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Entre Marx e Hodgskin: uma proto-economia política da financeirização
(versão preliminar)
Antonio Ricardo Dantas Caffé (UFBA)
Jossel Borges Santos (UEFS)
Resumo – O presente trabalho busca estabelecer um possível diálogo entre os
desenvolvimentos na esfera financeira do capitalismo baseada na apropriação crítica dos
economistas clássicos que se seguiu à desintegração da escola ricardiana. Pode ser notado que
Thomas Hodgskin, crítico do ricardianismo acadêmico que sucede a formação da economia
política inglesa, antecipa uma discussão sobre o domínio financeiro na aparência de
conhecimento científico-tecnológico que tem um substrato na esfera do “imaterial”. Embora
não consiga se desvencilhar do fetichismo do capital, nos termos de Marx, esses aspectos do
domínio das finanças sobre o trabalho encontram uma expressão mais definida na economia
capitalista dos dias atuais.
Palavras-chave: Hodgskin, trabalho produtivo, trabalho improdutivo, conflito de classes,
financeirização.
1. Introdução
O presente texto revisita algumas conexões internas entre os trabalhos da economia
política clássica através das contribuições específicas de um autor considerado precursor da
economia política marxista e suas possíveis implicações para o debate contemporâneo sobre a
financeirização no capitalismo contemporâneo. Thomas Hodgskin, considerado em geral
como autor menor e incluído por Marx em sua apropriação crítica totalizante da economia
Doutor em Ciências Econômicas, Departamento de Economia, Universidade Federal da Bahia, [email protected]
Mestre em Ciências Econômicas, Departamento de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Feira
de Santana, [email protected]
2
política em diversas passagens dos Grundrisse, d’O Capital e das Teorias da Mais-Valia,
permite realizar um percurso entre passagens importantes na construção de conceitos e ensaios
analíticos que prelibam a existência de nexos da produção de mais-trabalho e mais-valor
(Mehrvert) com os circuitos das finanças sob o diapasão do capital. Pertencendo ao conjunto
de autores considerados como socialistas e anticapitalistas, como Ravenstone e Thompson,
Hodgskin empreende uma crítica pertinaz às concepções ricardianas que gozavam de
reputação acadêmica à sua época, ao lado de Malthus, Mill, MacCulloch e outros autores bem
estabelecidos. Neste sentido, ao concentrar seu esforço analítico na oposição capital versus
trabalho, depreende com aguda antecipação certos aspectos que ainda ficam latentes nas
formas de dominação rentista hegemônica do século XIX sob a égide da renda fundiária.
A despeito dos limites relativos à compreensão das causas efetivas da fetichização do
capital, a crítica do capital conduzida por este representante do “socialismo inglês” é portadora
de argumentos interessantes sobre a dominação capitalista sob a forma de juros compostos
(compound interest) e de seus efeitos sobre a acumulação e a taxa de lucro capitalista. Um dos
aspectos importantes desta análise é a circunstância sob a qual a expansão de classes que
vivem dos lucros do capital e de suas formas desdobradas sob o rentismo instituído encontra
ressonância na história da teoria econômica. Deste modo, as contradições postas pela
constituição do trabalho como uma forma de capital traz implicações importantes para a
problemática da improdutividade do capital suscitada pela abordagem hodgskimiana frente ao
trabalho produtivo e trabalho improdutivo em Marx. Um segundo aspecto relevante trata da
conexão entre a análise da tendência ao declínio da taxa geral de lucro e o ciclo da taxa de
lucro. A contemporaneidade desta discussão revela-se nas crises recentes que a sociedade
capitalista tem registrado no desdobramento das modalidades de valorização fictícia na esfera
financeira.
2. Hodgskin nos trabalhos de Marx: crítica à economia política em bases ricardianas
A influência inegável dos escritos de Thomas Hodgskin sobre a pesquisa original de
Marx tem assumido significados renovados nos dias de hoje. Suas intervenções ao lado de
Piercy Ravenstone, dentre outros, franco opositores da economia política burguesa inglesa,
3
derivam do approach ricardiano de modo bastante complexo. Na realidade, resultam de
movimentos contraditórios nos estertores de sua influência original. A insistência de Hodgskin
sobre a não-produtividade do capital aparece como uma “inevitável conseqüência da
apresentação teórica de Ricardo1”, a qual para Marx se plasma numa espécie de inversão do
sistema ricardiano2. Como observa Hollander (1980), a crítica empreendida contra o
ricardianismo levada a cabo por este autor alcança um nível de hostilidade baseada na recusa
do caráter apologético desta doutrina em defesa dos argumentos da exploração capitalista. Em
outros termos, sua perspectiva de análise prescinde da exploração baseada numa teoria
ricardiana do valor3. A renda (fundiária) é considerada ao lado dos rendimentos derivados dos
juros como uma punção rentista que recai finalmente sobre os trabalhadores como classe, ao
mesmo tempo em que produz efeitos sobre os preços de custo, o que retira significado da
teoria da renda diferencial do esquema ricardiano original.
