvolvimento do Ociden-te, estava sob a égide das filosofia platônica e aristotélica (umacivilização concebendo a verdade advindo da oralidade), e das ins-crições bíblicas do velho e do novo testamento (uma civilizaçãoque destacava a escrita como verdade).

O referido encontro ocorreu em meio a conflitos sociais, po-líticos, culturais e religiosos nos quais as tradições orais e grá-ficas também estavam em jogo de maneira explícita ou implícita.Mas um fato notável neste contexto foi o fortalecimento docristianismo através da transmissão das palavras escritas nos

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Testamentos. A Bíblia, concebida como escrita divina, estevetão envolvida com a derrocada da cultura greco-romana que oImperador Constantino, sob sua influência, dizia ter visto es-crito no céu a imagem da cruz seguida da inscrição: Com estesinal vencerás.12 Atitude bem diferente dos antigos gregos quecostumavam ouvir os deuses, por causa de suas raízes espiri-tuais estarem na oralidade.

Doravante, à escrita destina-se uma importância nunca vistacom tamanha intensidade e extensão. Roma foi dividida(d.C.395) em Império do Oriente (Constantinopla) e Impériodo Ocidente (Milão). O primeiro se manteve centrado na fi-gura do Imperador Arcádio, filho de Teodósio, que consoli-dou o Cristianismo em religião oficial. O segundo império,sob o comando de Honório e também filho de Teodósio, nãoteve a mesma sorte, pois fora fragmentando pelo domínio dosvários povos “bárbaros germanos” – politeístas. Novamenteconferimos um desencontro entre oralidade e escrita, de modoque, o Império do Oriente ficara sob a influência da escriturabíblica, o que possibilitou seus professores e escritores dis-seminar o texto Divino às pessoas do Império, diferentemen-te da Antiguidade pagã quando a homeopática cultura da escritaera restrita à elite de maior poderio econômico e político. Já oOcidente fora ocupado por culturas que não apresentavam dis-posição à prática da escrita de maneira eminente.

No entanto, em apreço à decadência da unificação do EstadoRomano no Ocidente, o cristianismo (leia-se, uma cultura apartir a escrita) permaneceu não de maneira oficial, mas emplena atividade de catequização, o que justificaria o desapareci-mento, enfraquecimento e dispersão de alguns povos “bárba-ros” e a constituição de uma Europa cristã e letrada.13

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Os cristãos, apesar da insistência, não conseguiram letrar (nosentido de fazer ler e atribuir a importância à escrita) todos ospovos e pessoas através da Bíblia. Muitos deles continuaramna posição de “bárbaros” na visão dos cristãos, tal como eramna visão dos romanos, porque não se tornaram nem um nemoutro. Tão pouco suas culturas sobreviveram, levando-nos ainferir que a grande leva de pessoas marginais tanto no cristi-anismo quanto na prática da escrita, os habitantes das urbani-dades medievais, eram originárias das diásporas dos povos ditos“bárbaros”. Vejamos que a escrita e sua leitura participam dosconflitos gerados por transformações culturais que se esten-dem até os dias de hoje, mas aqui, nos reportamos até oRenascimento.

A partir de então toda e qualquer problemática cultural ecivilizatória pressupõe a presença da escrita. Em suma, ela deixade ser algo externo às culturas ou da ilusão de uma cultura uni-versal, e passa a ser tema geral da Europa ao Mundo Novo.Chartier não hesita em mencionar sua fidelidade à tese dePhilippe Ariès de que o ingresso das sociedades ocidentais naescrita é o aspecto mais marcante da modernidade. (CHARTIER,1991, p. 113). O que não quer dizer que o autor sugere umdomínio total da escrita sobre as culturas ágrafas, mas que, comoressaltamos há pouco, sua marca consiste em presença ativa, nasinvestidas e nas renúncias por parte das sociedades, dos Estadose das Igrejas. Sem dúvida, a comparação entre filogênese eontogênese da Alfabetização se torna possível quando identifi-camos o conflituoso processo que esta desencadeou na forma-ção do Ocidente, bem como na de cada sujeito que se aventuranesta empreitada.

A aculturação escrita das sociedades ocidentais, passa, portan-to, por numerosas significações favoráveis e pejorativas, assim

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como coligamos com atitudes de crianças, jovens e adultos in-seridos na aventura da leitura e da escrita. Chartier, por exem-plo, conta que a hostilidade à escrita era tão comum nosperíodos que englobam a Idade Média, Renascimento eIluminismo, que o escritor Shakespeare coloca em cena na se-gunda parte de Henrique VI, uma personagem chamado JackCade, fabricante de tecidos, que investe tríplice ódio sobre aescrita, pois a veicula às decisões da justiça, já que esta o puniupor roubo de gado. (CHARTIER, 1991, p. 123)

Outro famoso conflito diz respeito à substituição dos manus-critos pelo texto impresso. Em Veneza, Filippo di Strata de-senvolve contra a invenção de Gutenberg o argumento de quea imprensa é culpada por corromper os textos, publicando-osem edições apressadas e falhas, visando apenas ao lucro. Alémde corromper as mentes por rapidamente fazer circular textosimorais e heterodoxos. (CHARTIER, 1991, p. 125)

Nesse período a leitura não era hábito comum a todos. Den-tro do contexto onde alguns sabiam apenas ler, outros, assinaro nome, muitos não tinham o domínio nem de um nem deoutro; participavam do mundo da escrita como ouvintes detextos lidos por nobres, padres e alguns da plebe que acaba-ram por desenvolver tal saber. O conflito direto entre culturaoral e cultura escrita iniciada com o encontro entre judeus,romanos e bárbaros se perpetuou no conflito entre a oralidadeda plebe e a escrita da nobreza.

A leitura em voz alta era comum sob dois aspectos. O nobre eo padre o faziam quando destinava suas leituras a ouvintes, namaioria mulheres e plebeus tolhidos do privilégio. Estes últi-mos, quando liam, proferiam em voz alta suas leituras parafacilitar o desenvolvimento da mesma, além de acompanharpalavra a palavra com o dedo, com estratégia para não perder o

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fio do texto. Até o século XIX os leitores inábeis se distingui-ram dos outros por sua incapacidade de ler em silêncio.(CHARTIER, 1991, p. 126)

Se no início da formação da Europa medieval os cristãos foramcatequizando os “bárbaros”, alguns por meio da oralidade e ou-tros pela leitura, conforme o fortalecimento da religião, e a con-seqüente hierarquização, as escrituras iam se restringindo aomanuseio de alguns sacerdotes autorizados, pois é da fala delesque os bárbaros deveriam apreender a palavra divina. É curiosoperceber esse movimento contraditório do cristianismo refe-rente à alfabetização: ora ele abre as portas deste saber, ora asfecha. A igreja luterana, por exemplo, apoiada pelo Estado, em-preendeu na Inglaterra uma vasta campanha de ensino da leiturapara que todos os fiéis aprendessem com os próprios olhos aler a Palavra Sagrada. Daí o clero das paróquias empreenderemessa ação. Contudo, anos mais tarde, por volta de 1520, Luteroabandona a exigência de leitura individual e universal da Bíbliapelos pastores em prol do controle da compreensão do textosagrado. (CHARTIER, 1991, p. 120-121)

Atentemos que, no parágrafo acima, as considerações sobre oensino se limitam à leitura. Portanto, a prática da escrita eraainda mais restrita a certos círculos da sociedade. O exemplodas mulheres. Poucas sabiam ler, mas quando liam, isso aindaera aceito, contudo o exercício da escrita pelo sexo femininoera algo quase impensável, considerada atividade inútil e peri-gosa. Deixando de lado a natureza ética deste valor, o fato é quea ocorrência de pessoas que sabiam apenas ler para si e oralizara escrita sem, no entanto, saber executá-la, demonstra que, hámuito, a história da civilização demonstra que ler e escreversão atividades cognitivamente independentes e que envolvematé mesmo conflitos culturais entre oralidade e escrita.

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Os feitos da escrita transcendem os interesses religiosos emdireção aos puramente literários e comerciais. Na Espanha (nosséculos XVI e XVII), são formados auditórios populares paraouvir a leitura em voz alta de vários escritos como novelas decavalarias e periódicos que contavam a vida e os ideais dos ri-cos fazendeiros, médicos, patriotas etc. que no bojo de suasintenções guardavam um projeto de civilidade. (CHARTIER,1991, p. 155). Todavia, não é possível reduzir a inteligência doshumildes populares em relação à aprendizagem da leitura e daescrita, de modo que, de alguma forma, muitos conseguiamaprender o artifício e assim passarem a produzir seus textosmuito vinculados às suas histórias de vida envolvida com a re-alidade e o imaginário. Com efeito, é relevante destacar que,se a aquisição da linguagem escrita não consiste em algo natu-ral, nem mesmo para a burguesia e o clero, então é possívelinferir que os obstáculos a serem vencidos por parte daquelesque estão distantes da cultura alfabética, são muito maiores.

Alfabetização: entendendo particularidades

Todo o percurso histórico realizado acima serve para nos mos-trar que a passagem de uma sociedade essencialmente oral parauma sociedade em que a escrita assume o papel que tem hoje,não foi um mar de águas calmas. Ao contrário, os conflitos e asrevoluções foram e ainda são vigentes, isto graças ao papel quea escrita exerce, seja diante das relações de poder, diante dosagrado ou, mesmo, diante de sua aprendizagem. A difusão dacultura escrita nos meios sociais recaiu em mudanças de mo-dos de ver o mundo. A escrita permitiu enxergar e ocultarcoisas que outrora não era possível, inocências foram quebra-

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das, redes de intrigas foram montadas, alianças foram feitas.Lembremos do Tratado de Tordesilhas, onde o mundo foi di-vidido, primeiramente no papel, entre as nações portuguesa eespanhola.

Contudo, conforme sinalizamos inicialmente, esses conflitostambém se repetem todos os dias nas salas de aula. A diferen-ça é que, como as baixas e os ferimentos não são físicos, nãonotamos e, por isso, não nos chocamos. Afinal, para quem jáadmitiu a escrita há tanto tempo, na infância, parece muitonatural a sua aprendizagem. No nível do indivíduo muitas sãoas revoluções e, assim como apontamos aquelas originadas nonível social, faremos um cotejo daquelas no nível do aluno.

O fato de os professores – e adultos em geral – possuíremintimidades com a escrita, faz com que os processos e esfor-ços históricos e cognitivos em jogo sejam esquecidos. Porexemplo, a aquisição da escrita concerne tanto ao empenhonecessário para que o movimentar da mão se coordene em suaprodução quanto à sua oralização.

A partir da instauração deste campo de conhecimento é possí-vel estabelecer a idéia de que, o percurso da leitura e da escritaora convergem, ora divergem na filogênese e na ontogêneseda alfabetização. No processo de aquisição da escrita e do en-tendimento que as letras buscam representam os sons, o alfa-betizando é colocado frente a desafios cognitivos.

Em suma, a criança e o adulto que ainda não dominam as “re-gras” do jogo da escrita e da leitura se vêem diante de açõesque interagem, porém mantêm suas especificidades:

a) adquirir uma linguagem socialmente compartilhada, porémque é arbitrária em suas relações internas, b) buscar se expres-sar por um meio gráfico que se sustenta na visualidade e c)

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entender a expressão escrita, de um outro que não está pre-sente, procurando apreender os sentidos daquilo que está es-crito. O ponto convergente é o sistema lingüístico, ou emtermos mais simples a língua materna na sua forma escrita,porém para entender tal convergência é preciso maturidadebio-psíquica, no caso da criança, e convivência com a escrita(tanto criança como adultos).

Tratemos das duas primeiras questões. A escrita é um objetoque está fora do sujeito. Em tenra idade aprendemos a falar eum pouco mais tarde aprendemos a escrever. Diferentementeda fala de aprendizagem eminentemente social, a escrita é umato individual. O sujeito precisa compreender, para aprender,que os “desenhos” e os “grafismos” compartilhados pela soci-edade, ou seja, as letras servem para comunicar e expressaridéias, sentimentos e emoções, porém de forma silenciosa.Expressar-se graficamente significa, ou seja, expressar-se pelaescrita, em termos muito simplificados, é dominar um siste-ma vigente social, convencionalmente estabelecido. A escritanão é um conjunto gráfico construído pelo alfabetizando, masum objeto social que este sujeito precisa entender as regraspara utilizá-lo.

Emilia Ferreiro, conjuntamente com Ana Teberosky (1991),foi a responsável pelo ponto de vista referido acima. Se antesda hipótese da psicogênese da língua escrita, a alfabetizaçãoestava centrada nos métodos, pelos quais se “ensinava” o alfa-betizando a ler, a partir da teoria citada, o processo toma outratonalidade. A alfabetização passa a ser entendida como umaação do sujeito da aprendizagem sobre o sistema escrito dalíngua. Um sistema que não é nem a transcrição, nem acodificação da fala, mas, sim, a busca pela sua representação.(FERREIRO, 2001, p.10-16)

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Esta particularidade da linguagem escrita impõe desafios aoalfabetizando. Primeiramente, apresenta-se o aspecto gráficoda escrita. Se em alguns países, como a China, por exemplo, aescrita tem um caráter ideográfico, isto é, a escrita chinesa buscarepresentar as idéias associadas aos objetos, às ações, etc., en-fim o conceito que se quer expressar (KATO, 2003, p.10-19),na escrita ocidental, da qual o português faz parte, os desenhosda letra não têm a relação ideogramática.

Nosso sistema lingüístico da escrita é alfabético, isto é, a letrabusca representar o som. Juntando as letras formam-se as pa-lavras que remetem a um ou mais significados. As palavras sãopolissêmicas e as letras são polifônicas. A título de exemplo: apalavra manga serve tanto para denominar a parte do vestuárioque cobre o braço quanto para denominar a fruta, bem como overbo mangar conjugado na terceira pessoa do singular, indi-cando que alguém está zombando de outro. O que vai definiro significado da palavra é o contexto em que ela se encontra enão a forma como está grafada.

O caráter simbólico da linguagem, de as palavras remeteremaos objetos, pessoas, animais e ações do mundo, emboraeconômico, impõe ao sujeito alfabetizando desafios. E aquitemos outra particularidade da escrita. Uma letra, no caso doportuguês (e aqui nos atemos ao que é falado e escrito no Bra-sil), pode representar vários sons. Um bom exemplo é a letraX. A depender a palavra em que ela se encontra podemos ter osom de /s/ pós-vogal, como em expectativa; podemos ter osom de /z/, como em exame; encontramos ainda o X com somde /ks/ como em táxi. Temos também a ocorrência de um somser representado por diferentes letras. Dessa maneira temoso som /s/ nas seguintes escritas: ss em osso; ç em moço; sç emcresço; sc em piscina; c em cinto; o próprio s em sapato; x em

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experiência e z em Beatriz (LOPES, 1976). Estes são apenaspoucos exemplos da relação entre sons e letras em que não sevê “concordância” entre o que se escreve e o que se fala. Pararegra de que um som é representado por uma letra há muitasexceções na Língua Portuguesa...

Dessa forma, a escrita alfabética requer um esforço cognitivo decompreensão, pois ela é um sistema convencionalmenteconstruído, isto é, não há uma relação motivada nem entrefonemas (os sons) e grafemas (as letras) que compõem a pala-vra, nem entre as palavras e seus significados (SAUSSURE,1972).Os desafios impostos são o de compreender tais especificidades,ao mesmo tempo em que se precisa aprender também suaespacialização: o aluno precisa entender que a escrita em portu-guês é realizada da esquerda para direita. O alfabetizando preci-sa perceber, e aprender, também a diferença grafo-espacial entrep, q, d e b, ao mesmo tempo em que apreende as relaçõesfonêmicas destas letras. Para que o alfabetizando escreva, den-tro das regras sociais da escrita, ou seja, escreva dentro da nor-ma dita padrão, é preciso que ele entenda e aprenda o carátersimbólico da linguagem escrita. Quantas coisas o alfabetizandotem de perceber, entender, aprender e apreender para saberescrever como o esperado!

Podemos afirma que o processo de alfabetização é complexo.De um lado é preciso dominar a minúcia do traçado das letras,de outro entender que a relação entre fonemas e grafemas varia,a depender do modo que ficou convencionada a escrita da pala-vra. Adicionado temos ainda a leitura que está intrinsecamenterelacionada com o trabalho de aquisição da linguagem escrita.Escrever serve para comunicar, então o que está escrito, em prin-cípio, é para ser lido e compreendido. No entanto, com tantosdetalhes do sistema, a ação de ler e compreender não é simples

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e unívoca. É um processo que exige esforço como demonstradopelas pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1991) no livro Psicogêneseda língua escrita.

Como podemos notar, o que ocorreu na história da humani-dade, descrita de forma breve neste ensaio, aponta para o queocorre em sala de aula. Em alguns momentos a aprendizagemda escrita está aparentemente dissociada da leitura, no que tan-ge, por exemplo, ao aprendizado motor do traço das letras, ena compreensão que a constituição de conjuntos por estes tra-ços formam as palavras. Noutros momentos leitura e escritaestão vinculadas de forma intrínseca, no que se refere à com-preensão que a palavra como conjunto de traços significa, alémde constituir sentidos quando dispostos no espaço constituin-do textos poéticos, científicos, jornalísticos entre outros.

Conseqüências pedagógicas

O professor alfabetizador diante de tais questões levantadas ter-mina por pensar: O que fazer? Como fazer? Quando fazer? Re-sumindo todas as indagações na questão: o que se precisa fazerpara alfabetizar? A primeira postura diante do colocado nesteensaio é entender que ninguém alfabetiza o aluno, mas ele é osujeito da sua aprendizagem. Ora, alguns poderão pensar: entãonão é para ensinar nada? Deixa correr...e de uma hora para outroo alfabetizando sai escrevendo? Não é isso o que os autores des-te ensaio defendem. É necessário e urgente entender que não é oprofessor que alfabetiza o estudante. Admitir isso é assumir maiorresponsabilidade diante da alfabetização, respeitando o aprendentecomo sujeito que pensa e interage com a escrita.

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O professor deve criar condições para que o estudante enten-da as particularidades tanto da escrita quanto da leitura. Nou-tros termos, o professor a partir das atividades propostas, dainteração com os alunos, do estudo constante deve criar umambiente de alfabetização por meio de leitura de textos e deatividades que levem em consideração as ações que estimulemo processo em questão.

Para isso o professor necessita saber das particularidades dosprocessos de escrita e de leitura para que as atividades propos-tas estimulem e atinjam o objetivo da alfabetização: levar oaluno a escrever e a ler com proficiência. As aulas, então, pas-sam a ser um campo de observação e de pesquisa em que pro-fessor e aluno estão em constante interação. O professor passaa ter a função de orientador da caminhada do aprendente ecoordenador das atividades em sala.

Muitos pensarão que isto só é possível com alunos de Educa-ção de Jovens e Adultos (EJA). A alfabetização para as criançasé diferente na sua forma tendo em vista a questão das maturi-dades bio-psíquica e sociocultural envolvidas. No entanto, es-truturalmente elas são bem semelhantes. Tanto criança quantoadulto precisa saber que as letras são a busca de representaçãodos sons, mas não são os próprios sons. Por isso, cachorro seescreve diferente de xícara, embora o mesmo som esteja pre-sente nas duas palavras. Além disso, temos as questões sócio-econômicas que interferem no processo da alfabetização.Mesmo diante das dificuldades impostas o professor deve pro-mover situações em que os conflitos da aquisição da escrita eda leitura sejam resolvidos, mesmo que de maneira paulatina,porém constantemente.

Para que o aluno entenda e apreenda a escrita alfabética doportuguês do Brasil pode-se trabalhar com parlendas, cantigas

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de roda, poesias e trava-línguas. No entanto, trazer esses tex-tos para sala de aula sem saber o que eles desenvolvem noaluno, de nada adianta. O professor precisa saber que os tex-tos promovem o desenvolvimento da tão sonhada consciênciafonológica (entender que uma letra pode representar um oumais sons, que as palavras podem ser divididas em sílabas, queas frases são compostas de palavras ordenadas, que um som serepete em diferentes palavras, etc.) (NASCIMENTO, 2006).E isso só ocorre por meio do estudo constante e sistemático.Noutros termos, o professor precisa pesquisar sobre alfabeti-zação, ler e refletir sobre as teorias e relaciona-las à sua práticaem sala de aula.

Não podemos, enquanto professores, fazer de conta que nãoexistem pesquisas que nos auxiliam em nossa prática pedagógi-ca. As pesquisas e seus resultados re-significam o fazer cotidia-no do professor e dos aprendentes. Ao propor um exercício deseparação de sílabas, por exemplo, o professor deve ter claropara que serve a atividade e relacioná-la ao contexto estudado.E não fazer deste tipo de exercício uma tarefa mecânica parapreencher folhas de caderno ou manter as crianças comporta-das ou ainda por que esse ou aquele método recomenda. Oprofessor precisa se tornar agente do seu trabalho, entender oque ocorre com o aluno seja criança, seja jovem, seja adulto.Mais do que métodos, o professor precisa entender o que ocor-re na aprendizagem, inclusive para ter a liberdade de escolherou não um método. E, quando escolher um e algum aluno nãocorresponder ao esperado, mudar de método e criar estratégiasde aprendizagem. O professor precisa ser autônomo.

No que se refere à alfabetização, Azenha (1997) aponta a ne-cessidade da escrita enquanto sistema de representação se fa-zer objeto do pensamento da criança. Para tanto, quanto mais

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entende seu aluno, mais resultados o professor verá. A criançaestá por descobrir o quase desconhecido e a forma como lhe éapresentado demandará no sucesso ou no fracasso da vida es-colar.

Daí ficar claro o papel do lúdico, do estético e do afetivo. Emtermos práticos, podemos contrapor dois lados: a imagem deum trabalho feito à base da repetição de traços na extensão detodo um papel, sem interação com outras linguagens e a ima-gem do professor que instiga seus alunos a “brincar” de escre-ver bilhetes para os colegas, que põe constantemente na posiçãode leitor e escriba.

Muitas vezes, a pressa de que o estudante atinja o estado deconsciência fonológica (relacionar os sons e as letras da línguamaterna), faz com que haja “queima” de etapas, esquecendo-se de que esse é um processo evolutivo e não “uma porta” parao mundo da escrita. O mundo da escrita e da leitura tem mui-tas e variadas portas. A presença das imagens, por exemplo,nas aulas serviriam para demonstrar uma outra forma de re-presentação, tendo em vista, por exemplo, a conclusão de queo desenho do gatinho, não é o gatinho.

Em outra situação, a pretensão de querer trabalhar com textosescritos, pode criar o mito de que o contato por si seria sufici-ente como meio para a aprendizagem da escrita. Neste caso,enfatizamos a necessidade da leitura e da escrita como práticasincluídas na formação continuada dos professores. Além dis-so, o alfabetizador, antes de todos, deve ser um bom usuáriodo sistema.

Enfim, quando comparamos as etapas do processo histórico eobservamos, atentamente, o processo de alfabetização, do pontode vista do aluno como sugere Emília Ferreiro (2001) emReflexões sobre alfabetização, podemos levar muitas soluções para

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a prática escolar. Por trás da imensidão de tentativas, muitasvezes denominadas erros, há um trabalho constante e laboriosode sujeitos, procurando construir, e por isso construindo, suaspráticas com a escrita. Temos aqui um bom exemplo de comoo teórico deve se aliar à prática, com intuito de desfazer equí-vocos, tais como, a insistência em tarefas desnecessárias ouimpossíveis de ser realizadas num dado momento históricodo sujeito. A história nos ensina a trabalhar com paciência, aten-ção e perseverança, pois, tendo o tempo e o humano comoseus maiores constituintes, ela se constitui todos os dias. Épreciso que compreendamos a impossibilidade das realizaçõesimediatas em prol de práticas educativas que vislumbrem ointeresse pela mediação dos saberes aprendidos pela humani-dade na sua face oral e escrita, tomando esta última como umaconquista das mais valiosas.

Considerações finais, mas não conclusivas

É difícil dar uma conclusão para um assunto tão complexo quan-to o processo de alfabetização que envolve a escrita e tambéma leitura. Ainda mais quando se trata de um ensaio. No entan-to, o objetivo dos autores é de, por meio de uma visada histó-rica da escrita e das questões sobre o processo psicogenéticoda aprendizagem da escrita, contribuir para que o professor,responsável por salas de alfabetização, reflita mais.

O percurso histórico construído busca descrever o quão difícile demorada foi a instauração da escrita para humanidade. En-volveu relações bio-psíquicas de maturidade evolutiva do ser,relações entre o que se queria representar e o que era relevan-te ser representado. Envolveu questões históricas e políticas

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de povos. Envolveu o aprimoramento da busca pela represen-tação da fala. Quando tratamos do caráter simbólico da escritaqueremos destacar que escrever e ler não é natural, muitomenos fácil. Mas se trata de um processo complexo que exigetempo de observação e contato com a escrita.

Nas conseqüências pedagógicas, reforçarmos nosso objetivode fazer o professor refletir sobre a sua ação em sala de aula eda necessidade de sempre estar pesquisando e estudando pararespeitar seus alunos e tornar-se, o professor, um facilitadorda compreensão e do domínio da escrita.

Notas

1 Muitas vezes enganamo-nos ao acreditarmos que nossos hábitos, estilos e modusvivendi, nascidos nas tramas da cultura, são desenvolvidos naturalmente semrestrições e conflitos. Contudo, é necessário observar que o ser, nascido semcultura, é imerso em uma, onde sofrerá processos de aculturação. Para tanto, seatentarmos para o complicado percurso que nossas crianças passam para chegara um determinado estado, ou ainda, buscando recordar nossa própria infância,poderemos identificar o caráter laborioso que presume a inserção do ser em umacultura.

2 Ontogênese (do gr. on, ontos: ser e gênesis: geração) Princípio formulado pelomédico inglês Harvey em 1628, dizendo respeito ao desenvolvimento doorganismo individual a partir do ovo até o estado adulto. Opõe-se à filogênese,que diz respeito à evolução do phylum, ou espécie. Segundo a teoria do biólogoevolucionista alemão Ernst Heinrich Haeckel (1834-1919), a ontogênesereproduz a filogênese, ou seja, o indivíduo ao longo de seu desenvolvimentopassa por diferentes estágios de evolução que são os de sua espécie. (JAPIASSU;1996, p. 200) .Para este ensaio é importante saber que, apesar de ambos osconceitos procederem das ciências naturais, tornou-se comum trabalhá-los nocontexto das ciências humanas referente ao desenvolvimento sociocultural daespécie humana.

