entre o discurso e a prÁtica: as ruralidades em … · devemos entendê-lo enquanto um regime...

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 2380 ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA: AS RURALIDADES EM QUESTÃO 1 Thalita Pavani Vargas de Castro 2 Introdução O período histórico em análise neste artigo compreende o Estado Novo, decretado a partir de um golpe pelo Presidente Getúlio Vargas, que contou com o apoio dos militares e dos setores conservadores da sociedade, entre os anos de 1937 a 1945. De um modo geral, devemos entendê-lo enquanto um regime totalitário e ditatorial, marcado pela centralização do poder em todo país. De acordo com as análises de Velloso (2011), se dissipou como uma matriz autoritária do pensamento, que confiou ao Estado o máximo poder de organização da sociedade. Com relação ao âmbito da educação, tiveram algumas iniciativas do Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema com o ensino primário, mas estas foram ínfimas. À medida que o seu enfoque estava centrado no ensino secundário e profissionalizante, por estar em consonância com os projetos de transformar e desenvolver o Brasil em uma nação promissora. Assim, diante deste contexto a nível nacional, o Estado de Mato Grosso, vivenciou no período interventorial do Presidente Vargas, a ausência de continuidade administrativa em decorrência das constantes alterações dos seus governantes. E isso impactou diretamente nas questões educacionais, esclarecendo algumas das razões dos resultados terem sido insuficientes neste âmbito, pois os sucessores administrativos não davam seguimento nas ações, acarretando em inúmeras dificuldades que serão expressas no decorrer das explanações. Que trouxeram prejuízos para o ensino, principalmente rural, por não alcançarem as suas finalidades almejadas, tanto aos profissionais quanto aos alunos. Nesta perspectiva os objetivos deste artigo constituem em apresentar mediante os Relatórios e as Mensagens enviadas pelos Interventores e Governantes do Estado com relação a Instrução Pública das Escolas Primárias Rurais em Cuiabá Mato Grosso 1 Financiado pela agência de fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2 Mestranda do curso de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Cuiabá. E-Mail: <[email protected]>.

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 2380

ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA: AS RURALIDADES EM QUESTÃO 1

Thalita Pavani Vargas de Castro2

Introdução

O período histórico em análise neste artigo compreende o Estado Novo, decretado a

partir de um golpe pelo Presidente Getúlio Vargas, que contou com o apoio dos militares e

dos setores conservadores da sociedade, entre os anos de 1937 a 1945. De um modo geral,

devemos entendê-lo enquanto um regime totalitário e ditatorial, marcado pela centralização

do poder em todo país. De acordo com as análises de Velloso (2011), se dissipou como uma

matriz autoritária do pensamento, que confiou ao Estado o máximo poder de organização da

sociedade.

Com relação ao âmbito da educação, tiveram algumas iniciativas do Ministro da

Educação e Saúde – Gustavo Capanema – com o ensino primário, mas estas foram ínfimas. À

medida que o seu enfoque estava centrado no ensino secundário e profissionalizante, por

estar em consonância com os projetos de transformar e desenvolver o Brasil em uma nação

promissora.

Assim, diante deste contexto a nível nacional, o Estado de Mato Grosso, vivenciou no

período interventorial do Presidente Vargas, a ausência de continuidade administrativa em

decorrência das constantes alterações dos seus governantes. E isso impactou diretamente nas

questões educacionais, esclarecendo algumas das razões dos resultados terem sido

insuficientes neste âmbito, pois os sucessores administrativos não davam seguimento nas

ações, acarretando em inúmeras dificuldades que serão expressas no decorrer das

explanações. Que trouxeram prejuízos para o ensino, principalmente rural, por não

alcançarem as suas finalidades almejadas, tanto aos profissionais quanto aos alunos.

Nesta perspectiva os objetivos deste artigo constituem em apresentar mediante os

Relatórios e as Mensagens enviadas pelos Interventores e Governantes do Estado com

relação a Instrução Pública das Escolas Primárias Rurais em Cuiabá – Mato Grosso –

1 Financiado pela agência de fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2 Mestranda do curso de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Cuiabá.

