arquivos da derrota o cinema pos-ditatorial no brasil e na argentina - maria luiza rodrigues souza

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1 MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA ARQUIVOS DA DERROA: O CINEMA PÓS DI A ORIAL NO BRASIL E NA ARGEN INA

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    MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA

    ARQUIVOS DA DERROA:O CINEMA PSDIAORIALNO BRASIL E NA ARGENINA

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    COMISSO DE PROJETO EDITORIAL

    Coordenador

    Antnio Motta (UFPE)

    Cornelia Eckert (UFRGS);Peter Fry (UFRJ) e

    Igor Jos Ren Machado (UFSCAR)

    Coordenador dacoleo de e-books

    Igor Jos de Ren Machado

    Conselho EditorialAlfredo Wagner B. de Almeida (UFAM)

    Antonio Augusto Arantes (UNICAMP)

    Bela Feldman-Bianco (UNICAMP)

    Carmen Rial (UFSC)

    Cristiana Bastos(ICS/Universidade de Lisboa)

    Cynthia Sarti (UNIFESP)

    Gilberto Velho (UFRJ) -in memoriam

    Gilton Mendes (UFAM)

    Joo Pacheco de Oliveira(Museu Nacional/UFRJ)

    Julie Cavignac (UFRN)

    Laura Graziela Gomes (UFF)

    Llian Schwarcz (USP)

    Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ)

    Mriam Grossi (UFSC)

    Ruben Oliven (UFRGS)

    Wilson rajano (UNB)

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA

    Diretoria

    PresidenteCarmen Silvia Rial (UFSC)

    Vice-Presidente

    Ellen Fensterseifer Woortmann (UnB)

    Secretrio Geral

    Renato Monteiro Athias (UFPE)

    Secretrio AdjuntoManuel Ferreira Lima Filho (UFG)

    Tesoureira Geral

    Maria Amlia S. Dickie (UFSC)

    Tesoureira Adjunta

    Andrea de Souza Lobo (UNB)

    DiretorAntonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ)

    Diretora

    Marcia Regina Calderipe Farias Rufino (UFAM)

    Diretora

    Heloisa Buarque de Almeida (USP)

    Diretor

    Carlos Alberto Steil (UFRGS

    www.abant.org.br

    Universidade de Braslia. Campus Universitrio Darcy Ribeiro - Asa Norte.Prdio Multiuso II (Instituto de Cincias Sociais) rreo - Sala B-61/8.

    Braslia/DF Cep: 70910-900. Caixa Postal no: 04491.Braslia DF Cep: 70.904-970. elefax: 61 3307-3754.

    Diagramao e produo de e-book

    Mauro Roberto Fernandes

    Preparao de originais e reviso:

    Cnone Editorial, 2014.

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    ARQUIVOS DA DERROA:

    O CINEMA PSDIAORIALNO BRASIL E NA ARGENINA

    MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA

    Coedio:

    Apoio:

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    978-85-87942-17-3 / XML

    978-85-87942-16-6 / MOBI978-85-87942-15-9 / EPUB

    978-85-87942-14-2 / PDF

    S7293a

    Souza, Maria Luiza RodriguesMaria Luiza Rodrigues Souza (Org.). Arquivos da Derrota: O cinema ps-ditatorial

    no Brasil e na Argentina; Braslia - DF: ABA, 2014.

    3.55 MB ; pdf

    ISBN 978-85-87942-14-2

    1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Cinema. I. Ttulo.

    CDU 304CDD 300

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    SumrioPRLOGO ............................................................................6INRODUO ....................................................................... 10

    Escolhas .........................................................................23

    CAPULO 1CINEMA E ANROPOLOGIA .................................................... 29

    Encenao.....................................................................42Notas sobre as ditaduras e a questo dos arquivos ......... 53Polticas flmicas ............................................................68

    CAPULO 2ARGENINA .........................................................................85Famlias e desaparecidos ................................................ 85A poltica em La historia oficial ....................................... 89Cinema e terror: Garage Olimpo.....................................100Kamchatka: lugar de resistncia ....................................128

    CAPULO 3BRASIL ................................................................................154Brasil derrota e esquecimento: por que lembraro passado? .....................................................................154emas brasileiros no contar da ditadura .........................162Passado e ao poltica em Ao entre amigos..............165Quase dois irmos: incomunicabilidade e dualismo ....... 171

    Cabra cega: isolamento e luta ........................................189

    CAPULO 4CONRASES ENRE FILMES BRASILEIROS E ARGENINOS ...... 202

    Los rubios e o trabalho da memria ...............................207Potestade as diferentes verses sobre o passado ..........209Filmes e testemunho ...................................................... 206

    FILMESARQUIVO E MEMRIA ............................................. 214

    REFERNCIAS ......................................................................233Filmografia .....................................................................246

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    PRLOGO

    na tessitura da gratido que escrevo este prlogo para

    o livro da antroploga Maria Luiza Rodrigues Souza. Gratido

    porque a autora me acompanha, no seu priplo, na solitriae difcil tarefa de colocar em dilogo, a partir de seus tex-tos de cultura, duas naes que, prximas e abismalmente

    afastadas, representam para mim um trnsito constante e,por vezes, doloroso de por vida. Brasil e Argentina, irms e

    desconhecidas, como filhas de me comum nuestroameri-

    cana porm criao distante, como resultado da coloniza-o ultramarina que suas paisagens sofreram e dos caminhos

    que suas fundaes republicanas percorreram e imprimiramnelas destinos que as separaram mais e mais. Muitos somos,

    no Brasil e na Argentina, os que buscamos formas de dilo-go, mtua compreenso e conhecimento entre essas duas

    irms que a histria tanto distanciou. Repetidos encontros edesencontros entre elas, mal-entendidos, falsas semelhan-

    as e esquecidos parentescos desorientam esses intentos.A navegao entre esses dois curiosos continentes, como

    so a Argentina e o Brasil, se encontra, sem dvida, eivadade equvocos. So precisamente esses equvocos os que se

    desmontam na anlise inteligente e rigorosa que Maria Lui-za Rodrigues Souza realiza para, a partir dela e nunca antes,

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    comparar os cinemas nacionais como textos culturais de umapoca particular que as duas irms percorreram juntas, po-

    ca de catstrofe poltica, moral e humana.Uma reflexo sofisticada se desdobra assim sob os olhos

    do leitor. Destaco aqui sua metodologia complexa e acerta-da, porque leva em conta que as duas filmografias sobre ummesmo perodo histrico no so propriamente comensur-veis sem uma mediao que construa um solo comum para

    ambos termos da comparao, para ambos produtos de cul-tura. somente a construo analtica desse horizonte co-mum mediante a ideia derrideana de arquivo o que, comdificuldade, permitir algum tipo de equivalncia e compara-o. Descobre, ento, a nossa autora, que cada uma de essasfilmografias postas a conversar constitui um tipo prprio e

    diverso de arquivo, j que ambos operam, no presente, comofunes diferentes, ainda quando falam de um referente his-trico comum. Eis aqui uma dificuldade caracterstica queenfrentamos todos quantos teimamos em conferir inteligibi-lidade a nossos trnsitos entre ambas naes: um referenteigual - nesse caso o perodo ditatorial mais recente - pro-

    cessado e transformado em signo de outra coisa pela diges-to histrica de cada uma dessas naes.

    O arquivo brasileiro, a autora conclui, coloca o prota-gonismo numa vanguarda formada por uma minoria de jo-vens esclarecidos da sociedade, diferenciados da sociedadepela atividade militante. Como tais, essas agrupaes veem

    seu projeto insurgente fracassar e so retratadas pelos fil-mes como um diacrtico de uma poca terminada e de uma

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    empreitada que fracassou, um tempo encerrado, um episo-dio histrico com principio e fim. Esses protagonistas e seu

    projeto caracterizaram um perodo interessante, dramtico,mas demarcado. O arquivo se constitui assim como ndicede um presente postulado como sem filiao com relao aesse passado, livre da sua parentalidade, solto, no neces-sitado desse tempo mais que como narrativa de interessedramtico, quase ficcional. O presente, portanto, nesse ar-

    quivo, fruto de uma gestao independente e no filiada aopassado relatado nos filmes estudados. Produto de gestaoe gerao independente, o presente que se deriva do arqui-vo da filmografia brasileira sobre o perodo do estado auto-ritrio no se constri emparentado com os quase-ficcionaiseventos protagonizados por agrupaes de jovens no tempo

    que o precedeu. O tema emoldurado como assunto dejovens atpicos e desvinculados, por seu acionar e seu tipo deagrupao, da sociedade como um todo. O protagonismo representado nos filmes como prprio de grupos peculiares,que desenvolveram uma cultura prpria e diferenciada comrelao norma social.

    Os filmes argentinos, apesar de tratar de uma poca co-mum, so, enquanto arquivo, pautas de outra ordem, e opresente deles resultante , portanto, um outro presente ra-dicalmente diverso do brasileiro. al o efeito do arquivo:seu referente o mesmo, mas a forma em que o arquiteta elocaliza outra. Ao enraizar os acontecimentos da insurgnciana vida das famlias, vincula e enraza aqueles, de forma ine-vitvel, vida e histria de toda a sociedade. Este arquivo

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    no se constitui em ndice de um presente sem filiao comrelao ao passado insurgente, mas, muito ao contrrio, a

    parentalidade desse passado com relao ao hoje garantidapela memria familiar e as pegadas da histria na intimidadedas pessoas. Vida poltica e vida familiar se encontram aquiferreamente entrelaadas na imaginao coletiva. A narrati-va flmica tece assim um caminho onde no h possibilidadede um presente que resulte de uma gerao independente e

    desvinculada do passado de luta.Belo e criterioso livro que no evita complexidades e no

    escorrega na armadilha das aparentes similitudes de um tem-po e de uma experincia histrica comum. Argumento que,com elegncia e eficincia nos adverte e nos convence de queesse referente comum transmutado, pelo tratamento ci-

    nematogrfico, em documentos de cultura completamenteopostos. Processos comuns, sociedades conduzidas a umadiferena diametral pelo efeito da representao.

    Rita Laura Segato

    Antroploga argentina

    Professora da Universidade de Braslia desde 1985.Maio de 2014

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    INRODUO

    as construes e codificaes do mundo artstico no excluemreferncias a uma vida social comum. Fices cinematogrficas

    inevitavelmente trazem tona vises da vida real no apenas sobreo tempo e o espao, mas tambm sobre relaes sociais e culturais.