3 O filósofo fenomenologista Vilém Flusser propõem em seu Filosofia da caixapreta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia (2002) a tese de que aprática da grafia teria surgido como uma superação da idolatria. Esta seria umestado onde o ser humano vivenciava o mundo através dos ícones, geralmente

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associados a soberanos e deuses. Isto ocorria dois milênios a. C., quando seiniciou um movimento de destruição das imagens em prol de um contato maisdireto com o mundo. Uma das vias foi instituir a escrita, como tentativa deestabelecer linearidade causal às seqüências de eventos no tempo em detrimentode suas representações circulares marcadas pela alienação graças a uma noção etempo a-histórica. (FLUSSER, 2002, p. 9)

4 Pictografia sf (picto+grafo+ia) Escritura primitiva ideográfica, em que as idéiassão expressas por meio de cenas ou objetos desenhados. (MICHAELIS, 1998)

5 Uma bela demonstração de que os gregos tinham a fala como expressão mor daverdade não se limita a suas práticas filosóficas. Podemos também encontrar talnoção na peça chamada Antígona, do teatrólogo Sófocles que viveu na GréciaClássica entre os anos 496 e 406a.C. Em uma das passagens da referida peça, apersonagem principal, Antígona (o título da peça se refere a ela), contesta asordens de seu interlocutor, o governante de sua cidade, Creonte, que proibiuque o irmão dela fosse enterrado por qualquer cidadão, pois teria morrido emum duelo contra a polis, merecendo assim, sofrer o processo de decomposição aoar livre. O caso é que Antígona não respeitou tal ordenamento ao enterrar seuirmão, sendo presa logo após o ato. Na seqüência, a heroína se dirige ao seugovernante da seguinte forma: “Nem eu supunha que tuas ordens tivessem opoder de superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, [visto que és mortal]”.(SÓFOCLES, 2006, p. 36). Podemos reparar que Antígona atribui maior valoràs leis dos deuses cuja forma de expressão é a fala ou a voz, em detrimento das leisescritas de Creonte.

6 Maiêutica (do gr. maieutiké: arte do parto) 1. No Teeteto, Platão mostra Sócratesdefinindo sua tarefa filosófica por analogia à de uma parteira (profissão de suamãe), sendo que, ao invés de dar à luz crianças, o filósofo traz à luz idéias. Ofilósofo deveria, portanto, segundo Sócrates, provocar nos indivíduos odesenvolvimento de seu pensamento de modo que estes viessem a superar suaprópria ignorância, mas através da descoberta por si próprios, com o auxílio do“parteiro”, da verdade que trazem em si. (JAPIASSU, 1996, p. 171)

7 Fala-se da Antiguidade Oriental: os sumérios, acádios, assírios e caldeus, naMesopotâmia (séc. XI a.C.); os egípcios, na África (XXII a.C.); os hebreus, naPalestina; os fenícios e persas, Oriente Próximo (XVI ao VII a.C.). Em terrasmais longínquas, os chineses no Extremo Oriente (XXII ao VI a.C.). Aorganização do povo grego é indicada pela historiografia como posterior aospovos do Oriente; dando início à Antiguidade Ocidental ou pré-Clássica e Clássica(XII ao III a.C.).

8 Logograma (do grego ëüãïò - palavra + ãñÜììá - caracter, letra) símbolo ougrafema único que denota um conceito concreto ou abstrato da realidade. Umlogograma que denota um conceito através de um símbolo gráfico é umideograma. Um que o representa diretamente, através de uma ilustração, é umpictograma. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Logograma - acesso em 27/09/2006)

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9 Cuneiforme adj m+f (cúnei+forme) 1. Em forma de cunha. 3. Diz-se de umaescrita dos assírios persas e medos, usada em pedras e tabuinhas de barro cozidoe cujos caracteres tinham a forma de cunha. (MICHAELIS, 1998)

10 Este fato foi apregoado pelos judeus, estes que na Palestina estavam sob odomínio do Império Romano no governo de Augusto. Portanto, a expansão deRoma significou o encontro da cultura greco-romana com a cultura hebréia.

12 O Imperador referia-se à sua vitória sobre Maxêncio em Ponte Mílvia (d.C.312).13 Para tanto, ver história dos germanos, eslavos e tártaros, mais suas subdivisões

em hunos, visigodos, ostrogodos, suevos, alanos, vândalos e burgúndios. Porém,no que concerne a esse processo, nunca podemos falar em termos absolutos edefinitivos, senão balizarmo-nos na história de processos paulatinos, descontínuose operosos.

Referências

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SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1972.

WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdoenciclopédico. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=P%C3%A1gina_principal&oldid=3268993> Acesso em: 27 set. 2006.

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O ONDE em estruturasrelativas no português atual

Evidências de variação e mudança

Emília Helena Portella Monteiro de Souza

No ensino de língua portuguesa, na escola, os pos-tulados da gramática normativa parecem bem pa-cíficos. Quase não há o que se questionar, vistoque essa gramática, considerada como expressãoda norma padrão, deve ser o modelo para o falan-te de norma culta. Isso ocorre a despeito de seevidenciarem mudanças na língua, mesmo nos ní-veis mais formais. Tem-se como prática normal-mente desenvolvida na escola se tomar a gramáticanormativa, com suas regras do “bem falar e escre-ver”, ou o livro didático, que, comumente, repro-duz as regras dessa gramática. Apesar de os PCNde língua portuguesa, apoiados em estudoslingüísticos recentes, assumirem uma visão de lín-gua variável e dinâmica, diferindo da concepçãoclássica, essa última concepção é a que ainda vigo-ra, quando se considera a realidade da sala de aulae o ensino de português.

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Ao se observarem os resultados de pesquisas que têm se de-senvolvido a partir da década de setenta, e de ampla divulgaçãonas últimas décadas do século XX e inícios do século XXI, so-bre a língua portuguesa do Brasil, verifica-se que nem tudodeve ser tão pacífico, como desejam os guardiães da pureza dalíngua. É na esteira dessas pesquisas que se apresenta esteestudo sobre o ONDE, e a sua relação com o QUE, em con-textos de estruturas relativas, em corpora oral e escrito do por-tuguês atual. Os resultados vêm demonstrar comportamentosvariáveis e processos de mudança, por que passa o ONDE, jáatestados em estudos precedentes, e que podem ser vistoscomo expressão de uso do português contemporâneo, umarealidade nem sempre considerada.

Delimitando O Problema

Como foi dito anteriormente, as observações sobre o ONDEem estruturas relativas, são a partir de dados da língua falada eda língua escrita do português atual. Como questões a serempostas, indaga-se, primeiramente, se o comportamento doONDE é variável nas duas modalidades, a oral e a escrita e, emseguida, se estruturalmente as relativas não-padrão1 constituí-das pelo ONDE se equivalem às do QUE, levando-se em con-sideração os processos de variação e de mudança no nívelmorfossintático, por que passa esse relativo. (TARALLO, 1996)2

Observar ocorrências do ONDE em estruturas padrão signifi-ca primeiramente considerar o uso desse item com o seu valorsemântico básico – uma referência a espaço físico (lugar emque) – e o que é canonicamente aceito. Em estruturas sintáticas,esse elemento gramatical encabeça orações relativas, podendo

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se referir a um termo anterior, o antecedente, ou ocorrer semantecedente (BECHARA, 2000, p. 171). Nesse último caso, atradição gramatical o identifica como um relativo indefinido.Quanto à função sintática, é consenso nas GramáticasNormativas considerar que o ONDE desempenha sempre afunção de adjunto adverbial, significando “lugar em que, noqual”, daí ser considerado por muitos gramáticos como umadvérbio relativo, a exemplo de Cunha e Cintra (1985, p. 342).

Poder-se-ia sem muita complicação, de acordo com o exposto,classificar esse item em ocorrências da língua oral e da línguaescrita. Mas só aparentemente. As próprias definições usadasnas gramáticas tradicionais, e mesmo descritivas, já apresen-tam um problema de ordem categorial: o ONDE é pronomeou advérbio? É só advérbio, e em alguns contextos é prono-me? O ONDE é apresentado com uma natureza híbrida, epara equacionar a questão, ele recebe a dupla identidade. Ob-serve-se como Bechara (2000) trata o ONDE do ponto de vis-ta categorial.

Bechara (2000, p. 112) denomina os pronomes como unidadescategoremáticas, que são “formas sem substância”, apresen-tam apenas ou em primeiro lugar um significado categorial,não representando nenhuma matéria extralingüística, por issoos pronomes são substantivos, adjetivos, advérbios e até ver-bos em algumas línguas. Os pronomes relativos são definidoscomo os que se referem a um termo anterior chamado antecedente3

(BECHARA, 2000, p. 171). No item Pronomes relativos sem ante-cedente, esse Autor diz que o ONDE pode ser usado semantecedente, ex: Moro ONDE mais me agrada.

Quanto aos advérbios, Bechara (2000, p. 290) refere-se a essescomo uma classe de palavra muito heterogênea, tornando-se

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difícil atribuir-lhe uma classificação uniforme e coerente. Oscritérios usados para classificá-los são pelos valores léxicos (se-mânticos) das unidades que o constituem, são os denotadoresde lugar, tempo, quantidade etc. e critérios funcionais. Peloscritérios funcionais, estaria o ONDE como relativo e comointerrogativo. Bechara (2000, p. 293) diz que o advérbio, pelasua origem e significação, se prende a nomes ou pronomes,havendo, por isso, advérbios nominais e pronominais. OONDE pertence aos de base pronominal.

Bechara (2000, p. 294) se refere aos advérbios relativos, apre-sentando a mesma conceituação dada aos relativos, incluindoexemplos semelhantes. Observem-se as citações abaixo.

Os advérbios relativos, como os pronomes relativos, ser-vem para referir-se a unidades que estão postas na oraçãoanterior. Nas idéias de lugar empregamos ONDE, em vezde em que, no qual (e flexões):

A casa ONDE mora é excelente.

Precedido de preposição a ou de, grafa-se aonde e donde:

O sítio aonde vais é pequeno/ É bom o colégio donde saímos.

Ainda como os pronomes relativos, os advérbios relativospodem empregar-se de modo absoluto, isto é, sem refe-rência a antecedente:

Moro ONDE mais me agrada.

Também quanto à estrutura sintática, nem sempre é pacífica aanálise do ONDE, principalmente quando este ocorre enca-beçando orações sem antecedente; nesse caso, ou se admite odesdobramento como em: Não vejo ONDE você está. Não vejoo lugar/ em que você está. (ALMEIDA, 1997, p. 318)

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Ou se analisa a estrutura com o ONDE como uma oração ad-verbial locativa:

Moro ONDE melhor me agrada. (BECHARA, 2000, p.294)

Admite-se, também, nessa análise, o ONDE encabeçando ora-ções, além de relativas e adverbiais, substantivas (BECHARA,2000; FARACO; MOURA, 1998). Exemplo de orações subs-tantivas objetivas diretas encabeçadas pelo ONDE:

Não sabemos ONDE comprou.

Os garotos não descobriram ONDE os pais tinham posto ospresentes. (BECHARA, 2000, p. 470)

Esse autor conclui dizendo:

A análise que adotamos tem a vantagem de encarar umarealidade da língua, e não uma substituição que a ela real-mente nem sempre equivale... Transposta a substantiva, aoração de relativo sem antecedente expresso pode exerceras funções próprias das substantivas originais. 4

Com respeito a esse último aspecto, nem todos os gramáticosse referem a essas ocorrências sintáticas do ONDE, atendo-se, apenas, às estruturas relativas.

Para analisar esse item a partir de contextos de uso, tomam-secertas posições. Do ponto de vista categorial, identifica-se oONDE como um pronome, pelo seu caráter lacunar a ser pre-enchido por elementos do contexto imediato ou referido, evi-denciando a sua característica de item fórico, aquele que nãopode ser interpretado por si mesmo, mas remete a outrositens do discurso necessários à sua interpretação. Castilho (1998,p. 112), reportando-se aos advérbios não predicativos, excluios circunstanciais de tempo e de lugar. Propõe que fiquem

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dispostos entre os pronomes, por figurarem como “falsos”advérbios. Nesse caso, seriam denominados pronomes circuns-tanciais. Essa forma de perceber a questão apresenta-se comomais coerente, tem a vantagem de eliminar as ambigüidades eimprecisões das análises apresentadas pelos gramáticosnormativos.

Com referência ao valor semântico do ONDE, esse elemen-to, considerado como um dos itens mais antigos da língua,tem na sua formação etimológica o sentido de “lugar em que”,uma referência a espaço físico, de sentido genérico. Esse é osentido básico, mas não o único atribuído ao ONDE, desde oséculo XIV. Conceitualmente, o ONDE é um termo lingüísticoque codifica uma representação espacial, um determinado lu-gar. É, segundo a semântica cognitiva, um conceito estruturadometaforicamente (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Pode-se tercomo hipótese que o ONDE é um elemento gramatical quesitua espaços, físicos, primariamente, e que, por processometafórico, esse conceito se estende a outros mais abstratos.

O uso padrão do ONDE prevê, portanto, uma referência aespaço físico. Como item gramatical, assume-se ser um pro-nome de sentido genérico, preenchido no contexto por ele-mentos lexicais à esquerda, nesse caso ele é pronome anafórico,à direita, ele é pronome catafórico, ou é usado como uma re-ferência à situação, portanto, possui uso exofórico. Encabeçaorações relativas explicativas ou restritivas, substantivas e ad-verbiais. Ocorre em sentenças afirmativas, interrogativasdiretas ou indiretas. Neste texto, vão ser focalizadas em espe-cial as orações relativas encabeçadas pelo ONDE, em corporaoral e escrito.

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Caracterização dos corpora oral e escrito

O corpus de língua falada, objeto de análise, é constituído doPEPP/SSA/90 (Programa de Estudos do Português Popular deSalvador, década de 90) e do NURC/SSA/90. Do PEPP sãotomados 06 inquéritos, especificamente os referentes à faixaetária de 15 a 24 anos; a escolaridade é Ensino Médio comple-to. Do NURC são 12 inquéritos, 06 de informantes da faixaetária de 25 a 35 anos, 06 inquéritos da faixa etária de 45 a 55anos.

O corpus de língua escrita é constituído de 75 redações escola-res de alunos do Ensino Médio, de uma escola de classe médiade Salvador, com idade entre 15 e 17 anos; e de 40 Editoriais etextos de Opinião do jornal A Tarde/SSA (2003/2004).

Como procedimento metodológico, inicialmente vão ser ob-servados os usos do ONDE em inquéritos do PEPP e emredações de estudantes, cujos informantes, em ambas as amos-tras, são de escolaridade de nível médio. Em seguida, o con-fronto dar-se-à entre textos de língua falada do NURC e textosescritos da mídia impressa, ambos de escolaridade superior.Pelo fato de se buscar uma relativa equivalência em termos deidade dos informantes de nível superior, optou-se porselecionar do NURC duas faixas etárias que poderiam, comohipótese, corresponder à faixa de idade dos autores dos edito-riais e dos artigos de opinião. Finalmente, pretende-se com-parar no nível superior as duas faixas etárias e proceder a algumasconsiderações.

Para a análise do ONDE, vai-se partir de seus valores. O quese tem verificado é que, além do valor canônico, espaço físico,o ONDE apresenta outros valores mais abstratos em contex-tos de uso. Portanto, constituíram-se as seguintes categorias:

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o ONDE indicador de espaço físico (~em que); de tempo(~quando); de noção (espaço físico estendido, mais abstrato);de posse (~cujo); e de outros valores mais abstratos5.

Segundo a semântica cognitiva, o espaço físico é o sentido maisbásico, mais concreto, os outros sentidos mais abstratos. Pos-tula-se que a abstratização do significado do ONDE se dá pri-meiramente do espaço físico para o tempo, sendo esseconsiderado a metáfora mais direta do espaço. É o tempoconceitualizado como uma locação no espaço (LAKOFF, 1998, p.102). O valor nocional do ONDE se dá, também, por transfe-rência metafórica.6 O sentido lugar físico se estende a outrosdomínios mais abstratos, relativos a conceitos, situações, sen-timentos. O falante conceitualiza essas ocorrências como seestivesse dentro de alguma coisa, num espaço virtual,cognitivamente projetado a partir da experiência em relação aoespaço físico. Também a posse se dá por projeção do domíniodo espaço para um domínio mais abstrato. Possuir significatrazer para dentro de seus domínios, do espaço interior, vistocomo um recipiente. Outros valores mais abstratos do ONDEpodem ocorrer em contextos em que esse item seja emprega-do para estabelecer nexos sem o valor funcional que possui.Esse conjunto de valores constitui o valor polissêmico doONDE.

Análise das amostras de Nível Médio – modali-dades oral e escrita

Como o ambiente sintático em que o ONDE vai ser observadoé em estruturas relativas, o pressuposto é que as estruturas pa-

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drão são formadas com o ONDE Espaço Físico, os outros valo-res (tempo, noção, posse) vão constituir orações não-padrão.

Registra-se, por outro lado, que se encontram nos corpora sobanálise, usos do ONDE Espaço Físico também constituindooutras estruturas sintáticas, como orações adverbiais locativas(L), substantivas (S), orações interrogativas diretas (Oi). Emtodas essas realizações, se evidencia a propriedade inerente aesse item, que é a foricidade. Segue, a título de ilustração, ototal de ocorrências do ONDE Espaço Físico em orações rela-tivas e em outras estruturas, assim também consideradas pa-drão, na língua falada.

ONDE Espaço Físico R P OI S L

Oral 10 - 1 1

Escrito 20 - - -

Quadro 1- Distribuição do ONDE Espaço Físico em corpora oral e escrito. Nível Médio.

Observa-se, no Quadro 1, que apenas a modalidade oral apre-senta ocorrências do ONDE em estruturas relativas e em ou-tras estruturas. Sendo as relativas em quantidade superior.

Seguem exemplos do ONDE na modalidade oral.

1- ... eu lembro que tinha, uma, uma, uma madeirinha com uns,com os ganchinhos ONDE ficava penduradas todas as me-rendeiras... [H1C48]7 (Relativa padrão)

2- ...eu brincava assim, não saia assim pra brincar com colegas, esim dentro da minha própria casa assim no quintal, porque tinhaquintal ONDE eu morava. [M1C02] (Adverbial Locativa)

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3- ...o alicate sumiu, “cadê o meu alicate, cadê o meu alicate”, eudisse, “ah, eu peguei e guardei, eu nem lembro ONDE foi queeu coloquei” [M1C02] (Substantiva)

Estruturas relativas padrão e não-padrão nos corporaoral e escrito – nível médio

Valores do ONDE Modalidade Oral Modalidade Escrita

espaço físico 10 20

tempo - 1

noção - 13

posse - -

Quadro 2- Distribuição dos valores do ONDE em corpora de Nível Médio, emestruturas relativas.

Nas amostras da língua falada, aqui considerada faixa 1 (15 a 24anos), são 10 ocorrências do ONDE, com o valor de EspaçoFísico – não há usos não-padrão. Já na língua escrita (faixa etáriade 15 a 17 anos), de 34 ocorrências do ONDE, 20 se apresen-tam com o valor Espaço Físico, 13 com o valor Noção, 01 comvalor Tempo. Nesses usos não-padrão, o ONDE é fórico.8

O fato de os informantes das amostras de língua falada apre-sentarem um uso absoluto de ONDE Espaço Físico evidenciao uso do valor mais básico desse item e que é o aceito pelatradição gramatical. A hipótese que poderia ser levantada é queesses informantes, sendo estudantes de escola pública e pro-venientes da classe popular, apresentassem usos não-padrãodo ONDE. Comparando-se esse resultado com os dos infor-mantes de língua escrita, que são estudantes de escola particu-lar e são de classe média, verifica-se que os valores não-padrãodo ONDE têm um número significativo, especialmente o

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ONDE Nocional. A questão que se apresenta é: qual fator émais determinante para esse resultado? O fator modalidadeoral e escrita, ou o fator social?

Seguem exemplos extraídos do corpus oral, uso padrão.

4- É, dois anos e meio aqui no, no, que hoje é o SESC né,ONDE foi que eu estudei o segundo colegial lá...[M1C12]

5- DOC – Isso em que bairro?

INF – Isso no Cabula.

DOC – No Cabula.

INF – ONDE foi, ONDE a gente teve a nossa infân-cia né, a minha e a dele foi mais no Cabula, a da minha irmãque foi lá pro lado de Brotas. [H1C48]

6- ...e acho que é o maior colégio da Bahia que é o ICEIA,ONDE eu estudei. [H1C20]

Seguem exemplos do corpus de língua escrita, uso padrão.

7- A droga conseguiu, hoje, sair dos subúrbios, periferias e áreasde miséria para os bairros mais ricos ONDE o seu consumo ébem maior.

8- Vivemos num país ONDE há preconceito de diversos ti-pos e em grande quantidade.

9- Caso vivo foi ocorrido na Europa, ONDE os alemães, achan-do-se superiores, cometeram atrocidades com os judeus.

Comparando-se as estruturas relativas padrão a partir dos exem-plos dados dos corpora oral e escrito, observa-se que há uma con-siderável diferença entre as realizações orais e escritas. Para efeitode análise da língua falada, é considerado, além do nível sintático,o discursivo-pragmático para dar conta das realizações da línguaem toda a sua dinâmica, na interação. Nesse nível de realização,

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estão previstas, no intercurso, as correções, as repetições, asdescontinuações, as interrupções, nem sempre sendo possívelobservar uma sintaxe em que as estruturas sentenciais sejamvistas de forma completa. Isso não resultando em prejuízo paraa comunicação, uma vez que entram nesse processo, além docontexto lingüístico e pragmático, uma referência a outras facul-dades da cognição humana (como a memória) e do comporta-mento. No caso sob enfoque, o que se poderia considerar comoestruturas relativas estritamente padrão, canônicas, nem sem-pre se ajusta às realizações orais, em específico neste contextode uso. Nos exemplos de língua falada apresentados, o ONDEse mostra em perfeita consonância com outros elementos docontexto, constituindo uma sintaxe muito própria. Do ponto devista semântico, observa-se a retomada do referente em duasrealizações em situação de anáfora, fora da oração relativa:

•no exemplo 4, o ONDE tem como referente SESC,que depois é retomado pelo lá;

•no exemplo 5, o referente do ONDE é o SN no Cabula,que depois é retomado. Esse reforço da referencialidadeestá por conta do caráter genérico e lacunar do ONDE,também da necessidade do falante em enfatizar a indica-ção de lugar.

Quanto às estruturas relativas do corpus escrito, os exemplosdemonstram estruturas bem canônicas: o ONDE ocorre en-cabeçando a relativa, e se segue imediatamente a seu referen-te, um lugar físico.

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Estruturas não-padrão do ONDE na modalidadeescrita

As estruturas não-padrão do ONDE, dessas amostras da mo-dalidade escrita (Quadro 2), são em número de 14, sendo: 13do ONDE Noção; 01 do ONDE Tempo.

O ONDE com valor Noção (espaço abstrato) se apresenta emdiversas realizações, como estão exemplificadas nas seguintespassagens:

10- Mas sabemos que a pena de morte é um assunto muito relativo,ONDE requer muitos cuidados antes de ser implantado, paraque não haja benefícios para um e a maioria não seja beneficiada.ONDE ~ que ( relativo, na função de sujeito)

11- O racismo também é bem presente em se falando dos homos-sexuais, ONDE a sociedade os condena por gostarem de ho-mens, o que não é muito aceito.ONDE ~ que (na função de objeto direto, com prono-me lembrete os; estrutura de cópia)1

12- Esse é um problema polêmico, ONDE se tem várias des-culpas, tanto de uma classe quanto da outra.ONDE ~ para o qual (como complemento nominal, emestrutura cortadora)

ONDE com valor de Tempo

13- Mudar este tabu não será muito fácil, porque isto vem secaminhando desde a criação do ser humano, ONDE as mulhe-res já tinham seu destino traçado.ONDE ~ quando

O ONDE ocorre nessas estruturas desempenhando diferen-tes funções sintáticas, concorrendo com outros relativos. Acondição fórica do ONDE, como pronome, possibilita a esse

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item ocupar espaços de outros relativos, como a ocorrência denúmero 10, em que o ONDE se apresenta em variação com oQUE. Em algumas estruturas, como as de número 11 e 12,deixam de se processar certas regras sintáticas que seriamexigidas caso fossem utilizadas as correspondentes estruturaspadrão com o QUE ou com outro relativo. O exemplo 12, deestrutura cortadora, teria seu correlato padrão com o QUEpreposicionado, na nomenclatura usada por Tarallo (1996).

Análise das amostras de Nível Universitário –modalidades oral e escrita

Modalidade oral

Vão ser observadas, a seguir, as ocorrências do ONDE emduas amostras da língua falada de informantes de nível univer-sitário, nas duas faixas etárias analisadas, aqui consideradas fai-xa 2 (25 a 35 anos) e faixa 3 (45 a 55 anos). Primeiramente, vãoser apresentados os resultados da faixa 2 (Quadro 3).

Valores do ONDE Ocorrências

espaço físico 2

tempo -

noção 4

posse -

Quadro 3 – Valores do ONDE em estruturas relativas - faixa etária 2

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No Quadro 3, há 02 ocorrências do ONDE Espaço Físico, e 04com valor Noção. Verifica-se, nessa faixa etária, que o valor Noçãotem uma freqüência de uso maior do que o valor Espaço Físico.

Seguem exemplos do ONDE em estruturas relativas.

ONDE Espaço Físico

14- Isso é verdade, principalmente quando a gente vê assim opessoal que mora na zona ONDE passa ônibus demais , car-ro demais... [M2U14N]

ONDE Noção

15- ...era coisas engraçadíssimas, porque por ter uma vida socialONDE eu conhecia bastante gente... [M2U13N]ONDE ~ em que , na qual (como adjunto adverbial)

16- E é nesse momento que eu acho que às vezes os pais estão seperdendo, porque nessa ânsia de ser muito amigo se torna muitoliberal e acaba virando libertinagem a relação, ONDE o filhojá coloca coisas que não precisava nessa relação. [M2U11N]ONDE ~ em que, na qual (adjunto adverbial)

17- ...eu aprendi cedo a ver os pré-socráticos, não é? E neles umafigura chamada Heráclito de Éfeso, não é? Que foi considerado oprimeiro dialético da história, ONDE ele dizia que nada há depermanente neste mundo, exceto a mudança, não é? [H2U10N]ONDE ~ que (como sujeito, em estrutura de cópia (ele)

18- E hoje praticamente a gente não vê as crianças dentro dessafaixa etária dez, doze anos que é ONDE eu me lembro mais,assim, não é? a gente não vê mais isso, os meninos hoje só queremshopping, ouvir música... [M2U14N]ONDE ~ de que (como objeto indireto, em estruturacortadora)

Veja-se o Quadro 4 com o total de ocorrências da faixa etária 3(45 a 55 anos).

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90 O ONDE em estruturas relativas no português atual

Valores do ONDE Ocorrências

espaço físico 6

tempo -

noção 2

posse -

Quadro 4 - Valores do ONDE em estruturas relativas - faixa etária 3

Pelo resultado do Quadro 4, o ONDE Espaço Físico tem umnúmero maior de ocorrências, comparando-se com o ONDENoção, em estrutura não-padrão. Essa faixa etária demonstraser mais conservadora do que a faixa etária 2.