E-Mail: <[email protected]>.

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utilizando-se das fontes documentais impressas e manuscritas do Arquivo Público de Mato

Grosso (APMT) –, que colocam o aspecto rural destas regiões unificado, não levando em

consideração a complexidade que abarca a formação do espaço que se exprime a vida rural no

nosso país, e as relações de exploração e conflito que os permeiam.

Parte-se do princípio de que no Brasil, ao analisar a sua natureza territorial, não há

como estabelecer uniformidade com relação a concepção de ruralidade, por esta razão,

ressaltamos as distintas ruralidades existentes, pois esta suplanta as compreensões

embasadas apenas na concepção de oposição de urbanidade, e agrega um conjunto plural de

integração com a economia e com a sociedade. Além disso, buscamos abarcar as nossas

análises na dicotomia entre o discurso e a prática dos Governantes nas ações direcionadas ao

Ensino Primário Rural em Mato Grosso.

Por isso, é importante explorarmos a forma como os documentos eram redigidos e seu

respectivo contexto, considerando que alguns, de certa forma, ocultavam a realidade do que

ocorriam nessas escolas sobre os limites, as dificuldades e as possibilidades de trazer

melhorias no processo da escolarização primária neste período. Outros, já apontavam essas

problemáticas e propunham soluções, mas não identificamos nos documentos posteriores,

essas medidas serem efetivadas concretamente, permanecendo mais uma vez no âmbito dos

discursos.

Essas análises foram realizadas na perspectiva da História Cultural (BURKE, 2008) por

nos permitir articular as expressões culturais, abrangendo todo o espaço da experiência

vivida, de forma a considerar a pluralidade dos documentos utilizados e das práticas que

envolvem determinada realidade. Nos possibilitando utilizar o método baseado em Certeau

(2002) da operação historiográfica, ou seja, a articulação do lugar do historiador, da escolha

das fontes e da escrita historiográfica. Vale ressaltar, que este artigo integra parte de uma

pesquisa de mestrado que ainda está em andamento.

Dessa forma, este artigo versa sobre as Escolas Primárias Rurais no Estado de Mato

Grosso, bem como, no município de Cuiabá durante o contexto histórico pesquisado. Essas

escolas representaram neste período o maior número quantitativo existente, e

consequentemente, foi responsável pelo processo de alfabetização de milhares de crianças

que viveram nessas regiões.

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A Instrução Pública das Escolas Primárias Rurais em Cuiabá – MT na vertente dos

Relatórios e das Mensagens Oficiais

A Instrução Pública durante o período do Estado Novo permaneceu regida pelo

Regulamento de 1927, que definia em Mato Grosso o ensino em primário e secundário.

Contudo, o nosso enfoque centra-se no ensino primário, que no âmbito público, seria de

caráter obrigatório e gratuito a todas as crianças com idade entre 7 a 12 anos, desde que

fossem consideradas normais e analfabetas. Além disso, estabelecia-se que deveriam residir

até a distância de 2 quilômetros das escolas.

Essas escolas primárias estariam divididas em categorias, dentre elas: as escolas

isoladas rurais, urbanas e noturnas; as escolas reunidas e os grupos escolares. Neste sentido,

analisaremos a categoria das escolas isoladas rurais de ensino primário no município de

Cuiabá – Mato Grosso. Dessa forma, foram estabelecidos alguns critérios para o seu

funcionamento, conforme o Regulamento da Instrução Pública:

[...] localizadas a mais de 3 quilômetros da sede do município. Art. 6 – A escola rural tem por fim ministrar a instrução primária rudimentar; seu curso é de dois anos e o programa constará de leitura, escrita, as quatro operações sobre números inteiros, noções de História Pátria, Corografia do Brasil e especialmente de Mato Grosso e noções de Higiene. Art. 7 – Terão as escolas rurais a maior disseminação e serão criadas a juízo do governo, por proposta do diretor Geral da instrução, mediante informações dos inspetores gerais, nos lugares onde houver os seguintes elementos: a) prédio facilmente adaptável às necessidades escolares; b) Trinta crianças em idade escolar, num raio de 3 quilômetros do prédio indicado (MATO GROSSO, 1927, s/p).