    (Shohat; Stam, 2006, p. 263)

    a constituio de um objeto narrativo, por mais anormal ou inslitoque seja, sempre um ato social por excelncia e como tal carrega

    atrs ou dentro de si a autoridade da histria e da sociedade.

    (Said, 1995, p. 117)

    Neste livro, proponho pensar como os cinemas brasileiro e

    argentino contribuem para a disseminao de narrativas queesto imbricadas no fazer histrico e poltico. Busco tratar

    os filmes brasileiros e argentinos que elaboram e trabalham

    os respectivos perodos ditatoriais desses pases, a fim de,ao analis-los, discutir os inter-relacionamentos do cinema

    sobre a ditadura e as reescritas, rearticulaes e dinmicas

    das narrativas da nao como socialidade. omo a noo desocialidade tal como abordada por Viveiros de Castro (2002)

    em artigo dedicado a rastrear como a antropologia vem tra-

    balhando o conceito de sociedade. Contemporaneamente, aantropologia tem preferido negar concepes essencialistas,

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    passando a adotar a noo de socialidade: sociedade comoordem (instintiva ou institucional) dotada de uma objetivida-

    de de coisa, preferem-se noes como socialidade, que ex-primiriam melhor o processo intersubjetivamente constituti-vo da vida social (Viveiros de Castro, 2002, p. 313).

    Utilizo as expresses ditadura, mquina ditatorial egoverno militar em lugar de outras denominaes, comoautoritarismo e Estado burocrtico-autoritrio, privilegian-

    do o fato de que o poder poltico passou a ser exercido porsetores de comando hierarquicamente superiores das ForasArmadas, com ativa participao de setores no militares. Asquestes conceituais, ao se tratar dos processos ditatoriaisna Amrica Latina, so amplas e, para inserir tal problemticano bojo desta introduo, recorro s contribuies de Fausto

    e Devoto (2004) e Pascual (2004).ais discusses indagam qual o tipo de organizao as-

    sumida pelo Estado no decorrer dos governos ditatoriais im-plantados na Amrica Latina nos anos 1960 e 1970. Assim que, nos lembram Fausto e Devoto (2004, p. 395), GuillermoODonnell conceituou os Estados militares brasileiro e argen-

    tino como representantes de um tipo especfico de Estadoautoritrio o Estado burocrtico [...]. A inteno do Estadoburocrtico-autoritrio era organizar a dominao de classeem favor de fraes superiores de uma burguesia altamenteoligopolista e transnacional (Fausto; Devoto, 2004, p. 395).Para atingir tal objetivo, as ditaduras, como Estados desse

    tipo, ainda segundo os mesmos autores, tomaram medidasrepressivas contra setores populares politicamente organiza-

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    dos, empreenderam reordenaes econmicas e utilizaramamplamente a violncia, a censura e a supresso dos direitos

    constitucionais.A nfase no modelo de organizao do Estado pode enco-

    brir outras dimenses, tais como as da vida social durante avigncia das ditaduras. As aes dos Estados ditatoriais pro-vocaram, entre outros efeitos, a disseminao de uma culturapoltica do medo no mbito da vida social. esse o panorama1

    que informa parte das crticas dirigidas ao modelo explicativocontido na ideia de Estado burocrtico-autoritrio. Conside-rando que todo Estado , em sua medida, autoritrio e queage burocraticamente, quais seriam, ento, as caractersticasdessas ditaduras?

    Ao tratar da ditadura argentina, Pascual (2004, p. 19) criti-

    ca a conceituao de Estado burocrtico-autoritrio e inserea ideia da prtica do terrorismo de Estado como constitutivada qualidade desses governos. odos os sucessivos golpes deEstado impetrados pelas Foras Armadas nos pases latino--americanos, nas dcadas de 1960 e 1970, inspiravam-se e

    justificavam suas aes em doutrinas de segurana nacional.

    O que a autora enfatiza para tratar do tipo de regime instau-rado na Argentina vale tambm para o Brasil e outros pases:

    O regime militar do qual padeceu a Argentina entre 1976e 1983 no foi apenas mais um exemplo do autoritarismolatino-americano. O que aconteceu l foi o resultado de umplano deliberado e consciente, elaborado e executado pelas

    1 Conforme Bakhtin (2002), do carter socialmente constitudo edialgico de todo ato enunciativo.

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    prprias Foras Armadas do pas, no intuito de proporcionarmudanas profundas nas estruturas sociais e nas formas de or-ganizao poltica, baseadas na represso violenta, e conseguiruma relao entre o Estado e o homem mediada pelo terror.(Pascual, 2004, p. 31-32)

    A doutrina de segurana nacional insere a tnica de os

    governos ditatoriais verem o perigo no interior da prpria so-

    ciedade: os inimigos so elementos internos que, em nome

    da segurana nacional, se devem combater. Assim, valorizara ao do Estado ditatorial como uma ao de terror permite

    incluir a esfera da vida social e a organizao estatal nas dis-

    cusses acerca do que caracterizaria as ditaduras do perodo.

    A considerao das configuraes de sentido que os proces-

    sos culturais nessas sociedades passaram a assumir ganha

    importncia para a definio do tipo de ditadura instauradanesses pases.

    As aes ditatoriais induzem a formao de uma cultura

    do terror que passa a cobrir a vida social. Nessa perspectiva,

    as ditaduras produzem, pela extrema violncia de suas aes,

    eventos traumticos, rupturas. Nos perodos ps-ditatoriais,

    ocorre um processo de releitura sobre o passado ditatorial, oqual procura reelaborar sentidos ao dar vazo a disputas de

    memria e insere a discusso sobre a necessidade de aes de

    reparo e justia. Esse processo articula narrativas e memrias

    anteriormente postas margem, reprimidas. Essa articulao

    se faz conflitualmente, pois alguns grupos procuram impor

    hegemonicamente suas verses sobre as de outros grupos.Um dos campos de manifestao em que as narrativas so

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    dialogicamente trabalhadas o cinematogrfico: as histriasque os filmes elaboram sobre o perodo esto vinculadas aos

    encadeamentos da vida social nas ps-ditaduras.Cinema aqui tomado como uma complexa elaborao

    artstica que envolve produo, distribuio, exibio, de-sempenho e criao de peas especficas, cujo resultado, ofilme, pode ser trabalhado em seu mbito interno, sem perderde vista a relao que h entre essas esferas. Interessam-me,

    no conjunto do cinema, os seus produtos, ou seja, os filmes,para delinear a maneira como as histrias, as tramas, os per-sonagens, alm do modo como as cenas so montadas e ossons utilizados, so endereados ao pblico espectador. Ocontedo flmico, os enredos, a caracterstica do processo defilmagem e os temas postos em cena mantm relao com os

    locais em que se realizam os filmes, na medida em que estescomo matria artstica formulam tpicos imaginativos asso-ciados com as coletividades em que so produzidos. Comosublinha Benjamin (1994, p. 172), em seu estudo sobre a re-produtibilidade tcnica da imagem, o filme uma criao dacoletividade.

    O grupo dos filmes que elaboram histrias a respeito dasditaduras no Brasil e na Argentina parte integrante dos mo-dos como certas narratividades da nao esto sendo disse-minadas. Inscrevo tais narratividades em articulao com trsvetores temticos: memria e arquivo, violncia e crueldadee reelaboraes do poltico na fico. Ao trabalhar o passado

    ditatorial, os filmes esto, sobretudo, elaborando o que estfora dele e, ao mesmo tempo, naquele passado imbricado, o

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    que eleito e construdo diegeticamente constitui uma evo-cao doe parao presente. Nessa perspectiva, proponho tra-

    tar os filmes que tm como tema o passado ditatorial comofilmes-arquivo, no sentido dado noo de arquivo propostapor Derrida (2001, p. 48): material que, por organizar e conteritens do passado, voltado ao presente e, assim, pode prem questo a chegada do futuro. A indagao que essa no-o de arquivo propicia poltica.

    Os filmes-arquivo trabalham com memria, que ma-tria construda no presente. Memria aqui entendida, emprimeiro lugar, com base nas contribuies de Halbwachs(2004), que ressalta o papel exercido por ela nos processosde coeso social. Para o autor, a solidariedade social enfa-tizada e a lembrana do passado est associada s constru-

    es sociais realizadas no presente e depende das relaesem uma comunidade afetiva.

    Como esses aspectos so uma das caractersticas dos tra-balhos da memria, prossigo as discusses tomando por basePollak (1989; 1992), o que me permite evidenciar as comple-xas interaes entre memria e polticas da diferena. Des-

    se modo, importante falar da participao dos atores queintervm na constituio das memrias e, assim, perceber oconflito que h entre memrias concorrentes.

    Por se tratar aqui das narrativas cinematogrficas sobre asditaduras, so importantes as contribuies de Jelin (2002)a respeito dos encadeamentos conflituosos da memria nas

    etapas ps-ditatoriais. Para a autora, nas ps-ditaduras seenfrentam mltiplos atores e diferentes grupos sociais e pol-

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    ticos, que relatam os acontecimentos do passado, assim ex-pressando seus projetos, seus anseios.

    Por reunirem temtica relativa s ditaduras, os filmes or-ganizam imaginativamente, pela emoo, uma memria su-plementar, a qual se refere tanto quele passado como aosmomentos posteriores, nas formas em que o cinema pensaos eventos da ditadura. Relacionam-se a uma disputa entrea memria articulada e posta em cena e as outras memrias

    relativas ao perodo. Alm do mais, na condio de filmes--arquivo, so matrias que articulam o poltico, indepen-dentemente da condio de suas narrativas estarem ou nopresas a formas mais tradicionais, como as predominantes nocinema comercial.

    Ao olhar o perodo da ditadura e procurar trabalhar artis-

    ticamente por meio de imagens e sons a experincia socialvivida naquela ocasio, o cinema est tambm propagandofalas e proposies sobre as etapas ps-ditatoriais, contri-buindo, assim, para refazer e repensar a esfera da experinciapoltica que foi reprimida e desfeita naquela poca. rata-sede uma relao entre o passado e o presente que se mos-

    tra tensa. No mbito dessa relao, os temas escolhidos e ospredominantes em uma e em outra cinematografia esto, demodo indelvel, formatados pelas contingncias que essasduas sociedades encontram nas prticas ps-ditatoriais. aisprticas tambm so decorrentes das opes e dos aconteci-mentos daqueles anos.