Como exemplificação tem-se:

ONDE Espaço Físico

19- Salvador tem uma aptidão pra turismo e a gente não podevender pra turismo uma cidade ONDE um sujeito bota umabarraca no passeio pra vender cerveja... [H3U3R]

ONDE Noção

20- ...atualmente está bem mais cedo, e com isso, crianças do sexofeminino, essa é a minha marcação em relação às novelas das seis,ONDE você vê sexo explícito mesmo, nu, pessoa nua mes-mo... [M3U12N]ONDE ~ em que (adjunto adverbial)

Modalidade escrita

Observe-se o Quadro 5, a seguir, com a distribuição das ocor-rências do ONDE, na modalidade escrita, informantes de ní-vel superior, em textos do jornal A Tarde/SSA.

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Valores do ONDE Ocorrências

espaço físico 31

tempo -

noção 13

posse -

Quadro 5 - Valores do ONDE em relativas na modalidade escrita

Existe, nessas amostras de modalidade escrita, uma predomi-nância de usos do ONDE Espaço Físico sobre os demais, euma freqüência bem significativa de usos do valor Noção.

Seguem exemplos.

ONDE Espaço Físico

21- Do poço pioneiro de Lobato, na zona suburbana de Salva-dor, ONDE jorrou petróleo pela primeira vez no País, atéhoje, a história da Petrobrás está intimamente ligada à Bahia.(JAT, SSA, 03/10/2003).

ONDE Noção

22- Trata-se da degradação deliberada das condições de trabalho,ONDE prevalecem atitudes e condutas negativas dos che-fes em... (JAT, SSA, 05/12/2003)ONDE ~ em que (adjunto adverbial)

23- ... o mandato do prefeito de Amargosa, um entre os recordis-tas na emissão de cheques sem fundo e titular de um caixa doisONDE movimentava recursos públicos como se fossem seus(JAT, SSA, 06/12/2003)ONDE ~através do qual (adjunto adverbial em estrutu-ra cortadora)

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92 O ONDE em estruturas relativas no português atual

Observe-se, no Quadro 6, a seguir, o total geral de ocorrênci-as do ONDE em estruturas relativas, nas amostras das moda-lidades oral e escrita de nível superior.

Valores do ONDE Modalidade Oral Modalidade Escrita

espaço físico 8 31

tempo - -

noção 6 13

posse - -

Quadro 6 - Total Geral – modalidade oral e modalidade escrita

De acordo com o Quadro 6, só dois valores do ONDE consti-tuíram orações relativas, o ONDE Espaço Físico e o ONDENoção. Desses usos, o Espaço Físico tem uma freqüência deuso superior à Noção, embora esse último valor tenha umaquantidade de ocorrências bastante expressiva. Há de se notar,também, que na modalidade oral ocorre estrutura copiadora(exemplo no 17), e estrutura cortadora (exemplo 18) na faixaetária 2; na modalidade escrita, ocorre estrutura cortadora(exemplo no 23). Evidencia-se o uso do ONDE em variaçãocom o QUE, em estratégias relativas não-padrão.

Considerações finais

No que se refere aos valores do ONDE, o referente a EspaçoFísico é predominante no nível Médio, tanto na modalidadeoral quanto na escrita. Sendo que a modalidade oral (faixa 1),de norma popular, é mais conservadora, apresentando um usoabsoluto do ONDE Espaço Físico (Quadro 2). Na modalidade

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escrita, existem usos de ONDE com outros valores, Tempo eNoção, sendo esse último uso o mais freqüente.

O nível universitário apresenta, como um todo, usos padrão enão-padrão. Em duas amostras, uma de língua falada (faixa 3) euma de língua escrita, o ONDE Espaço Físico é superior aoONDE Noção. A novidade está por conta da faixa 2, que apresentausos do ONDE Noção suplantando o uso Espaço Físico, portanto,se evidencia como uma faixa etária mais inovadora (Quadro 3).

Como uma primeira conclusão, pode-se considerar que overnáculo é mais padrão, está associado a menos escolaridadee na modalidade menos formal. O não-padrão está associado amais escolaridade (nível universitário) e/ou mais formalismo.

As ocorrências do ONDE em textos de alunos de escolaparticular apresentam, ao lado de usos padrão, usos não-padrãoaltamente significativos, estruturalmente se equivalem aos dafaixa 2 (25 a 35 anos), de informantes de nível universitário.Nesse caso, a busca por maior formalismo, associada a um valorde prestígio do ONDE Noção podem justificar essas ocorrênciasnão-padrão. Essas evidências vêm demonstrar que esse valortem se apresentado como um valor de prestígio nesta sincronia,do ponto de vista sociolingüístico. A faixa etária 2, de falantesuniversitários, do ponto de vista social, está dentro da faixaconsiderada mais produtiva. Os falantes, nessa faixa etária, têmpreferência pelos usos considerados de maior aceitação, comouma percepção das vantagens sociais que podem obter (SILVA-CORVALÁN, 1988). Em termos da mudança, as evidênciaslevam a se concluir que é o nível universitário que a estádesencadeando, portanto, esta está ocorrendo de cima para baixo.

Do ponto de vista cognitivo, verifica-se, nas amostras analisadas,que, dos valores abstratos, o ONDE de valor nocional (espaço

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estendido) é o que constitui as estruturas relativas não-padrão.A escolha do ONDE, em detrimento de outros relativos, queformariam relativas padrão, deve-se a fatores de naturezasemântica e sintático-discursiva. Do ponto de vista semântico,há que se considerar que o ONDE Noção (assim como outrosvalores abstratos) não é um valor novo na língua, ele é denatureza conceitual, e ocorre por transferência metafórica.Quando o ONDE tem como referentes conceitos, situações,sentimentos (cf. exemplos apresentados), é como se o falante,nesse momento, conceitualizasse essas ocorrências comolugares virtuais. Essa escolha repercute na estrutura sintática,no sentido em que as regras válidas para a formação de certasestruturas relativas deixam de se processar.

Ao se estabelecer uma comparação com o relativo QUE, verifica-se que tanto esse relativo como o ONDE são itens gramaticaisde natureza fórica. Do ponto de vista semântico, o QUE, vaziode matéria lexical, difere do ONDE, que tem como sentido-fonte uma referência a lugar, é um sentido genérico que deve serpreenchido pelo contexto por elementos mais especificados.

Tarallo (1993), tratando das estratégias da relativa no portuguêsbrasileiro atual, relaciona as estratégias não-padrão – a relativacom pronome lembrete (copiadora), e a cortadora – comodecorrência de mudanças no sistema pronominal do portuguêsdo Brasil, de objetos nulos e da retenção de sujeitos lexicais. Aperda da referência pronominal fez com que o sistema se re-arranjasse Tarallo (1996, p.74). Esse autor, reportando-se a essasmudanças, diz que são previsíveis, considerando-se que asmudanças acontecem em teias e ecoam umas nas outras. O ONDE,constituindo também orações relativas e tendo muitas daspropriedades do QUE, se apresenta em situações de usosemelhantes ao QUE das estruturas não-padrão, como um

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complementizador, destituídas as suas propriedades de relativo,como se observou nos dados apresentados, tanto da faixa etária1, modalidade escrita (exemplo de no 12, de estrutura cortadora),como no nível superior, faixa etária 2 (exemplos de no 17 e no

18, estruturas copiadora e cortadora, respectivamente).

As estruturas sintáticas com o ONDE de valor abstrato, comode valor nocional, (ou tempo, posse etc) se realizam porque jáexistem. Na língua, algumas dessas estruturas são bemfreqüentes com o QUE, como as estruturas com cópia e acortadora, constituindo, por assim dizer, estratégias de esquivado uso das relativas padrão preposicionadas, ou mesmoestruturas com CUJO. A variação do ONDE com o QUE seevidencia também na constituição dessas mesmas estratégias.A cortadora é uma estrutura não estigmatizada, emergente,isto é, de uso mais recente na língua portuguesa do Brasil, e oONDE nocional, nesta sincronia, pelos dados analisados (e poroutras pesquisas anteriormente realizadas) tem se apresentadocom uma grande freqüência de uso, não sendo muito se dizerque pode vir a se convencionalizar, ganhando um status doONDE Espaço Físico.

Ao se considerar a repercussão dessas pesquisas nos estudosde língua portuguesa na escola, verifica-se como essa precisadialogar mais. Os PCN de Língua Portuguesa já abriram ocaminho, ao estabelecer como bases para os estudos da língua,considerações advindas das recentes pesquisas em lingüística.Uma dessas é tomar a língua como um sistema variável e sujeitoa mudanças. É uma visão que interfere na perspectiva em quese considera o falante e os contextos de uso da língua. Paracada situação existe uma forma que melhor se ajusta à atividadecomunicativa. Daí deverem ser consideradas as variantes, asque são de prestígio, bem se ajustam às situações de maior

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formalidade; outras melhor se ajustam às situações maisinformais. As escolhas devem ser feitas pelo falante, com aconsciência do valor social que é conferido a essas variantes.

Em termos de processos de mudança, pesquisas têm demons-trado as tendências do português do Brasil, nos vários níveis,principalmente no nível morfossintático. Muitas das realizaçõesdos falantes ditos cultos já não encontram eco na prescriçãogramatical, embora sejam realizações legítimas, não estigma-tizadas. Por que na escola o parâmetro continua sendo, apenas, agramática normativa? Tomá-la para se proceder a estudos sobrea língua é importante, mas na condição de se poderem confrontaras suas prescrições com outros usos de circulação social. Umestudo baseado, somente, nas suas normas, constitui um campoestéril, pois se trata de uma língua ideal e sem repercussão nasatividades lingüísticas diárias dos falantes.

Notas

1 Adota-se aqui a nomenclatura de Fernando Tarallo (1996), padrão vs. não-padrão, o qual faz um estudo no nível sintático, embora o presente trabalho sefundamente em critérios semântico-cognitivos, na recuperação de entidadesnão locativas.

2 Tarallo (1996), em investigação sobre o português falado na cidade de São Paulo,encontra três tipos de relativa, que ele batiza como: relativa com pronomelembrete: (“Você acredita que um dia teve uma mulher que ela queria a genteentrevistasse ela pelo telefone?”); relativa cortadora (“ É uma pessoa que essasbesteiras que a gente fica se preocupando (com) (ela), ela não fica esquentandoa cabeça”) que constituem variantes da relativa padrão, o que preposicionado(“É uma pessoa que essas besteiras com que a gente fica se preocupando, ela nãofica esquentando a cabeça”). Trabalhos posteriores dão evidências de que essasestratégias da relativa, especificamente as variantes da relativa padrão, sãotendências do português do Brasil, concluindo-se, mesmo, que a relativa compronome lembrete, ou copiadora, é mais estigmatizada e a relativa cortadora temampla aceitação nos falares de prestígio.

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3 Esta é também uma definição dada por Cunha e Cintra (1985).4 Em nota, se refere a Said Ali que assume postura semelhante.5 Quando o ONDE ocorre equivalendo a conectivos, destituída a sua condição

fórica.6 De acordo com a semântica cognitiva, o significado deriva de esquemas sensório-

motores. São as ações no mundo que permitem que as pessoas aprendamdiretamente esquemas imagéticos espaciais e são esses esquemas que dãosignificado às expressões lingüísticas (LAKOFF; JONHSON, 1980, p.29). Oser humano tem o potencial de fazer transferências entre domínios conceituais,do mais básico, como é o espaço, para domínios mais abstratos, como o tempo,o espaço abstrato, ou nocional, etc.

7 Os inquéritos estão codificados da seguinte forma: o primeiro valor é o gênero Hou M: o segundo, faixa etária 1,2,3; o terceiro, escolaridade C (Colegial-EnsinoMédio), U (Universitário); o quarto, o número do inquérito. Quando osinformantes forem do NURC/90, depois do número do inquérito vai existir, oua letra N, significando informantes novos, ou R, significando retornados, quesão informantes da década de 70, que foram recontactados.

8 Três ocorrências do ONDE não estão sendo consideradas. Nessas, o ONDEassume a função de um conectivo, constituindo um outro tipo de estrutura quenão oração relativa.

9 Uma possível estrutura correlata padrão para a que foi apresentada: “... que sãocondenados pela sociedade...”

10 Reconheça-se em S. a referência ao autor do texto “Trabalho pesado”, texto quemotiva a escrita

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Produção de textosna escola Trabalho pesado?

Lícia Maria Freire Beltrão

Como todo escritor, tenho tentação de usarverbos truculentos: conheço adjetivosesplendorosos, carnudos, substantivos everbos tão esguios que atravessam o ar emvias de ação, já que palavra é ação, concordais?Mas não vou enfeitar a palavra, pois se eutocar no pão da moça esse pão se tornaráouro... e a jovem não poderia mordê-lo,morrendo de fome. Tenho que falar simplespara captar a sua delicada e vaga existência.

Clarice Lispector (1998)

Neste ensaio, objetivo discutir sobre questõespedagógicas da produção de textos escritos,atividade escolar reconhecida por estudantes,quando não por professores, como um trabalhopesado. Tomo para isso a produção escrita do textoTrabalho pesado, apresentado por um estudante do3o ano do Ensino Médio, à guisa de corresponder àconsigna proposta por seu professor, que se

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confunde com um fragmento extraído da obra de ClariceLispector (1998), A hora da estrela, que diz: “Não, não é fácilescrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas comoaços espelhados”.

Inicio, pois, lhes dizendo que é impossível medir e documentaro grau de consciência lingüística com o qual alguém escreve eprever o que escolhe para dirigir os seus atos. Impossível dizerse, tal como Clarice, S.1 sentiu-se tentado a usar verbostruculentos, adjetivos carnudos, substantivos esguios naprodução de Trabalho pesado. Não sei se desistiu de enfeitar apalavra. Não sei se pensava, como Adriana Falcão (2003), naspalavras frias, nas itálicas, nas bonitas, nas complicadas, nassozinhas, nas pesadas, nas doces, nas imóveis. Não sei sequerse, enquanto escrevia, pensava na infinidade de palavrasdisponíveis para uso, desfrutando daquilo que Barthes (1997,p.312) nos diz de modo tão aparentemente simples: “As palavrasda língua não são de ninguém”. Ou se construíra um falsoconceito sobre a vida das palavras.

Sei dizer, todavia, consideradas as condições de produção doseu texto – o contexto histórico-social, os interlocutorespossíveis, o lugar de onde escreveu, a imagem que fez de si, dooutro e do referente – que S. pensava, na expectativa de atravessaras linhas, não menos de trinta, revendo pontos, vírgulas, letras,escrever, obediente à consigna apresentada por seu professorde redação. E assim o fez. Procurarei destecer o texto produzido,objeto de estudo deste ensaio. Leiamos, antes, o que S. escreveu,misturando os procedimentos típicos da leitura parafrástica como da polissêmica, conforme compreensão de Orlandi (1987),para, na constituição dos diálogos provocados pelos textos,respondermos, ou insistirmos com a pergunta: a produção detextos na escola é um trabalho pesado?

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Comecei! Pam!! Primeira porrada. Acho que quase umquarto de sua estrutura agora são pedregulhos feios edescartados. Preparo-me para o segundo golpe, não possodesperdiçá-lo, a energia de meu corpo tem um limite etambém o tempo é curto. É preciso ser profundo, concisoe objetivo, fazer o máximo com o mínimo. Lá vai...Ótimo,consegui tirar toda sua crosta superficial. Ufa! Mereço umdescanso.Por onde tentar agora? Como retirar mais uma camada dessadura rocha? Paro e penso; há realmente algo valioso no seuinterior, devo continuar? É melhor, as duas picaretadasforam boas, além do mais o dia vai embora daqui a pouco eeu vou com ele. Pof!!! Acho que agora torci a mão e a batidafoi fraca, preciso de autoconfiança, acreditar na pedrapreciosa que há lá dentro. Pam!!! Já consigo ver um pontobrilhante, parece opala. Com excitação dou o quarto golpe,a pedra é grande, tomara que não seja só mais um cristalzinhosem valor. Acho que a parte mais interior da pedra é menosrígida que a crosta. Como foi difícil o começo... Minhasmãos suam tanto quanto as axilas. É necessário muitocuidado para não danificar a jóia e perder todo esse trabalho.Esfrego as palmas uma na outra para secá-las e encorajar-me. Vou dar o último golpe.Aí está: é uma pedra grande e brilhante, parece ser cara. É,estou feliz, mas sei, por experiências anteriores, que essapedra é valiosa para mim pelo meu trabalho, pelo quecustou, mas só saberei seu grau de pureza quando ela forlevada ao avaliador. (S. agosto, 2000)

Respeitada a experiência de cada leitor (a), acredito que sereconheça a inteligente iniciativa mostrada por S. de atravessaro tempo de escrita do texto, quebrando as rochas que se faziamnecessárias para construí-lo, para lhe dar a forma discursivadesejada. Acredito, portanto, que se reconheça, no diálogoestabelecido por S. com Clarice, a ratificação do que nosconfessou em A hora da estrela: “escrever é duro como quebrarrochas”.

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104 Produção de textos na escola

Consideradas as experiências leitoras, no caso dos que transitamcom intimidade pela poética drummoniana, acredito que, apretexto de procedimentos requeridos pela leitura polissêmica,a produção de sentidos se dará na relação dialógica com, pelomenos, dois de seus poemas: O lutador – Lutar com palavras/ éa luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã [...],reunido em José (1942) e com O Elefante – Fabrico um elefante/de meus poucos recursos./Um tanto de madeira/ tirado avelhos móveis/ talvez lhe dê apoio [...], reunido em A rosa dopovo (1945). (ANDRADE, 2002)

Nessa perspectiva, podemos considerar alguma similaridadeassinalada de ambos os textos na escrita de Trabalho pesado.Apoiados em Eco (1986), diremos que nenhum texto é lidoindependentemente da experiência que o leitor tem de outrostextos. A competência intertextual representa um caso especialde hipercodificação e estabelece as próprias encenações. Lendocom Bronckart (1999), diremos que S. tomou para si, deempréstimo, textos já elaborados, mas transformados ereorientados, conforme a formação textual requerida naquelasituação escolar, com o reconhecimento de que o processo de“adoção-adaptação” gerou um outro exemplar de texto,diferente dos exemplares pré-existentes, e que esse tipo demecanismo de apropriação e de socialização das atividades delinguagem revelam seu caráter dinâmico e histórico. Lendocom Bakhtin (1997), com as contribuições de Kristeva (1974),Jenny (1979), Maingueneau (2001) e Orlandi (1987), diremosque a produção é arquitetada pela via da intertextualidade, umexercício dialógico e dialético.

A despeito das similaridades e da importância da poéticadrummoniana, observemos somente o caso de S., para nãonos perdermos nas digressões. Ao empreender a sua luta com

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a palavra, informa, explica, analisa, comenta os atos que sevão sucedendo, progressivamente, constituindo o texto, de-finindo a arquitetura de sua produção. Na luta, empresta in-tegralmente seu corpo – mão, razão, coração –, sua energia eforça, reconhecendo possibilidades e limites. No processo,vitaliza sua coragem e confiança. Controlando os atos, fazen-do previsões, inferências e julgamentos, exercita a linguagemna função metalingüística, predominantemente, função quenão nega espaço para o exercício de uma outra: a emotiva,configurando a coexistência de funções em um mesmo espa-ço textual. As brechas lhe servem para se posicionar comosujeito da enunciação, para manifestar emoções e sentimen-tos. Nesse aspeto, recorre ao “eu”, forma lingüística de indi-cação da “pessoa”, primeiro ponto de apoio mais aparentepara revelação da subjetividade, conforme Benveniste (1991).E, no processo da enunciação, ao instituir o “eu”, S. instituiuum tu. (BRANDÃO, 1995)

Se os sentidos até então emprestados ao texto Trabalho pesadoconcorreram para o reconhecimento de que escrever sobre oescrever se constituiu estratégia principal da produção, a trans-figuração escolhida por S., a fim de representar o ato de escre-ver, realidade concreta, não pode ser desconsiderada.Recorrendo a palavras que se deslocam do seu ambientelingüístico mais comum e de modo estilisticamente individu-alizado, cria um cenário no qual simula operar com instru-mentos típicos, objetivando quebrar a rocha, massa compactade pedra, objeto do seu trabalho. A linguagem figurada, noque a metáfora se sobrepõe, se revela, pois, como o modo dedizer escolhido por S. para significar o que, do seu ponto devista, é um trabalho pesado e mobilizar a produção de senti-dos, estratégia que se integra à reconhecida como principal.

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106 Produção de textos na escola

Consideremos, agora, o texto e o conjunto das astúciasescolhidas por S. na sua produção, na perspectiva de Kock(2002), quando discute os aspetos cognitivos do processamentotextual, no que se incluem reflexões sobre os sistemas deconhecimento acessados na ocasião da produção de textos.

A preocupação central das pesquisas na área da cognição, noparecer de Koch (2002), apoiada em Schwarz, tem sido a depropor teorias empiricamente comprováveis capazes de explicaros aspetos estruturais e processuais da cognição humana, a partirde três questões básicas:

De que conhecimento o ser humano precisa dispor parapoder realizar tarefas tão complexas como pensar, falar eagir socialmente?Como este conhecimento está organizado e representadona memória?Como este conhecimento é utilizado e que processos eestratégias cognitivas são postos em ação por ocasião douso?

Independente das respostas que se possam dar, Koch (2002)reconhece, a priori, a existência de um pressuposto central ecomum a várias teorias: o que concebe a mente humana comoum processador de informação, ou seja, que ela recebe,armazena, recupera, transforma e transmite informação e quea informação bem como os processos correspondentes podemser estudados como padrões e manipulação de padrões.

Para tanto, havemos de considerar a dinâmica de funcionamentoda memória, os três momentos ou fases distintos em que operae que aqui vão grifados, para realçá-los: estocagem – em queas informações perceptivas são transformadas em representa-ções mentais, associadas a outras; retenção – em que se dá oarmazenamento das reapresentações; reativação – em que se

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operam, entre outras coisas, o reconhecimento, a reprodução,o processamento textual. Dessa constatação deriva uma antigapreocupação dos estudiosos da cognição: distinguir o que éprovisório e o que é permanente no funcionamento da me-mória. Em resposta, tem-se postulado a existência de três ti-pos de memória que vão citadas, com grifo, para favorecer aleitura: uma memória de curtíssimo termo ou memóriade percepção, onde os estímulos visuais, auditivos e outrossão retidos por cerca de 250 milésimos de segundo; de umamemória de curto termo, de capacidade limitada, onde asinformações são mantidas durante um curto lapso de tempo; ede uma memória de longo termo, onde os conhecimentossão representados de forma permanente. No sentido de reco-nhecer a dinâmica de funcionamento dos três tipos de memó-ria, prefiro admitir mais a relação de um contínuo ir-e-vir entrea memória de curto termo e de longo termo, tal como consi-dera Koch (2002), e menos a relação hierárquica e de depen-dência, que se pode estabelecer entre as mesmas. É a memóriade longo termo, contudo, o espaço no qual estão classificadasas representações mnésicas, esclarece Koch e informa: elas in-corporam dois sistemas de conhecimentos funcionalmentedistintos que se situam nos pontos extremos de um continuumde representações do conhecimento: a memória semântica –uma espécie de thesaurus mental, no qual se inclui o léxico dalíngua e a memória episódica ou experimental – que armazenaepisódios sensíveis às variações contextuais.

Ainda que dê por suspensas as considerações com queessencialmente tratei da memória, podemos concordar com oargumento formulado por Koch de que a memória, nessaperspectiva, deixa de ser concebida como auxiliar doconhecimento, e passa a ser considerada parte integrante dele,ou como forma de todo o conhecimento.

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108 Produção de textos na escola

Estabelecendo a relação entre o que até então foi exposto comTrabalho pesado, podemos reconhecer essa produção como oespaço de materialização do conhecimento de S. sobre a escrita,conforme a operação da sua memória de longo termo, semque se dissociem a memória semântica e a memória episódicaou experimental.

Reconhecimento feito, avancemos. Proponho atenção ao queé tratado por Koch sobre os sistemas de conhecimentoacionados por ocasião do processamento textual para estecontexto.

Com base em Heinemann e Viehweger, Koch (2002) distinguetrês grandes sistemas de conhecimento que concorrem para oprocessamento textual: o lingüístico, o enciclopédico e ointeracional.

O que informa e explica sobre cada um deles pode ser relido aseguir. Com os grifos, destaco cada sistema e os termos queindicam o desdobramento de um dos sistemas, o sociointeracional.

[...] O conhecimento lingüístico compreende o conhe-cimento gramatical e o lexical, sendo responsável pela ar-ticulação som-sentido. É ele o responsável pela organiza-ção do material lingüístico na superfície textual, pelo usodos meios coesivos que a língua nos põe à disposição paraefetuar a remissão ou a seqüenciação textual, pela seleçãolexical adequada ao tema e/ou aos modelos cognitivosativados.O conhecimento enciclopédico ou conhecimento demundo é aquele que se encontra armazenado na memóriade longo termo, também denominada semântica ou social.O conhecimento sociointeracional é o conhecimentosobre as ações verbais, isto é, sobre as formas de interaçãoatravés da linguagem. Engloba os conhecimentos do tipoilocucional, comunicacional, metacomunicativo esuperestrutural.

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O conhecimento ilocucional permite reconhecer os ob-jetivos ou propósitos que um falante, em dada situação deinteração, pretende atingir [...].O conhecimento comunicacional é aquele que diz res-peito, por exemplo, às normas gerais de comunicação hu-mana [...]; à quantidade de informação necessária numasituação concreta para que o parceiro seja capaz de recons-truir o objeto do produtor do texto; à seleção da variantelingüística adequada a cada situação de interação e à ade-quação dos tipos de texto às situações comunicativas.O conhecimento metacomunicativo permite ao produ-tor do texto evitar perturbações previsíveis na comunica-ção ou sanar (on-line ou a posteriori) conflitos efetivamenteocorridos [...]. Trata-se do conhecimento sobre os váriostipos de ações lingüísticas que, de certa forma, permitemao locutor assegurar a compreensão do texto e conseguir aaceitação, pelo parceiro, dos objetivos com que é produzi-do, monitorando com ela o fluxo verbal.O conhecimento superestrutural, isto é, sobre gênerostextuais, permite reconhecer textos como exemplares ade-quados aos diversos eventos da vida social; envolve, tam-bém, conhecimentos sobre as macrocategorias ou unida-des globais que distinguem os vários tipos de textos, sobresua ordenação ou seqüenciação, bem como sobre a cone-xão entre objetivos e estruturas textuais globais. [...](KOCH, 2002, p. 48- 49)

Com o que nos apropriamos de Koch, façamos a leitura deTrabalho pesado, sabendo que, análises e alusões que desintegremos sistemas de conhecimento em estudo, devem ser tomadascomo opção estratégica para efeitos da didática da exposição.

Reconheço, de início, os três sistemas de conhecimentoacessados, distribuídos materialmente no texto. A experiênciacom a escrita nos diz, no entanto, que, sem se acionar o sistemade conhecimento enciclopédico, não se tem texto. Analisemos,por isso, o sistema de conhecimento enciclopédico, a priori.