Por outro lado, o abandono da relação inversa entre taxa de lucros e salários-
mercadoria dá lugar a considerações mais próximas de questões atinentes ao conhecimento4 e
progresso técnico, rejeitando implicitamente os “retornos decrescentes” como argumento
cediço para a explicação da mudança tecnológica. Nestas abordagens a crítica do capital e da
sua realidade invertida assumem contornos esparsos que na abordagem marxista futura terá
uma explicitação no conceito de capital fictício.
Esta última condição é percebida por Marx nos Grundrisse, quando no plano da
contradição entre produção e valorização do capital, reconhece que o limite à produção
fundada no capital se manifesta sob a forma de obstáculos que devem ser transpostos. Com
efeito, o próprio desenvolvimento do capital interpõe óbices recursivos que necessitam de
superação:
1 Marx, K. TMV, p. 266.
2 Marx, K. idem.
3 Neste caso sua análise se aproxima bastante da concepção smithiana do “adding-up-cost approach”, o que o
aproxima de A. Smith. 4 De acordo com Bezerra e Paz (20..), a concepção de conhecimento de Hodgskin diferencia-se daquela de
Marx, atribuindo-lhe autonomia e relevância nas relações sociais de produção, o que concorre para uma
“fetichização do conhecimento na valorização do capital” considerada pelos autores.
4
“O inteiro sistema de crédito e o comércio especulativo, a superespeculação etc. a ele
associados baseiam-se na necessidade de estender e transpor os obstáculos da
circulação na esfera da troca (...).” 5
O capital aparece então como obstáculo da própria produção, que passa a exigir mais
lucros por trabalhador e a eliminar o trabalho excedente, o qual seria capaz de elevar, tudo o
mais constante, os níveis de salarização e remuneração direta do trabalho. Neste mesmo plano
em consideração conseqüente ao processo especulativo levado à sua condição nec plus ultra,
Marx examina a relação entre economias e sociedades como uma possibilidade clássica, como
uma financeirização lato sensu, ao afirmar:
Assim, por exemplo, os ingleses são compelidos a conceder empréstimo a outras
nações de modo a tê-las como clientes. No fundo, o capitalista inglês troca com o
capital produtivo duas vezes, 1) como ele mesmo, 2) Como ianque etc., ou sob
qualquer outra forma que tenha posto seu dinheiro6.
O excerto supracitado expõe em um nível de abstração bastante elevado uma proto-
economia política da financeirização, ou seja, criam uma ruptura na consideração
convencional das categorias econômicas e incorporam problemas criados pela relação
capitalista em seu próprio funcionamento. A dominação financeira de fundo especulativa se
estabelece na relação creditícia entre os países, no curso do próprio desenvolvimento do
capital, o que depois será visto também através do capital fictício como duplicação ou
multiplicação do capital prestamista em sua função bancária com o desenvolvimento do
capital portador de juros7. Correspondem ao movimento das contradições do capital enquanto
instrumento de produção e de produção de valor.
Neste sentido, a repartição funcional entre assalariados e capitalistas oculta aspectos da
formação de classes sob o capitalismo, cuja aparência se reflete numa divisão entre
5 Marx, K. Grundrisse, p. 340
6 Marx, K. Grundrisse, idem.
7 Marx, K. (1981). The Capital, Volume Three, Penguin Books, p. 601. Além na nota esclarecedora de Engels,
corroborando com estes desenvolvimentos das finanças fictícias do modelo anglo-saxão (financial trusts,
securities, American public bonds, English Municipal loans, etc.), deve ser observado que a circulação financeira
baseada propriamente em créditos privados ocorre somente depois da redação d’O Capital. Até então, esta
circulação estava restrita aos títulos públicos e semi-públicos, tais como as ações das sociedades construtoras de
canais e de ferrovias.
5
propriedade e gestão do capital (a confusão entre lucros da empresa e salários de supervisão).