Assim, os métodos intuitivos e práticos continuaram a integrar os programas de ensino,

sendo introduzido a metodologia de ensino da leitura, e esta trouxe dificuldades há alguns

professores, devido a sua falta de preparo e das suas limitações, considerando que os

profissionais tinham que conduzir seus alunos conforme a capacidade de desenvolvimento

individual, e concomitantemente, o desenvolvimento da turma de forma harmônica (ALVES,

1998).

Com base na Mensagem apresentada a Assembleia Legislativa pelo Interventor Federal

do Estado de Mato Grosso, Capitão Manoel Ary da Silva Pires no ano de 1937, o mesmo traz

dados importantes sobre a educação em Mato Grosso. No entanto, cabe-nos ressaltar que

este documento foi apresentado alguns meses antes de ser decretado o Estado Novo por

Getúlio Vargas no país. O Interventor destacou neste documento que:

O ensino é dos serviços públicos o mais importante do Estado. Sob o ponto de vista da aplicação dos métodos pedagógicos nas escolas os resultados

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foram sempre animadores e eficientes. Entretanto, e lastimável dize-lo, encontra-se presentemente num estado desolador, asfixiado pelas dificuldades de toda ordem que profundamente comprometem a boa fama do magistério. [...] Diante destas considerações a reforma se patenteia urgente e inadiável (MATO GROSSO, 1937, s/p).

Dessa forma, o Interventor apontou que o ensino mato-grossense apresentava

inúmeras dificuldades, tais como, a falta de prédios adequados para o funcionamento das

escolas, em conformidade com as visitas realizadas pelo mesmo em mais de cem instituições

de ensino, identificou que há uma minoria que funcionam nas vilas e cidades e que estão em

prédios próprios. Enquanto as localizadas na zona rural, funcionavam em casas que não

dispunham de nenhum conforto aos alunos e professores, muitas vezes em residências

alugadas pelo Estado ou cedidas pelos próprios profissionais.

O Interventor apontou ainda sobre os materiais escolares, que não atendiam aos

critérios necessários estabelecidos. A ausência de fiscalização adequada se fazia presente,

uma vez que assinala que a escolha dos Inspetores Escolares ficava a cargo, na maioria das

ocasiões, do favoritismo dos chefes políticos locais, que escolhiam pessoas sem nenhuma

competência e capacidade técnica. Sobre a assistência escolar, refere-se que a mesma tem

sido praticamente inexistente com relação a higiene e a atenção médico-escolar aos alunos.

Portanto, o Interventor Federal acreditava que uma das possibilidades de melhoria, seria

através de uma reforma do ensino.

Essa realidade se tornava mais latente nas Escolas Primárias Rurais, que

predominavam em Mato Grosso com o percentual de 66,9%, do total de 152 existentes,

conforme Tabela 1 abaixo:

TABELA 1 QUANTIDADE DE ESCOLAS EM MATO GROSSO

ESCOLAS QUANTIDADE

Urbana 55

Distritais 20

Rurais 152

TOTAL 227

Organizada pela autora Fonte: Mensagem apresentada a Assembleia Legislativa

pelo Interventor Federal do Estado de Mato Grosso, Cap. Manoel Ary da Silva Pires, 1937.

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Com relação ao quantitativo das escolas municipais no Estado houve um total de 38

neste período, contudo nenhuma delas pertencia ao município da Capital. A seguir Tabela 2

com a quantidade de cada zona:

TABELA 2

QUANTIDADE DE ESCOLAS MUNICIPAIS EM MATO GROSSO

ESCOLAS MUNICIPAIS QUANTIDADE

Urbanas 7

Distritais 9

Rurais 22

TOTAL 38

Organizada pela autora Fonte: Mensagem apresentada a Assembleia Legislativa

pelo Interventor Federal do Estado de Mato Grosso, Cap. Manoel Ary da Silva Pires, 1937

Já as escolas particulares de instrução primária e secundária em Mato Grosso

totalizaram em 97, segundo os dados da Tabela 3:

TABELA 3: QUANTIDADE DE ESCOLAS PARTICULARES EM MATO GROSSO

ESCOLAS PARTICULARES QUANTIDADE

Urbanas 64

Distritais 6

Rurais 27

TOTAL 97

Organizada pela autora Fonte: Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa

pelo Interventor Federal do Estado de Mato Grosso, Cap. Manoel Ary da Silva Pires, 1937.