    Os filmes argentinos discutidos aqui abordam o tema daditadura por meio do enfoque na famlia. Esta opera como um

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    significado conhecido que se estende ao universo da experi-ncia ditatorial, a qual aparece como uma opacidade, a prin-

    cpio. Por hiptese, podemos dizer que, ao falar da ditaduracom esse enfoque, os filmes esto tratando alegoricamenteda nao. No caso dos filmes brasileiros, surge outro tipo dequesto: as histrias que se debruam sobre o passado dita-torial so construdas por intermdio da nfase nos grupos demilitantes que se opuseram e que lutaram contra a ditadura.

    al nfase remete s discusses em aberto no Brasil, ques-tes no solucionadas a respeito das impunidades cometidasno passado ditatorial.

    Os filmes participam de uma dinmica narrativa que en-volve a cultura em um mundo internacionalizado, exigindo,desse modo, reconhecer aquilo que Bhabha (2000) chama

    de the right to narrate. Essa proposio possibilita pensar acomplexa rede narrativa em que estamos inseridos, seus en-cadeamentos e disputas por legitimar algumas narrativas eno outras. No interior dessas disputas, as artes, entre outrasesferas, desempenham importante papel:

    Artes e humanidades contribuem para o empreendimento

    nacional atravs do desenvolvimento de um direito de nar-rar a autoridade de contar estrias que possibilitam a teiada histria e mudanas em seu fluxo. Para falar da narrativacomo o esprito em movimento de cultura preciso reco-nhecer que esta tanto de elite ou popular, Don Giovanni ouStar Wars, a prpria alma da criatividade cultural que colocasobre ns o peso da representao histrica e a responsabilida-de de interpretao esttica e tica.

    [...]

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    O direito de narar no simplesmente um ato lingustico; tambm uma metfora para o fundamental interesse humanona liberdade, o direito de ser ouvido, o direito de ser reconheci-do e representado. Tal direito pode habitar a incerta pinceladade um artista, ser percebido num gesto que corrige um movi-mento da dana ou tornar-se visvel num ngulo da cmeraque faz parar nosso corao. Subitamente, na pintura, na danaou no cinema, voc levado a renovar seus prprios sentidoscomo pessoa e seu modo de ver e, nesse processo, voc entendealgo profundo sobre si mesmo, sobre o seu momento histrico,

    sobre o que d valor a uma vida em uma cidade particular, emum determinado tempo, em condies sociais e polticas parti-culares. (Bhabha, 2000; traduo nossa)

    comum em antropologia a utilizao da noo de narrativacomo a fala que o/a antroplogo/a obtm em suas interlocuesnos grupos com os quais trabalha. Narrativas so, ento, atos

    socialmente simblicos e mltiplos que se disseminam por meiode formas escritas e orais, elaboram modos de ver e viver nomundo e se articulam em campos de disputa. Nas configuraessocioculturais das naes, algumas narrativas preponderam e sedisseminam hegemonicamente. Procuro aqui chamar a atenopara as articulaes dialgicas1 das narrativas flmicas sobre o

    passado ditatorial com outras narrativas em que a nao hori-zonte ou mesmo foco principal.

    Os filmes que abordam histrias da ditadura manejam, dealguma forma, a violncia que o passado evoca. Com relao crueldade, penso na proposta do filsofo Rosset (1989, p.17) de ressaltar a natureza intrinsecamente dolorosa e tr-

    gica da realidade e, ao mesmo tempo, a impossibilidade dedescrev-la e abarc-la inteiramente. Esse um ponto im-

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    portante nos filmes sobre a ditadura que tentam exprimirartisticamente ocorrncias de ordem extrema: torturas, se-

    questros, desaparecimentos, guerra. Na expresso cruel deeventos extremos j est presente, tambm, a opo maisou menos declarada de trabalhar o encadeamento cnico demodo a explicitar a violncia desses eventos ou, ento, comoacontece em algumas obras, de referir-se a eles por meio deartifcios indiretos.

    O ponto central , pois, como os filmes elaboram discur-sos imaginativos sobre a experincia ditatorial no Brasil e naArgentina. Contedos de saber e afeto da vida comum, nos-sas disposies e capacidades, a forma como nos inserimos ecomo vemos ns mesmos e os outros, o modo como percebe-mos o mundo, nos so inculcados por meios simblicos varia-

    dos. Dentre esses, as histrias de um modo geral, sejam as quefazem parte do que consideramos nosso espectro mais ntimo,sejam as que fazem parte das redes em que nos encontramos,so formas pelas quais nossos pertencimentos e apegos, assimcomo nossas disjunes e cises, tomam forma. Um conside-rvel conjunto dessas histrias gerado pelas prticas midi-

    ticas massivas, que podem incluir formas artsticas variadas,entre as quais se encontra o cinema narrativo comercial, cam-po do qual os filmes que analiso foram extrados.

    Para chegar a esta proposta, parti de um levantamentogeral, com cerca de oitenta filmes. Destaquei, ento, aquelesque elaboravam histrias focalizando aspectos do passado

    recente no Brasil e na Argentina, o que conduziu as minhasindagaes para as relaes entre poltica e fico.

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    A inteno de trabalhar com filmes a respeito das ditaduras

    foi instigada pela percepo de certas continuidades das prti-

    cas violentas e autoritrias nas ps-ditaduras. Desse modo, aleitura do trabalho de Huggins (2004), a respeito da memria

    de torturadores e agentes policiais que participaram da re-

    presso durante a ditadura brasileira, foi inspiradora. Em suas

    concluses, a autora aborda as continuidades entre passado e

    presente percebidas nos depoimentos de torturadores:

    Assim, embora o discurso dos policiais sobre a tortura eo assassinato tenha mudado na medida em que o Brasilautoritrio foi substitudo pela redemocratizao formal e aguerra contra a subverso por uma guerra contra o crime, a autonomia dos policiais continua a permitir que pro-fissionais da polcia no Brasil cometam graves violaes dosdireitos humanos. Em outras palavras, a violncia policial de

    um perodo anterior no perdeu o vigor nem mesmo durantea redemocratizao do Brasil. (Huggins, 2004, p. 201-202)2

    Entendo que as experincias entre os anos de 1964 e 1985, no

    Brasil, e entre 1976 e 1983, na Argentina, provocaram rupturas e

    constrangimentos no mundo civil e nas esferas da convivncia

    poltica. Foi perseguida toda forma de diferena existente em

    relao s propostas que eram alinhadas pelos governos ditato-

    riais, com o propsito preciso de extermin-la para, assim, con-

    solidar os projetos poltico-econmicos de mercado nos quais

    estavam envolvidos os grupos militares e seus aliados civis.

    2 Nesse sentido, cito a ao policial desmedida nos acontecimentos

    envolvendo presos organizados e policiais em So Paulo no inciode 2006.

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    Nas etapas ps-ditatoriais, as fices cinematogrficasso uma das formas de produo de novos sentidos em face

    da experincia passada. Cada cinematografia, a seu modo,oferece termos em que as socialidades so reconstrudas ereinterpretadas por intermdio da leitura que o cinema fazdaquele passado.

    Entre as diferentes ordens de coexistncia que interageme constituem essas socialidades, quais questes e aspectos

    relativos s ditaduras so levados para as telas? Qual o cam-po entre filme e pblico que as obras permitem vislumbrar?Como?

    A noo de modo de endereamento proposta por Eliza-beth Ellsworth (2001), ao tratar de teorias do cinema e suaaplicao nas prticas educacionais, crucial na discusso

    dos filmes sobre a ditadura, porque aponta uma relao entrefilme e pblico. Ellsworth (2001, p. 11; grifo da autora) partedo tpico quem este filme pensa que voc ? para explicitaro modo de endereamento como um conceito que se referea algo que est notexto do filme e [...] age de alguma formasobre seus espectadores imaginados ou reais, ou ambos.

    Segundo a autora, o evento do endereamento ocorre, emum espao que social, psquico, ou ambos, entre o texto dofilme e os usos que o espectador faz dele (Ellsworth, 2001,p. 13). Assim, a noo mais um evento e um processo queabarca um entrelugar, uma instncia que no est situadanem no filme nem na plateia, mas entre essas esferas. Esse

    evento se faz notar, entre outras, nas obras que procuramabordar o perodo ditatorial.

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    Ao apresentar as principais correntes que estudam e va-lorizam o/a espectador/a nas teorias do cinema, Stam (2003,

    p. 256) nos lembra de que os espectadores moldam a expe-rincia cinematogrfica e so por ela moldados, em um pro-cesso dialgico infinito. Mesmo que seja de modo no expli-citado, os filmes pensam em um/a espectador/a ideal, soobras realizadas para certo pblico. Assim, poderamos dizertambm que pensam a nao.

    So vrias as instncias que permeiam a relao propostaentre cinema e ditadura. Uma delas diz respeito construo,pelos filmes, dos tipos de experincias que as telas dizem cap-tar do passado. Outro eixo o da elaborao das tramas: naforma como so filmadas, como seus temas e protagonistasso concebidos, como certas representatividades sociais esto

    presentes no material flmico, reinscritas e recicladas. As pos-sibilidades de leitura so mltiplas e a que escolhi diz respeito imaginao (aqui entendida no como quimera ou conjetu-ra enganosa, mas como construo que permite viver e ver omundo) da nao como espao retalhado, no naturalmentecoeso, que se refaz nas telas e a partir delas ao tratar de rup-

    turas, rearranjos e articulaes que as ditaduras ocasionaram.A noo de imaginao adotada aqui se refere de ho-

    rizontes imaginativos, desenvolvida por Crapanzano (2004).Ressalto sua proposio de considerarmos a imaginao,por intermdio da diferena cultural, como instncia propi-ciadora de sentidos para a experincia humana, ao articular

    possibilidades e impossibilidades, fechamentos e aberturas. Aimaginao produz o possvel e o impossvel, produz e limita

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    modos de a experincia fazer sentido. Os horizontes imagi-nativos, trabalhados pelo autor como categorias de anlise

    histrica, intercultural e psquica relacionam, assim, a expe-rincia e suas interpretaes:

    Minha preocupao com a abertura e a ocluso, com amaneira como construmos, consciente ou inconscientemen-te, os horizontes que determinam o que experimentamos ecomo interpretamos o que experimentamos (se, de fato, po-demos separar a experincia da interpretao). (Crapanzano,

    2004, p. 2; traduo nossa)

    Interpretaes de eventos do passado ditatorial, ao seremconstrudas visual e sonoramente, permitem pensar sobre osvnculos entre o cinema e outras narrativas em que a imagi-nao articulada memria opera como leitura da experin-cia das ditaduras no Brasil e na Argentina.