A apropriação crítica marxista dos “socialistas ricardianos”, como Hodgskin, permite
reconhecer como a formação das classes no capitalismo sempre esteve submetida ao jogo
ideológico visando encobrir os interesses na redução dos rendimentos assalariados. Neste
aspecto, particular o parasitismo social de fragmentos da classe capitalista, vinculados pela
tese hodgskimiana à improdutividade do capital, ainda está embutido nas funções de
propriedade e desempenho que o capital deve revestir. Na gênese empresarial capitalista a
confusão entre lucro empresarial e salário de direção, devido a sua conexão interna
contraditória, era menos explícita que a relação dos juros, considerado como um excedente
sobre os lucros em sua repartição intercapitalista.
Do ponto de vista da análise marxista, os juros tornam-se uma expressão última dos
rendimentos capitalistas decorrente do fato que, o valor em geral – enquanto trabalho
materializado sob a forma social geral – se defronta com uma potência autônoma na condição
de trabalho vivo e se torna assim meio de apropriação do trabalho não pago (mais-valor)8.
Todavia, tal relação - trabalho assalariado versus propriedade do capital - desaparece na
aparência sob a forma de juros, pois o capital produtor de juros como tal opõe-se
imediatamente ao capital em função e não ao trabalho assalariado. O fetichismo do capital
portador de juros atinge então seu paroxismo. Nesta condição, a análise de Marx apresenta
uma convergência de argumentos que o aproxima da análise de Hodgskin, quando este analisa
a formação do lucro capitalista como resultado dos juros compostos. Numa passagem do tomo
III d’O capital encontra-se a afirmação:
O processo de acumulação do capital pode ser concebido como uma acumulação de juros
compostos, no sentido que parte do lucro (mais-valor) que é reconvertida em capital, ou seja,
que tem capacidade de servir à absorção de sobretrabalho suplementar deve ser chamada por
juros.9
Duas condições são contrapostas, todavia, a esta identidade formal sobretrabalho-
juros. A primeira delas evoca o crescimento da produtividade social do trabalho, cuja
8 Nas palavras de Marx, os juros são esta potência pelo fato de se opor ao trabalho como propriedade de outrem.
9 Nos termos de Hodgskin, Marx fala da impossibilidade juros compostos = acumulação de capital Marx, TMV,
idem, p. 1348.
6
expansão durante o processo de desenvolvimento capitalista torna relativo o processo longo de
acumulação, cada vez mais reduzido em termos de seu tempo de reprodução. A segunda
restrição considera à tendência ao declínio da taxa de lucro (relação entre capital variável e
capital constante). Neste nível de abstração, o estreitamento das bases de geração de mais-
valor indicado pelo declínio tendencial da taxa de lucro exigiriam incrementos substanciais de
capital constante por trabalhador, ao mesmo tempo em que, um acréscimo do sobretrabalho
extraído desta combinação (aumento da taxa de mais-valor). Os limites dessa identidade entre
mais-valor e do sobretrabalho sob o crivo da acumulação crescente encontram suas bases
qualitativas nos termos do desenvolvimento tecno-produtivo e demográfico, na definição das
jornadas de trabalho possíveis de serem exploradas em simultâneo.
Por outro lado, a viabilidade quantitativa passa por uma restrição mais forte, submetida
ao que Marx denomina de “forma irracional dos juros”, cujo limite ultrapassa toda e qualquer
possibilidade imaginária. Nesse nível, a produção de mais-valor segue um automatismo de um
processo fetiche. Nesta contradição também recai Hodgskin com a idéia do trabalho
coexistente, pois ao anular toda a riqueza material pretérita do trabalho acumulado que, de
modo ricardiano, é assimilado ao capital, mesmo favorecendo o reconhecimento do fetichismo
econômico alcançado pelo capital à juros, recai numa situação insuperável que desconhece a
subsunção formal e real do trabalho ao capital. Nos termos de Marx, a conservação e a
reprodução do capital supõem que tanto na realidade, quanto em termos teóricos, o trabalho
realizado realize-se em oposição a si mesmo. O seu contato com o trabalho vivo torna-se,
portanto, condição sine qua non para a continuidade do sistema.
Cumpre explicitar que, na concepção hodgskimiana, o conceito de trabalho coexistente
surge como argumento fundamental. O trabalho coexistente, tout court, seria uma resultante
da justaposição de diferentes trabalhos sociais, sendo que a acumulação nada mais é do que a
concertação das forças produtivas do trabalho social10
. O trabalho prévio acumulado é assim
abstraído, sendo que a acumulação da habilidade e do conhecimento na sua forma científico-
cognitiva converte-se na acumulação principal e significativa de todo o processo. Divisão
social do trabalho e trabalho coexistente são, deste modo, expressões coincidentes. O efeito do
10
Marx, TMV, idem, p. 1315.