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110 Produção de textos na escola

Trabalho pesado é constituído pela referência conceitual que S.tem do escrever, como ato produtivo, resultante de experiên-cias imediatas e acumuladas, não linearmente, mas dinamiza-das pelo efeito das trocas estabelecidas com seus semelhantesnas interações sociais, por intermédio da linguagem, semdesconsiderar o entrelaçamento desses efeitos com outros fa-tores internos, compreensão ampliada pelas concepções colhi-das em Vygotsky (1984). Considerando a concepção deaprendizagem significativa defendida por Ausubel (1980), di-zemos isso de outro modo: que ocorreu uma relação não-ar-bitrária e substancial entre o que foi proposto pelo professor eaquilo que S. já sabia a respeito do escrever, como ato produ-tivo e que se constituía um subsunçor. Como as condições daprodução estão vinculadas à atividade escolar proposta por umprofessor, visando à avaliação, S. incorpora o assunto ao texto– a avaliação de textos escolares –, promovendo a sua progres-são e mostrando expectativas, conforme conhecimentos pré-vios sobre essa questão, em particular.

Com relação ao sistema de conhecimento lingüístico, reco-nhecemos que, ao acionar as idéias que preenchem a produçãodo texto, S., concomitantemente, acionou seu repertóriolingüístico, considerada aqui a noção chomskyana de compe-tência lingüística, da qual se deriva a concepção de uma gramá-tica de uso (SOARES, 1979). Reafirmando a compreensão deque a produção de texto demanda análise dos aspetos lingüísticosna dimensão textual, não oracional, ocupação típica dos queainda vinculam a produção textual a aspetos da gramáticanormativa, exclusivamente, podemos falar da adequada sele-ção lexical com que S. trata o assunto específico quando daescolha dos elementos com que mantém a coerência e coesãotextuais. Nesse sentido, analisemos alguns aspetos.

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É com o item lexical “começar”, flexionado, que S. se instala notexto, instaura e anuncia o processo de produção. Com o itemlexical escolhido, tanto revela o tempo do acontecimento quan-to a sua instantânea duração. É outro item, a onomatopéia “pam”,todavia, imediatamente usado que lhe empresta a força semân-tica e o sentido de movimento, de ação, requerido pela produ-ção textual. Essa compreensão se amplia, quando apuramos oruído provocado por outra onomatopéia, “pof ”, como se nossugerisse um certo “engasgamento” na progressão textual, comoainda o reaparecimento de “pam”, dessa vez, soberana, insinu-ando o clímax do texto. Assim é que, com o uso reiterado desseitem lexical, reconhecido como expressão onomatopéica, oraprocedendo a repetição, ora procedendo a substituição que S.estabelece um dos nexos do seu texto, produz um dos seus nós.

Apreciemos, agora, que fez S. com um outro item lexical notexto, o numeral ordinal. Com ele, recurso muito simples, S.,a um só tempo, apóia e controla a sucessão de idéias, marca aprogressão textual e, paulatinamente, orienta o virtual leitor,quanto às tensões em ascensão no texto. Com a omissão deum numeral, terceiro, e o uso da expressão “última”, em lugarde quinto (golpe), com conotação de definitivo, derradeiro,cabal, renova o uso do item e acentua, a meu ver, traços dacriatividade com que o texto se constrói.

Pelo fato de ter escolhido escrever sobre o escrever, conside-rando experiências acumuladas e imediatas, não concepçõeslivrescas sobre o escrever, S. atravessa todo o texto fiel à opção,mantendo a coerência, ou seja, mantendo princípio deinterpretabilidade do texto que pode ser reconhecido tanto pelamarca de desinência de pessoa em itens lexicais como estes: co-mecei, acho, posso, paro, penso, dou, entre outros, quanto pelasubjetividade expressa por estes itens: acho, penso, consegui.

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A coerência concebida do ponto de vista global, no entanto, émantida de um outro modo. É sobre isso que faremos as pró-ximas considerações. Antes, porém, retomemos, o fragmentoda obra de Clarice Lispector (1998) apresentado a pretexto dedesencadear a produção, como apoio à análise: “Não, não éfácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voamfaíscas como aços espelhados”.

Podemos dizer, sem margem de erro, que os sentidos geradospor S. estão literalmente ancorados na concepção de escreverapresentada por Clarice. O primeiro fragmento gera o que éencenado no texto, o segundo, as ações intelectuais empreen-didas, no que o escrever é transfigurado numa rocha e o ter-ceiro, o que se configura como efeito da rocha quebrada,estilhaçada, convertida em pedra preciosa. Os elementoslingüísticos metafóricos usados por S., portanto, por perten-cerem à mesma linhagem daqueles usados por Clarice, suge-rem a identificação da coerência de estilo que se expande portodo o texto, mantendo uma unidade de sentido.

O título atribuído ao texto, cuja construção se faz, do mesmomodo, com a linguagem metafórica, aquela que condensa idéi-as, é um outro marcador textual indicativo da coerência global.Quanto à sua estrutura formal, corresponde ao que Serafini(1989) chama de título-estímulo-aberto.

Sobre o conhecimento sociointeracional acessado, considera-do de modo geral, podemos reconhecer a seleção da variantelingüística e também a descrição, tipo textual predominante,como adequados à situação comunicacional simulada. Quantoao sistema de controle exercido por S. para monitorar os atose efeitos lingüísticos da produção, melhor do que afirmar so-bre operações que deixam em evidência seu exercíciometalingüístico consciente, ou seja, o escrever deliberado, es-

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colhido, em todos os aspetos, é destacar o solilóquio no qualse apóia, fazendo reflexões, considerando-o como estratégiasimilar ao exercício. Observemos o que escreve: “Por ondetentar agora? Como retirar uma camada dessa dura rocha? “hárealmente algo valioso no seu interior, devo continuar?”.

O solilóquio, como estratégia, foi aproveitado no sentido deencaminhar mais uma produção de leitura. Dessa vez,reconhecendo S. como leitor e produtor de seu textoconcomitantemente. Retomando o texto, observamos S.simultaneamente, escrevendo e controlando o escrever,dialogando com o texto, apreciando, verificando os efeitosprovocados por suas interferências e dizendo sobre suas opçõese expectativas. Com esse procedimento, S. não somente nos dáuma considerável contribuição para tencionar a discutidadicotomia entre a leitura e escrita, sugerida na escola, atédefinindo horários exclusivos para aulas de redação, como aindapara associá-lo ao que Brandão (2001) nos diz, valorizando idéiasde Maingueneau (1996): o leitor situa-se num espaço ambíguoentre a disseminação de sentidos possíveis e as restrições inscritasnos artefatos que organizam o texto. O leitor coloca-se entredois movimentos: um movimento de expansão – por ser lacunar,o texto permite a proliferação de sentidos; um movimento defiltragem – o locutor restringe a proliferação, selecionando ainterpretação pertinente, e expressando-a por escrito, acrescento.

Lido na perspectiva bakhtiniana, podemos dizer que Trabalhopesado comporta as duas facetas inerentes à teoria da expressão– o conteúdo e sua objetivação exterior para outrem (outambém para si mesmo); é representação viva de que averdadeira substância da língua é a interação verbal.

Avaliando as diferentes formas de ler Trabalho pesado,considerado como um evento comunicativo, podemos afinal

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dizer que, face às condições de sua produção, às relaçõescognitivas, discursivas e lingüísticas requeridas na produção dossentidos e aos efeitos obtidos, é um texto de qualidade, peloque tem de coerente, de criativo, de singular.

Essa não foi, contudo, nem a leitura nem a constatação feitaspelo professor de S. Se nos surpreendemos, S., talvez, nãotanto, haja vista o que anunciara na conclusão do texto, frutode outras experiências: “[...] Aí está: é uma pedra grande ebrilhante, parece ser cara. É estou feliz, mas sei, porexperiências anteriores, que essa pedra é valiosa para mim pelotrabalho que custou, mas só saberei seu grau de pureza, quandoela for levada ao avaliador”.

Na expectativa de compreender a leitura produzida peloprofessor avaliador do texto bem como os procedimentos ecritérios estabelecidos, prossigo. Pergunto, inicialmente, sobrea concepção de leitura e de produção textual escolhida peloprofessor para governar o diálogo mantido com o texto. A “fichade avaliação” impressa no papel que oficializa a escrita escolar,dado mais imediato, gerador de sentidos, colabora com aelaboração de possíveis respostas. Vejamos os componentesda ficha que segue reproduzida, antes dos comentários.

I - Conteúdo: fuga total ao tema; fuga parcial ao temaAbordagem: boa; regular; insuficiente.

II - Estrutura: texto sem coesão; parágrafo sem unidade;parágrafo sem desenvolvimento; período incompleto;período completo; período confuso; período longo.

III - Expressão: falhas na grafia de palavras; no emprego deletras, no emprego de acentos.Falhas de: pontuação, concordância, regência, colocaçãopronominal.Emprego inadequado de: pronomes, flexões verbais, con-

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junções, inadequações de vocábulos, omissão de palavras,repetição de palavras, falta de concisão.

IV - Aspetos gráfico – visuais: desenho incorreto das le-tras; ilegibilidade; falta de alinhamento das margens; dosparágrafos; rasuras; borrões.

V - Outros Aspetos: mudança de ponto de vista; oralidade;coloquialismo; projeção do eu; insuficiência de linhas;erros de grafia.

(Ficha para registro de avaliação Fonte: Colégio X, agostode 2000)

A ficha de avaliação, como se nota, revela explicitamente umaconcepção oposta à de leitura como produção de sentidos e daprodução de texto como ato produtivo no qual se materiali-zam experiências leitoras do autor, considerada a dimensãointerlocutiva, dialógica da linguagem e as condições de produ-ção do texto escrito, conforme o argumento que defendemosneste estudo, apoiado em Brandão (2001), entre outros. A con-cepção do estudante, sujeito da linguagem e produtor do tex-to, definida a priori, acentua a oposição constatada. Notexto-ficha, ele é retratado, de acordo com a imagem construídapelo professor, como um sujeito improdutivo, lingüisticamenteincompetente, inexperiente, enfim de um sujeito incapaz, de-sacreditado quanto à condição de operar com aspetos da sualíngua materna, visando à arquitetura de um texto no qual opi-ne sobre o ato de escrever. Para validar essa leitura, é bastantelevantar todas as expressões que denotam negação, falhas edesvio de condutas tidas como legítimas. Os grifos feitos sali-entam que, entre todas as expectativas, previsões e prescri-ções, somente se pode aludir a possibilidades positivas, logode acerto do estudante, em relação a dois aspetos: à aborda-gem do assunto – pode haver boa abordagem e quanto à cons-

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tituição de períodos do texto – pode haver período completo,no que, em vista da constituição textual mais ampla, não cor-robora o êxito, o sucesso do estudante.

No mais, o discurso reconhecidamente autoritário, impedin-do a reversibilidade, Orlandi (1987) e toda a semântica da fichade avaliação, aqui tratada como texto, apontam uma política derecepção do texto escrito escolar exemplarmente adversária,contra o estudante, portanto, no sentido da sua competência,dos princípios de aprendizagem, no que o ensino se inclui.Considerando-se, principalmente, o grau de escolaridade deS., concluinte do Ensino Médio, pode-se ler o texto-ficha comquestionamentos em torno da educação da língua escrita quelhe foi proporcionada nos onze anos de sua formação escolar.Em vista disso, levanto a hipótese de que, na escola, agênciasocial da cultura escrita Meserani (1995), a produção textual,do ponto de vista pedagógico, parece continuar sendo maisfreqüentemente ensinada contra o estudante e não a seu favor,já que a flecha do ensino que garantiria a proliferação da lin-guagem, fluência, desinibição, diálogos parece estar sendo des-viada desse fluxo verbal, atingindo o estudante, machucando-o,desqualificando-o, desautorizando o seu dizer, de modo ina-dequado, inconseqüente, caracterizando os eventos de escrita,mais pela censura e menos pela possibilidade de criação. A notaquatro atribuída pelo professor avaliador, finalmente, ratificatudo quanto foi comentado, acrescentando-se a justificativa queaqui vai parafraseada: a nota é uma advertência para S. não sehabituar a produzir textos como aquele no Exame Vestibularda Universidade Federal da Bahia. Mais do que advertência,uma ameaça. Mais do que uma ameaça, uma inferência: a con-cepção de escrita, incorporada pelo Serviço de Seleção, Orien-tação e Avaliação da UFBA, e que instrui sobre o examevestibular não acolhe escrita como aquela.

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No sentido de sublinhar, com ênfase, a constatação feita, repi-to palavras de Chartier (1999, p. 23), porque, a meu ver, tradu-zem uma questão histórica das políticas em torno da escritaque, guardadas as proporções, podem se perpetuar, em con-textos escolares, quando procedimentos pedagógicos inade-quados, como o que discutimos, motivarem ensino e avaliação.

[...] A cultura escrita é inseparável dos gestos violentos quea reprimem. Antes mesmo que fosse reconhecido o direitodo autor sobre sua obra, a primeira afirmação de suaidentidade esteve ligada à censura e à interdição dos textostidos como subversivos pelas autoridades religiosas oupolíticas. [...]

Na continuidade, amplio considerações sobre questõessugeridas em Trabalho pesado – aprendizagem, ensino e avaliação–, questões indissociáveis, enfatizando, de início, a avaliação daprodução do texto escrito na escola.

Muito embora a avaliação não seja assunto dos mais pacifica-mente tratados no âmbito escolar, havemos de concordar quecontribuições como as de Luckesi (1999;2003), Grégoire (2000)e Hoffmann (1993) estimulam importantes discussões. No casoda contribuição de Luckesi (2003,p.31), a diferença estabelecidaentre avaliação e exame, conforme citamos,

“[...] A avaliação da aprendizagem não é e não podecontinuar, equivocadamente, sendo a tirana da práticaeducativa, que ameaça e submete a todos. Basta de confundiravaliação da aprendizagem com exames. A avaliação daaprendizagem, por ser avaliação, é amorosa, inclusiva,dinâmica e construtivista; diversa dos exames, que não sãoamorosos, mas que são classificatórios, seletivos,excludentes. A avaliação inclui, traz para dentro; os examesselecionam, excluem, marginalizam. [...]”.

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poderia nortear programas de ensino, para os diversos seria-dos. Assim, o procedimento mais comumente escolhido paraorientar a produção de texto, reconhecido por Soares (1979)como – do título à redação –, similar ao que constatamos e queparafraseando podemos chamar “da epígrafe à produção” seriareservado à realização de exames, nunca à avaliação que, comoprocesso, impõe procedimentos de ensino e acompanhamen-to de aprendizagens que deles resultem, ou de aprendizagensconseqüentes de outras interações não dirigidas necessariamen-te pelo professor. Os procedimentos, por sua vez, seriam de-finidos a partir do diagnóstico com o qual se reconhecessem asdemandas relacionadas aos sistemas de conhecimentos aciona-dos no processamento textual, conforme Koch (2002).

No que diz respeito à correção do texto, assunto que não seexclui da discussão, convém rever o que diz Soares (1979). Cor-reção, diz ela, é uma fase, do processo da aprendizagem, emque possíveis desvios ou distorções são utilizados comoreferencial para análise. Nessa perspectiva, o erro (inadequaçãoou impropriedade, ou, segundo Poersch (1990), a diferença en-tre o esperado e o ocorrido), tomado apenas como um indica-dor necessário, funcionará como instrumento de regulagem, nosentido de abrir um leque de sugestões para o estudante, den-tre as quais ele selecionará aquela que melhor responder às suascaracterísticas. Para isso a atividade de correção deve ser efetu-ada de modo que possibilite ao estudante uma participação ativano processo. Marcar simplesmente as falhas, ou escrever porcima do “erro” a forma que o professor considera correta, ouainda assinalar nos itens da ficha de avaliação aspetos vistos comofalhos são procedimentos que não levam à aprendizagem; nomáximo constatam os erros e deixam ao acaso a sua verdadeiracorreção, aqui entendida como interferência que contribua paraavanços significativos na prática de produção textual.

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Sobre as indicações, como contribuição para o estudantereconhecer em que e por que errou, Soares propõe que sejamclaras e objetivas, orientem a reformulação do seu texto eapontem onde e como o estudante deve buscar as informaçõesnecessárias. Em vista disso, torna-se imprescindível um sistemade correção em código, a exemplo, que ele identifique bem eque o oriente no trabalho pedagógico de autocorreção, quenão se confunde com a fase de conclusão do processo daprodução textual.

Desse modo, a concepção de avaliação proposta por Soares sealinha à de Luckesi, já que é vista como processo contínuo deconfronto dos diversos estágios de desenvolvimento daprodução textual, não como um momento de constatação, dediagnóstico, de classificação, de desqualificação do que foiproduzido.

Os estudos de Serafini (1989), centrados na prática pedagógicada escrita, são aqui considerados em relação à tipologia decorreção – indicativa, resolutiva, classificatória –, que pode serutilizada pelos professores e os efeitos de sentido concernentesà avaliação da produção textual.

A correção indicativa, conforme diz, consiste em marcar juntoà margem as palavras, as frases e os períodos inteiros que apre-sentam erros ou são pouco claros. Nas correções desse tipo, oprofessor freqüentemente se limita à indicação do erro e alteramuito pouco; há somente correções ocasionais, geralmente li-mitadas a erros localizados, como os ortográficos e os lexicais.A correção resolutiva consiste em corrigir todos os erros, re-escrevendo-se palavras, frases e períodos inteiros. O profes-sor realiza uma delicada operação que requer tempo e empenho,visto que procura separar tudo o que no texto é aceitável einterpretar as intenções do aluno sobre trechos que exigem

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uma correção; reescreve depois tais partes, fornecendo um textocorreto. Nesse caso, o erro é eliminado pela solução que refle-te a opinião do professor. A correção classificatória como a quese centra na identificação não ambígua dos erros através de umaclassificação. Em alguns desses casos, o próprio professor su-gere as modificações, mas é mais comum que ele proponha aoaluno que corrija sozinho o seu erro.

Uma outra categoria de correção que se agrega às apresentadaspor Serafini nos chega através de Ruiz (2001), a correção tex-tual-interativa. Trata-se, segundo ela, de comentários mais lon-gos do que os que se fazem na margem, razão pela qual sãogeralmente escritos em seqüência ao texto do estudante, noespaço que ela “apelidou” de pós-texto. Tais comentários rea-lizam-se na forma de pequenos bilhetes que têm duas funçõesbásicas: tratar da tarefa de revisão necessária, face a problemasdo texto e tratar, metadiscursivamente, da própria tarefa decorreção pelo professor.

Assim, quer se considerando as contribuições de Soares, maisremotamente propostas, quer se considerando as de Serafini(1989), quer as de Ruiz, publicação mais recente, verificamosas possibilidades de se dar um outro tratamento à produção detexto escolar, diferente daquele orientado pela ficha de avalia-ção exposta, que colabora para a qualificação da produção es-crita escolar como trabalho pesado, já que pode estar sujeita àdesqualificação prévia, com uma imagem pré-estabelecida deum estudante inábil quanto aos mecanismos de processamentodo texto escrito, quando, não, para se pôr em questão a peda-gogia proposta pelo professor.

Faço, agora, outros comentários, vinculados ao ensino, semdesconsiderar uma das conclusões a que cheguei em Beltrão(1986): a ausência de procedimentos de ensino e a predomi-

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nância de procedimentos típicos de avaliação, concebida comoexame, nas práticas pedagógicas de escrita examinadas, da 1a à8a série, exclusive em um caso.

Como reconheci, “da epígrafe à redação” foi o procedimentocom o qual o professor de S. propôs a produção de texto. So-bre o procedimento similar, nomeado por Soares (1979, p.51)“do título à redação”, ela diz: “Ainda é comum, em nossas es-colas, o professor desenvolver as atividades de redação sim-plesmente dando um título aos alunos para que eles redijam”.Considerando-se a época da afirmação, há quase três décadas,parece possível que o procedimento venha sendo legitimadopor professores, ao longo desses anos. Pergunto, por isso: querazões colegas teriam para manter fortalecida versão como essa,além das registradas em Beltrão (1986)? Quais hipóteses sepodem levantar?

Com base nos estudos sobre essas questões do ponto de vistahistórico e dos argumentos que se vão instituindo na linha dotempo, continuo reconhecendo as instâncias discursivas nasquais são gerados os critérios dos exames vestibulares comoas que detêm o maior poder de argumento sobre as questõesda escrita escolar, pois, ainda que não se vinculem diretamenteàs instâncias nas quais se formulam princípios da EducaçãoBásica, prescrevem normas, orientam a escrita que é examina-da, visando ao acesso do estudante ao ensino superior, pata-mar de educação prometido e desejado pela maioria.

Talvez seja esse o motivo por que observo, em menor escala,professores criando aulas de produção textual na perspectivade corresponder ao que objetiva, conforme um diagnósticofeito para compor ou para ampliar competências dos estudan-tes, relativas aos sistemas de conhecimentos aludidos e, emmaior escala, já nas classes de 8a série, professores organizan-

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do as práticas pedagógicas de escrita, visando à dissertação, tipotextual compreendido como exclusivo no exame vestibular. Essaobservação me ajuda a sinalizar, considerada a linha do tempo,mais uma vez, a fragilidade das políticas de escrita constituídasno âmbito escolar, no momento em que a concepção da lin-guagem como forma de interação propicia a produção de pro-jetos pedagógicos que privilegiam os usos sociais da escrita, noque gêneros textuais e tipos se diversificam.

Examinando questões de redação que compõem provas dePortuguês da 2a etapa do Processo Seletivo da UniversidadeFederal da Bahia, a propósito de melhorar o meu argumentosobre o que discuto, não encontrei a citação de epígrafes, con-tendo o mote orientador da produção de texto, mas algo simi-lar, em alta freqüência: a apresentação de um tema que governaa produção do estudante, gerado por fragmentos de textos deautores diferentes, conforme exponho para ilustrar:

PROVA I

“[...] O carnaval da Bahia é hoje considerado a segundamaior festa campal do mundo [...] Uma festa anual com aduração de uma semana, mobilizando perto de dois mi-lhões de pessoas que, em fluxos agitados, em diferentesperíodos do dia e da noite, ao longo de muitas horas secomprimem – ou se espalham – por uma extensão de vintee cinco quilômetros de avenidas, é, sem dúvida, por suadimensão, duração e recorrência, um fenômeno social dig-no de nota [...]” Ordep Serra (p. 223-4)

“[...] O carnaval baiano diferencia-se do carnaval cariocaem muitos aspectos formais e mesmo no sentido próprioda festa [...] Aqui na Bahia, como em Pernambuco, predo-mina um carnaval participativo. O nosso, da Bahia, é ele-trônico; o de Pernambuco, acústico, mais saudosista. Am-bos, porém, com o ritmo e a dança espontânea manifestan-do-se coletivamente, numa tendência ao nivelamento so-

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cial, aqui na Bahia, infelizmente, ainda longe de será alcan-çado. Por conta dessas privatizações dos blocos de trio,cada vez mais se acentuam as diferenças sociais, apesar de ocarnaval em si ser uma manifestação de nivelamento soci-al.” Lia Robatto (p.135)

“A partir das idéias contidas nos fragmentos apresentados,produza um texto dissertativo sobre o tema:CARNAVAL:UNIDADE/DIVERSIDADE.ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS E CULTURAIS ”.(UFBA, Serviço de Seleção, Orientação e Avaliação, 2001– 2a etapa – Port., grupo D, Caderno 4).

PROVA II

“[...] Leia os textos a seguir, que servirão de base para a suaRedação”.

“O que vai ser quando... o mercado crescer?O mercado de trabalho está mudando à velocidade de vári-os gigahertz.. Profissões antes inimaginadas não param desurgir: na tela do designer de games no teleão do VJ, no escri-tório do advogado eletrônico, na empresa do economistaambiental, onde quer que apareça uma nova necessidade[...].” Cynara Menezes (2003)

“Fui a São Paulo, a convite do Grêmio dos Politécnicos,bater um papo com os rapazes em sua Faculdade. Recusei-me a fazer uma palestra, pois sou homem de línguaemperrada; mas os motivos para a minha ida, como meforam apresentados pelos futuros engenheiros paulistas,pareceram-me bastante válidos, além de modestos. Têmeles que a carreira escolhida oferece o perigo de canalizaro pensamento para problemas puramente tecnológicos, emprejuízo de uma humanização mais vasta, tal como a quepode ser adquirida em contato com o homem em geral e asartes em particular. [...]” Vinícius de Moraes (1962)

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“A arquitetura como construir portas,de abrir; ou como construir o aberto;construir, não como ilhar e prender,nem construir como fechar secretos;construir portas abertas, em portas; [...]”João Cabral de Melo Neto, 1994.

“Ou isto ou aquiloOu se tem chuva e não se tem solOu se tem sol e não se tem chuva!Ou se calça a luva e não se põe o anel,Ou se põe o anel e não se calça a luva!Quem sobe nos ares não fica no chão,Quem fica no chão não sobe nos ares. [...]”Cecília Meireles (1972)

Tomando como ponto de partida os textos apresentados –que podem ser objeto tanto de consentimento quanto dediscordância – escreva um texto argumentativo em quevocê se posicione sobre a escolha da profissão dentrode uma perspectiva que atenda às necessidadesindividuais do ser humano e às exigências dasociedade contemporânea.

(UFBA, Serviço de Seleção, Orientação e Avaliação, 2005– 2a etapa – Port., grupos C e D, Caderno 3).

Esse procedimento, apresentação de fragmentos de textos quegeram e explicitam temas propostos, ainda que guarde peculi-aridades, pode ser compreendido como aquele que, no míni-mo, potencializa a produção de outros materiais de ensino, deavaliação ou exame, hipótese que se aplica ao que constata emTrabalho pesado.

Nos mesmos instrumentos analisados, flagrei um dado que,devido à importância, acrescento à discussão. Detenhamo-nos,primeiro, no dado que deste modo se apresenta nosinstrumentos:

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PROVA I

“[...] TEMAOs textos seguintes versam sobre o carnaval da Bahia.Considere-os apenas como um estímulo para escrever suaRedação, não devendo, entretanto, copiá-los. [...]” [sic]

PROVA II

Tomando como ponto de partida os textos apresentados –que podem ser objeto tanto de consentimento quanto dediscordância – escreva um texto argumentativo em quevocê se posicione sobre a escolha da profissão dentro deuma perspectiva que atenda às necessidades individuais doser humano e às exigências da sociedade contemporânea.