    Escolhas

    A produo cinematogrfica deve ser entendida comoparte de implicaes culturais e polticas no sentido de ummapeamento daquilo que Said (1995, p. 95) denomina terri-

    trio que se encontra por trs da fico.Como o tema abordado para a escolha dos filmes a ditadu-

    ra, faz-se necessrio tomar certos cuidados ao compar-las.No possvel falar em ditadura mais ou menos benevolente.odo o processo repressivo, as alteraes provocadas na vidacultural, a conduo de toda a sociedade para a experincia de

    mercado tornam as ditaduras no Brasil e na Argentina, nessesaspectos, muito semelhantes. As diferenas dizem respeito ao

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    tipo de conexo que os militares permitiram e incentivaram emcada sociedade, aos planos de cada governo golpista. poltica

    de extermnio adotada na Argentina da ditadura corresponde-ria, em outro plano, a estratgia de conteno da sociedadecivil por longos anos na experincia brasileira, que tambm foihbil em polticas de extermnio e tortura. Em ambos os casos,os efeitos de desarticulao foram precisos.

    Optei por trabalhar filmes desses dois pases porque es-

    to situados em pontos estratgicos, simbolicamente, naspontas (Argentina, cujo territrio faz fronteira com o Brasile atinge o extremo sul do continente) e bordas (fronteirasbrasileiras no interior e seu grande litoral) da Amrica do Sul,e tm certas semelhanas em seus problemas socioecon-micos. Entre eles, h certas afinidades, como o fato de per-

    tencerem a uma parte da Amrica que apresenta caracters-ticas comuns em sua histria (foram colnias da Espanha e dePortugal), o que os inclui no sistema-mundo colonial (Dussel,2002; Mignolo, 2003), participando da constituio do ca-pitalismo e da construo da Europa como centro, alm departilharem uma condio subalterna nesse sistema.

    So pases que apresentam ciclos de crises polticas e eco-nmicas constantes, as quais so abordadas distintamentenos filmes argentinos e brasileiros. No primeiro caso, h dilo-gos frequentes que indagam que pais es este?, vea comoestamos nosotros, assim como temticas recorrentes sobredesemprego, crise institucional, entre outras. No caso bra-sileiro, essas abordagens so de outro tipo: filma-se a favela,o serto e a periferia das grandes cidades, mas os personagens

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    pouco falam explicitamente sobre o pas. Em adio a isso, o

    Brasil e a Argentina tiveram regimes ditatoriais intensos e isso

    trabalhado em suas cinematografias com graus de dedicaodiferenciados. Na Argentina, entre 1983 e 2002 foram produzi-

    dos cerca de quarenta filmes tendo a ditadura como tema;3no

    Brasil, cerca de vinte filmes enfocam a experincia do perodo.

    Em comum aos dois pases, registra-se uma pequena par-

    ticipao das mulheres como diretoras e/ou roteiristas. H

    tambm de ser mencionado o fato de que em um pas como oBrasil ainda pequena a participao da populao negra no

    cinema, seja na realizao, seja na temtica. Recentemente,

    foi lanado no pas o filme Filhas do vento(2005), que conta

    com atores/atrizes negros/as no elenco e trabalha uma his-

    tria centrada na vida de mulheres em que ecoam questes

    da escravido e do racismo. A participao da populao ind-gena na produo e realizao de filmes no atinge o sistema

    de mercado cinematogrfico tradicional, sendo, entretanto,

    intensa entre aldeias e nos circuitos acadmicos.4

    Dentro da variada produo cinematogrfica dos dois pases

    3 possvel encontrar uma relao de 35 filmes produzidos noperodo em um stio eletrnico governamental, do Ministerio deEducacin de la Nacin Argentina (), oque no acontece no Brasil.

    4 No Brasil, o projeto Vdeo nas Aldeias vem formando cineastas en-tre os povos indgenas e divulgando as realizaes entre aldeias epara os no ndios com o intuito de promover a devoluo da ima-

    gem para o prprio ndio. Mais informaes podem ser obtidas em:.

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    em anlise, alguns critrios foram usados para decidir com quais

    filmes trabalhar. O primeiro deles foi o acesso pessoal aos fil-

    mes. Apesar de crticos e cineastas afirmarem a existncia deum crescimento, um incremento significativo na produo ci-

    nematogrfica no Brasil e na Argentina, a distribuio das fitas

    no mercado latino-americano bastante deficiente.5Muitos dos

    filmes no chegam ao circuito comercial, ou sequer aos crculos

    mais cinfilos, como os dos festivais. Vrios no so encontra-

    dos em locadoras. Por isso, selecionei filmes que tivessem par-ticipado de festivais no Brasil, que fossem comercializados em

    locadoras e/ou tivessem sido exibidos no circuito nacional. Nem

    sempre isso foi possvel, pois alguns filmes argentinos no che-

    gam ao mercado brasileiro e tiveram de ser obtidos por interm-

    dio de amigos moradores naquele pas. O segundo critrio foi o

    impacto pessoal aliado ao tema da ditadura. A escolha foi guiadapelas marcas e sensaes que os filmes aos quais tive acesso fo-

    ram me provocando. Ademais, no caso da Argentina, encontrei

    discusses mais detidas na relao entre o cinema e as inter-

    pretaes sobre a ditadura. No o que acontece no Brasil, em

    que os textos crticos a respeito dos filmes relativos ao perodo

    tratam pouco das leituras que o cinema faz da ditadura. Por isso,a discusso neste livro tem muito de exploratria.

    5 Para uma discusso sobre produo, distribuio e exibio do ci-nema nos e entre os pases que integram o bloco do Mercosul, otrabalho de Silva (2007) apresenta dados importantes acerca dosproblemas ali enfrentados. Apesar de maiores em produo e

    circulao, Brasil e Argentina no escapam das questes enfren-tadas em maior grau por seus vizinhos, o Uruguai e o Paraguai.

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    Alm desses, fao referncia, ao longo do texto, a vrios

    outros filmes que tratam de outras temticas e que constam

    da relao geral de filmes apresentada ao final do livro.6Re-solvi tratar mais detidamente de Kamchatka(2002) por ver

    neste filme a expresso clara de como a famlia geradora de

    discursividades na cinematografia argentina sobre a ditadura.

    A obra corresponderia a um caso extremo de sntese no qual

    o tema da famlia percorre toda a trama. ambm mereceu

    destaque Garage Olimpo (1999), filme que est inserido emuma discusso acerca dos modos como a arte pode tratar da

    dor e da violncia. Nele h certa diluio do enfoque na fa-

    mlia em razo de a histria dar nfase quase documental

    priso, tortura e ao desaparecimento da protagonista.

    Da produo brasileira, destaco Cabra cega (2005), por

    corresponder tendncia mais caracterstica do trato queo cinema brasileiro d ditadura, ou seja, trabalhar a clan-

    destinidade radical e o seu extermnio.7Outro filme brasilei-

    6 Esta a relao dos filmes argentinos sobre a ditadura aos quaistive acesso: La republica perdida I(1983); La historia oficial(1985);La noche de los lpices (1986); La republica perdida II (1986);

    Aluap (1997); Garage Olimpo (1999); Botn de guerra (2000);Potestad (2001); Kamchatka (2002); Sol de noche (2002); Losrubios (2003); Hermanas (2004); Paco Urondo, la palabra justa(2004).

    7 No caso dos filmes brasileiros, a relao de filmes vistos a se-guinte: Que bom te ver viva (1989); Corpo em delito (1990);Lamarca (1994); O que isso, companheiro? (1997); Ao entre

    amigos (1998); Dois crregos (1999);Cabra cega (2005); Quasedois irmos(2005); Vlado, trinta anos depois(2005).

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    ro tambm mais detidamente analisado Quase dois irmos(2005), pelo fato de reunir duas condies interessantes na

    discusso sobre fico e poltica, sobre cinema e narrativasda nao: o enfoque na vivncia do evento ditatorial por meioda relao de dois amigos ao longo de vrias dcadas e o dis-curso sobre os liames entre ricos e pobres, brancos e negros.No tratamento dessa relao, fica salientada a problemticapungente da convivncia na diferena cultural, to presente

    nas interpretaes que o cinema brasileiro d nao.

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    CAPULO 1

    CINEMA E ANROPOLOGIA

    Ao tomar contato com as teorias do cinema, notei cer-

    tas similaridades entre elas e a perspectiva sob a qual colocomeu prprio pensar em antropologia: a necessidade de umdescentralizar, de sair do familiar em direo a outro lugar depercepo. Em antropologia, requisita-se um estranhamentodas categorias familiares e habituais de quem faz a pesqui-sa: relativiza-se o que dado como certo, natural, essencial.

    ambm, consagrou-se como um procedimento metodol-gico o que se denomina trabalho de campo, o qual, em tese,requer uma mudana de postura e do lugar de onde se olha,de onde se indaga; uma mudana, na maioria das vezes, ge-ogrfica e subjetiva. Em que pese uma tendncia mistifica-dora do mtodo do trabalho de campo, o quanto de um tipo

    de autoridade etnogrfica (Clifford, 1995) ele pode conferir aotrabalho, a questo poltica inserida na proposta de desnatu-ralizao pode e deve ser ampliada. rata-se de deslocamen-to calcado em uma reflexo mais crtica sobre essencialismose pr-conceitos.