7
trabalho coexistente se manifesta num qüiproquó que confunde a forma social do trabalho com
a coisa em si (reificação).
Aqui, novamente, reaparece o “horizonte burguês” de representação categorial das
formas capitalistas, sob as quais o interesse real da classe capitalista não consegue se
desembaraçar teoricamente. A teoria é uma representação de situações que não podem ser
concebidas de modo distinto de sua posição ideal. Noutros termos, como bem propõe Dussel
(1988), muitas questões epistemológicas surgidas da fetichização da economia política, nunca
deixam de compreender um capital como ente abstrato, plasmado na relação de produção
eternizada e contida na acumulação de perícia e de conhecimentos do trabalhador (scientific
power)11
. A degeneração progressiva da ciência econômica comporta, com efeito, um declínio
gradativo que a conduz do patamar clássico ao vulgar (lugar comum), deste ao apologético,
chagando à sua forma professoral. Este progressivo esvaziamento de substância científica
coincide com a ascensão do capital à juros como lídimo representante desta “não-ciência” .
Trata-se do “Moloch que reclama para seu sacrifício todas as vítimas possíveis”, cuja
representação mais autêntica é a fetichização e inversão absurdas conduzidas pelo capital
portador de juros.
Nas passagens relativas a esta questão, Marx retoma argumentos de Hodgskin para
caracterizar em que termos os obstáculos à acumulação do capital poderiam se expressar
segundo uma saturação12
, para além da qual a expansão econômica importa num
contingenciamento da massa salarial enquanto expressão social do capitalismo. Num simples
aforismo, o lucro é a limitação da produção13
, cujo significado maior implica num obstáculo
artificial à produção. Neste ponto, um aspecto institucional da sociabilidade capitalista
confronta-se com as convicções próprias do “socialismo inglês” e de suas referências
próximas às convicções do direito natural.
Concorda-se aqui com a posição de Bryan, Martin e Rafferty (2009), cuja compreensão
é a de que Marx discorreu relativamente pouco do que poderia ser chamado nos termos atuais
por “financeirização”, mas tal fenômeno hodierno põe alguns desafios aos modos de pensar
segundo as categorias marxistas estabelecidas. Uma das conseqüências principais desta
11
Dussel, E. Hacia un Marx desconocido, México, Siglo Veintiuno, 1988, p. 225. 12
Na tradução dos Grundrisse por Duyaer e Schneider pela Boitempo. 13
Hodgskin apud Marx pag.340.
8
condição é que a financeirização não é tão somente “dominação financeira”, simulacro do
capital financeiro ou forma ainda mais abstrata e transcendente do capital fictício, mas,
sobretudo, uma transformação do conceito de classe – enquanto categoria econômica formal –
e das relações de classe no capitalismo.
Dois aspectos fundamentais são desdobrados dessas relações. Do ponto de vista das
classes, a financeirização exacerba a competição inerente à valorização do capital. Esse
aspecto é sobejamente tratado no volume III d’O Capital, com implicações importantes sobre
as tendências e contratendências da taxa de lucro em geral, bem como do ciclo do lucro e sua
repartição entre os empresários e rentistas. Nela fica patente a disputa sobre a parcela do mais-
valor global. Um segundo aspecto significativo remete ao papel exercido pela securitização,
ou transformação em ativos financeiros derivativos de parte apreciável da riqueza financeira
capitalista nos últimos anos. Esse processo propiciou uma carnadura concreta ao premonitório
conceito de capital fictício sem precedentes históricos, tornando-o algo mais objetivado,
deixando o campo da abstração pura para representar um conceito mais fluido e próximo dos
lucros corporativos atuais.
Além disso, há um lado importante que a economia política de Hodgskin, se a podemos
assim qualificar, também evoca em seu percurso crítico da economia ricardiana. A análise do
capital variável (problemática em Hodgskin por seu tratamento do capital do capital circulante
e coexistente), suscita a necessidade de atender taxas de retorno crescentes impõe uma faceta
da acumulação que traz o trabalho no cálculo imediato do desempenho do capital. Deste
modo, a remuneração do trabalho esta submetida à uma avaliação implacável em tempo real,
no fluxo da valorização dos ativos em derivativos e nos mercados securitizados, cujos
resultados não são avaliados em periodicidades anuais ou trimestrais da rentabilidade
empresarial. Com efeito, a antecipação do mercado em relação ao preço dos ativos é ao
mesmo tempo uma formação de expectativas sobre a produtividade do trabalho relativamente
ao salário (taxa de mais-valor) - o que põe a análise de Marx como referência incontornável
para a compreensão dos valores dos ativos financeiros no capitalismo presente.