Podemos observar que apenas nas escolas particulares em Mato Grosso, não houve o

predomínio do ensino rural, mas do urbano.

Segundo as análises de Furtado; Schelbauer; Sá (2015), destacam o desprezo que sofre

a zona rural no Brasil e as dificuldades enfrentadas pela população que ali viveram. Trazem

um dado significativo com relação ao contingente populacional que residiam nas zonas rurais

do país que caracterizava por 69% da população total. Assim, este quadro só vai ser alterado

décadas depois em razão dos processos de industrialização, êxodo rural e urbanização. Por

isso, era comum que nesse período a região rural fosse o foco de atenção dos dos governantes

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pela sua predominância. No entanto em Mato Grosso, ficava-se muito mais no âmbito do

discurso, do que na prática.

Vale destacar, que o próprio Regulamento da Instrução Pública de 1927, propiciou e

norteou o poder público de Mato Grosso à escola rural, uma vez que o Estado como um todo

possuía essa característica. Por esta razão, devemos relacionar a expansão das escolas com os

processos de desenvolvimento econômico, político e social de cada região.

O Relatório da Inspetoria Geral do Ensino Primário da Zona Norte enviado por

Francisco A. Ferreira Mendes, Diretor Geral da Instrução Pública, ao Secretário Geral do

Estado no ano de 1938, destaca ainda, diversos problemas encontrados nas escolas rurais

mato-grossenses, tendo visitado as respectivas quantidades de escolas rurais no Estado:

TABELA 4: ESCOLAS RURAIS EM MATO GROSSO

MUNICÍPIO QUANTIDADE

Capital 41

Santo Antônio 15

Livramento 6

Poconé 7

Rosário Oeste 16

Diamantino 4

TOTAL 89

Organizado pela autora Fonte: Relatório da Inspetoria Geral do Ensino Primário da Zona Norte, 1938.

De acordo com este documento, as dificuldades em torno do mobiliário escolar e das

situações dos prédios que funcionavam as escolas ainda permaneciam as mesmas, sem

nenhuma melhoria significativa.

Já no ano de 1940, no Relatório enviado pelo Interventor Federal Júlio Muller ao

Presidente Getúlio Vargas, ao se referir sobre os prédios escolares, o governante destacou o

esforço para a construção de novos prédios nos distritos do Estado, e a melhoria dos que já

existiam, em conformidade com as regras pedagógicas modernas. Sobre o material escolar, o

Interventor afirmou que estaria aparelhando as escolas que necessitavam. Todavia,

percebemos que essas dificuldades continuaram durante todo o período do Estado Novo até o

seu fim, não trazendo de fato medidas que incidissem diretamente nos problemas

identificados.

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Outra dificuldade apontada pela Instrução Pública mato-grossense desse período foi

com base no Relatório do Diretor Geral Prof.: Francisco A. Ferreira Mendes de 1943 –

Referente ao ano de 1942, sobre os professores, que em sua maioria eram leigos, não tinham

uma preparação e orientação prévia. Em consequência disso, a atuação desses profissionais

era marcada pela insegurança; falta de certeza de permanência no cargo, pela não realização

de concursos, refletindo na sua instabilidade pelas contratações precárias, uma vez que se

sentiam ameaçados pelo forte nepotismo por parte dos políticos, prejudicando assim, o

ensino em sua totalidade.

Para tanto, mesmo perante de todas essas dificuldades para a efetivação do ensino, não

podemos desconsiderar que houve a expansão do número de escolas primárias rurais em

Mato Grosso. Só no ano de 1942 foram localizadas 200 no Estado, sendo Cuiabá o município

com o maior quantitativo, com total de 38 no ano referido.