    Dessa forma, h uma congruncia entre antropologia e

    cinema, uma vez que a necessidade de deslocamento con-dio tanto em uma como no outro. Em antropologia, estra-

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    nhar o familiar ou tornar familiar o que se encontra distan-te necessrio para desnaturalizar, relativizar. No cinema,

    preciso transportar-se para dentro do mundo construdopelo filme; viaja-se e, depois, retorna-se. anto a etnografiaquanto a cinematografia requerem um processo de viagem eretorno, de imerso em uma alteridade, em um outro lugar,em um outro mundo. Ao deslocamento exigido pela elabora-o etnogrfica, e tambm no exerccio de assistir e pensar

    um filme, segue-se o retorno necessrio, inscrito desde o in-cio do processo. No h uma imerso absoluta na alteridade,mas h uma desestabilizao necessria, um deslocamento,se a experincia flmica, etnogrfica, ou flmico-etnogrficanos tocar de alguma forma.1

    endo em vista as articulaes entre antropologia e cinema,

    preciso abordar alguns pontos concernentes noo de cultu-ra para indicar o campo a partir do qual se pode pensar uma an-tropologia do cinema comercial. A palavra cultura , de acordocom Williams (1985, p. 87; traduo nossa), uma das duas outrs mais complicadas palavras na Lngua Inglesa, devido aosusos variados e porque utilizada para expressar diferentes

    conceitos em diversas disciplinas e distintos e incompatveis sis-temas de pensamento. A origem da palavra colere, em latim,que pode significar habitar, cultivar, cultuar. Foi o sentido de ha-bitar que originou colonos, o que remete a um entrelaamentode cultura com colonizar, colecionar. Bosi (1992, p. 11) afirma

    1 A questo do deslocamento exigido pela antropologia e pelo cine-

    ma me foi sugerida em discusso e informao pessoal com Mar-celo R. S. Ribeiro.

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    que as palavras cultura, cultoe colonizaoderivam do mes-

    mo verbo latino colo, cujo particpio passado cultuse particpio

    futuro culturus. De qualquer forma, ambas as discusses ade Williams (1985) e a de Bosi (1992) a respeito da origem da

    palavra cultura tocam no que importante ressaltar, ou seja,

    a relao entre cultura e colnia.

    A concepo de cultura em antropologia est relacionada

    com os envolvimentos histricos e polticos com os quais o

    pensamento antropolgico se desenvolveu, e portadora deuma ampla variao de sentido, dependendo de sua afiliao

    matriz disciplinar.2 Grosso modo, h uma relao histri-

    ca, nem sempre explicitada, da antropologia com a poltica

    colonial, envolvimento esse que aparece nas atividades pro-

    fissionais. Alguns/mas antroplogos/as, cuja obra conside-

    rada clssica, trabalharam para governos coloniais em vrioslugares do mundo, como o caso de Evans-Pritchard, no

    Sudo de colonizao inglesa, inserido na escola britnica.

    Outros foram convidados e aceitaram participar como con-

    sultores polticos em pocas de guerra. Nesta ltima situao,

    encontra-se Benedict (1997), com seu trabalho sobre os pa-

    dres culturais japoneses, realizado a pedido do governo dos

    Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.

    Nesses termos, pode-se perceber um comprometimento

    interno prpria disciplina, que se relaciona, tambm, com

    2 Estou partindo da proposta de Cardoso de Oliveira (1997), mas

    entendo a matriz disciplinar como uma articulao tensa de umconjunto de paradigmas constitutivos da antropologia.

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    as tecnologias de reprodutibilidade das imagens, o mtodo detrabalho de campo e a ideia de cultura como cultivo.

    O impulso antropolgico de coletar informaes e objetosdas chamadas sociedades primitivas vincula-se a essa rela-o entre cultura e colnia. A antropologia consolida-se comoum dos saberes ocidentais conforme o que Dussel (2002)denomina sistema-mundo, estabelecendo a Europa comocentro e o resto do mundo como sua periferia. A atividade

    antropolgica inicia-se com a coleta de informaes e de ma-teriais ao redor do globo, formulando uma antropologia cujosentido intelectual vincula-se empresa colonial, assim comocontribui para a imaginao ocidental sobre o outro.

    preciso dizer que, mais ou menos at a segunda metadedo sculo XX, a antropologia ocupava-se, preferencialmente,

    das chamadas sociedades exticas e/ou primitivas, s depois que passou a voltar seus instrumentos de pesquisa e suasquestes para a alteridade prxima. Ainda assim, conservoucerto sabor colonial, uma vez que frequente percebermosque, ao estudar a sociedade dita complexa, dedicamosateno aos grupos menores: camponeses, favelados,

    pobres, marginais, mulheres, entre outros. A expressosociedade complexa surge para marcar uma diferena en-tre as sociedades tradicionalmente estudadas na antropolo-gia, as chamadas sociedades primitivas, simples ou semescrita, e as do/a prprio/a antroplogo/a. Indica, alm dasimples nomeao, um julgamento, uma qualificao discri-

    minatria, pois a complexidade de qualquer forma social seimpe a toda tentativa de apreenso.

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    No desenvolvimento desse saber ocidental a respeito dooutro, arte e antropologia conectam-se e se, por um lado,

    categorias ocidentais do mundo da arte so usadas para tra-tar das outras sociedades, por outro, a arte ocidental se servedo trabalho antropolgico para reorientar e rediscutir suasprprias atividades. Clifford (1995, p. 260) mostra a intrincadarelao entre a descrio e a coleta material que muitas vezesa acompanha, como uma forma colecionadora que, analo-

    gamente, pode ser aproximada de fetichismo como exibio,uma vez que [e]n Occidente, sin embargo, la recoleccin hasido desde hace mucho una estrategia para el despliegue deun sujeto, una cultura y una autenticidad posesivas.3

    Ao lado das descries e anlises culturais a respeito deoutros povos, houve preocupao varivel e importante com

    o que chamo de visualidade reveladora sobre eles. Essavisualidade, por um lado, aparece na coleta de material dassociedades, na montagem de colees, na exibio de peas(como material etnogrfico e/ou artstico, pois as categoriaspodem se confundir) e, por outro, est envolvida com as tec-nologias de reprodutibilidade da imagem (fotografia e cine-

    ma) que acompanham as atividades do trabalho de publica-o e exibio antropolgicas.

    No desenvolvimento da tarefa observadora da antropolo-gia, com sua nfase no desenvolvimento do trabalho de campo

    3 Ao no traduzir as citaes que foram, originalmente, escritas emespanhol, procurei evidenciar o bilinguajar (Mignolo, 2003) das

    narrativas da memria e da histria na experincia brasileira e ar-gentina sobre a violncia ditatorial, o terror de Estado.

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    na primeira metade do sculo XX, ocorreu o estabelecimentodo mtodo denominado observao participante. Foi tam-

    bm quando se constituiu, de modo mais amplo e definido,um tipo especfico de autoridade etnogrfica, um modo deescrita e registro dos dados obtidos em que prevalece umestilo de representao legitimado pela ideia de que assim,

    desse modo, porque eu estive l e pude ver/observar. Essemodo de autoridade etnogrfica se insinua na forma intensi-

    va do trabalho de campo como norma metodolgica da antro-pologia, com sua tcnica correlata de obteno de dados por

    intermdio da observao no local (Clifford, 1995).

    Se atentarmos para os significados de observar no dicio-nrio, verificaremos um destaque para as aes de ver, olhar

    e espiar. Do latim observare, a definio cobre, por exemplo,

    examinar minuciosamente, olhar com ateno; espiar, es-preitar; fazer ver; examinar atenta e minuciosamente e vigiar(Houaiss; Villar; Franco, 2001). Chamo a ateno para a inter-

    face entre coletar e ver, que permeia a prtica antropolgica.As tecnologias de reprodutibilidade da imagem (fotografia ecinema) surgiram e se desenvolveram na mesma poca em

    que a antropologia comeava a tornar-se disciplina acad-mica. Essa concomitncia histrica vem sendo celebradade modo a destacar a habilidade que a antropologia tem decaptar, descrever e entender, porque observa. Desse modo,pode trazer o outro para ser conhecido, discutido e exibido/mostrado. Nessa acepo, a intrincada conexo entre cole-

    o e descrio (tanto no texto escrito como no visual) vai emdireo ao mpeto de figurare fixaro outro.

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    Os aparecimentos da antropologia e das tcnicas de re-

    produtibilidade da imagem deram-se juntamente com a

    expanso da Europa e dos Estados Unidos na explorao denovas reas a serem inseridas nas atividades de mercado.

    Nesse processo de partilha e explorao do mundo, todas as

    sociedades do planeta foram atingidas. Viajantes, explorado-

    res/as, comerciantes, artistas, naturalistas e antroplogos/

    as partiam dos centros europeus e norte-americanos para

    os quatro cantos do planeta. A fotografia e o cinema, juntocom a antropologia, em uma ao conjunta, contriburam (e

    contribuem) para fixar as singularidades e as diferenas do

    outro, as quais, registradas, podiam ser transportadas a fim

    de conservar a imagem dessas sociedades.

    A necessidade de ver, de observar, correlata de des-

    crever e mostrar. Vrios dos clssicos em antropologia apre-sentam, alm das descries etnogrficas, registros em foto-

    grafia e/ou cinema. Como exemplo, destaco as monografias

    Argonautas do Pacfico Ocidental, de Malinowski (1978), Os

    Nuer, de Evans-Pritchard (1978) e Balinese character, de

    Mead e Bateson (1976), esta ltima inteiramente dedicada a

    revelar, por meio de fotografias, o carter de uma cultura,de uma sociedade.44A edio com fotos, desenhos, ilustra-

    es, fortalece a autoridade da pesquisa.

    Nos trabalhos que a antropologia dedica ao cinema, este

    tem sido tratado como instrumento da pesquisa, como modo

    4 O livro Argonautas do Pacfico Ocidental foi publicado pela primei-ra vez em 1922, Os Nuer, em 1940, eBalinese character, em 1942.