9
3. Do trabalho coexistente ao processo de produção de capital: trabalho produtivo e
trabalho improdutivo na subordinação real do trabalho ao capital dominado
pelas finanças
A análise Marx, seguida da apropriação crítica dos ricardianos socialistas, aprofunda as
implicações da teoria do valor-trabalho – distinguindo o trabalho do valor da força de trabalho
que, ao mesmo tempo traz à luz a teoria da mais-valor. Do mesmo modo o fetichismo da
mercadoria que está intimamente ligado ao mais-valor é peça fundamental para compreender
como as relações de produção podem não aparecem como são realmente, relações de
exploração. Neste sentido, Rubin (1928) opõe-se à concepção de Hilferding (1970), segundo o
qual a emergência histórica do papel-moeda (moeda fiduciária), face à moeda metálica,
permite a abolição da “objetivação” das relações de produção, da mesma forma que a visão
oposta de Bogdanov, para quem o papel-moeda constitui ainda um grau ainda mais sofisticado
de fetichização das relações sociais 14
. À medida que os produtos do trabalho possuem uma
dupla essência, material (natural-técnica) e funcional (social), as relações entre estes dois
aspectos revelam que a expressão das determinações sociais do trabalho reveste,
inevitavelmente, características materiais, ao mesmo tempo em que os objetos insinuam
apresentarem-se segundo características sociais.
Nos dias atuais, saltam aos olhos a penosa situação do trabalho produtivo e do trabalho
improdutivo como categorias rapidamente esquecidas ou negligenciadas pela análise
econômica, mas que retornam à cena depois de terem sido objeto de discussão mais minuciosa
durante os anos 1970 do século passado. Deste modo, para a visão de Hodgskin, a contradição
entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo não pode ser colocada, pois ele mesmo é
colhido pelo fetiche do capital, negando-se a reconhecer que o próprio trabalho pode ser
produtivo, como pode não ser. O trabalho não produtivo é pago pelo mais-valor produzido
pelo trabalho produtivo.
Todavia, a definição formal de trabalho produtivo é para Marx a única definição
rigorosa, pois sua inscrição analítica com o processo do capital assume aí um caráter de
relação social de produção, não sendo somente uma massa indiferenciada de meios produtivos,
14
Rubine, Isaak I. Essais sur la théorie de la valeur de Marx, Paris, Syllepse, 2009.
10
mas um conjunto material relativo às relações concretas do trabalho humano de determinada
sociedade. Destarte, Marx é incisivo quanto à determinação material do trabalho e de seu
produto não possuírem nenhuma distinção relevante no que tange à sua divisão interior entre
trabalho produtivo e improdutivo. Com efeito, o trabalho produtivo não possui
necessariamente materialidade, o que concede originalidade da crítica radical marxista à
economia política burguesa.
A definição de trabalho produtivo (e também de seu contrário, o trabalho improdutivo) se
baseia no fato de que a produção capitalista é produção de mais-valor e de que o trabalho
por ele empregado ser trabalho produtor de mais-valor15
.
Na perspectiva da análise de classes, Altvater e Freerkhuissen (1973) propõem que as
categorias trabalho produtivo e improdutivo podem ser consideradas pertinentes na
compreensão dos conflitos imediatos de classe e das condições de reprodução do capital. De
modo geral, a diferença entre o trabalhador produtivo daquele que é improdutivo vincula-se ao
fato que o sobretrabalho do trabalhador produtivo se concretiza num sobreproduto, o que
significa que, nas condições de produção capitalistas, num mais-valor, enquanto que o
sobretrabalho do trabalhador improdutivo implica na redução dos necessários custos
improdutivos (faux frais16
) e libera, consequentemente, capital para um emprego produtivo17
.
A forma salário e a salarização crescente do trabalho sob o capitalismo apaga, portanto, todas
as conexões aparentes entre a jornada de trabalho necessário e sobretrabalho, quando todo
trabalho aparece como pago. A forma salarial é também uma forma fetichizada, sendo que
toda a função e resultado do trabalho socialmente necessário, além do próprio sobretrabalho
surgem de diferenças quanto ao desenvolvimento desta aparência. Ainda que o trabalho
produtivo não produza mais-valor, ele está subsumido, enquanto faux frais da produção, às
15
Marx, Karl. Un chapitre inédit du capital. Traduction de l’Allemand et présentation de Roger Dangeville. Paris:
Union générale d’Éditions,1971. 16
Em inglês o conceito é "incidental operating expenses" (despesas operacionais incidentais), os quais
geralmente deriva dos investimentos em capital produtivo, cuja ocorrência não adiciona novo valor ao produto.