Assim, mesmo com a expansão dessas escolas, os recursos financeiros disponibilizados

eram insuficientes para atender a todas as demandas necessárias, sendo ainda conjugadas

pelo descaso que era apresentado por parte dos governantes em trazer respostas para

amenizar ou solucionar tais problemas.

As diferentes ruralidades existentes em Mato Grosso

As concepções de “urbano” e “rural” devem ser entendidas como categorias simbólicas,

pois vão sofrer transformações segundo as relações que se estabelece com o meio, por

intermédio das representações sociais (CHARTIER, 1990). Serão diferenciadas cultural e

socialmente de acordo com a região e o contexto que está inserida.

Neste sentido, a sociedade brasileira está permeada por uma realidade que não

possibilita em se considerar uma única ruralidade, homogeneizando-a, como se fosse um

padrão a ser seguido, à medida em que ela manifesta de diferentes formas em conformidade

com as heterogeneidades sociais, culturais e econômicas, que são resultados dos processos

históricos de cada localidade específica (CARNEIRO, 1998).

Mediante a essas concepções, há também particularidades vivenciadas em cada Estado,

bem como, nas suas ruralidades impressas. A realidade mato-grossense era em sua maior

extensão rural, composta por características latentes de ausência de infraestrutura, acesso e

comunicação.

Por esta razão não iremos considerar em nossas análises a possibilidade de constituir

uniformidade com relação as ruralidades. Foi nesta perspectiva que ressaltamos as distintas

ruralidades existentes no Estado de Mato Grosso, visto que ponderamos as suas

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compreensões para além daquelas ancoradas na noção de oposição do conceito de

urbanidade, e atrelamos a um conjunto plural que integra as questões relacionadas com as

especificidades próprias de cada sociedade.

Dessa forma, Furtado; Schelbauer; Sá (2015, p. 136) evidenciam a questão sobre o

aspecto rural ter sido sempre tratado como sinônimo de “atraso”, comparado ao aspecto

urbano como “moderno”, independentemente de sua localização. No Estado de Mato Grosso,

o âmbito educacional das zonas rurais apresentou a ausência de investimentos consideráveis,

refletindo diretamente no desinteresse do Governo com essas regiões. Ficando novamente

evidente a dicotomia entre o discurso e a prática das políticas públicas no período delineado.

O Interventor Federal Júlio Strubing Müller ao apresentar o Relatório sobre a

Instrução Pública ao Presidente Getúlio Vargas no ano de 1940, relata considerar as

ruralidades existentes quando afirma que:

Posso assegurar que tem mesmo sido uma das preocupações máximas e constantes por parte do meu Governo, dotar o Estado de um sistema adequado e cabal de escolas primárias, assim urbanas como rurais, segundo as condições locais e sociais, provendo ainda cada uma delas de material didático suficiente e de boa qualidade (MATO GROSSO, 1940, p. 7).

Neste sentido, quando o Governante se refere acima sobre o sistema escolar rural e

urbano, que se organizariam de acordo com “[...] as condições locais e sociais”, ele expressa

essas especificidades. No entanto, analisamos que essa afirmação se manteve mais na esfera

do seu conhecimento do que propriamente na sua efetivação, uma vez que homogeneizavam

as características dessas regiões ao implementarem as escolas.

Outra particularidade deste documento é que o mesmo apresenta apenas os aspectos

positivos da Instrução Pública do Estado, bem como, ressalta sobre a expansão escolar no

ano de 1939, com a criação de 5 escolas rurais, totalizando em Mato Grosso 144. Mas não

aponta as dificuldades enfrentadas pela Educação ao Presidente da República.

A questão das ruralidades aparece posteriormente como temática no Oitavo Congresso

Nacional de Educação, organizada pela Associação Brasileira de Educação (ABE), na cidade

de Goiânia no ano de 1942, classificando-as como: nas pequenas cidades e vilas do interior;

na zona rural comum; nas zonas rurais de imigração; e nas zonas do alto sertão. Essas

ruralidades foram delineadas de acordo com as características demográficas, geográficas,

étnicas, linguísticas e outras existentes de cada região.