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    de chegar ao contexto cultural com o qual se est trabalhan-do. Em um texto sobre metodologia e cinema, Ribeiro (2006)

    faz um rastreamento dos usos que a antropologia propor-cionou e, na maioria dos casos, vem proporcionando ao ci-nema, ressaltando trs principais abordagens. Em primeirolugar, um estudo do cinema atravs de uma antropologia

    da produo flmica (Ribeiro, 2006, p. 4), ou seja, o estu-do da produo dos filmes, a abordagem da comunidade dos

    realizadores, quem so, o que fazem, o que pensam e comoo fazem. De acordo com o comentrio do autor, essa mo-

    dalidade insere-se no campo dos estudos antropolgicosde mdia e comunicao de massa (Ribeiro, 2006, p. 4). Emsegundo lugar, destaca o estudo interessado nos processosde recepo dos filmes, ou como determinados produtos ci-

    nematogrficos so compreendidos socialmente em contex-tos especficos, por sujeitos situados em diferentes posies(Ribeiro, 2006, p. 4) o foco ainda no reside no filme em si.Como terceira possibilidade, menciona o estudo do cinemaatravs de uma antropologia da narrativa e da representao

    flmicas (Ribeiro, 2006, p. 4), em que o filme funciona como

    uma base de dados sobre a esfera sociocultural trabalhadapela pesquisa. Lembra o trabalho sobre a cultura japonesa deBenedict (1997), para o qual esta autora utilizou, entre outras

    fontes, filmes para tratar do assunto. Seu livro, posterior-mente, foi discutido como um esforo de realizao de umaantropologia a distncia (Ribeiro, 2006, p. 5).

    No possvel fazer uma completa separao entre o que ficcional e o que no . Um exemplo que o primeiro filme

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    etnogrfico assim considerado, Nanook of the North(1922), foifeito com a atuao de Nanook e sua famlia a pedido do dire-

    tor Robert Flaherty. Assim, pode-se perceber a contingncia eo carter construdo da etnografia visual. O mesmo j foi ditopara o texto etnogrfico. Para Geertz (2002), o texto produzi-do em antropologia est mais prximo dos discursos literrios,

    da seu carter de convencimento e persuaso, de ficcional,construdo. Na atividade de criao e produo do filme etno-

    grfico, as fronteiras entre arte e cincia se confundem e acaracterstica construda do texto visual e sonoro fica mais evi-

    dente. Gostaria de mencionar, nesse sentido, o filme Ykwa, obanquete dos espritos(1995), dirigido por Virgnia Valado, umdocumentrio sobre o ritual dos Enawen Naw, que anual-mente reverenciam e homenageiam os espritos com alimen-

    tos, danas e cantos durante sete meses. Ao buscar trazer paraa tela o complexo ritual, a diretora tratou as imagens, as cenase a participao dos Enawen Naw com uma atitude em que aarte se soma ao registro do dado etnogrfico.

    Quanto ao entrelaamento de arte e cultura, a perspec-tiva de Geertz (1997, p. 13), ao propor tomar os fenmenos

    sociais colocando-os em estruturas locais de saber, im-portante para se pensar, tambm, o cinema. No ensaio Aarte como sistema cultural, Geertz (1997) procede apresen-tando exemplos relativos a sociedades e temporalidades dis-tintas: escultores iorub; os Abelan da Nova Guin; a pinturado quattrocento; e a poesia islmica. Em todos, vai procurar

    mostrar que a unidade da forma e do contedo , onde querque ocorra, e seja em que grau ocorra, um feito cultural e no

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    uma tautologia filosfica (Geertz, 1997, p. 154). Em sua ex-posio, o autor mostra a conexo da arte nessas diversas

    formas sociais com o modo de ver o mundo entrelaado comos sentidos da prpria arte para os atores especificados, se-

    jam eles escultores iorub, o sistema da pintura renascen-tista ou os poetas islmicos. Para Geertz (1997, p. 179), artee cultura relacionam-se porque a participao no sistemaparticular que chamamos de arte s se torna possvel atra-

    vs da participao no sistema geral de formas simblicasque chamamos cultura, pois o primeiro sistema nada mais que um setor do segundo. Assim, a teoria da arte , para oautor, uma teoria da cultura. E, como recorrente em seustextos, em uma aluso crtica ao que considera ser a maneiraestruturalista de abordagem do social, completa: [...] se nos

    referimos a uma teoria semitica da arte, esta dever desco-brir a existncia desses sinais na prpria sociedade, e no emum mundo fictcio de dualidades, transformaes, paralelos eequivalncias (Geertz, 1997, p. 165).

    Ao chamar a ateno para a inter-relao entre arte e ex-perincia cultural, em que parte do entendimento da obra deve

    ser endereada ao universo cotidiano em que os seres huma-nos olham, nomeiam, escutam e fazem (Geertz, 1997, p. 179),como o autor mesmo esclarece, surge o problema de comocomparar diferentes manifestaes artsticas. a ateno ex-trema com essa inegvel vinculao que impe que a compa-rao entre diferentes sociedades seja feita com cuidado.

    A proposta de Geertz (1997) conduz a um cuidado no tratoda relao entre arte e cultura. Sua insistncia nessa relao

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    tem como horizonte a noo de contexto cultural. A antropo-

    logia tem se constitudo em direo a uma discursividade que

    toma o contexto como algo ao qual o trabalho de campodeve se remeter. Nas tentativas de relativizar as singularida-

    des e as especificidades culturais, a disciplina corre o riscode atar em demasia uma dada experincia a um determinado

    contexto. A importncia desse aspecto para a antropologia

    foi tratada e problematizada por aussig (1992, p. 44-45; tra-

    duo nossa):Assim, eu quero destacar contexto no como um ninho

    epistmico seguro no qual os ovos do conhecimento so cho-cados em segurana, mas contexto como esse tipo de enca-deamento lgico que incongruentemente abarca tempos e

    justape espaos to distantes entre si e to diferentes uns dosoutros. Quero enfatizar isso porque acredito, j por um longo

    tempo, que a noo do domnio significativo da contextua-lizao de relaes sociais e histria, como o senso comum achamaria, sobre a sociedade e a histria est garantida comose nossos entendimentos sobre as relaes sociais com a hist-ria, entendimentos esses que constituem o tecido de tal con-texto, no fossem eles mesmos construtos intelectuais frgeis,que consideram realidades robustas bvias ao nosso olhar

    contextualizador. Desse modo, o prprio tecido do contextono qual as coisas devem ser inseridas, e consequentemente ex-plicadas, acaba sendo aquilo que mais carece de entendimen-to! Isso me parece o primeiro erro necessrio para a f na con-textualizao. O segundo que a noo de contexto muitorestrita. Acontece em Antropologia e Histria que aquilo que invariavelmente destinado pelos apelos a ser contextualiza-do constitui as relaes sociais e a histria do Outro, as quais

    formaro esse talism chamado contexto, que se desenvolver medida que desvendar a verdade e o significado.

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    Essa proposta de repensar a noo de contexto deveconduzir a anlise antropolgica do filme a uma busca das

    coimplicaes, das inter ferncias entre uma ordem e outraspossveis, de uma experincia e outra, entre um texto e ou-tros textos. al preocupao importa ao trato dos filmes queolham o passado ditatorial, uma vez que estes articulam uma

    memria suplementar sobre o passado e, ao realizar este ato,dialogam com o presente. No h possibilidade de contero

    texto do filme em um nico referente de origem. ais referen-tes podem variar desde as memrias no oficiais do perodo

    at os materiais divulgados pela imprensa ou pela academia,ou ainda as possibilidades so mltiplas e as combinaestambm as marcas materiais relacionadas quela experi-ncia. ampouco possvel remeter esses filmes apenas ao

    dilogo que, certamente, mantm com outras modalidadesartsticas. No h uma nica abordagem que anteceda aquiloque foi filmado. Existem mltiplas facetas que esto em di-logo em cada um dos filmes.

    A proposta de aussig (1992) mencionada envolve repen-sar tambm as fronteiras entre o eu e o outro, entre pesqui-

    sador e pesquisado, permitindo romper os limites entre quemolhae quem olhado. Ao buscar uma reconceitualizao danoo de contexto, o autor evidencia um entrelaamento dasmltiplas instncias que envolvem a vida cultural. A abor-dagem etnogrfica da narrativa flmica deve voltar-se paraa relao entre o filme e a multiplicidade de instncias en-

    volvidas. Um filme est relacionado com uma srie ampla deoutros filmes; a histria que conta se insere em um espectro

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    amplo de outras histrias advindas de variadas fontes. Alm

    do mais, h uma conexo de influncias entre cinema, televi-

    so, internet, propaganda. A relao entre filme e literatura outra esfera que mostra as mltiplas conexes do fazer flmi-

    co com a palavra escrita.

    As noes de dialogismo e plurilinguismo que Bakhtin

    (2002) desenvolveu para tratar da estilstica dos romances

    podem ser aplicadas ao estudo do cinema e tambm cultu-

    ra entendida como uma srie de enunciados em constanteinterao. Para o autor, o romance uma diversidade social

    de linguagens organizadas artisticamente (Bakhtin, 2002, p.

    74), uma vez que trabalha em seu interior com a diversidade

    das falas e dos discursos existentes.

    A estratificao interna de uma lngua nacional nica em

    dialetos sociais, maneirismos de grupos, jarges profissionais,linguagens de gneros, fala de geraes, das idades, das ten-dncias, das autoridades, dos crculos e das modas passageiras,das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas (cada diatem sua palavra de ordem, seu vocabulrio, seus acertos) enfim,toda estratificao interna de cada lngua em cada momentodado de sua existncia histrica constitui premissa indispens-

    vel do gnero romanesco. E graas a este plurilinguismo sociale ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romanceorquestra todos os seus temas, todo seu mundo objetal, semn-tico, figurativo e expressivo. (Bakhtin, 2002, p. 74)

    O cinema narrativo-comercial plurilngue ao articular

    as instncias, os nveis e os tipos de uma lngua e tambm

    um meio artstico que trabalha com a diversidade de imagensdispostas e propostas por outros meios massivos e artsticos

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    e com a multiplicidade sonora e musical existente: dialoga

    com a lngua, a imagtica e a sonoridade sociais. Stam (2003,

    p. 226) fala em dialogismo intertextual ao propor a aplicaoda proposta de Bakhtin ao cinema, evidenciando

    as possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo con-junto das prticas discursivas de uma cultura, a matriz inteirade enunciados comunicativos no interior do qual se localiza otexto artstico, e que alcana o texto no apenas por meio de

    influncias identificveis, mas tambm por um sutil processode disseminao.

    Assim, dualidades, transformaes, paralelos e equiva-

    lncias no so mundos fictcios, a no ser como elabo-

    raes da antropologia que devem ser buscadas para tratar

    da relao entre arte e sociedade e se explicitam na extrema

    habilidade que a cultura e a arte tm de, em um processodialgico, construir e, ao mesmo tempo, ser construdas.