Na “contabilidade social” marxista, os faux frais são um componente do capital do constante ou estão
relacionados com uma fração de novo mais-valor. 17
Altvater, E. , Freerkhuissen. Du travail productif et improductif, Critiques de Leconomie Politique, Paris, nº 10,
janvier-mars, 1973, p. 76-113.
11
condições de produção de mais-valor e de exploração do trabalho produtivo. Neste sentido, em
relação ao capital de companhias de seguro Marx observa que:
Os lucros das empresas de seguros – bem como os capitais que são empregados nos
empreendimentos de seguros e controlados nessa distribuição – devem ser deduzidos dessa
distribuição uniforme de perdas. Estas companhias recebem uma parte do mais-valor de
mesma forma que os capitalistas mercantis ou financistas fazem, sem alguma participação
direta na produção. Essa é uma questão de distribuição de mais-valor entre os diferentes
tipos de capitalistas e das deduções que são, consequentemente, realizadas (com o mais-
valor sendo acrescido) para os capitalistas individualmente considerados. Isso nada tem a
ver com a natureza ou com a magnitude do excedente obtido. O trabalhador não pode
acrescentar mais nada além do que seu sobretrabalho18
.
A suposição de Hodgskin é a de que os capitalistas são detentores de dinheiro e crédito
juntamente com outros capitalistas, juntamente com o poder, sancionado em lei, sobre a mão-
de-obra do trabalhador. Todavia, o poder do capitalista sobre os trabalhadores também possui
base material na posse de dinheiro. O dinheiro confere, portanto, o comando sobre um coletivo
humano, sobre o trabalho realizado nas mercadorias e sobre a reprodução do próprio trabalho.
A superposição do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo adquirem complexidade
inaudita com a financeirização. Lapavitsas (2010) conclui que n’O Capital a abordagem das
finanças não prioriza o papel do rentier como estrato separado da acumulação em geral. O
próprio capital de empréstimo é visto como emergindo espontaneamente através da circulação
do capital industrial e de outras esferas, nas quais aparece como dinheiro potencialmente
ocioso através da aceleração do tempo de circulação (turn over time). Estes capitais
monetizados (“monied capital”) não pertencem a uma esfera específica de capitalistas das
finanças e nem legitima a formação de um segmento social distinto de capitalistas
recipiendários de juros enquanto fração de classe. O lócus do sistema financeiro como um
conjunto de mercados e instituições que opera como capitalistas à parte, define, desse modo, a
mobilização do capital creditício e a sustentação da acumulação capitalista. A financeirização
não é aqui o triunfo do rentista sobre o capitalista produtivo.
18
Marx, K. Theories of Surplus-Value, Progress Publishers, 1999. Edição e-book, preparada por J Eduardo
Brissos, http://www.marxists.org/archive/marx/works/1863/theories-surplus-value/ capturado em 05.03.2012.
12
Desse modo, o que relevante para a acumulação dominada pelas finanças não é tão
somente um hegemon intraclasse favorável aos setores financeiros. A esfera do trabalho
produtivo e improdutivo organizada pelas finanças permite que os trabalhadores indiretamente
produtivos diminuam no tempo os ciclos do capital, tornando mais eficazes as fases de
realização da mercadoria em dinheiro e do dinheiro em capital. Uma vez remunerados pelo
mais-valor, o emprego de trabalhadores que estabelece o vínculo da acumulação dominada
pelas finanças (financeirizada) com as outras esferas da acumulação, amplia a importância da
financeirização enquanto transformação sistêmica de economias capitalistas, cujos traços
distintivos alcançaram proeminência com a crise de 2007-9. Numa primeira instância, pode–se
constatar uma mudança profunda na relação entre as grandes empresas “não-financeiras” e os
bancos, quando o desenvolvimento das finanças internas e a busca de financiamento externo
no mercado aberto foi intensificado pelas primeiras. Por outro lado, as grandes corporações
adquiriram capacidade financeira dotada de grande autonomia, ou seja, tornaram-se empresas
financeirizadas.