Com os grifos postos na primeira instrução, uma evidente ad-vertência sobre o uso dos textos citados exclusivamente comoestímulo à produção escrita e, com esclarecimento objetivo so-bre o uso dos fragmentos apresentados, como ponto de parti-da, na segunda instrução, a comissão responsável, assim suponho,adotou e prescreveu um procedimento que se torna questioná-vel, face a concepções adotadas neste estudo, na perspectiva daprodução textual escrita. Uma delas, a que diz respeito ao obje-to de estudo, a escrita do outro, tomada na perspectiva bakhti-niana como palavra do outro, de qualquer outra pessoa, escritaem minha língua materna ou em qualquer outra língua, ou seja,qualquer outra palavra que não seja a minha impõe mais do quetextos que estimulem a produção, impõe a relação textual, odiálogo, a inclusão do outro, pelo que diz, propõe, sugere. Umaoutra, a concepção de interação verbal, compreendida como tí-pica da realidade da linguagem que se apresenta discursivamen-te, se contrapõe a qualquer procedimento que impeça os contatosverbais, a troca possível entre os indivíduos de tudo que está nomaterial verbal, logo se contrapõe a tudo quanto foi estabeleci-do pelo procedimento referido.

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Assim, conforme as concepções revistas e, contrariando a pres-crição formulada, os fragmentos textuais se deslocam do lugarde simples estímulo à produção textual escrita para o lugar deimprescindíveis, como espaço de interação e de constituiçãodo texto proposto. É dialogando com eles e considerando ascondições da produção textual, que o produtor do texto pode-rá compor e diversificar as estratégias de organização da infor-mação textual, por exemplo, da intertextualidade implícita aodiscurso citado.

A advertência em torno da utilização dos fragmentos de textospotencializa ainda uma outra reflexão: sobre o aproveitamentodo texto escrito, compreendido como memória adicional, umamemória exterior constituída pelo homem, quando da inven-ção da escrita. Se tomarmos essa compreensão do texto escritocom rigor, inclusive fazendo generalizações, diremos que, como seu invento, o homem, na ocasião do processamento textualescrito, além de poder acionar conhecimentos disponíveis nasua memória de longo termo, poder consultar livremente es-critas que estiverem ao seu alcance. A produção textual, dessemodo, resultaria do entrelaçamento dos conhecimentos acio-nados da memória de longo termo e das consultas feitas às es-critas que vem compondo, no curso da história, nossa memóriaadicional, um gesto leitor indispensável por todos quantos pri-mam pela manutenção e proliferação dos textos escritos. Essanatureza de memória, muito embora formalizada de acordocom as características peculiares à escrita, fixidez e conserva-ção, não se opõe à liberdade de uso. Ao contrário, se dispõe.

Situações de uso da escrita como as que foram tomadas a pre-texto dessa reflexão, entretanto, depõem contra essa idéia. Semmargem de erro, creio que podemos atribuir à escola a res-ponsabilidade de manter, ainda hoje, a produção textual escrita

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condicionada a exercícios mnemônicos, longe dos experimen-tos da produção escrita apoiada em outras escritas, na memó-ria adicional, portanto.

Se a escola do passado, para assim proceder, teve a seu favor aescassez de escritas e um repertório conceitual em constru-ção, que terá a escola contemporânea? Não sei responder oque terá a seu favor. Contra si talvez tenha a abundância deescritas disponíveis à consulta e uma concepção ainda estreitaem torno da produção textual escrita e sobre o processo daconstituição do texto que, sem dúvidas, demanda decisões dequem escreve, mas também a colaboração de quem já escre-veu, a exemplo.

Voltando ao dado em análise, o que ainda podemos dizer? Queé lamentável saber que os estudantes, submetidos àquele exa-me, ficaram privados do uso das letras com que Lia Robatto eOrdep Serra desenharam o carnaval da Bahia e com elas ani-marem a sua escrita; que estudantes estiveram tão próximosda prosa e da poética de representações singulares da nossaliteratura e tomaram suas idéias como ponto de partida, ja-mais de chegada para argumentar sobre a escolha da profissãoque em última instância é a sua; que estudantes a caminho dauniversidade, ainda se deparam com concepção equivocada emtorno da produção escrita, objeto do qual irá depender paraconstruir as narrativas e discussões sobre um novo tempo,prestes a se inaugurar; que, com a compreensão estreita sobrea produção textual, sem o apoio da escrita do outro, é possívelgaguejar na escrita de resumos, resenhas críticas, recensões,artigos de opinião, ensaios, projetos, monografias, textos típi-cos e de trânsito freqüente no âmbito acadêmico. Enfim, queescrever, sob prescrição como aquelas, também se constituitrabalho pesado.

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Na continuidade, com a intenção de construir respostas sobrea condição da produção de textos na escola ser ou não trabalhopesado, estudo um outro texto.

O ônibus musical, texto que você acabou de ler, chegou a mim,pelas mãos de uma colega, professora da 1a série do EnsinoFundamental, no ano de 2002, quando, em reunião pedagógi-ca, discutíamos questões mais gerais em torno da pedagogia daLíngua Portuguesa. Com o texto exposto, ela me perguntavaaflita sobre o que fazer com estudantes que revelavam conhe-cimentos tão insuficientes sobre a escrita como aqueles ali ve-rificados. Antes de responder, pedi que nos apresentasse ahistória do texto, o contexto e as seqüências didáticas propos-tas. Os efeitos da apresentação vão aqui resumidos.

Para caracterizar os estudos da 1a série do Ensino Fundamen-tal, como continuidade daqueles formalizados na classe de al-fabetização, a professora programou utilizar, na primeirasemana de aula daquele ano letivo, materiais de aprendizageme ensino já conhecidos dos estudantes, a pretexto de novasatividades. O ônibus musical de Ganymédes José Santos de Oli-veira, ilustrado por Ângela Kimzu, livro adotado na classe dealfabetização foi um deles. A propósito de fazer releituras, aprofessora o apresentou, dirigiu estudos sobre a capa do livro,propôs a audição da história, a leitura em voz alta por algunsestudantes e, em seguida, a reescrita da história, que resultou,entre tantas, naquela escolhida para estudo.

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A situação, em si, não trazia tensão para o flagrante. O “era umavez”, contudo, marcador textual com o qual se iniciava a histó-ria, me dizia, ainda que de longe, razões para o que fiz: flagrei otexto, considerando dois aspetos da sua arquitetura na produçãodo estudo: o início e o desfecho do texto e a possibilidade decotejo com Trabalho pesado, já que os estudantes, autores dostextos se situavam nos seriados diametralmente opostos: 1a sé-rie do Ensino Fundamental e 3o ano do Ensino Médio.

Reconheçamos, inicialmente, com o texto, o que a autora nosofereceu para leitura. Em seguida, passemos à análise de cadaum dos aspetos: o início e o desfecho.

O ônibus musical nos apresenta um avô que sonhava fazer umônibus musical. Para fazê-lo, chamou todas as pessoas. Fazen-do o cotejo do que nos ofereceu a ler com a história original,podemos falar de aproximação de idéias, não de fidedignidade.Podemos falar ainda que, enquanto a estratégia de produçãoescolhida por Ganymédes lhe garantiu a expansão das idéiasdistribuídas em quinze folhas do livro, proporcionando ao lei-tor que se situasse na narrativa, conhecendo o que intencionoucomo necessário, a estratégia escolhida pela estudante, dife-rentemente, lhe garantiu a retenção de informações amplas epormenores, logo uma produção-síntese. Como a intenção deanálise não se organizou por essa via, a de reconstituição danarrativa, considerando-se trama, espaços, tempo – época eduração, personagens – tipos, função –, entre outros, emitosomente uma opinião, a de que a estratégia escolhida se funda-mentou no fato de a professora, a única interlocutora da narra-tiva, já conhecê-la perfeitamente, e passo à análise da estratégiausada pela autora para iniciar o texto.

Ao tratar sobre o início de narrativas, Maingueneau (1996) con-sidera que, para situar seu universo ficcional, o narrador deve

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“fazer entrar” um certo número de elementos no domínio desaber do leitor, ou em outras palavras: o narrador deve parti-lhar, com o leitor, aspetos que o situem na trama narrativapara que, ciente dela, possa percorrer fio por fio da história.No caso do texto em questão, não é com essa intenção que aautora se instala na narrativa. Reconheço na expressão “era umavez” se não uma intenção, pelo menos a possibilidade de nossituar no tempo indeterminado, típico da magia e do encanta-mento dos contos de fada, marcador que, invariavelmente,conduz todo leitor a essa instância discursiva. No parecer deEco (1986), ao tratar da hipercodificação retórica e estilística,dada uma expressão como “era uma vez”, o leitor poderá esta-belecer, automaticamente sem esforços inferenciais, que oseventos de que se fala se localizam numa época indefinida não-histórica; que eles não devem ser entendidos como “reais”;que o emitente quer contar uma história imaginária para finsde entretenimento. Muito bem. Seguindo a pista dada pelo“era uma vez”, nos encontramos, rapidamente, com o prota-gonista da história, um vovô. Sobre ele sabemos pouco, mas osuficiente, considerado o nível de informatividade contido notexto: sonhava fazer um ônibus musical.

Como a produção de leitura até então realizada, de acordo comconcepções já aludidas, conta também com a colaboração deEco (1986), retomo alguns pontos que tratam sobre o papel doleitor no que concerne à atualização do texto, através de movi-mentos cooperativos, conscientes e ativos para textualizar oinício do texto O ônibus musical de duas maneiras diferentes:apagando a expressão “era uma vez” e “em”; acrescentando entrea expressão e o item lexical “vovô” o relativo “que”. Conseqü-ência: passamos a ler, com o controle das “perturbações” lin-güísticas, o início da narrativa nestas duas versões – Um vovô

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sonhava fazer um ônibus musical – Era uma vez um vovô quesonhava fazer um ônibus musical.

Do ponto de vista da produção de sentidos, havemos de con-cordar que ambas as estruturas, resultantes das formas de co-operação, lhes dão garantia. Considerando, porém, esses eventosde linguagem na perspectiva de aprendizagens, à qual podería-mos atribuir maior grau de importância? Atenta aos dados so-bre a autora do texto que, como estudante da 1a série do EnsinoFundamental certamente estava no seu segundo ano de experi-ência com narrativas, atribuí maior grau de importância ao es-tudo do “era uma vez”. Note por quê: para avançar nasexperiências de escritas de narração, a estudante precisa co-nhecer outras estratégias, outras operações tão legítimas quan-to aquela escolhida. Quem nos garante que sua opção não estejafundada em generalizações? Se, com freqüência, ouve e lê his-tórias assim iniciadas, não é lógico que possa concluir sobre ainvariância do “era uma vez”? Pensando na transformação doevento de uso em situação de aprendizagem, considerei a mi-nha condição de hóspede de livros da literatura, principalmen-te de um livro, A macacada, Viriato Corrêa (1955) e constituí ocorpus que cito a seguir. O corpus, que pode subsidiar qualqueraula centrada na produção de introdução de narrativas, me pa-rece típico para aulas que proporcionassem a continuidade deaprendizagens constatadas na situação analisada:

“O maior plantador de milho do Reino dos Bichos era ogalo, capitão-mór dos Galináceos” (A macacada, p. 7)

“Foi um zunzun dos diabos no Ducado dos Pernaltas quan-do se soube que a senhorita Garça ia se casar.” (O vestidobranco da Garça, p.15)

“Ao deixar a casa da Formiga, a Cigarra de La Fontaine saiuatordoada pelo bosque que a neve embranquecia”. (A Ci-garra de La Fontaine, p.25)

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“O leitão Ruivo ligou o telefone para a casa do Leitão Pretoe perguntou:” (A república dos Cabritos, Perus e Leitõesde Natal, p.31)

“Um dia o tigre conseguiu destronar o Leão, que era o reidos Bichos. E colocou a coroa na cabeça e proclamou-serei.” (A utilidade dos humildes, p.49)

“O Quati apressou os passinhos ágeis e aproximou-se doCanguru:” (O saco do Canguru, p.51)

“Não é possível!– Pois é verdade !” (O maribondo, p.86)

Como se pôde ler, há exposição de sete modos diferenciadosde se iniciar uma narrativa. As estratégias correspondem, des-de o que comentou Maingueneau (1996) sobre o papel donarrador, objetivando situar o leitor no mundo ficcional atéestratégia como a última transcrita que se constrói, considera-do certo contexto, com expressão que denota admiração e in-credulidade, seguida de ratificação.

Passo, agora, à análise do desfecho. Desloco o fragmento paraeste espaço: “[...] e chamou todas as pessoas para”. À primeiravista, o que nos chama a atenção, quase nos surpreendendo, éa noção exata de incompletude que o desfecho assume, sobre-tudo porque, na versão original não identificamos sinal de pon-tuação. Desempenhando, no entanto, papel idêntico ao doleitor colaborador que atualiza o texto, através de movimen-tos conscientes e ativos, visando textualizar o desfecho, altera-mos a leitura.O que nos pareceu, à primeira vista, umaconstrução sintática incompleta nada mais é do que um caso deelipse anafórica. A circunstância de uso nos permite compre-ender, com facilidade, qual o único referente visado e que,portanto, promove o sentido requerido pelo texto. Logo, odesfecho do texto pode ser assim considerado: “[...] e chamoutodas as pessoas para fazer o ônibus, ou para fazê-lo.

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Do ponto de vista da transformação também desse evento emaprendizagem, creio que tanto cabe a reflexão em torno daelipse anafórica constituída, sem que se avance, evidentemen-te, até a teoria, quanto o estudo sobre estratégias próprias paraconclusão de textos narrativos, considerando-se a coerência.Foi nesse sentido que formulei o segundo corpus, conformeprocedimento já referido. Dessa vez, foram dois os espaçosde hospitalidade: Histórias Diversas e Histórias de Tia Nastácia,Monteiro Lobato (1977). Observe:

“[...] Emília apenas comentou com o seu célebre arzinhode dó:– Incrível que haja no mundo quem se aperte por tãopouco...” (As botas de sete léguas, p.58)

“[...] E o Visconde respondeu:– Era cor de burro quando foge...Essa resposta foi considerada científica” (A segunda jaca,p.69)

“[...] Desde esse dia Dona Benta passou a olhar para a ex-boneca com certo ar de desconfiança. Quem sabe se Emílianão era realmente uma fada?” (Uma pequena fada, p. 89)

“[...] Mas as histórias continuaram. Naquele mesmo serãotia Nastácia teve de contar mais uma. E contou a história de[...] O sargento verde. (O bicho Manjaléu, p.106)

“[...] – Bom – disse Pedrinho. Nesse caso, temos nas his-tórias populares o ciclo dos príncipes Joãozinhos que saema correr mundo em procura de velhas que ensinam remé-dios e mais coisas milagrosas. As que tia Nastácia já contouparece pertencerem ao mesmo ciclo. Já estou cansado des-se ciclismo...” (A raposinha, p. 115)

Não encontrando, na literatura teórica, suporte específico sobreestratégias de desfecho de narrativas com que pudesse ampliara discussão, tomei de empréstimo considerações outras, mastambém adequadas. Acompanhe: por experiências com leitura

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e produção de textos, sabemos que o desfecho de narrativastende mais à contração, não à expansão de idéias. Ainda assim,existem diferenciadas estratégias para expressá-lo. Da variedadede formas mostradas no corpus, chamo a atenção para duas dasestratégias escolhidas por Lobato: dar voz ao personagem paraque expresse e partilhe uma opinião – primeiro, segundo equarto casos; apresentar uma informação e encaminhar ao virtualleitor uma pergunta – terceiro caso. O primeiro, segundo equarto casos revelam uma faceta da narração: o discurso diretoPara renovar os comentários feitos em Uma leitura da escrita,ensaio que compõe A escrita do outro: anúncios de uma alegria possível,saliento, com os casos, o papel que o travessão desempenha naescrita: fronteira entre dois regimes enunciativos, mantendo-se, entretanto, a integração de uma situação enunciativa na outra,estratégia conveniente à produção literária que permite haver omesmo grau de relação entre o discurso citante e o citado, deacordo com o que diz Maingueneau (1996). Sobre o terceirocaso, podemos dizer que, concluir perguntando, insinua umaexpectativa curiosa: a de o leitor do texto, refletindo sobre apergunta, no desejo da resposta, promover a expansão de idéias,cuja tendência tivera sido a de retenção. Se lermos a estratégia,à luz de prescrições da gramática normativa em torno dos sinaisde pontuação, verificaremos que, conforme Bechara (1999),põe-se o ponto de interrogação no fim da oração enunciadacom entonação interrogativa ou de incerteza, real ou fingida,também chamada retórica.

Trago, agora, para o mesmo espaço de discussão, os dois casosde produção estudados, visando a comentários sobre questõesmais gerais em torno da escrita escolar, com base em similari-dades, ainda que os espaços específicos de aprendizagem dosestudantes tenham sido, tal como referi, diametralmente opos-tos: 1a série do Ensino Fundamental e 3o ano do Ensino Médio.

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Vamos considerar, de início, que os textos, do modo como fo-ram lidos, podem se tornar pretextos para narrativas pedagógi-cas sobre dificuldades na escrita, sobre insucesso de estudantesquanto ao uso da escrita. De um estudante, quando do início daEducação Básica e do outro, quando do término. Vamos consi-derar, também nos dois casos que, muito embora os estudan-tes tenham acolhido a proposta de escrita apresentada por seusprofessores, não receberam, no decorrer do processo, apoioque se refletisse na produção. Ao contrário, os artifícios de pro-dução que deveriam ser atualizados pela leitura cooperativa fo-ram censurados. Vamos considerar, ainda que, em ambas assituações, foram ignoradas as escritas (memória adicional) queapoiassem a produção, relativamente ao sistema de conheci-mento enciclopédico e ao sistema de conhecimento lingüísticonos aspetos morfossintáticos, semântico-ortográficos e nos datextualidade, foram impedidos os exercícios da busca de expe-riências do outro. Enfim, vamos considerar que a leitura decada professor concorreu mais para que os estudantes, na rela-ção empreendida com as palavras na constituição de seus tex-tos, se tornassem perdedores, pelo que disseram escrevendo epelo que não disseram, na defesa da escrita produzida.

Costumo considerar que discussões sobre assuntos polêmicosda educação como o que empreendemos sugerem atenção aoque ressoa em outras instâncias sociais Além disso, ao que éregistrado em literatura de época. Nesse sentido, vale a apreci-ação do comentário que segue, colhido na literatura sobre a es-crita escolar, da década de 30, reeditado na década de 50, fruto deexperiência realizada por Orminda Marques, na Escola Primá-ria do Instituto de Educação do Distrito Federal. Lamentamospelos estudantes, lamentamos por nós, professores, e podemostalvez admitir que a presença da escrita na escola venha se cons-tituindo, historicamente, como um trabalho pesado:

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“[...] 1. A escrita na escola de nossos dias“Nossas crianças escrevem, hoje, muito pior que dantes”,disse ROBERT DOTTRENS (1931), referindo-se àscrianças da Suíça. Não caberia a mesma observação para osnossos escolares? Em nossas escolas, as crianças nãoescrevem, hoje, também pior que em outros tempos? Porcerto que sim, como todos os professores de longotirocínio percebem, e como as observações que colhemos,revelam. Podemos lamentar o fato, mas não o podemosnegar. [...]” (MARQUES, 1950, p. 11)

Acredito, contudo, que é com a própria escrita, com experiênci-as que se forem observando, com a assunção de uma atitudeinvestigativa constante que poderemos relativizar essa concep-ção. Com esse intuito, exponho duas astúcias de estudantes, re-tiradas do meu arquivo, acompanhadas de alguns comentários.

Vamos à primeira astúcia. Lendo uma atividade de verificação deLíngua Portuguesa do estudante A., quando cursava o 1o ano doEnsino Médio, encontrei, ao lado de diversas questões objetivasde múltipla escolha uma sigla: UH. UH? Mas o que seria UH?Ante a dificuldade de decodificação, lhe pedi que decifrasse oquase enigma. Sem hesitar, ele me explicou o que reescrevo:

Resolvo a verificação em duas etapas. Na primeira, leio asproposições e respondo o que sei de imediato. Na segunda,releio as proposições e analiso as respostas dadas com baseno que aprendi com o que estava escrito na verificação. Aolado das alternativas remarcadas, coloco UH para melembrar que foram respostas dadas de “ÚLTIMA HORA”.Quase sempre, acerto o que respondo de última hora.

Valorizo, nesse caso, o fato de A. descobrir, por experimentaçãoindependente de quaisquer orientações escolares, que a escritalhe serve como suporte para aprendizagens, até mesmo emsituação de verificação de estudos. Assim, se em alguma ocasião

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a escrita lhe chegar transfigurada em “trabalho pesado”, acreditopossível reverter a situação.

A segunda astúcia segue exposta para leitura:

Com se pode ler, uma turma de estudantes de 6a série do En-sino Fundamental, produz, para homenagear sua professora,uma escrita literalmente transgressora, tratando, com umaparódia, a aversão a erros ortográficos, demonstrada, modogeral, na escola. Lendo a astúcia, com a colaboração de Morais

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(1998), ele nos orienta no sentido de não a confundir com umbrincar de fazer esquisitices para atrair atenções. Ao contrário,ao criar um contraste explícito entre as formas errôneas e cor-retas, contrapondo-as, facilitam-se reflexões sobre os porquêsde uma forma ser certa e outras serem as erradas. A transgres-são intencional, como a do caso em estudo, proporciona ao es-tudante assumir uma atitude de reflexão ortográfica numasituação especial para seu aprendizado, porque ressalta a anteci-pação de quais são os grafemas alternativos no sistema alfabéti-co de nossa língua que poderiam levar à dúvida ou ao erro. Aomesmo tempo, cria um espaço para a discussão dos porquês denossa ortografia, desenvolve a consciência metalingüística tantoem relação aos dos princípios gerativos como das irregularida-des de nossa norma.

A par das discussões geradas em torno do assunto, posso dizer,sem dificuldade, que o ideal de escrita escolar continua pautadono domínio eficiente das regras que regulamentam a ortografiavigente, ainda que se reconheçam as contribuições de Ferreiroe Teberosky (1991), Ferreiro (1992), Kato (1992), entre outras,que propõem um tratamento diferente em torno da escritaortográfica. Esse tipo de transgressão, entretanto, que, a meuver, poderia atenuar a idéia da escrita como Trabalho pesado, an-tes de nortear aprendizagens, é compreendida como um risco.Assim, os “erros” ortográficos tendem a funcionar como fontede censura e de discriminação, dentro e fora da escola, e a mo-tivar medo do que se impõe como “trabalho pesado”.

No estado de tensão requerido pela pesquisa, flagrei em 2002,mais um texto-ficha de avaliação, com que a produção escritaescolar é lida por professores. Na expectativa de produzirsentidos, a pretexto de cotejos e outras discussões, me debruceina leitura e análise do que encontrei e que segue transcrito:

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Critérios de Avaliação:

1. Conteúdo: nível de informação; tipo de raciocínio; neu-tralidade ideológica; fuga ao tema proposto; falta de visãocrítica; criatividade/objetividade; pensamento incomple-to; generalizações, preconceitos; baixo nível de reflexão;excesso de explicação; abuso de abstração.

2. Estrutura: falta de encadeamento: introdução, desenvol-vimento e conclusão; introdução com resumo de argu-mentos; desenvolvimento confuso ou contraditório; con-clusão redundante; parágrafos incompletos e incoerentes;parágrafos longos ou curtos demais; apresentação visualdefeituosa (borrões, rasuras etc).

3. Linguagem/Estilo: falta de clareza (períodos longos,duplo sentido); falta de precisão e concisão: repetição ex-cessiva; texto sem originalidade (clichê, vulgarismos); ní-vel de linguagem inadequado (oral, emocional); falta denaturalidade (falar difícil); uso de abreviaturas, sem har-monia.

4. Linguagem/Gramática: construção frasal inadequada:período simples/composto; erro de ortografia, acentua-ção, crase e regência; emprego de colocação de pronomes;concordância verbal e nominal; emprego dos temos ver-bais, conjunções; emprego dos sinais de pontuação.

(Critérios de Avaliação. Fonte: Escola Y, abril de 2002)

No cotejo desse texto-ficha com o primeiro exposto e, consi-derando a maior parte dos comentários sobre a escrita escolar,subsidiados pelos dois casos que governaram a discussão pro-posta neste ensaio, percebo tendência, mais uma vez, à discri-minação da palavra escrita do estudante, à construção de umaimagem imprópria dele como sujeito da linguagem. Tudo issome facilita dizer, então, que práticas escolares como essas re-presentam a possibilidade de exclusão da voz, do sentimento,da alegria, do argumento, da criação do estudante. Privado, a

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priori, de processos de aprendizagens relativos à produção tex-tual escrita, o estudante perde o direito de “se somar ao mun-do” e dividir com ele o seu ser.

Produção de texto na escola: trabalho pesado?

O sim e o não ficam na dependência do tom, da concepção e daocupação com o sensível dos que se querem responsáveis pe-las proposições educativas em torno do escrever na escola.

Notas

1 Reconheça-se em S. a referência ao autor do texto “Trabalho pesado”, texto quemotiva a escrita do presente ensaio, baseado na produção da pesquisa “A escritado outro: anúncios de uma alegria possível”, desenvolvida no PPGE/FACED/UFBA, pela autora deste artigo em 2005.

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Dinéa Maria Sobral Muniz e Maria Lucileide Mota Lima 143

Leitura, diálogo eeducação

Dinéa Maria Sobral MunizMaria Lucileide Mota Lima

Diálogo

Minhas palavras são a metade de um diálogo obscurocontinuando através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonânciaque também trazes de tão longe em tua voz.

Nossas perguntas e respostas se reconhecemcomo os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.

Conversamos dos dois extremos da noite,como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...

E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.Mas um mar sem viagens.

Cecília Meireles (1994)

Vivemos um momento histórico, cultural, social eeducacional onde os valores humanos fundamen-tais (justiça, humanidade/amizade/amor, sabedoria/conhecimento, prudência, coragem e transcendên-cia...) estão esquecidos. O respeito às diferençasindividuais e mesmo culturais não tem sido con-templado. A forma como cada indivíduo percebe,

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lê, dialoga e compreende a si mesmo (quando consegue reali-zar uma leitura consciente de si mesmo) e ao mundo não éconsiderada ainda vigente pela educação mecanicista assumidapela grande maioria das instituições de ensino. A educação nãovaloriza, não pratica e não desenvolve os valores universais,conseqüentemente, esses valores quase não existem nas rela-ções humanas, tanto intrapessoal e interpessoal, quanto pro-fissional e social. Esta educação mecanicista, que não se preocupacomo a formação ética do indivíduo, considera a leitura comoum mero objeto de reconhecimento de signos. Desta forma,minimiza o valor da leitura como instrumento formador daconsciência crítica reflexiva do indivíduo, na medida em quenão considera o caráter dialógico do ato de ler, que possibilitaao leitor a interação com ele mesmo, com o autor e com arealidade.

Essa educação mecanicista atende à perspectiva de desenvolvi-mento voltado apenas para o aspecto técnico/econômico, noqual o ser humano é visto como um objeto para produção econsumo e não como um sujeito consciente, integral, co-par-ticipante e co-responsável pelo seu desenvolvimento e pelodesenvolvimento da humanidade. Este quadro ou esta figurade ser humano técnico/econômico não valoriza a leitura, en-quanto uma atividade dialógica, processual, formativa, crítica/reflexiva e significativa. Talvez por isso, não prepare o educa-dor para causar no aluno o desejo e possibilitar o gosto de ler,bem como não o prepara para estabelecer relações dialógicasconsigo mesmo, com o(s) outro(s), com a vida, com o mundoe com as circunstâncias próprias do existir.