    Encenao

    Como discutido por Reis (1988), em um artigo no qual

    aborda a ideologia do Estado no Brasil, as definies de naotendem a mesclar a esfera da autoridade do Estado e a da

    sociedade em uma s aliana conceitual. al tendncia re-

    alaria o fato de as construes do Estado e da nao serem

    processos dinmicos que interagem continuamente com as

    prticas concretas de classes e grupos (Reis, 1988, p. 188).

    endo em vista esses processos que procuro destacar a di-menso social da vida na nao. Assim, no estou pensan-

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    do na nao como totalidade poltica que se confunde com oEstado-nao; entendo que mais apropriado falar de per-

    tencimentos e diferenas, de socialidades.No interior das narrativas flmicas, delineiam-se formas

    mltiplas de construir noes vinculadas ao social da na-o como comunidade imaginada, no sentido que Anderson(1983) d expresso. Como a nfase do Estado-nao ahomogeneizao das diferenas somos todos um s, uma

    s lngua, uma s cultura , conjuntos de feitios e intenesdiferentes so agrupados e impelidos a portar caractersti-cas gerais que so, em um sentido, uniformizadoras. Comooutras formas narrativas, os filmes podem, em um plano, semostrar favorveis discursividade homognea, repeti-la oureferend-la. Como no h fala sem fissura, os filmes tam-

    bm podem atuar de modo conflituoso com as narrativas li-gadas memria oficial.

    Nao pode, ento, ser percebida como lugar de origem,de nascimento, de memria, espao compartilhado, conhe-cido: sabem-se seus nomes, os acentos das falas, as co-midas, as cores das gentes. Sentimentos de pertena. Pas,

    paisagem, nao, localidade, domus, lar, casa e ptria. Umainslita sensao de conhecer e, ao mesmo tempo, estra-nhar aqueles/as que so do mesmo lugar. erreno artifi-cialmente repartido e delimitado: o que os olhos conhecemcomo o lugar nem sempre coincide com as fronteiras po-lticas dos estados. Quintais, ruas, aldeias, rios, florestas so

    repartidos e divididos pelo vetor da nao sob a forma doEstado-nao.

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    Nesses espaos, construmos e entendemos partilhar sen-tidos, gostos, falares. Pensamos que qualquer pessoa nascida

    na mesma grande rea um pouco como ns mesmos por-que tambm portadora de certas caractersticas comuns.Imaginamos e inventamos tradies que so continuamentemanipuladas por diferentes grupos. Nao e ptria: ser que

    estas noes se equivalem? Nao como sentimento de es-tar em casa, de pertencer, provocado por prticas cotidianas.

    Essa noo rene ou permite evocar outras: nascimento, p-tria, pas, terra-me. Certos modos e processos identitrios

    so construdos, certos pertencimentos evocados, tempora-lidades vividas.

    Algumas implicaes do vocabulrio envolvido mais dire-

    tamente com as noes de ptria, pas e nao podem elu-

    cidar aspectos imaginativos em pauta. Segundo Benveniste(1995, p. 312), o vocabulrio indo-europeu deu origem, pri-meiramente, noo de hestia, o lar, tambm chamado do-mus(casa, no como edificao, mas em seu sentido social);depois, thmis, como o conjunto de costumes que consti-tuem o direito, para, a seguir, aparecer a noo de fratria,

    ou seja, a reunio de irmos (homens) que se reconhecemdescendentes de um mesmo antepassado, em uma nooprofundamente indo-europeia de parentesco mtico. Aolado da ideia de fraternidade que, em um certo sentido, estpresente na noo de nao, h o adjetivo patrius, derivadode pai, vinculando patriusao poder do pai em geral. Aproximo

    ptria e nao para destacar entre essas noes a ideia decoletividade, de socialidade. No entanto, como se reforan-

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    do um vis que encobre a ideia de nao como predomniodo poder do pai, no existe um termo equivalente que seja

    derivado de me. al vis participa das reflexes dedicadas aanalisar a nao e o nacionalismo, como lembra Walby (2000,p. 249): a literatura sobre as naes e o nacionalismo ra-ramente aborda a questo do sexo a despeito do interesse

    geral na participao diferencial dos vrios grupos sociais nosprojetos nacionalistas. Na apreenso do passado ditatorial,

    discuto as possveis simbologias que personagens femininase referncias distintas a homens e mulheres podem ter nas

    escolhas em cena.

    Origem comum, certa camaradagem e predomnio pater-no so algumas das implicaes contidas nos sentidos dados

    ideia de nao. No entanto, preciso mencionar que es-

    sas implicaes no so totais, pois, ao lado dessa inflexo,encontramos noes correlatas que carregam outros senti-dos. Falo dos termos lngua materna, ptria-me, terra

    me, por exemplo, que interagem com as ideias relaciona-das ao conjunto da nao. So conotaes ambivalentes: areferncia me insere noes de pertencimentos, lngua,

    ptria e terra; as referncias ao pai, como entrada na regra,na lei, em uma heteronomia. No conjunto das imagens e sonsque os filmes nos trazem, vrios lados de uma mesma ideiavo surgir e, buscando trabalhar com essas tnicas, que anarrativa flmica sobre a nao, considerada em suas contra-dies, vai aparecer. Os filmes que tomam a ditadura como

    tema falam socialidade da nao e tambm manipulammemrias muitas vezes em conflito com narrativas oficiais

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    que se aliam nao como fora da lei homogeneizadora.

    Na vivncia da nao, as diferenas culturais e polticas

    provocam apropriaes distintas do passado ditatorial. Noprocesso de apropriao do passado, ocorre uma luta por

    tornar preponderantes algumas narrativas em detrimento de

    outras. Os muitos grupos da diferena, constitudos segundo

    variveis de gnero, idade, classe, etnia, lutas raciais, dispo-

    ras exercem uma disputa pela validao de suas narrativas.

    Nenhum dos grupos homogneo: as questes de gnero,por exemplo, esto imbricadas em condies de classe e et-

    nia; afiliaes econmicas implicam modos diversos de viver

    e perceber as noes raciais; categorias etrias so valoriza-

    das diferentemente segundo condies econmicas, tnicas

    e de gnero. Bhabha (2003, p. 207) discute a importncia da

    fora narrativa da nao na projeo poltica em que a dife-rena requer que percebamos a ambivalncia como estra-

    tgia discursiva:

    Os fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana devemser repetidamente transformados nos signos de uma culturanacional coerente, enquanto o prprio ato da performance

    narrativa interpela um crculo crescente de sujeitos nacionais.Na produo da nao como narrao ocorre uma ciso entrea temporalidade continusta, cumulativa, do pedaggico e aestratgia repetitiva, recorrente do performativo. [] O povono nem o princpio nem o fim da narrativa nacional; ele re-presenta o tnue limite entre os poderes totalizadores do socialcomo comunidade homognea, consensual, e as foras que sig-

    nificam a interpelao mais especfica a interesses e identidadescontenciosos, desiguais, no interior de uma populao.

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    Os jogos de esteretipos das mais diversas ordens e op-es poticas no menos diversificadas compem as narra-

    tivas visuais, em uma complexidade segundo a qual se voconstituindo como comentrios consensuais ou crticos so-bre a ditadura. Desse modo, a multiplicidade de sentidos dosfilmes, como textos que se referem ao passado, envolve-se

    em discusses de temas voltados aos processos ps-ditato-riais. A imaginao toma a ditadura por tema para reverbe-

    rar outras falas, o que me leva a indagar: o que, nos filmes epor meio deles, est sendo ensinado? Pensando na lngua

    espanhola, lembremos que ensear verbo empregado paraindicar as aes de mostrar, assim como de ensinar, dou-trinar. Essa nuance relaciona-se com o aspecto pedaggicodas narrativas da nao: para o caso em pauta, aquilo que o

    cinema mostra (ensea) e coloca em cena, tambm propa-ga, dissemina e ensina. Esse processo acontece via modo deendereamento que, como sublinhado por Ellsworth (2001), uma estruturao (p. 17) entre filme e espectador/a, entreo texto de um filme e a experincia do espectador (p. 12).

    Quando ressalto o tema da nao, no me refiro aos filmes

    como narrativas fixas e fixantes, mas quero destacar os as-pectos que concorrem para a constante criao e recriaode um imaginrio relativo a esses lugares (comunidades ima-

    ginadas, de tradies inventadas).

    Anderson (1983) demonstra que as naes so comuni-dades imaginadas e lembra ainda que, de alguma forma, toda

    comunidade o , seja por laos de parentesco, por descen-dncia de um ancestral mtico, por creditar uma origem co-

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    mum, por entender-se portadora de qualidades que a tornamdistinta e peculiar. Muitas dessas caractersticas se combi-

    nam e preciso distinguir o estilo pelo qual comunidades soimaginadas, o que resulta de uma combinao entre artifciosimaginativos e estruturas sociais. Anderson (1983) explicaque, no caso das naes modernas, esse estilo pressupe quesejam limitadas, que tenham fronteiras definidas e guardadase que sejam soberanas. Alm disso, a nao sempre con-

    cebida como profunda camaradagem horizontal (Anderson,1983, p. 15-16; traduo nossa).

    essa caracterstica que me faz associar fratriae ptria,pois entendo que constituem sentidos que se interconectamno funcionamento da nao. Mas h, ao lado e no interiordessas caractersticas, convivendo de modo antagnico, ou-

    tras esferas, outros modos de relao. Se a nao imagi-nada, ela o de modo a articular tensamente alteridades emseu interior.

    Anderson (1983) mostra que crenas acerca da origem eevoluo das naes modernas cristalizam-se na forma dehistrias. A nao deve mais a uma unidade fictcia impos-

    ta e que se tornou possvel graas a uma combinao entrecapitalismo, queda dos reinos dinsticos e crescimento daslinguagens vernculas: O que, certamente, fez as novas co-munidades imaginveis foi uma inter-relao meio fortuita,mas explosiva (capitalismo), uma tecnologia das comunica-es (imprensa) e a fatalidade da diversidade lingustica hu-

    mana (Anderson, 1983, p. 46; traduo nossa). O sentido decompartilhar com outros um espao limitado e soberano foi

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    possvel graas ao papel desempenhado, por um lado, pelosromances e, por outro, pela imprensa, conjunto que Anderson

    (1983) chama de print capitalism (capitalismo da imprensaou capitalismo editorial).5Ambos permitem experincias desimultaneidade: a leitura diria de jornais e o conhecimentode tramas e personagens de fico fazem com que pessoasvivenciem simultaneamente experincias dispostas em di-ferentes locais. Essa simultaneidade provoca a ocorrncia de

    um tempo homogneo vazio, a forma da temporalidade na-cional, ou seja, todos em um s.