Na mesma direção, os bancos alteraram seu modus operandi, passando a atuar no
mercado aberto para a obtenção de rendimentos, comissões financeiras e lucros com
transações comerciais. Além disso, os bancos voltaram-se para operações centradas em
demandas individuais específicas em termos de empréstimos e da manipulação com ativos
financeiros. Por seu turno, a transformação na esfera bancária baseou-se num intenso
progresso tecnológico, cujas derivações permitiram um forte incentivo de práticas de gestão de
risco mais especulativas. Outro segmento de considerável crescimento é a base de
trabalhadores individuais e agregados familiares que foram capturados pelo sistema
financeiro, tanto no que diz respeito ao endividamento destas unidades, quanto à condição de
detentores de ativos financeiros. A contrapartida destas expansões financeirizadas é a retirada
da provisão pública da habitação, saúde, seguridade social, educação, bem como de outros
espaços da esfera de financiamento público, aumentando ainda mais o domínio individual da
financeirização das rendas e a estagnação dos salários enquanto rendimento pessoal e
funcional. Como resultado, verifica-se o incremento de modalidades de apropriação de renda
através da transferência direta de renda pessoal, com as quais os bancos extraem seus lucros
num processo conhecido de expropriação financeira.
13
De modo semelhante, a magnificação do trabalho coexistente é problemática. Como
forma supostamente evoluída da produção imaterial e da autonomia do conhecimento do
capitalismo organizado em rede, em que pesem suas importantes contribuições para o
entendimento da chamada modernidade, contém limitações no reconhecimento de conflitos de
classe colocados pela financeirização. Neste sentido, a teoria marxista do valor alcança grande
pertinência. Se é tomado o exemplo da produção imaterial e do conhecimento embarcado nas
tecnologias de comunicação e informação, o exemplo do iPad®, serve como ilustração com
significativo poder de argumentação. De uma forma geral, este seria um contra-exemplo à
abordagem da teoria do valor. Neste raciocínio, o trabalho físico direto do trabalhador para a
montagem de tablets representa pouca coisa, diante do valor aportado em termos de
conhecimento acumulado pelos softwares e pelas aplicações em torno deste equipamento.
Noutros termos, o trabalho mental, cognitivo, de concepção que escapa ao trabalho passado
como capital ou trabalho passado acumulado da economia política burguesa e se aproxima
do trabalho coexistente, assumiria forte aderência à realidade. Entretanto, a profunda
socialização do tempo de trabalho e a emergência de processo produtivos complexos não se
limita à imediata montagem de um artefato eletrônico, ele mesmo símbolo de um fetichismo
digital, dotado de notável domínio na esfera de consumo mundial. O ciclo do capital envolvido
em sua construção mobiliza, ao contrário, uma enorme massa de trabalho em seu ciclo
produtivo (seja de laptops, smartphones, de e-readers, etc.) 19
. Sob a forma de trabalho
coexistente apagam-se assim os rastros da dominação do capital sob sua forma mais
fetichizada. Esta conclusão evoca o tema da seção seguinte, procurando aproximar o capital
fictício e a financeirização.
19
Um dos pontos essenciais é que toda a unidade produtiva não pode ser posta em movimento para produzir
apenas um cento de iPads. Torna-se necessário produzir ao menos alguns milhões. À primeira vista, poderia
parecer que o trabalho intelectual necessário ao desenvolvimento do programa do iPad engendre, ele mesmo, o
valor, independentemente do resto do ciclo produtivo. Mas, isto seria dizer que o valor gerado por este trabalho
intelectual é independente do número de iPads que são produzidos. Na realidade, não se passa desta maneira o
processo. Se ele naõ fizesse parte de um ciclo que prevê a produção segundo modalidades fordistas de cem
milhões de iPads, este trabalho intelectual não engendraria praticamente nenhuma valor. Ver, Ming, Wu.
Fétichisme de la marchandise digitale et exploitation cachée : les cas Amazon et Apple
http://www.article11.info/?Fetichisme-de-la-marchandise Capturado em 05.03.2012 .
14
4. Capital fictício e financeirização: as palavras e as coisas
O crescimento do setor financeiro e o respectivo aumento de seu poderio e significado
econômico na sociedade capitalista moderna é relativamente recente, datando dos meados do
século passado. A Figura 1 apresenta a razão Setor financeiro/ PIB secular para os Estados
Unidos. Nota-se que entre a primeira metade do século XIX e a do século XX sua evolução
média foi entrecortada por variações bruscas, associadas ás crises econômicas e financeiras
importantes. Uma reversão importante se dá com a crise e depressão dos anos 1930 e persiste
até o final da Segunda Guerra Mundial, declinado sua proporção aos níveis da última década
do século anterior. Depois disso, sua expansão tendencial é intensa, antes da crise estrutural de
2011. Vê-se que uma linha de continuidade histórica entre capital fictício e financeirização
apresentam assim uma tendência secular.