Assim, juntamo-nos às vozes de outros educadores e pesqui-sadores que percebem essa realidade e buscam alternativas coma intenção de contribuir para a sua mudança. As alternativas

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propostas passam por práticas pedagógicas, como as apresen-tadas por Muniz (1999), entre outras, que tentam semear efertilizar a educação, para que ela possa realizar a sua tarefamais fundamental: contribuir para o desenvolvimento do serhumano em todos os seus aspectos e prepará-lo para viver e serelacionar de forma ética, construtiva, harmoniosa, interativa,criativa, produtiva, feliz, tanto consigo mesmo, quanto como(s) outro(s) e com a vida.

Koch e Elias (2006, p. 7) dizem que “[...] a leitura de um textoexige muito mais do que o simples conhecimento lingüísticocompartilhado pelos interlocutores.” E dizem isso baseadosno pressuposto de que “[...] o texto é um lugar de interação desujeitos sociais, os quais, dialogicamente, nele se constituem esão constituídos [...]”

Nesta perspectiva, este ensaio pretende apresentar uma brevereflexão sobre o valor da leitura e do diálogo para a educação.Conseqüentemente, pretende contribuir para o desenvolvimen-to do ser humano e para a sua formação como sujeito capaz departicipar da construção de um mundo mais humano e ético.Com relação à capacidade da leitura dialógica de poder contri-buir para a formação do sujeito participante da construção de simesmo, da sociedade e do mundo, diz Martins (1986, p. 17):

[...] quando começamos a estabelecer relações entre as ex-periências e a tentar resolver os problemas que se nos apre-sentam – aí então estamos procedendo leituras, as quaisnos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa. Esseseria, digamos, o lado otimista e prazeroso do aprendizadoda leitura. Dá-nos a impressão de o mundo estar ao nossoalcance; não só podemos compreendê-lo, conviver comele, mas até modificá-lo à medida que incorporamos expe-riências de leitura.

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O aprendizado e o exercício da leitura como um instrumentoprazeroso e capaz de ajudar o leitor a compreender, a conviver ea modificar a si mesmo e ao mundo, como expressa Martins(1986), poderá transformar o atual desinteresse pelo ato de ler.Isto porque a leitura passará a ser ensinada e reconhecida comomais uma arma eficaz para a formação do cidadão, possibilitan-do-lhe o entendimento do próprio indivíduo e do mundo, oque poderá contribuir de forma efetiva para a melhoria das suasrelações e, conseqüentemente, das suas formas de viver.

Significado da leitura para a vida do ser humano

A leitura contribui para que o indivíduo assuma uma posturadiante do mundo. Ela possibilita, assim, muito mais do queapenas um conhecimento informativo ou mesmo um meroprazer de ler. Perceber a leitura de forma reducionista e ins-trumental limita a sua capacidade de contribuir para a educaçãointegral1 do ser humano. A leitura deve assumir o seu papelcomo construtora de significado. Como afirma Kleiman (2004,p. 49), “[...] a leitura é um ato individual de construção designificado num contexto que se configura mediante a interaçãoentre autor e leitor.” Desta forma, a leitura tem um caráterprocessual e dialógico, ou seja, o indivíduo leitor consegue es-tabelecer uma troca de significados tanto com o autor, comodiz Kleiman (2004), quanto consigo mesmo e com as circuns-tâncias (objetivas, subjetivas, intelectivas, afetivas, imaginári-as, temporais...) próprias do viver. A compreensão de caráterdialógico e co-participativo do processo de ler possibilita umainteração de saberes diversos, construídos a partir de leiturasplurais dos signos e do entendimento dos diferentes sentidos

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das criações naturais e humanas. Dizemos “processo de ler”por considerarmos a leitura uma prática contínua, aprendente,que constitui um diálogo polifônico entre pensamentos, sen-timentos e fazeres humanos, numa dialética de desconstruçãoe construção de significados. Desta forma, o processo de lertem relação com o que Koch (2002, p. 67-68) fala sobre ohipertexto:

O hipertexto é, por natureza e essência, intertextual. Porser um “texto múltiplo”, funde e sobrepõe inúmeros tex-tos, textos simultaneamente acessíveis ao simples toquedo mouse. Como encontro e/ou entrechoque das diversasvozes que permeiam esses textos, é essencialmentepolifônico e dialógico.

Assim, o hipertexto e a sua conseqüente leitura e/ou “proces-so de ler” é constituído/constituinte de encontros e, como tal,é um processo polifônico e dialógico que contribui para a cons-trução da interação entre os seres humanos.

Há um tipo de educação vigente que não percebe a leitura comoum processo dialógico, como meio e/ou instrumento de signi-ficar a vida e de, conseqüentemente, influenciar na formaçãosubjetiva, comportamental, afetiva, criativa, profissional e es-piritual da pessoa. Por não conseguir perceber a dimensão e ovalor da leitura, essa educação, quase sempre, deixa de causarou de possibilitar no aluno o desejo e o gosto pela leitura,mesmo na forma linear como a considera e a transmite. As-sim, o indivíduo que, heroicamente, consegue tornar-se umleitor, muitas vezes, perde a oportunidade de ganhar a consci-ência de que a leitura é também uma forma de relação consigomesmo e com as circunstâncias da vida. Este leitor não perce-be o quanto a sua forma de ler o mundo determina a maneiracomo ele se relaciona com as circunstâncias próprias do exis-

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tir. E, conseqüentemente, não compreende o quanto a manei-ra de ler o mundo é fundamental para a forma de viver do serhumano. Esta perda, portanto, faz com que ele não compre-enda que a sua forma de ler o mundo (os valores, as ideologi-as, as culturas, as religiões, os paradigmas, as mídias...) influenciaas suas escolhas e as suas relações. Por acreditarmos nisso,defendemos que, quanto mais consciente e dialógico for o pro-cesso de ler, mais ético e valoroso será o cidadão.

Para Rezende (2005): “Ao lermos nos lemos no Mundo e le-mos o Mundo. E vamos descobrindo a nós mesmos, ao outro,aos outros, o nosso lugar, os outros lugares... A beleza e a arte,a ciência e a nossa consciência.” Esta autora compreende a lei-tura como um instrumento também de autoconhecimento ede diálogo que contribui para que o leitor possa significar a suavida, possa acessar os mistérios da sua subjetividade e da suarelação com o outro no mundo e com o mundo, contribuindopara o desenvolvimento do ser humano, para a melhora dassuas relações e, conseqüentemente, da sua vida.

Rezende (2005) fala igualmente da riqueza de saber ler os vári-os códigos das várias formas de leitura. Para ela, esses códigosse interligam, se complementam e permitem ao leitor realizarnovas tessituras. Diz a autora: “[...] novas tessituras, que nuncasão absolutamente novas... Do que lemos sempre sabemos algo;o que fazemos é complementar, reolhar, redescobrir, acrescen-tar, duvidar, confirmar...” (REZENDE, 2005, p.11). A autoraafirma que, para ler melhor, é preciso ler com todos os senti-dos, não só com a razão. Acrescenta ainda que esta prática re-quer uma nova didática, uma didática da invenção. É necessárioaprender a ler as várias linguagens – do folclore, das revistas, damídia, da TV, do teatro, da poesia, da fotografia, da música eru-dita e popular e das artes em geral –, para que o ser humano

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possa desenvolver todos os seus sentidos, a sua razão e os seussentimentos, ou como diz Colassanti (2006, p. 3), a sua “reali-dade interior”. Com esta prática do processo de ler, o indiví-duo compreende mais a si mesmo e ao outro, aprendendo aolhar e/ou a re-olhar de forma mais reflexiva, crítica e consci-ente o mundo. Assim, aprender a ler, segundo Martins (1986,p. 34): “[...] significa também, aprender a ler o mundo, darsentido a ele e a nós próprios.” Por isso, o processo de apren-der a ler de forma dialógica é fundamental para a formação doeducador e dos seus alunos. Sobre as possibilidades que a leitu-ra oportuniza aos educandos, afirma Rezende (2005, p. 8):

Acreditamos que o(a) estudante, tendo a oportunidade decultivar a leitura amplamente, lerá não apenas para traba-lhos e provas a serem compridas, mas como quem percebea possibilidade do diálogo com os textos, tratando-os comopartícipes do construir do conhecimento de si próprio edo mundo.

Diante do valor do aprendizado da leitura dialógica, faz-se ne-cessária a inclusão de novas práticas de leitura nas instituiçõesde ensino. Pedagogia do desejo de ler (MUNIZ, 1999) apresentaum exemplo, dentre muitos outros possíveis, de como foidesenvolvida uma prática de leitura em que a necessidade dainterlocução foi considerada imprescindível para a constitui-ção do Sujeito. E o papel do professor em trabalhos como esseincluiu um entendimento de que o professor é o que “[...] lêjunto com o aluno.” (COLASANTI, 2006)

Para Paulo Freire (1986), a leitura e a escrita são necessidadesdo homem, tendo em vista a sua introdução no mundo e como mundo. Para este educador, só com o domínio da leitura e daescrita o indivíduo poderá assumir “[...] o seu papel de sujeitoe não de mero e permanente objeto.” (FREIRE, 1986 p. 109).

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Assim, uma educação comprometida com a formação integral,humana, cidadã, ética e responsável dos seus educandos nãopode continuar tratando a leitura com o descrédito e o desin-teresse como vem fazendo.

A revitalização do processo de ler pressupõe a compreensãode que a leitura, assim como a vivência do processo doautoconhecimento, é um ato muitas vezes solitário (não nosentido depressivo da palavra, mas no sentido mais próximoda solitude), fenomenológico, que pode promover um mer-gulho no mundo interior do leitor, possibilitando a vivênciado processo da autoconsciência e o desenvolvimento da capa-cidade de análise reflexivo-crítica da realidade. Estes saberes,mesmo realizados individualmente, possibilitam o encontro ea compreensão do coletivo, do comum, da unidade e da diver-sidade. Ou seja, promove a interação entre os seres humanos,tendo como pilar sustentador o cultivo e a vivência dos valoreshumanos e, conseqüentemente, o convívio e aprendizado cons-tante com o diferente. Sobre esta abertura para a reflexão e acompreensão da interação e da interdependência humanas comoformas de possibilitar novas alternativas para as relações entreos seres humanos, afirma Martins (1986, p. 29):

[...] o ato de ler permite a descoberta de característicascomuns e diferenças entre indivíduos, grupos sociais, asvárias culturas; incentiva tanto a fantasia como a consciên-cia da realidade objetiva, proporcionando elementos parauma postura crítica, apontando alternativas.

A leitura com este caráter individual/singular acontece median-te uma inter-relação, uma interação com o outro (seja ele oautor, ou o signo que se faz sujeito no ato de ler), com o mundoe no mundo. Segundo Kleiman (2004, p.49): “[...] a leitura é umato individual de construção de significado.” Consideramos que

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estas duas vivências processuais (leitura dialógica e auto-conhecimento) podem contribuir tanto para o autode-senvolvimento quanto para o desenvolvimento humano, poispermite à pessoa, entre muitos outros aprendizados, o apren-der a perceber-se interdependente, interligado, co-participantee co-responsável pela forma de existir da humanidade.

Valor do diálogo para o desenvolvimento doser humano

A respeito da etimologia da palavra diálogo, Soares (2002a,p. 128), referindo-se à compreensão do físico David Bohm,enuncia:

[...] o diálogo, originário do grego “díade” (através de) +Logos (verbo, palavra, discurso que consagra um desvelamento,um significado), é aqui compreendido como o significadoque se move através da linguagem (linguagem verbal, gestual,silencioso, visual, auditiva, emotiva, afetiva, sexual etc.).

A própria etimologia da palavra diálogo já pressupõe o seu poderde investigação do objeto tratado (sobre o qual se dialoga),neste caso, a princípio, o próprio indivíduo. O termo sugereum desvelamento (uma manifestação do que estava velado, umdescobrimento do real) do significado de todas as peculiarida-des, expressões, potencialidades do ser humano, inclusive asdo seu mundo interior.

Compreendemos que, para Freire (1970), Bohm (1996) e Soares(2002a), assim como para Sócrates, muito antes deles, o exercíciodo diálogo representa uma possibilidade para o ser humanoaprender a ser Ser humano. Este aprendizado depende de umaescolha interior de abertura do indivíduo para aprender, por

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meio da vivência/prática diária do diálogo consigo mesmo, como outro e com a vida no permanente processo de busca/construção da autoconsciência e da consciência de ser parteintegrante da humanidade. Esse processo de autoconsciência ediálogo também ocorre no acontecer da existência do indivíduocom as suas relações objetivas, subjetivas e intersubjetivas, como seu mundo interior, exterior, com os outros seres humanos,com a vida e os seus mistérios, com a natureza e com a essênciacósmica criadora, no compartilhamento de significados. Porisso, esse é um processo eminentemente educativo.

Para Freire (2004), o processo educativo acontece com a aberturaconsciente por parte do educador para si mesmo e para o outro.A abertura se constitui em uma possibilidade tanto de interaçãoquanto de auto-reflexão e autocrítica, pois a vivência do diálogohonesto e respeitoso possibilita aos agentes dialógicos acompreensão e a revisão dos próprios valores e da própria práxiseducativa. A postura do ser humano de abrir-se conhecer a simesmo, ao(s) outro(s) e ao mundo possibilita, na perspectivade Freire, o acontecer/vivenciar de relações humanas dialógicas.Consoante o autor: “O sujeito que se abre ao mundo e aosoutros inaugura com o seu gesto a relação dialógica.” (FREIRE,2004, p. 136)

Para este educador, a prática da relação dialógica torna o docentesujeito e objeto das suas relações, ou seja, o educador assume apostura de aprendente, de observador do próprio sentir, pensare fazer. Freire (2004, p.136) afirma: “Viver a abertura respeitosaaos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento,tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto dereflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente.” Comessa vivência fenomenológica, o educador poderá contribuir paradespertar nos seus educandos a necessidade de aprenderem e

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vivenciarem eles mesmos a “relação dialógica”. Com a vivênciadessa relação, o ser humano pode perceber que o compartilharsignificados e/ou a abertura para a compreensão das várias leiturasde mundo só é possível quando o indivíduo tem consciência deque as suas verdades, crenças e opiniões pessoais constituem apenasuma entre as diversas formas de interpretar uma determinadarealidade. Pode perceber também que as opiniões e crenças deuma pessoa não são “verdades absolutas”. Portanto, na relaçãodialógica, as diferenças são respeitadas e a interpretação ou aleitura do outro são consideradas como uma contribuição parao aprendizado de todos.

Sabemos que a relação dialógica ainda não faz parte do fazereducativo da maioria das nossas escolas e, conseqüentemente,dos hábitos dos seres humanos. Por isso, compreendemos queo seu desenvolvimento e aprendizado devem acontecerjuntamente com a revitalização de outros saberes e virtudesque, desde Sócrates e Platão2, o ser humano tenta aprender evivenciar. Assim, só com muita determinação e a força geradapela amorosidade, coragem (ação do coração), humildade,respeito por si mesmo e pelo outro, o indivíduo poderá sair oudistanciar-se da sua programação psicológica ou sair de si 3 para calar,ouvir, suspender os seus pré-conceitos/julgamentos e aceitar erespeitar o outro na sua forma singular de ver, ler, interpretar eexpressar o seu entendimento dos fatos, do mundo e da vidapara viver a relação dialógica. Desse modo, a formação doeducador para a práxis da relação dialógica pressupõe uma visitaçãonos valores humanos universais. Esperamos que esta visita oure-visita possa promover a inserção desses valores nos hábitosdos educadores e, conseqüentemente, nas relações humanas.

Para Lima (2005), o exercício do diálogo, tanto do indivíduoconsigo mesmo quanto como um meio de comunicação e re-

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lação em grupo, exige o aprendizado do respeito, da compre-ensão, do reconhecimento/valorização da diferença, da abertu-ra para escutar a si mesmo e ao outro e, assim, estabelecerrelações humanas conscientes e harmoniosas. Sobre esse po-der do diálogo de promover a interação e a união dos contrári-os, diz Zuben (1974, p. XIX -XX): “A união dos contráriospermanece um mistério na profunda intimidade do diálogo.Diálogo é plenitude.” Essa fala de Zuben (1974) reafirma a nossahipótese do valor da aprendizagem do diálogo e da sua inclu-são nas práticas educativas instituídas.

O diálogo pode ser incluído na formação do educador, dada asua capacidade de promover a inclusão dos diferentes, ocompartilhamento de significados, a troca de saberes, o res-peito pela forma de cada ser ler e significar o mundo. O diálo-go representa, pois, uma maneira simples e eficaz para que oindivíduo possa compreender a condição dialética do ser hu-mano. Essa condição é constituída de polaridades e de contrá-rios que, devidamente reconhecidos e compreendidos, secomplementam nas tessituras do ser e do fazer humano. Com-preendemos que essa compreensão poderá inaugurar uma re-lação de comunhão entre os seres humanos, em que asdiferentes leituras de mundo serão respeitadas, valorizadas e com-preendidas como fator de contribuição para o desenvolvimen-to da humanidade.

O aprendizado do diálogo e do processo de leitura dialógica,portanto, poderá possibilitar ao ser humano não apenasvivenciar uma nova forma de con-viver em grupo, como tam-bém uma relação entre seres autoconscientes e conscientes dasdiferenças e similitudes existentes entre os indivíduos. A cons-ciência de si e do outro, conquistada com a prática do diálogo,pode fazer surgir relações realmente humanas ou relações de

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comunhão, ética, respeito, afeto, integração e participação en-tre os seres humanos. (LIMA, 2005, p. 69)

A prática da comunicação que privilegia a discussão mantém oser humano na ilusão de que sabe tudo e na atitude egoísta de seachar no direito de impor as suas idéias e vontades para outroser humano. Essa ilusão e essa atitude egoísta e separatista im-possibilitam que os seres humanos trabalhem em equipe e com-partilhem significados. Compreendemos, assim, que acomunicação não-dialógica promove a construção de relaçõesdesarmônicas e conflituosas, que impedem o fluir da criatividade,da solidariedade e da amorosidade entre os indivíduos.

A comunicação dialógica, ao contrário da não-dialógica, é con-siderada por Soares (2002b) como um instrumento de restau-ração para a saúde do ser humano, já que possibilita a intimidadee a comunhão consigo mesmo e, posteriormente, com o ou-tro e a vida: “Considero que a prática da ‘comunicação dialógica’ajuda o ser humano a restaurar, na sua existencialidade, a saúdee integridade humana, porque se baseia na própria restauraçãoda comunhão.” (SOARES, 2002b, p. 5). A comunicação dialógicacontribui para o resgate da comunhão entre os seres humanose, portanto, é fundamental para o acontecer do desenvolvi-mento humano marcado pelo respeito, pela participação, pelabondade, pela ética, pela dignidade, pela equanimidade e peloamor entre os seres humanos. Para a autora, comunhão é “[...]ação de comungar e tornar-se comum: ação de dialogar e esta-belecer relação, de ligar e unir, de compreender e aceitar, dedoar e receber.” (SOARES, 2002a, p.151)

A necessidade de aprender a amar e a de potencializar a vivênciadas virtudes clássicas de Sócrates (Platão, 1978), são fundantespara que o exercício do diálogo aconteça e contribua para cons-trução de relações libertadoras, de comunhão entre os indiví-

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duos. Nas palavras de Freire (1970, p. 80): “Sendo fundamentodo diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencial-mente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relaçãode dominação.”

Desse modo, acreditamos que uma educação que priorize aformação de sujeitos conscientes, livres, críticos, reflexivos,éticos requer a inclusão do aprendizado do diálogo e do pro-cesso de ler dialógico no currículo de formação do educador.

Leitura e diálogo: a Inter-relação possível

O sujeito leitor é também um sujeito capaz de dialogar consi-go mesmo e com o todo que o cerca. Segundo Martins (1986,p. 33): “[...] a leitura se realiza a partir do diálogo do leitorcom o objeto lido – seja escrito, sonoro, seja um gesto, umaimagem, um acontecimento.” Assim, o indivíduo que é capazde estabelecer uma relação dialógica com tudo o que lê, estaráse desenvolvendo de forma integral e, conseqüentemente, setornará um ser humano capaz de pensar com autonomia, derefletir, de criticar, de se autoconhecer, de aprender a apren-der, aprender a fazer e de se relacionar com os diversos sabe-res construídos desde a ancestralidade humana. Para Freitag(1994, p. 62): “A verdadeira leitura desencadeia processoscognitivos, diálogo interior, reflexão e crítica. Essa forma deler envolve, necessariamente, o pensar.”

Pesquisas recentes, veiculadas inclusive em revistas4, têm desta-cado a carência de nossos educandos com relação à capacidadede pensar de forma reflexivo-crítica, mostrando o alto índice deanalfabetismo funcional em nosso país. Será que a deficiência denossos alunos não está diretamente relacionada à situação de

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descaso da educação vigente pela prática da leitura e pelo desco-nhecimento do seu caráter dialógico? Sendo assim, como fazerpara despertar a atenção das políticas públicas educacionais paraa importância do investimento em novas práticas de leituradialógica na formação do educador-leitor-dialógico? Este ensaionão pretende responder a questão, mas objetiva mostrar a suaimportância e apontar algumas possibilidades pedagógicas jádesenvolvidas com a intenção de melhorar a educação, median-te práticas do processo de leitura e do diálogo.

O caráter dialógico da leitura poderá contribuir para a cons-trução do indivíduo/sujeito, agente, atuante, autoconsciente ecomprometido com o processo do autodesenvolvimento e dodesenvolvimento humano. Isto porque, o diálogo entre o lei-tor e o autor, praticado no ato de ler, possibilita a percepção, aaquisição, o aprendizado, a compreensão, o questionamento, acrítica e a reflexão a respeito dos conhecimentos, das sensibi-lidades, das intuições despertadas no processo da leituradialógica. Essa gama de saberes produzidos no processo de lerpode possibilitar ao indivíduo/sujeito o autoconhecimento, oconhecimento mais consciente do seu entorno e o despertarpara a consciência de que a forma de existir de cada ser huma-no depende da forma com que ele se relaciona e significa assuas leituras do mundo e de como constrói as suas relações.

Essa consciência poderá despertar no indivíduo o desejo deressignificar, transformar antigos comportamentos, preconcei-tos, “verdades”, crenças e padrões egoístas, separatistas econsumistas adquiridos com a educação técnica/mecanicista àqual foi submetido. O despertamento para a necessidade daconstrução de uma vida mais humana, aliado ao desejo, ao que-rer, ao responsabilizar e ao comprometer-se de cada indiví-duo/sujeito poderá contribuir para uma “nova” (nova, no sentido

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da prática atual) perspectiva de educação e de vida humana.Uma perspectiva que retoma Platão, que pensava a educaçãocomo prática para o “bem viver” pessoal e coletivo.

A construção de uma “nova” perspectiva de educação dependetambém de políticas públicas, que priorizem o ser humano e oseu desenvolvimento integral. Precisamos de uma educaçãoque abrace a leitura dialógica e o exercício do diálogo como umdos seus pilares de sustentação, na reestruturação da realidadedo ensino. A importância da inclusão do aprendizado do diálo-go na educação pode ser justificada pelas palavras de Freire(1970, p. 82-83): “[...] não há o diálogo verdadeiro se não hános seus sujeitos um pensar verdadeiro [...] para o crítico, atransformação permanente da realidade, para a permanentehumanização [...]” O diálogo é visto por esse educador comoum agente de conscientização, de transformação e humanizaçãodos indivíduos, por isso deve ser usado pela educação comoinstrumente para humanizar as relações.

A educação, repetimos, precisa investir em práticas educativasdialógicas que possibilitem ao ser humano conhecer-se,humanizar-se e transformar-se. Neste sentido, a leituradialógica pode contribuir para essa ação, na medida em quepromove o desenvolvimento da capacidade de pensar de for-ma crítica/reflexiva e a expansão da consciência da condiçãohumana de inter-relação e interdependência. Assim, a educa-ção necessita formar educadores humanistas, que são necessa-riamente leitores dialógicos.

A formação de educadores-leitores-dialógicos pressupõe apren-der a compartilhar significados e a realizar leituras dialógicas domundo. Esse aprendizado enriquece o fazer individual e grupal/coletivo, bem como favorece o desenvolvimento das diversascapacidades humanas, desde que a pessoa esteja aberta para apren-

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der, para pensar, para viver, para descobrir, para criar, para sen-tir, para fazer, para existir. Para Muniz (1999, p. 17; p. 63):

[...] a leitura tem funções relacionadas com o cognitivo, oafetivo e o criativo, que são aspectos da realização do ser[...] o movimento em leitura se faz pela troca, pela negoci-ação, pela oferta e possível permuta de significados, que,para se dar, requer o envolvimento “afetivo”.

A prática da leitura dialógica pode permitir, então, a melhoranas relações entre os seres humanos, pois possibilita, entreoutras conquistas, que o sujeito possa expressar a sua formade ser, de ler e interpretar o mundo de forma crítica, livre,honesta, aberta, amorosa, confiante.

Para Freire (1970, p. 81): “Ao fundar-se no amor, na humilda-de, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal,em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência obvia.”Essa relação horizontal, essa liberdade conquistada com a prá-tica do diálogo e das leituras dialógicas poderá ser fruto davivência de algumas características básicas do diálogo apresen-tadas por Freire (1970), Bohm (1996), Lima (2005) que ousa-mos assim enumerar:

1. O respeito por si mesmo e pelo outro, considerando ahistoricidade, a peculiaridade, a diferença, os conhecimentos eos limites de cada indivíduo. 2. A abertura para ouvir e validara fala, a “leitura de mundo” a linguagem e os significados dooutro e a abertura para aprender em todas as situações que avida oferece. 3. A confiança, esta terceira capacidade desenvol-vida pelo exercício/vivência do diálogo pode ser consideradacomo um resultado da boa aplicação das primeiras.

O respeito e a abertura interior do indivíduo preparam o ter-reno da relação para que a confiança floresça. Segundo Freire(1970, p. 82): “A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos

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cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo.” Destemodo, a confiança do indivíduo, tanto em si mesmo quanto nooutro ou no grupo, possibilita o fluir da inteireza do seu ser, aexpressão ou a revelação (não esquecendo que a dialética doexistir provoca um contínuo revelar e velar, construir edesconstruir) da sua subjetividade, permitindo o desenvolvi-mento de uma relação entre intersubjetividades, entre sujei-tos e o desenvolvimento integral do ser humano (corpo,sensibilidade, emoção, sentimento, afetividade, razão, cognição,ética, estética, linguagem, espiritualidade...).