Neste sentido, pautando na referência da Oitava Conferência e nas análises de Furtado;

Schelbauer; Sá (2015), no Estado de Mato Grosso, as regiões das zonas rurais comuns eram

formadas por pequenas vilas e cidades, que seriam constituídas pelo aumento das terras

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devolutas que eram vendidas, pelos próprios processos migratórios, e pelos contratos de

colonização, que tinham o intuito de fixar pessoas nas localidades do estado.

O ensino nessas regiões, conforme o Relatório do Diretor Geral da Instrução Pública do

Estado de Mato Grosso escrito pelo Prof.: Francisco A. Ferreira Mendes, referente ao ano de

1942 (s/p), não estariam em consonância com os preceitos da Escola Nova, devido as

dificuldades encontradas na realidade daquelas instituições de ensino, além da ausência de

livro didático que estivesse “[...] apropriado ao meio”. Outra particularidade dessas regiões

da zona rural comum, seria de que a escola não estava conseguindo atingir as suas

finalidades, e a razão disso poderia estar atrelada ao despreparo dos professores.

Ainda no estado de Mato Grosso, considerando as ideias apresentadas pelas autoras

supracitadas, por fazer fronteira de 93% do seu território com os países do Paraguai e da

Bolívia, esta região foi denominada como zona rural de imigração, uma vez que nesta

localidade:

Tudo lá é diferente; costumes, língua. As fronteiras Brasil – Paraguai, como se poderá verificar no esboço cartográfico anexo, é aberto sempre e de acesso franco. O meio de vida da região é um convite eterno a atividade do paraguaio – a indústria ervateira e a pecuária – e o número deste elemento imigrado é muito grande. “Embora nascidos no Brasil – acentua o autor de “Fronteiras Guaranis” – os filhos dos guaranis não se adaptam facilmente à nossa educação, salvo se a mãe é brasileira, porque em tal caso predomina os costumes desta. Não aprendeu a língua portuguesa nem para isso fazem qualquer esforço. Da mistura do castelhano com o guarani e o Português, resulta um quase dialeto que falado na Avenida Rio Branco ninguém entenderia” (Mato Grosso, 1943, s/p).

Essa era uma região de fronteira que seria caracterizada pela presença das diferentes

culturas e idiomas. Com relação ao ensino nessas localidades, a dificuldade maior centra-se

na dimensão territorial vasta de Mato Grosso, no qual a população se organiza dispersa uma

das outras, além da difícil comunicação que era pouco entendida pela diferença dos idiomas.

Há outro fator complexo, pois o ensino tinha em sua base os programas oficiais, e em função

disso o Diretor Geral da Instrução Pública apontou que deveria ser criado uma escola

nacionalista ao considerar os aspectos econômicos, sociais e culturais desses povos, com

vistas a alfabetizá-los, mas também, de vinculá-los ao ensino cívico do Brasil (MATO

GROSSO, 1943).

Mato Grosso ainda contava com a zona rural do Alto Sertão, que era formada pela

população indígena:

[...] índios Barbados, no Alto Paraguai; índios Bacairis, no Alto Teles Pires; índios Bororós, no vale do rio São Lourenço; ao longo da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, zona habitada pelos remanescentes das antigas tribos

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Guaicurus e Terenos; Aquidauana e Campo Grande, com índios Terenos; no município de Nioaque; na região da Serra da Bodoquena, índios Cadiuéris; índios Caiuás, no extremo sul do estado, todos com acesso à escolarização e à catequização. Já a extensa zona norte do estado, povoada por numerosas tribos, dentre as quais a dos Nhanbiquaras, estava ainda sem contato com as iniciativas estatais e/ou religiosas (FURTADO; SCHELBAUER; SÁ, 2015, p. 107 apud MATO GROSSO, 1943).