    A leitura de romances e jornais , predominantemente,uma atividade de certas elites letradas, as quais procuramimpor, por meios variados persuaso pela fora um deles, as narrativas de fundao e de identificao da nao. Atu-

    almente, formas massivas de entretenimento e mdia, comoteleviso, cinema e rdio, suplementam ou se adicionamao print capitalismna formao dos sentimentos de simul-taneidade e pertena. Pode-se, assim, denominar os meiosmassivos de disseminao de imagens, histrias e padrescomportamentais, que atingem uma enorme quantidade de

    pessoas,como media capitalism(capitalismo da mdia).No caso da formao das naes na Amrica espanhola,

    Anderson (1983) menciona, alm dessas, outras condicio-nantes. Experincias das elites que, apesar da imensa diver-

    5 A expresso de Anderson (1983) print capitalism, difcil de ser tra-duzida, expressa a ideia de que, juntamente com o capitalismo,

    houve a disseminao mercadolgica do que o autor denominoulnguas impressas mecanicamente produzidas.

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    sidade dos grupos no interior das colnias, propunham a in-

    cluso (imaginada) destes.

    Aqui, o ato de San Martn batizando ndios de lnguaQuechua como os peruanos uma ao que tem afinidadescom a converso religiosa exemplar. Isso mostra que desdeo incio a nao foi concebida na linguagem, no em laos desangue, o que permite que possamos ser convidados a par-ticipar da comunidade imaginada. (Anderson, 1983, p. 133;traduo nossa)

    No Brasil, a categoria ndios teve papel fundamental nas

    construes de identidades de fundao da nao. Ainda hoje

    comum falar sobre ndios brasileiros em uma nomeao

    que revela homogeneizao de diferentes etnias em um con-

    junto genrico sob o rtulo de os ndios. Os movimentos

    polticos americanos (as revoltas crioulas e outras formasde lutas emancipatrias e fundacionais) formulam propostas

    de sociedades que, imaginadas como coletividades homog-

    neas, inventam genealogias. A nao procura apagar os no-

    mes da diferena, constituindo reiteradamente o anonima-

    to da populao, do povo, conforme as palavras de Bhabha

    (2003) j citadas.Quando os filmes nos abrem perspectivas para vermos

    neles narratividades da nao, isto ocorre de duas formas

    que podem ser articuladas. Uma a referncia direta, de tipo

    muito frequente no cinema argentino recente, mas no ex-

    clusiva dele. O mote para os acontecimentos que envolveram

    o casal de Lugares comunes(2002) a crise por que passa asociedade argentina; em vrios momentos, os personagens

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    fazem referncia s condies do pas. ratando das questesda nao de modo explcito, encontramos a trama disposta

    na tela por Cronicamente invivel(2000), em que mazelas detoda ordem confeccionam uma tnica nacional em relao aoBrasil, ou seja, explcita ou implicitamente, o pas mencio-nado. A outra forma a que o cinema sobre a ditadura arti-cula, isto , a de associar suas histrias nao pelos temasrecorrentes da famlia ou da luta perdida.

    Lugares-comuns e desvios em direo a outros sentidos(White, 2001), temporalidades e vises surgem nas telas, sejacomo reforo ou ciso. Se menciono como a diferena cul-tural trabalhada, porque ela continua operante nas obrassobre a ditadura. Vejo nas telas as ambivalncias valorativassobre os muitos outros da nao e suas relaes com os

    modos de falar sobre o passado. Nos filmes aqui escolhidos,as histrias focalizam, com mais frequncia, os personagensde classe mdia urbana, em detrimento de operrios e cam-poneses e outros que tambm foram afetados pelas mqui-nas ditatoriais. No grupo de filmes argentinos em estudo, to-dos procuram construir suas histrias por um ponto de vista

    que se refere aos que foram afetados repressivamente pelamquina ditatorial, predominando nas narrativas persona-gens pertencentes classe mdia.

    Em outros filmes, certos temas falam de outros da na-o, como as vozes silenciadas de descendentes ndios emEl abrazo partido (2003), em que dois empregados de lojas

    rivais disputam uma corrida em nome de seus patres. As re-ferncias preconceituosas sobre ndios e seus descendentes

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    esto presentes nas constantes falas de Mecha, a matriarcadecadente de La cinaga(2000), a respeito de suas empre-

    gadas. Em O homem que copiava(2002), aparece um perso-nagem central que negro, interpretado por Lzaro Ramos,o mesmo ator de outros dois filmes em que negros emergemno centro das telas: Madame Sat (2002) e Meu tio matouum cara(2002). Neste ltimo, a histria gira em torno de umgaroto negro que descobre a verdade sobre o envolvimento

    de seu tio em um crime.Alm dos aspectos mencionados, necessrio considerar

    um ponto comum nas experincias ditatoriais, que se inscre-ve no modo de o cinema trat-las. Refiro-me construo,pelos processos repressivos, daquilo que aussig (1993, p.

    25) denomina cultura do error. Em trabalho sobre terror e

    cura no sudoeste da Colmbia, esse autor desenvolveu umadiscusso que perpassa tanto a formao do mundo colonialcomo as consequncias que as experincias ditatoriais pro-

    vocaram. Entre esses dois momentos, em comum h a cons-truo de espaos da morte, nos quais se dizimaram povospara ocupao e domnio de terras no momento colonial, e

    nas ditaduras, com a perseguio diferena e o exterm-nio em detrimento do entendimento poltico. Para entendercomo a hegemonia colonial se tornou possvel, aussig (1993,p. 27-28) prope que se tente pensar-atravs-do-terror,tomando o espao da morte, em contnua construo na-queles momentos, como espaos de transformao. Ora,

    nas ditaduras, as disseminaes constantes do medo, daameaa e da suspeita operam como transformadorescultu-

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    rais. Para o autor, nas culturas do error se pretende, sejaem nome de Deus, do mercado ou da produo obter in-

    formaes e controlar populaes, classes sociais e naes,o que se realiza por intermdio da elaborao cultural domedo (aussig, 1993, p. 30). O autor (1993, p. 31) afirma queo espao da morte importante na criao do significadoe da conscincia, sobretudo em sociedades onde a tortura endmica e onde a cultura do terror floresce, e no espao da

    morte a realidade se encontra ao nosso alcance. Nas dita-duras, o terror e a violncia como norma ampliaram a cruel-dade inscrita em toda realidade. Pela criao de uma culturado terror, as ditaduras conseguem imprimir o silncio e travara memria.

    Notas sobre as ditaduras e a questo dos arquivosA democratizao efetiva se mede sempre por este critrio

    essencial: a participao e o acesso ao arquivo, sua constituio e sua interpretao.

    (Derrida, 2001, p. 16)

    Historizar es una forma de unir lo que fue con lo que es, en este

    caso, reconocer las violencias pasadas en las presentes, lasviolencias en democracia, como el gatillo fcil o el asesinato de

    militantes sociales. Pero tambin es romper esas continuidades paraindagar en las diferencia.

    (Calveiro, 2005, p. 19-20)

    No a comparao quantitativa que explica as diferen-as entre as ditaduras no Brasil e na Argentina, mas, antes, a

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    equao oposio e resistncia, as estratgias de assomo aopoder pelas foras ditatoriais (incio autoexplicado dos golpes

    de Estado), as formas de permanncia no comando (repres-so e alianas polticas) e a sada dos militares da posio decontrole do Estado. No pretendo dar conta desses quatroelementos. enciono manter no horizonte comparativo a in-

    trincada relao entre os aspectos mencionados para dizerque a perversidade da represso na Argentina paralela ao

    modo como, no Brasil, os militares conduziram as relaesentre os aparelhos repressivos de segurana nacional e re-

    presentantes das esferas polticas e econmicas. As diferen-tes condues dos negcios da ditadura geraram relaeshistricas diversas em cada pas. Criou-se no Brasil um pas-sado intocvel, vide os processos da chamada abertura

    poltica e da anistia geral e irrestrita, todos conciliadores,e o impedimento de acesso aos arquivos da ditadura. Na Ar-gentina, diferentemente, discutiu-se, com avanos e recuos,a implicao dos militares e aliados nos atos de terrorismode Estado e os documentos oficiais esto se tornando pbli-

    cos. Nos filmes, essas diferenas esto relacionadas com as

    escolhas que cada cineasta fez para contar alguma histriavinculada ditadura.

    No tpico memria e esquecimento, que se torna maiscomplexo com as atitudes conciliadoras adotadas pelas eli-tes polticas (aliadas ou no ao governo ditatorial), ressalto opapel que a anistia poltica teve no Brasil. Remeto a um dos

    sentidos da palavra anistia: esquecimento, perdo em sen-tido amplo; sua etimologia retorna ao grego amnestia, es-

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    quecimento, e amnestos, esquecido (Houaiss; Villar; Franco,

    2001). O perdo outorgado pelo poder (soberano) reduzido

    ao espectro do esquecimento. O slogan Anistia ampla, ge-ral e irrestrita, to divulgado pela propaganda da poca, to

    rapidamente discutido, e a Lei da Anistia (Brasil, 1979) fazem

    ressoar o que parece ser uma caracterstica permanente no

    campo da cultura poltica brasileira: a conciliao e o esque-

    cimento. A anistia acabou sendo empregada em dois sentidos

    opostos: no perdo aos operrios da violncia6 de Estado ena suspenso das penas aplicadas aos opositores da ditadura.

    Permitiu, assim, tornar impunes os crimes de tortura, crcere

    clandestino, assassinato e desaparecimento de pessoas con-

    sideradas inimigas do Estado.

    alvez se considere as ltimas ditaduras no Brasil e na Ar-

    gentina como rupturas: o uso da expresso golpe de Estadopode sugerir uma quebra ou uma diviso entre antes e de-

    pois do momento em que os militares assomaram ao Estado

    e os governos ditatoriais foram institudos. H, no entanto,

    uma continuidade dos procedimentos autoritrios no fazer e

    no pensar a poltica nos dois pases. No caso da Argentina,

    verifica-se, ao longo