A inter-relação entre leitura e diálogo se confirma nas aborda-gens descritas na Pedagogia do desejo de ler, proposta por Muniz(1999), a partir de práticas de leitura realizadas pela pesquisado-ra. Com a intenção de exemplificar algumas vantagens da leituradialógica, transcreveremos algumas reflexões da pesquisadora:

Ler seria uma atividade em que todos poderiam atribuirsentido aos filmes, vídeos e aos demais tipos de texto apre-sentados. Já nesse primeiro encontro, tal prática foi desen-volvida de forma que cada aluno pudesse expressar seussentimentos e pensamentos sobre o material que vai sendoapresentado de modo bastante livre. A prática da produçãode textos em que todos foram ouvidos e solicitados a ouvi-rem os colegas através do exemplo da escuta [...] respeitoas idéias produzidas pelos alunos [...] respeito ao ritmo decada aluno, observando suas características de personali-dade, evitando generalizações [...] os quatro alunos pre-sentes, foram tratados em sua singularidade.” (MUNIZ,1999, p. 220, p. 223)

A grande maioria dos professores de ensino básico e funda-mental, entretanto, talvez ainda não tenha condição de desen-volver o trabalho proposto por Muniz (1999), por não ter aformação e a vivência pessoal da prática da leitura dialógica, dodiálogo e do processo de autoconhecimento para o autode-

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senvolvimento e o desenvolvimento humano. Assim, acredi-tamos que um programa de formação do educador de ensinobásico e fundamental, embasado no estudo e na vivência dotripé sustentador e transdisciplinar – da leitura, do diálogo edo autoconhecimento5 –, poderá contribuir para a formaçãode educadores e para a realização de uma educação que invistaradicalmente no desenvolvimento integral do ser humano.Possibilitará também que o educando possa construir para elee para a humanidade uma vida de qualidade, ou seja, conscien-te, digna, ética, em que os valores humanos arcaicos sejamvivenciados nas relações pessoais, interpessoais, profissionais,sociais, religiosas...

Assim, a idéia de um programa de formação ora proposta deveter como objetivo proporcionar aos educadores o despertamentoda consciência para a necessidade da abertura para aprender aser um ser humano cada vez melhor e mais integralmente de-senvolvido. Para tanto, deverá fomentar o desejo, a coragem e aousadia necessárias para a vivência, um processo fenomenológico(a princípio pessoal, apesar de ser realizado com e nas relaçõescom o(s) outro(s), com e em grupo, com e no mundo) deautoconhecimento, de “comunicação dialógica” e da leitura –como proposta na Pedagogia do desejo de ler. Acreditamos, então,que a realização de tal idéia poderá possibilitar aos educadoreso despertar para a necessidade de repensar a si mesmos, as suaspráticas pedagógicas e as suas relações, visando tanto à melhoradas suas próprias vidas, quanto das suas práticas pedagógicas.

Esperamos que as reflexões, os questionamentos e as experi-ências das práxis pedagógicas aqui apresentadas possam con-tribuir para fomentar em outros pesquisadores/educadores odesejo de analisar e investigar a partir das suas próprias práti-cas o valor da leitura e do diálogo para a educação. E, assim,

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contribuir para a educação integral dos seus educandos, possi-bilitando a formação de seres humanos críticos, éticos e cons-cientes da condição de inter-relação e interdependência entrecada um de nós e entre o ser humano e o cosmo. Com estaconsciência, acreditamos que poderemos construir uma socie-dade realmente sustentada pelos valores humanos universais econseqüentemente relações de comunhão.

Notas

1 A educação integral ou holística, segundo Yus (2002), é a que pretende desen-volver o ser humano em todas as suas dimensões (mente, razão, corpo, alma,consciência, linguagem, afeto, sensibilidade, sentimento, emoção, ética, moral,estética...). Tem sua origem ocidental na Grécia antiga, com o filosofo Platão, esegue afirmando seu valor no século XVIII com Rousseau, entre outros. Peloque sabemos, no século XX, educadores como Maria Montessori, Rudolf Stiener,Dewey, Paulo Freire, entre outros, cada um com a sua particularidade, desen-volveram pedagogias que têm contribuído para a formação integral do ser hu-mano.

2 Para Sócrates, o ser humano é virtuoso quando tem autoconsciência, autodo-mínio e vive em busca da sabedoria, justiça e amizade/amor. Platão (1978)destaca as quatro virtudes capitais: prudência, temperança, fortaleza (coragempara agir em função do bem) e justiça.

3 De acordo com Noemi Salgado Soares (2002a), sair de si mesmo ou distanciar-se do seu eu pessoal implica a atitude de silenciar as próprias opiniões, os julga-mentos, as crenças, o afã de querer que sua opinião seja aceita como a melhor emais “inteligente”, e abrir-se para aprender a ouvir. Em se tratando do diálogodo indivíduo consigo mesmo, ouvir as suas vozes interiores (a intuição, aafetividade, a sensibilidade, a bondade, a criatividade, a espiritualidade...). Em setratando do diálogo entre duas pessoas ou entre os participantes de um grupo,ouvir cada um, respeitando a singularidade e considerando a expressão do outrocomo contribuição para o desenvolvimento do grupo.

4 Referimos-nos a publicações de resultados de pesquisa veiculados em revistas decirculação nacional como Veja e Isto é entre outras.

5 Segundo DELORS (2000, p. 11, p.15) o conhecimento de si mesmo ou oprocesso de autoconhecimento deverá ser incluído como uma das novas disci-plinas para a educação do século XXI.

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A literatura na escolacomo presença de outros

Dinéa Maria Sobral MunizGiselly Lima de Moraes

Leitura bem feita é formativa, no sentido deque reestrutura as idéias e expectativas,reformula horizontes. Nem toda leitura pre-cisa ser assim tão séria, mas toda leitura bemfeita ocorre sob o signo do questionamento,porque, quem não sabe pensar, acredita noque pensa. Mas, quem sabe pensar, questio-na o que pensa.

Pedro Demo (2006)

Para que a literatura na escola? Esta é uma per-gunta que já foi respondida de muitas maneiras, oque a tornaria desnecessária, não fossem os re-centes embates em torno de sua escolarização, afi-nal trata-se de uma duradoura parceria queremonta séculos de escolaridade. Tal parceria re-flete um consenso existente na nossa sociedadeem torno da importância da (ou de uma) literatu-ra na formação de crianças e jovens, justificando

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sua presença1 na educação. Porém, o depoimento de pesqui-sadores e dos próprios alunos nos diz de uma convivência quetem se revelado trágica no nosso tempo, cujo resultado é aincapacidade de a escola produzir leitores, isto é, de alimentara base de sustentabilidade da própria literatura como institui-ção autônoma.

O debate então se volta com freqüência para os esforços deformar leitores e, de novo, constrói-se um consenso a respei-to de a literatura ser um texto privilegiado para este fim. Vê-se reconhecida assim a capacidade do texto literário de seduzirgentes de todas as idades e de mobilizar o leitor através doimaginário, favorecendo a uma estreita relação com a lingua-gem escrita. Entretanto, tais discussões dificilmente vão alémda função de mediação entre os sujeitos e o mundo letrado,quando se trata da relação leitura literária/educação.

Durante séculos, a literatura exerceu um papel preponderanteno ensino da língua, na formação moral, na consciência de umacultura com raízes clássicas e, desde o século XIX, deaglutinadora de cada coletividade nacional (COLOMER, 2005,p. 15). No Brasil, a escrita de ficção foi fundamental na forma-ção de uma identidade nacional baseada nas faces do índio e doportuguês, ingênua e exótica, através de obras que, se hojeainda figuram como representantes da literatura brasileira deexpressão, é porque retrataram um Brasil idealizado comomestiço e pacífico, como o queriam suas elites.

Nem sempre ter literatura na escola significou ler obras intei-ras, embora ela desempenhasse uma função clara. No séculoXVIII, o ato de ler servia para a formação do estilo e para aqui-sição de conhecimentos, sendo desqualificada a leitura por di-vertimento. Dessa forma, a análise de fragmentos de textoscélebres tornou-se suficiente e disseminada como prática es-

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colar (ABREU, 1999, p.214). No século XIX, introduziu-se oestudo da história da literatura da língua nacional em substi-tuição ao estudo das belas letras, mas a leitura intensiva defragmentos de obra continuou até o século XX como práticahegemônica. (COLOMER, 2005, p.17)

Quem se propõe a subverter essa ordem, mas de modo tími-do, é a Escola Nova, muitas vezes injustamente acusada pelacorrente mais tradicionalista de desvalorizar o livro e a cultu-ra. Isto porque se opunha a utilização dos livros de textos daescola tradicional e valorizava o acesso direto às obras, atravésda construção de bibliotecas agradáveis e que colocavam o li-vro ao alcance da mão dos alunos. Entretanto, a função maisvalorizada da leitura na escola era aquela que ampliava a expe-riência do aluno e conduzia a experimentação, desenvolvendosua inteligência. Esse processo, que estava vinculado a um pro-jeto de ensino que se pretendia ativo e moderno, foi chamadopor Vidal (1999, p.336) como racionalização da leitura.

Segundo a autora, na Escola Nova se propõe ao “emprego ra-cional do livro”, como resposta à crítica de Rousseau e Pestalozzia sua qualidade como material educativo, principalmente quantoao uso “indiscriminado e abusivo”. É com base em John Deweyque a Escola justifica seu posicionamento, pois, para ele, o li-vro também poderia produzir saber desde que “a matéria apre-sentada” suscitasse a “pesquisa e a reflexão” e não fosse “comoum alimento intelectual preparado para ser absorvido e assi-milado como se fosse uma conserva comprada no armazém.”(CAMPOS apud Vidal, 1999, p.337)

A preocupação com a “qualidade” da leitura produzida na es-cola resultou, historicamente, na produção de uma série deestratégias didáticas para abordagem do texto literário que vi-savam garantir a eficiência leitora a partir da perspectiva de

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uma única leitura possível. Assim, ao aluno era permitido re-produzir a leitura autorizada, tendo como guia o professor.

Tal perspectiva está de acordo com uma concepção de leitura,segundo a qual o sentido emerge do texto, cabendo ao leitorresgatá-lo. Mas, graças ao avanço das pesquisas no campo dateoria literária, essa idéia não perdura e o leitor foi elevado àcategoria de co-autor do texto, tendo sua produtividade reco-nhecida no ato da leitura.

O processo de redirecionar o olhar para o leitor se deflagra apartir da necessidade de responder à chamada críticaimanentista, disseminada na Alemanha Ocidental após o fimda Segunda Guerra Mundial, que considerava a obra literáriaapenas em sua face textual, desprezando a história. Contra estacrítica, surge em 1967, na Universidade de Constança, a estéti-ca da recepção, teoria criada por Hans Robert Jauss, que bus-cava resgatar a historicidade da literatura em bases diferentesdas realizadas anteriormente (LIMA, 2002, p.20). O autor de-fende assim seu ponto de vista:

Do historicismo até agora, a investigação científica da artetem-nos incansavelmente instruído sobre a tradição dasobras e de suas interpretações, sobre sua gênese objetiva esubjetiva, de modo que hoje se pode reconstruir, com maisfacilidade, o lugar de uma obra de arte em seu tempo, suaoriginalidade em contraste com as fontes e os antecessores,mesmo até sua função ideológica, do que a experiênciadaqueles que, na atividade produtiva, receptiva e comuni-cativa, desenvolveram in actu a práxis histórica e social, daqual a história da literatura e da arte sempre nos transmi-tem o produto já objetivado. (JAUSS, 2002, p.68)

Para Jauss, a análise da literatura, como ato comunicativo queé, deveria se deslocar da relação autor-obra para a relação tex-to-leitor, já que a arte literária só sobrevive por meio de um

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público. Nessa perspectiva, a história literária tem a ver maisdiretamente com a história de seus sucessivos leitores, do quecom a de sua produção. Assim, o objeto da análise seria o im-pacto sobre as normas sociais causado pelo texto literário.(JOUVE, 2002, p. 14)

Jauss acrescenta ainda à sua teoria a importância do prazer esté-tico como orientação fundamental da literatura e da experiênciaestética na vida cotidiana dos sujeitos. Nesta linha de idéias,outro teórico da literatura se destaca por trazer para as discus-sões a fenomenologia da leitura: Wolfgang Iser. Este autor vê oato de ler como um jogo, no qual o leitor, para produzir senti-do, joga com os vazios do texto, preenchendo-os com sua ex-periência e visão de mundo. O texto, por sua vez, apresentauma série de indeterminações, previamente estabelecidas, ape-lando ao leitor para que jogue com elas. (ISER, 1999, 126-128)

A leitura constitui-se assim em produto da relação singularentre texto e leitor. Isto dá ao ato de ler uma dimensão aomesmo tempo múltipla, pelas possibilidades que apresenta, epessoal, pelo que se realiza.

As mudanças no campo da teoria da literatura chegaram à es-cola como argumentos para justificar seu ensino. Do beletrismoaos formalistas e estruturalistas e, mais recentemente, às teo-rias recepcionais, de alguma forma, tentam-se transpor para asala de aula novas concepções de leitura, texto e leitor. Destamaneira, a escola vai implantando práticas com o texto literá-rio para dar conta da função em vigor. Atualmente a pedagogiado prazer de ler, da liberdade de escolha do leitor e da diversi-dade de leituras (que inclui o risco de se caírem no vale-tudo)orienta as aspirações por uma educação de qualidade.

Esse modo recente de pensar a leitura na escola é um indíciode que a obra de Iser ajudou a criar uma nova curva no cami-

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nho que a literatura vem fazendo na educação, pelo menos nosespaços em que o vestibular não ocupa toda a demanda porleitura literária.

A radicalização na pessoalidade da leitura, decorrente da teoriado efeito estético, aparece na escola como a necessidade de osalunos lerem por si mesmos as obras na sua integralidade. Jáno discurso dos especialistas, como vê Magda Soares (2001),esta visão da leitura parece ajudar a levantar a bandeira da suadesescolarização. Leia-se desescolarização com um não à lei-tura de fragmentos, ao trabalho gramatical com os textos lite-rários, às fichas de leitura, a análise formal do texto, entre outrascríticas.

Iser trabalha com a categoria do indivíduo (um leitor teórico,previsto no texto, porém diferente do leitor empírico), o quefoi considerado por alguns estudiosos2, uma falha, pois nega ocaráter histórico e cultural do processo de leitura (SULEIMANapud ZILBERMAN, 1989, p.103). Mas o autor nos deu gran-des contribuições quanto a refletir sobre o processo da leiturana construção da subjetividade do leitor, mostrando que a lei-tura literária é algo necessário para dar conta de uma necessi-dade humana de se ver através do outro e de, nesse processo,conhecer a si mesmo (SILVA, 2005, p. 9). A consciência daalteridade, intrínseca ao homem, que o faz buscar a ficção, éque nos faz refletir sobre a necessidade de se refazer a per-gunta sobre por que razão a literatura é cantada em versos naescola.

Se a leitura é esse processo de re-contextualização, espera-se,em princípio, que a escola promova o ensino desse ato de pro-dução que implica realizar o diálogo entre o texto e a vida doaluno/leitor. Para Iser (1999, p.85), a eficiência da leitura temque ver com a transformação que o texto promove nas pré-

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disposições individuais do leitor. Se ele sai o mesmo da leitu-ra, então não se pode dizer que houve sucesso. Assim, o ato deler conforma-se com o próprio ato de aprender.

Um possível efeito indesejável da idéia de leitura como algoda ordem da subjetividade do leitor, que na sua gênese traz asidéias de democratização e de significação humana da literatu-ra, tem permitido que, na ausência de professores capazes dese produzirem leitores, a leitura literária constitua-se em algomais próximo do consumo do que da experiência estética. As-sim, gostaríamos, neste momento, de fazer uma breve refle-xão sobre a idéia do livro como bem de consumo.

Os modos de escolarização da literatura, segundo denunciou MarisaLajolo (1993), podem revelar uma relação promíscua entre a es-cola e o mercado livreiro, especialmente no caso da literatura in-fantil. Para a autora, a literatura infantil e a escola têm uma relaçãode interdependência, pois esta vem usando aquela para difundirvalores, e os livros encontram na escola um mercado consumidorpermanente. Segundo a autora, tal relação vem de longe:

Assim, se a escola mais antiga contava com as poesias deBilac para estimular o civismo, amor aos estudos e respeitoaos mais velhos, o príncipe dos poetas e seus companheirosde ofício podiam contar (e realmente contaram) com aescola para, adotando seus livros, garantir um nadadesprezível mercado para obras infantis.

[...] Hoje em dia o sucesso da dobradinha manifesta-se,por exemplo, nas tiragens dos livros infantis, sempresuperiores às dos livros não infantis, sem suas freqüentesreedições, em seu escoamento mais rápido e seguro.(LAJOLO, 1993, p. 66-67)

Resta questionar se a escola, mesmo tendo fracassado como cau-sadora do desejo de ler e formadora do gosto pela leitura, tem

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criado, durante esse tempo, uma demanda real por tamanhaprodução literária, como mostram os dados do meio editorial.

O fato é que a leitura livre e a ênfase no prazer dela decorrenteinspiraram lemas de campanhas de incentivo as quais, muitas ve-zes, se tornam a única linha de ação para causar o desejo e desen-volver o gosto por ler. Essas campanhas, de um modo geral,apaziguam a consciência dos professores, mas reduzem a inclu-são da literatura no currículo a um mero circular na sala de aula.

No âmbito das políticas públicas, a constituição de acervos literá-rios nas instituições escolares3 – também com vista ao acessolivre dos alunos às obras, o que, inegavelmente, é um ganho in-calculável na história de leitura da escola brasileira – não se dá demodo insuspeito. Paradoxalmente, a despeito do desejo de daracesso ao livro, pouco se investe na construção de bibliotecas,onde a perenidade do acervo é uma característica e uma intenção.

Mas quem abriria mão de reafirmar a necessidade de se com-prarem obras literárias tendo como destino o meio escolar,ainda que sabendo o quanto isso não garante um autêntico com-promisso com sua leitura? Esta falta de compromisso com aleitura dos alunos revela, segundo Pedro Demo (2006, p. 55),outra forma de implicação do mercado na escolarização do texto:

A escolarização da leitura serve à modernização capitalista,à medida que contribui, sob a capa de um verniz inconse-qüente e superficial, para encaixar a população escolarizadanas expectativas do mercado. Evita-se a compreensão dostextos, que tanto mais são absorvidos, quanto são “ofici-ais”. Evita-se o leitor autor, cuja autonomia implicaria tam-bém recusar-se a ler o que a escola preceitua. No mesmoespaço escolar, a trivialização da leitura infanto-juvenilencontra eco no que Magnani chama de “imobilismo doprofessor”, marcado pelos extremos da neutralidade con-formista e da cumplicidade revolucionária.

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É verdade que a leitura como fruição é uma condição para acompreensão do texto literário, como afirma Jauss (2002). Noentanto a obrigatoriedade do prazer imediato pode se trans-formar numa armadilha para professores e alunos que não sedispõem a romper com seus horizontes. Na realidade atual,em que o hedonismo é uma tendência na cultura ocidentalglobalizada, parece natural apontar objetivos educacionais coma literatura a partir da idéia de ócio qualificado. Na perspectivada educação cidadã, isto não nos parece ser o suficiente.

Formar leitores é um ato político. Tal prerrogativa não podesofrer alteração se o texto é o literário. Pelo contrário. Segun-do Iser (apud SILVA, 2005), a necessidade de ficção é parte denossa humanidade, pois através dela temos acesso a algo que éessencial para o desenvolvimento do Eu, que nem a realidadenem o conhecimento nos fornecem. Com base nesta idéia,Iser constrói uma antropologia literária, que contribui para umavisão significativa da experiência estética para a educação, masque coloca apenas como possível uma leitura pela via do social,da política e da cultura.

No contexto da pós-modernidade, marcada pelo estilha-çamento das convicções científicas e humanas, a teoria da re-cepção pode ganhar conformidade e fortalecer a visão relativistae individualista da realidade, mas também pode fornecer umahermenêutica para a compreensão mais aberta dos fenômenosdeste tempo, com base na estética.

De acordo com Pérez Gómez (2001), a pós-modernidade secaracteriza pela primazia da estética sobre a ética, umaproposição que, segundo ele, se reflete na máxima: o meio é amensagem. Dessa maneira, a linguagem, o discurso e a formase destacam. Este fato, além de outros fatores, aponta para umesvaziamento da idéia de valores universais e de história, faz

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vigorar o multiculturalismo, mas ao mesmo tempo faz surgirum movimento de recrudescimento das diferenças. Istosignifica dizer que o homem está em crise: de identidade, devalores, de leitura.

Parece evidente que o contexto cultural que tanto potenciacomo restringe as possibilidades de desenvolvimento doindivíduo humano mudou substancialmente de forma ace-lerada nas últimas décadas para mostrar sua natureza flexí-vel, complexa, incerta, plural e diversificada. As raízes lo-cais da cultura que definiram o cenário próximo em cadaindivíduo incorporava a herança social, e que lhe propor-cionavam tanto a plataforma de lançamento como o hori-zonte de expectativas, perderam não apenas sua suprema-cia como também sua própria e original identidade, atuan-do, em todo caso, ao mesmo tempo e de forma mediatizadacom os poderosos instrumentos de comunicação social.(PÉREZ GÓMEZ, 2001, p. 14)

Segundo o autor, na prática, o etnocentrismo continua sendouma ameaça, a luta do público contra o privado permanece, aexclusão se dá de inúmeras formas e, o que é pior, a escolareforça essa tendência. A leitura do processo de globalizaçãocomo estratégia de manutenção desse estado de coisas carecede contra-palavras, que pode emergir da abertura para a inter-pretação cultural da vida social.

Neste contexto, levantam-se como contraproposta a necessi-dade de uma abordagem intersubjetiva da realidade, numa ati-tude de abertura para outras formas de ver e lidar com oconhecimento, com a vida, com o outro. Seguindo a tendênciade oferecer uma resposta mais otimista do que a da visão pós-moderna, as produções teóricas têm se deslocado para as ques-tões culturais (na sua relação com o econômico, o social e opolítico), encontrando aí um espaço de reflexão e de transfor-mação da realidade.

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No campo da teoria literária, não é diferente e, tal movimentogerou reflexões de extrema importância, quanto a fortaleceros argumentos que pretendem validar a presença da literaturana escola para além da questão do incentivo à leitura e das de-mandas individuais, com o propósito de contribuir para umareflexão no âmbito da coletividade.

Fazendo parte desta tendência de incluir a perspectiva cultural,Gabriele Schwab (1999 apud Silva, 2005) faz uma releitura daobra de Iser, que, na perspectiva desta reflexão, fala sobre as“interpretações” que alguns leitores realizaram da estética darecepção, contribuindo para formação do quadro já descrito.Embora, poucos textos seus tenham sido publicados em por-tuguês, a autora é citada com freqüência entre os que discutema leitura literária na visão atual da estética da recepção.4

Segundo Silva (2005, p.2), a teoria de Schwab liga a função cul-tural da literatura ao seu poder de nos afetar5 e de mudar ouinterferir em práticas culturais. Isto se dá através do encontrocom “alteridades que desafiam suposições familiares, abrindonovas perspectivas não só em relação ao texto como tambémem relação à realidade extratextual”.

Ao trazer a proposição da leitura como contrato cultural,Schwab demonstra que a alteridade presente no ato de ler émais radical do que nos fazia suspeitar Iser. Ou seja, enquantoque para o teórico do efeito estético pouco importa a dimen-são coletiva da leitura, a autora pensa exatamente o contrário eradicaliza nesta perspectiva, discutindo também as questõesde poder que resultam em imposições de sentidos.

Na sua concepção de leitura, a pesquisadora considera os mo-dos históricos e psicológicos (incluindo os modos inconscien-tes) de processar o texto, explicitando que neste jogo há umatransferência para o imaginário, ocorrendo, neste espaço, tro-

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cas culturais significativas. Em diálogo com a obra de Bakhtin,para quem o processo de constituição do Eu se funda na rela-ção intersubjetiva e nas interações sociais mediadas pela lin-guagem, Schwab se afasta de Iser para revelar a leitura, nãoapenas como possibilidade de um sujeito, mas de um sujeitoque negocia significados com uma coletividade.

Nessa linha de pensamento, as predeterminações culturais (nãosó individuais) são parte importante do processo. Assim, o atode ressignificação presente na leitura, descrito por Iser, é tam-bém, quando eficiente, um ato de produção de transforma-ções no âmbito cultural, ou seja, na rede de significados quepermeiam as práticas sociais de um grupo.

Neste sentido, quando lemos, o fazemos coletivamente, aindaque estejamos a fazê-lo em silêncio, na intimidade da cama. Eler coletivamente é partilhar experiências e valores e interpe-lar nossas convicções no confronto (que também é um encon-tro) com outras vozes. Desta forma, a literatura como presençana escola não pode ser menos do que a presença de outros.

Notas

1 O sentido de presença utilizado neste ensaio está influenciado pela definiçãoLandowski (2002), na qual presença é algo que se faz sentir pela diferença emrelação ao posto. “Nunca estamos presentes na insignificância”, diz ele.

2 Para Susan Suleiman, “o sujeito leitor que emerge dos ensaios [de W. Iser] nãoé um indivíduo específico, historicamente situado, e sim uma mente trans-histórica cujas atividades são, ao menos formalmente, sempre as mesmas.

3 Talvez, por atribuírem valor de bem de consumo ao livro, é que existam relatosde casos em que os alunos vendem os livros que recebem dos programas deincentivo. Será que venderiam se tivessem a possibilidade de ter uma experiênciatransformadora com aquele objeto?

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4 Até aqui, o contato com as idéias dessa autora se deu através de artigos organizadosem publicação da UFMG, organizada por Luiz Alberto Brandão, e do artigo deLuiz Antonio Silva, conforme citado nas referências bibliográficas. A autoraparticipa ainda da coletânea de textos: Teorias da ficção: indagações à obra de Iser(UFRJ), na qual publicou o artigo: Se ao menos não tivesse de manifestar-me.

5 A idéia de tratar o que afeta o sujeito relacionando essa noção com a de desejo deler mobilizou Muniz (1999) a produzir a tese Pedagogia do desejo de ler.

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178 A literatura na escola como presença de outros

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Histórias de leitura dealunos e alunas da roçaItinerários de leitura numa semiótica da terra

Dinéa Maria Sobral MunizJane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios

A leitura é uma atividade complexa, plural,que se desenvolve em várias direções.

Vincent Jouve (2002)

Já há algum tempo, vimos refletindo sobre esta“atividade complexa e plural” que é a leitura, de-bruçando nossa atenção sobre o trabalho no âmbi-to escolar, mais especificamente, o papel da escolana formação do sujeito-leitor. Como leitoras eprofessoras, tivemos oportunidade de conhecer asconstruções de sentidos produzidas pelos alunose alunas da roça em suas leituras, porém é lamen-tável perceber que a escola não dá espaço para ossentidos e significados produzidos por este sujei-to-leitor que vê sob seus olhos um mundo de co-nhecimento que nasce, enraiza-se nos seus poroscomo produtores e produtos de uma cultura docampo, de uma semiótica da terra. Segundo

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Chartier (1990, p.61), “todo texto é o produto de uma leitura,uma construção do seu leitor”, entendendo-a como uma ativi-dade de produção de sentido, marcada, sobretudo, pelas expe-riências de leitura e de vida do leitor.