Assim, o ensino nessas regiões, ficou marcado pela inexistência de escolas públicas,

salvo as zona leste e parte da zona sul. Não obstante, naquele período algumas missões

religiosas estrangeiras adentravam nos sertões do Estado com o argumento de catequizar os

indígenas (MATO GROSSO, 1943).

Diante das ruralidades presentes em Mato Grosso, constituída por diferentes

características, e composta por suas heterogeneidades e especificidades, nos Relatórios e

Mensagens oficiais do período do Estado Novo, apenas o Relatório de 1940 e 1943

apontavam essas ruralidades, os demais não as levavam em consideração ao realizarem as

suas inspeções e demais sugestões para a melhoria da educação no Estado. Embora, as ações

que foram colocadas em prática, como a criação de novas escolas, não tenham se efetivado

nesta perspectiva.

Uma das possíveis soluções para atender as demandas do ensino rural naquele período,

estaria vinculada ao progresso e desenvolvimento do Brasil, uma vez que para atender a

todas dificuldades identificadas e às características existentes de cada região que compõe

Mato Grosso, não teriam condições de padronizar e estabelecer os mesmos critérios para esta

modalidade de ensino.

A zona rural do Estado de Mato Grosso sofreu com o desprezo das políticas públicas de

educação desse período, à medida que não tinham material adequado para o seu

funcionamento, não havia facilidade na comunicação entre os professores e as Diretorias

Gerais, e a infraestrutura dos prédios escolares eram precárias. Além de não considerarem as

ruralidades que se faziam presentes. Todavia, o ensino rural permaneceu como enfoque nos

discursos dos governantes, como uma de suas preocupações principais, mas que na prática

poucas soluções eram estabelecidas.

Considerações Finais

Os resultados preliminares nos possibilitam analisar que naquele período ao se instituir

uma Escola Primária Rural em Cuiabá, e em geral no Estado de Mato Grosso, não se levavam

em consideração as ruralidades de cada região, e as consequências eram inevitáveis no

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cotidiano dos docentes e discentes, por se constituírem em realidades distintas e não

atenderem as demandas específicas para a efetivação do ensino com qualidade.

Assim, o período do Estado Novo foi marcado pelo seu regime autoritário, no qual

repercutiu nas políticas educacionais, e em problemas que poderiam ser efetivados através

das intervenções diretas do Governo Federal em trazer possíveis soluções articuladas aos

representantes dos Estados. Mas foi perpetuado o ideário conservador sem considerar as

heterogeneidades presente em nosso território.

Para que fosse plausível ocorrer a melhoria em conformidade com a expansão das

escolas, seria necessária a articulação entre as políticas sociais, econômicas e ações entre os

Estados que integram o Brasil, visando amenizar as desigualdades que eram latentes.

Acreditamos que as Mensagens e os Relatórios utilizados enquanto fonte de coleta de

dados trazem contribuições enriquecedoras, pois descrevem sob o ponto de vista dos

Governantes e Interventores Federais a forma como estava se configurando a educação rural

no Estado de Mato Grosso naquele período. Porém, em muitos trechos percebemos a

dicotomia existente entre o discurso e a prática que ocorriam no sistema educacional e as

dificuldades encontradas no cotidiano de alunos e professores.

Referências

ALVES, Laci Maria Araújo. Nas trilhas do ensino. Cuiabá: EdUFMT, 1998. CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. In: Estudos Sociedade e Agricultura, 11, outubro 1998: 53-75. <Disponível em: http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/index.php/esa/article/viewFile/135/131>. Acesso em: 15 fev. 2017. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. BURKE. Peter. O que é História Cultural? Tradução: Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 MATO GROSSO. Regulamento da Instrução Pública Primária. Arquivo Público de Mato Grosso – APMT, Cuiabá – MT, 1927. ______. Mensagem apresentada a Assembléia Legislativa lida na abertura da 3ª sessão ordinária da sua 1ª legislatura, pelo Interventor Federal do Estado de Mato Grosso – Cap. Manoel Ary da Silva Pires. Arquivo Público de Mato Grosso – APMT, Cuiabá – MT, 1937.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 2391

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