Este ensaio objetiva trazer histórias de leitura de alunos e alu-nas da roça colhidas através de relatos numa pesquisa etnográficae representa um momento de reflexão sobre os processosidentitários da constituição do sujeito de linguagem. O reco-nhecimento do lugar de sujeito-leitor, recorte deste trabalho,ocupado pelo aluno e aluna da roça, exigiu-nos identificar assuas histórias de leitura e as situações em que eles interagemcom tais construções e com os seus espaços comunitários. Isso,observando a relação estabelecida entre seus percursos de lei-tura e sua vida como trabalhadores da roça e/ou filhos e filhasde trabalhadores, embebidos por um saber da terra, do coleti-vo, do plantar, do colher, da seca, das poucas chuvas etc. Con-vém aqui esclarecer que preferimos optar pelo termo “roça”para procurarmos guardar as tradições culturais que a palavracarrega no contexto em que foram coletadas as histórias deleitura que fazem parte deste trabalho, compreendida, aqui,como o espaço rural em que os alunos e alunas têm uma rela-ção direta com a questão da terra, sendo caracterizada por pe-quenas propriedades agrárias que ficam no entorno da sede domunicípio.

Foram selecionadas quatro histórias de leitura de alunos e alu-nas oriundos da roça, lavradores, trabalhador rural, agriculto-res, dona de casa e que hoje são estudantes do Programa deEducação de Jovens e Adultos (EJA), no município deSerrolândia1. As narrativas apresentam um pouco os itinerári-os de leitura construídos por esses alunos e alunas no proces-so de formação como leitores e leitoras. As histórias ilustram

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a relação fecunda do aprendizado da leitura com a interiorizaçãodos pequenos rituais estabelecidos nas relações sociais dos gru-pos, assim como mostram a idéia de que somos permanente-mente “lidos”, como sujeitos de uma sociedade. Tal aprendizadosocial está relacionado, sobretudo, com formas de pensar eagir a respeito da realidade, sendo o mundo social uma trocapermanente entre o leitor e a leitura. Sabemos que aprender aler significa, entre outros sentidos, apropriar-se dos valores dacultura letrada e também, submetê-los a um processo perma-nente de questionamento do qual participa a capacidade dedúvidas, de reflexão e avaliação. Neste contexto, buscou-se umaimpregnação dessas narrativas que foram dialogicamenteconstruídas por sujeitos histórico-sociais, ouvindo-os comolegítimos narradores.

E o que é mesmo a leitura? Idéias, conceitos,concepções.

Inúmeras são as concepções teóricas que temos sobre leitura,tida como decodificação, construção de sentido, prática social,processo de interação entre o leitor e o texto, atividade com-plexa, plural, entre outras. Neste trabalho, entendemos que ocontato com o texto através da escola, da família, do mundo,desde o primeiro momento, leva o leitor a construir percep-ções e acepções sobre o ato de ler. A leitura é uma práticaproduzida em condições determinadas, ou seja, em um con-texto sócio-histórico e exige que sejam levadas em conta asidéias que sobre ela se constroem. Acreditamos que eleger e/ou construir um conceito de leitura dependerá dos itineráriosrealizados pelos leitores e leitoras, das histórias de vida, espe-cificamente, das suas histórias de leitura.

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Sendo assim, vamos nos deter aqui em uma primeira históriade leitura, a que nos mostrará de que forma as idéias, os(pré)conceitos, as concepções sobre leitura foram construídasna vida de uma aluna da roça. Esta é a história de Maria José2,42 anos, lavradora que passou praticamente toda a sua vida naroça, trabalhando com seus pais e depois com seu esposo.

“Minha história é um pouco triste, sem graça. Sou filha depais analfabeto, irmã de seis irmãos analfabeto também,hoje alguns já estuda. Comecei a estudá quando apareceuuma tia da gente que veio passá uns tempos na roça, minhamãe era doida que eu lesse. Ela queria que alguém pudesselê a bíblia. Quando minha tia chegou, ela se encheu deesperança que todo mundo aprendesse a lê, minha tia iapassá um mês com nós. Só que era um tempo de plantar.Então meu pai disse que só eu podia aprendê com minhatia a lê. Os meninos tinha que ir com ele pra roça. A gentesempre foi muito pobre e não tinha como ser de outrojeito. Então, fiquei o mês todo no pé de minha tia, elatrouxe um ABC enorme, pegava um pedaço de papel e saíafazendo uns furos e cobrindo as letras, para eu aprendê,letra a letra. Para mim era muito diferente do que pensei,sempre pensei que lê fosse muito mais que uma coisa só,não sabia que tinha que ser uma letra, depois outra, depoisoutra, via tudo tão juntinho e tão grande na Bíblia, masminha tia disse que tinha que ser assim, um por um, juntá,soletrá. B com A, BA, B com E, BE... Ficava com minha tiatodas as tardes, descobria os nomes das letras, juntava e,depois de uns dias fazia palavra. De noite eu até tentavapegá a Bíblia pra vê se já tava fazendo efeito a leitura, masnão conseguia. Até porque as letras da Bíblia era muitopequena. Minha tia decidiu ficá mais um tempo, entãoalgumas pessoas da região decidiu colocar os filho pra es-tudar com minha tia. Ela virou a professora dali, das roçadali de perto. Com a chegada dos outros aluno, ela come-çou a fazer as letras no chão da casa de farinha, onde tinha asaulas, e assim ela fez o chão de quadro. Sei que aos poucosaprendi a ler, não foi fácil, demorei muito tempo para ler a

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Bíblia. Depois que minha tia foi embora pedi para meu paipara estudar no povoado que tinha lá perto, então comeceia estudar numa escola de verdade, andava oito quilômetrostodo dia para podê estudá, lá a professora tinha um livro,era uma cartilha, depois começamo a receber outros livrosque a prefeitura mandava, era os livros que tive, nunca con-segui lê outras coisas. Mesmo com a escola, continuava atrabalhar na roça. Na roça eu não usava esta leitura dasletras, em quase nada... assim, pra plantá, colhê, eu achavaisso no início. Mas depois eu percebi que a terra precisavade alguns cuidado que uns livros dizia, mas meu pai sem-pre cuidou da roça sem saber lê. Na terra a gente aprende alidá com ela, mexendo nela mesmo, igual as letra, hoje euuso nas coisas que eu preciso também, não só na escola.”

[Maria José, entrevista gravada em outubro/2005]3

Para iniciar a reflexão sobre esta narrativa, gostaríamos de uti-lizar as palavras de Orlandi (2001, p.43), nas quais ela sustentaque “toda leitura tem sua história”, assim como, “todo leitortem sua história de leitura”. Esse conjunto de experiências coma leitura configura a compreensibilidade, ou seja, a capacidadede leitura de cada leitor específico. No caso de Maria José, elanos mostra, num primeiro momento, uma concepção de lei-tura trazida pela tia-professora como decodificação daquilo queestá escrito, uma decodificação do que está pronto. Dessa for-ma, ler consistia num conhecimento baseado, principalmente,na habilidade de memorizar determinados sinais gráficos (asletras). Uma vez adquirido tal conhecimento, a leitura passoua ser um processo mecânico, soma-se uma letra a outra, umasílaba a outra, uma palavra a outra, um conhecimento dado emdoses homeopáticas “letra a letra”. A idéia de leitura apresenta-da, inicialmente, a Maria José, foi a de uma prática de leiturafragmentada, fracionada, na qual os sentidos e significados nãofaziam parte do texto. A percepção de leitura passada pela tia-

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professora reduzia-se a um jogo de adivinhações, dememorizações. Lajolo (1993, p.59) diz que “[...] ler não é deci-frar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto.É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado, con-seguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos [...]”.Para essa autora, a leitura deve ser caracterizada como umaatividade de integração dos conhecimentos, não de fragmenta-ção. Devido à abertura que um texto proporciona ao leitorpara relacionar o assunto que está lendo com outros assuntosque já conhece, ela reconhece, no plano individual, a possibili-dade de existência de diversos saberes.

Neste caso, Maria José traz sua própria concepção de leitura,construída ao folhear a bíblia da mãe, “[...] sempre pensei quelê fosse muito mais que uma coisa só, não sabia que tinha queser uma letra, depois outra, depois outra, via tudo tão junti-nho e tão grande na Bíblia”. Esta compreensão que ela possuíado texto ultrapassava a idéia de fragmentação textual apresen-tada pela tia-professora, revelando a idéia do texto como algotecido (“juntinho”), um corpo ganhando forma no todo.Kleiman (1999) diz que a atividade de leitura é aquela do coti-diano, da prática social da leitura e não a atividade escolar frag-mentada, resultante da concepção escolar de conhecimento econstrução do saber.

Em um segundo momento, percebemos que há uma constru-ção social da concepção de leitura na relação direta que éestabelecida com a religiosidade. Com o ler a Bíblia, constrói-se uma relação com o sagrado, o livro visto como “instrumen-to sagrado de aprendizagem” (SANCHES NETO, 2004, p.10).A Bíblia que se constitui como uma leitura realizada por ou-tros, mas que tem o seu lugar garantido numa família de anal-fabetos, assim como representa o lugar de alcance do desejo

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da leitura. Um desejo da mãe em alcançar a “palavra sagrada”,“o mistério” presente no texto bíblico. Podemos dizer aquique a religião representa um evento de letramento, uma vezque é tida como um instrumento de socialização da leitura,participação social e interação dialógica entre os pares. A leitu-ra aqui não se reduz a decifrar palavras, mas consiste num exer-cício de compreensão que se torna um elemento envolto nummundo cheio de mistérios, até porque o ato de ler é, antes detudo, compreender o mundo. Mas, a ação da tia-professoranão possibilitou a interação texto/leitor, até por que a leituraestava relacionada não com o desejo, mas a uma funcionalida-de “técnica” (cortar, soletrar, silabar etc.). A idéia de leituracomo desejo supõe uma atualização do inconsciente que re-sulta na conscientização, como já tratado por Muniz (1994).

A narradora apresenta, no final da sua história, uma perspecti-va sociointeracionista sobre sua noção de leitura. Por meio deuma construção metafórica, ela relaciona o seu fazer e o seusaber, produzindo vínculos de sentido no texto através do seutrabalho com a terra. Maria José, ao relacionar o uso das letrascom sua prática social, estabelece um lugar de sentido para aleitura, buscando enredar-se nas articulações que a leitura fazcom o mundo. Conforme Kleiman (1999, p.91):

Somente quando elaboramos relações significativas entreobjetos, fatos e conceitos podemos dizer que aprendemos.As relações entretecem-se, articulam-se em teias, em redesconstruídas social e individualmente, e em permanenteestado de atualização. A idéia de conhecer assemelha-se ade enredar-se, e a leitura constitui a pratica social porexcelência para esse fim.

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O lugar social da leituraPerspectivas sociointeracionistas

A leitura é, fundamentalmente, uma prática social. É uma ati-vidade que envolve as mais diversas situações vividas social-mente, no contexto familiar, na escola, no trabalho e em outrosespaços. Todos os seres humanos podem se transformar emleitores da palavra e dos outros códigos que expressam a cul-tura, mesmo porque, sendo sujeitos de linguagem, carregamconsigo o potencial de significar o mundo.

Durante a vida, aprendemos valores sociais que nos criam há-bitos, adotamos posicionamentos, discursos. A vida social, dessaforma, não se limita a nos ensinar a ler a realidade, mas chegaao ponto de orientar leitura num determinado sentido. Emoutras palavras, ao lermos um texto, colocamos em ação todoo nosso sistema de valores, crenças e atitudes que refletem ogrupo social em que fomos criados. Neste sentido, a leiturareflete uma prática social, servindo de instrumento para a in-serção das pessoas no mundo e para o seu relacionamento comos grupos sociais com os quais estão envolvidos e que consti-tuem o nosso cotidiano. É, assim, que os sujeitos colocam-secomo leitores concretos, singulares que, a partir de suas cren-ças e visão de mundo, lêem o outro, os seus espaços, a si e osfatos no seu contexto.

Neste espaço de inserção social, nasce nossa segunda narrativaque é de Cosme, trabalhador rural, 34 anos, que estudou naEscola Agrícola durante alguns anos e iniciou sua leitura com ométodo Paulo Freire, estudando os sentidos e significados queas palavras geradoras representavam em sua vida.

“A minha história de leitura é feia porque eu tive problemade linguagem, não sabia pronunciá as palavra. Eu repeti a

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cartilha por cinco ano. Parei de estudá. Eu só voltei a estudáporque surgiu a escola Família Agrícola e eu tinha vontadede estuda lá. Graça a deus porque surge o método PauloFreire de alfabetização de adulto. Eu não sabia nem lê, nemescrevê com 17 anos, graças a professora Rosa encarou dáaula a adulto, foi quando aprendi a lê e escrevê. Eu melembro que a primeira palavra que a professora Rosa co-meçou com a palavra “povo”. Com esta palavra que eu co-mecei a descobri a leitura e lembro que foi na capela dacomunidade de Lagoa da Roça, próximo a Maracujá, noano de 94/95. Aprendi a discuti muita coisa sobre o que agente como povo faz e tem direito e devê de fazer. Inclusi-ve lá discutimos também a palavra “trabalho” e vimos quea terra é um grande lugá de produzi. No final de 97, eu fizo teste para o Colégio Família Agrícola e passei. Estudei98, 99 e 2000, não fiz o teste em outra escola técnica porquesou ruim em redação. Fiquei sem estudá por cinco anosporque não gosto dos colégio público, não tem o que eugosto que é as matérias técnica agrícola e zootecnia. Assimvoltei em 2005 no colégio de Serrolândia.[...] mas duranteesta história eu tive bons frutos, eu tive a oportunidade deconhecê a Europa, participei de um congresso agrícola emTurin, na Itália. Lembrando que durante o período de 2000a 2005 eu fiz vários curso técnico agrícola e trabalhei vo-luntário para os apicultores.”

[Cosme, entrevistado em setembro/2005]

Podemos observar nessa história que a leitura é compreendidacomo uma apropriação de um produto cultural, de um estar-no-mundo, expandindo o leque de experiências do ser enquantocriança ou adulto ao perceber novas formas de conceber o mun-do e a si mesmo. Como nos diz Paulo Freire (2001, p. 12) “[...] aleitura do mundo precede sempre a leitura da palavra; e a leituradesta implica a continuidade da leitura daquele.” Cosme teve aoportunidade, em um determinado momento de sua história deleitura, de pensar sobre as palavras, de construir politicamenteos sentidos e os silêncios que as palavras possuem, perceber as

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distintas realidades que elas contemplam. Assim, ler o mundopelas palavras e/ou ler as palavras pelo mundo contribuiu para oconvívio e para a mobilidade social deste sujeito de linguagem.

A leitura de mundo de Cosme vem sempre à tona no seu de-sejo de ler, de estudar, de se manter ou não na escola. Essaexperiência mostra que o leitor pode ser formado em qual-quer período de sua existência, desde que exista, nesse senti-do, um trabalho gerador de história. Entender o mundo socialcomo um grande texto que permanentemente é leitor e leitu-ra de seus indivíduos contribui muito para as práticas de leitu-ra que devem ser desenvolvidas nas escolas. No caso específicodas práticas de leitura na roça, compreender a semiótica daterra como cerne de discussão e de construção de sentidos nostextos e contextos vividos é de extrema relevância para a polí-tica de formação de leitores nestes espaços.

Em essência, a leitura caracteriza-se como um dos processosque possibilita a participação do homem e da mulher na vidaem sociedade, em termos de compreensão do presente e pas-sado e em termos de possibilidade de transformaçãosociocultural futura. E, por ser um instrumento de aquisição,transformação e produção do conhecimento, a leitura, se acio-nada de forma crítica e reflexiva dentro ou fora da escola, le-vanta-se como um trabalho de combate à alienação, capaz defacilitar às pessoas e aos grupos sociais a realização da liberda-de nas diferentes dimensões da vida.

O sujeito-leitorProcessos formativos

A terceira narrativa é de Ana, 29 anos que morou na roça comseus pais durante vinte anos. Ela não se envolvia diretamente

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com os trabalhos da lida – plantio, colheita, o rebanho – istoficava com seu pai e seus irmãos. Sua função era ajudar suamãe nas tarefas de casa e com ela aprendeu a ler.

“Eu aprendi a lê com minha mãe. Comecei a estudá naque-les ABC, eu gostava muito de lê, desenhava bastante, quan-do fui pra escola, com sete anos, já fui estudá a primeirasérie, já tava alfabetizada, minha mãe deu conta dessa parte.Por causa da distância da escola da roça, só comecei a estudánessa idade. Minha mãe ia levá eu e meu irmão até nósacostumá com o caminho, era uns quatro quilômetro dedistância. Comecei a estudá cubrindo as letras que minhamãe fazia, depois comecei a cobri palavras, depois frases.Eu gostava muito de estudá, só vivia com livros lendo. Oslivros da escola mesmo, as cartilhas, todos. Escrevia mui-to, brincava de professora, ensinando meus irmãos. Gosta-va muito de imitá uma professora. Era demais, já amanhe-cia com os livros lendo, escrevendo, era tanto que minhamãe faltava a paciência comigo que ia me dá uma surraporque eu não fazia mais nada em casa para ajudá ela. Elazangava e dizia: ‘A escrivona já abriu o escritório. Vai varrêa casa, lavá os pratos.’ Eu ficava assim, chateada e dizia paraesperá. Era uma luta comigo. Apesar de tudo aprendi mui-to e até hoje gosto muuuito de estudá, lê.”

[Ana, entrevistada em outubro, 2005]

Como ser um leitor? Quem constitui os processos? Nos iti-nerários de leitura, muitos e muitas são as pessoas que contri-buem para esta formação. A influência de alguém no percursode leitura é sempre presente: mãe, pai, tias entre outras. Mui-tos escritores relatam a presença de alguém influenciando narelação estabelecida com a leitura, entre eles, Elias Canetti(1996) apresenta todo o fascínio que a literatura e a linguagemexerceram desde seus primeiros anos de vida, ressaltando apresença de seu pai e os desdobramentos dessa relação comsua construção de sujeito-leitor.

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No caso específico de Ana, sua mãe foi aquela que ficou em casa– função atribuída à mulher – cuidando dos filhos e entre oscuidados dedicou-lhe o ensino das letras. Ensinando a ler, ape-sar da pouca formação que a mãe possuía, conseguia passar o“principal”, que era ensinar a juntar sílabas e palavras. Essa fun-ção alfabetizadora da mãe ou, em alguns casos, do pai é algobastante comum na roça. Escolas distantes, crianças pequenas,acesso complicado, as crianças teriam que andar muito, então amãe ou o pai aproveita o “saber das letras” que possui e ensinaaos filhos da sua maneira, com a sua metodologia específica. E,assim, várias crianças chegam à escola “alfabetizadas” sabendotodas as letras, juntando-as em sílabas, formando palavras,decodificando-as. Em alguns poucos casos, lendo pequenos tex-tos ou pseudo-textos. A cartilha e o ABC sempre foram gran-des personagens deste cenário. Muitas destas crianças passamtoda sua vida sendo apenas “alfabetizadas”, mas não conseguemo letramento, segundo Soares (1998) não vivem no estado oucondição de quem sabe ler e escrever, ou seja, não têm o acessopleno às habilidades e práticas de leitura e de escrita.

Entre castigos e prêmiosA avaliação da leitura

Uma das preocupações fundamentais manifestadas porprofessores no trabalho com a leitura diz respeito à suaavaliação. Antes de qualquer coisa, parece-nos que apreocupação dos professores é muito mais de controle do quede avaliação de um processo. Recuperar na escola e trazer paradentro dela o que se exclui por princípio – o prazer de ler -exige que se repense a avaliação, não como controle de produto,mas como revisão do processo.

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Revestida de uma imagem aversiva, a escola apresentava-se eainda se apresenta, como um espaço em que os adultos disci-plinam e corrigem as crianças, fazendo uso de castigos, puni-ções e ameaças. Essa imagem tanto foi uma herança dosmétodos e das relações disciplinares produzidas pelos padres,que ensinavam nas casas-grandes e nos austeros colégiosjesuíticos, quanto dos mestres régios, cujas práticas de ensino,assentadas no princípio de que “a letra com sangue entra”, fa-ziam-se acompanhar das palmatórias. Sabemos que esta visãode disciplina e o uso dos castigos e prêmios relacionados àavaliação ficaram embutidos no fazer pedagógico de muitosprofessores, assim como a questão do erro, da culpa e do cas-tigo na prática escolar sempre esteve bastante articulada com aquestão da avaliação da aprendizagem. Essa, à medida que sefoi desvinculando, ao longo do tempo, da efetiva realidade daaprendizagem para tornar-se um instrumento de ameaça edisciplinamento da personalidade do educando, passou a ser-vir de suporte para a imputação de culpabilidade e para a deci-são de castigo.

Vários alunos aprenderam a ler sob ameaça de palmatórias,milhos, de pais, professores e outros. Quem conseguia ler –prêmio. Quem não conseguia ler – castigo. Podemos observaristo na narrativa de Margarida, 43 anos que aprendeu a ler sobcensuras, proibições e castigos.

“Quando eu aprendi a lê foi com o ABC, assim eu fuidescobrindo as letras. Minha primeira professora chamavaJoana, era uma senhora muito rígida, quando a gente erravauma letra, ela batia com palmatória ou as vezes colocava agente de joelho em cima dos grão de milho, ninguém po-dia errá nada, tinha que prestá bastante atenção no que elaensinava. Quanto a gente lia certinho nosso prêmio era sairpro recreio logo. A lição era marcada numa página e toma-

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da no dia seguinte, a gente tinha que tá com tudo na pontada língua. Lá não admitia erros. Depois passei a estudar nasede, no Prédio Otávio Mansur, onde fiz a quarta sériecom a professora Maria José onde aprendi muitas coisas,inclusive a lê e escrevê, pois ela era uma ótima professora.”

[Margarida, entrevista gravada em setembro/2005]

Segundo Luckesi (1999), a visão culposa do erro, na prática es-colar, tem conduzido ao uso permanente do castigo como for-ma de correção e direção da aprendizagem, tomando a avaliaçãocomo suporte de decisão. Assim, as condutas dos alunos consi-deradas como erros têm dado margem, na prática escolar, tantono passado como no presente, às mais variadas formas de casti-go por parte do professor indo desde as mais visíveis até asmais sutis. À medida que se avançou no tempo, os castigos es-colares foram perdendo o seu caráter de agressão física, tor-nando-se mais tênues, mas não desprovidos de violência.

Essa forma de conduzir a docência manifesta-se com um viésmais grave ainda, porque o professor normalmente não estáinteressado em descobrir quem sabe o que foi ensinado, mas,sim, quem não aprendeu, para poder expor publicamente aoscolegas a sua fragilidade.

Na história de leitura de Margarida, erros, castigos e prêmiosmarcaram uma relação difícil com a leitura. Ler significava nãoerrar, conseguir memorizar lições de cartilhas, para que nadafosse esquecido. Saber ler para a professora limitava-se a umadecodificação seguida de uma memorização, sendo a avaliaçãodo processo de ensino-aprendizagem de leitura reduzida aobservar apenas o nível de memorização que aqueles sujeitosde linguagem eram obrigados a desenvolver. Além da violên-cia física, milhos e palmatórias há toda uma violência simbólica

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que institui a falsa idéia de que há um modelo a ser seguido/reproduzido, no qual não há espaço para desvios, modifica-ções, mudanças, assim como, institui-se uma pseudo-leituramarcada por uma postura homogeneizante de sociedade queexclui aqueles que subvertem este tipo de modelo.

Considerações finais

Neste ciclo de criação e recriação do conhecimento – próprioda vida escolar – a leitura ocupa um lugar de grande destaque.Vale dizer que esse lugar não decorre somente das funçõesque a escola visa atingir, mas confunde-se com a própria carac-terização dos atos de educar(se) e de ler, que são, em essência,atos de conhecimento. Nas narrativas analisadas a importânciada leitura está relacionada com o ato escolar, consolidada pelavia pedagógica e familiar como elemento de inserção social.No caso específico da educação na roça, ler e educar não cons-tituem uma antinomia, imbricam-se a todo momento. A lei-tura, concebida como uma prática social potencializadora desaberes, não pode prescindir, por várias razões, de políticas deformação de leitores e leitoras da roça.

A realização deste estudo possibilitou observar que os leitorese leitoras apresentam uma grande identificação entre suas his-tórias de vida e suas histórias de leitura. As histórias de leituranascem do lugar da educação não-formal oferecida em casa, empequenos projetos sociais, na casa de farinha, em sua maioria,com a participação da família no primeiro contato com a leitura.Uma outra característica destes sujeitos-leitores relaciona-secom os seus procedimentos de leitura, inferindo, selecionan-

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do, formulando perguntas e respostas a partir de espaços não-verbais, de construções simbólicas e culturais, em um esforçoativo de construção de sentidos que a leitura possibilita.

Entendemos que a leitura deve ser considerada uma atividadeprodutora de sentidos, sendo sempre uma incursão entre asdiferentes práticas sociais do sujeito-leitor. No caso específicodo aluno e da aluna da roça, que a leitura possa ser um espaçode construção de significados que interligam o texto aoconhecimento, aos saberes transmitidos pelas famílias, àsexperiências com a terra, enfim, um espaço de formação dessessujeitos de linguagem envolvidos, entre outras possibilidades,na semiótica da terra.

Os (des)velamentos das leituras destes sujeitos jamais serãoesgotados, estando sempre no vir-a-ser dos sentidos queemanam de cada interpretação construída por cada homem emulher que se constitui como leitor e leitora. Acreditamos,pois, que a visão crítica de algumas questões que surgiram apartir dessa análise possa ser revisitada com vistas a melhorcontribuir para oferecer alternativas de políticas públicas deformação de leitores, neste caso específico, com identidadesembebidas pelo cerne dos saberes da terra.

Notas

1 Serrolândia é um pequeno município no interior da Bahia, localizado no Piemontede Chapada Diamantina, a 319,9km de Salvador-Ba.

2 Para preservar a identidade dos indivíduos destas narrativas, os nomes apresentadossão fictícios.

3 Não sendo fonéticas, as transcrições de fala dos informantes são uma tentativaaproximada de representação do padrão sociolingüístico de cada um.

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Dinéa Maria Sobral Muniz e Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios 195

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As organizadoras

Dinéa Maria Sobral Muniz

Emília Helena Portella Monteiro de Souza

Lícia Maria Freire Beltrão

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Formato

Tipologia

Papel

Impressão

Capa e Acabamento

Tiragem

15 x 21 cm

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Alcalino 75 g/m2 (miolo)Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)

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