Figura 1 – Setor Financeiro como percentagem do PIB dos EUA – 1850 - 2009
Fonte: The evolution of the US Financial Industry from 1860 to 2007: Theory and Evidence NBER
Extraído do Relatório “Financialization and Its Entrepreneurial Consequences, março 2001,
Kauffman Foundation Research Series”.
Fonte: The evolution of the US Financial Industry from 1860 to 2007: Theory and Evidence NBER
Extraído do Relatório “Financialization and Its Entrepreneurial Consequences, março 2001,
Kauffman Foundation Research Series”.
Esse ponto ressalta uma aproximação conceitual do capital financeiro de Hilferding
com o capital fictício de Marx, à proporção que a vertente autonomizada e “curto-circuitada”
do capital fictício, despregada de sua fonte original na acumulação produtiva, adquire um élan
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vital com impressionante força no cenário das finanças globalizadas. Mais precisamente, da
“formação de circuitos de créditos e valores securitizados que estão relativamente divorciados
da acumulação industrial de capital, permitindo a expansão de instituições financeiras sem o
vínculo direto com a indústria”, que se torna em loci preferencial de valorização financeira,
em função da mobilidade dos ativos em suas estruturas e dos rendimentos possíveis de serem
realizados em períodos mais abreviados. Trata-se do percurso do capital financeiro superando
e fundindo formas parciais em que se fraciona o capital – o capital sans phrase – que percorre
suas distintas órbitas sem se fixar em cada uma delas, enquanto capital monopolizado: as
megafusões e as megaespeculações constituem resultados sintomáticos desse processo.
Nesta mesma direção, Chesnais (2006) extrapola a noção de capital fictício aduzindo o
fato que ele concretiza a análise do fetichismo inerente ao capital portador de juros ou de
investimento financeiro em sua forma mais geral. Essa categoria seria exclusivamente
encontrada em Marx, cujas linhas gerais exprimem a natureza dos títulos emitidos como
contrapartida dos empréstimos às entidades públicas ou às empresas, sob a forma de
obrigações, ou ainda no reconhecimento de participação no financiamento do capital de uma
empresa (mais comumente o capital inicial). O conteúdo econômico dos títulos diz respeito às
pretensões dos mesmos na participação da divisão do lucro empresarial, cuja amplitude está
fixada pelas normas específicas de definição do valor acionário.
Da mesma forma, o capital fictício permite aos seus beneficiários a apropriação de
rendimentos pelo viés do serviço da dívida pública, proveniente da redistribuição das rendas
centralizadas pelo imposto (fiscalidade). O movimento de sua contradição acirra-se à
proporção que seus detentores utilizam estes títulos negociáveis, indistintamente, como
“capital” dotado de propriedades de gerar rendas regulares sob a forma de juros ou dividendos.
Essa natureza de “capital” é conferida não somente pela pelas apropriações de valor que eles
autorizam, mas pela capacidade de sua concessão irrestrita nos mercados financeiros e de
serem recuperados como somas líquidas que podem ser novamente aplicadas, consumidas em
seu sentido próprio, ou seja, converterem-se em componentes da demanda agregada
capitalista. Não obstante, vista da perspectiva do movimento do capital produtivo de valor e de
mais-valor, estes títulos não são capital.
Um aspecto central na evolução da categoria capital fictício transparece no aspecto
estagnação-financeirização. No contexto americano, essa situação fica bem evidente pela
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especulação imobiliária, quando a manutenção de estilos de vida fica amparado em sistemas
de alto endividamento, a exemplo dos empréstimos imobiliários com alienação fiduciária
(home equity). No âmbito brasileiro, a expansão de capital fictício segue um movimento
distinto e mais ligado às formas de endividamento que poderiam ser consideradas endêmicas,
vinculadas à expansão da dívida pública, as quais são mais próximas da economia de
endividamento (overdraft). Assim sendo, a criação monetária efetua-se pelo encadeamento de
empréstimos, mediante a transferência de créditos entre as unidades credoras/devedoras. Com
efeito, a expansão monetária tende a gerar “excessos” diante da um nível de renda ou de gasto
agregado pré-definido. Este excesso monetário será eliminado através de débitos pagos ou na
conversão dos mesmos em haveres que podem ser capitalizados na forma de juros.
Na mesma direção, Chattopadhyay (2004) identifica no plano teorético e analítico
alguns aspectos fundamentais do capital fictício. Em primeiro lugar, seu movimento está
ligado pró-ciclicamente à expansão capitalista. À medida que este progride em sua forma
considerada “normal”, garantindo os refluxos do crédito de capital, o capital fictício se
mantém e se amplia. De outro modo, logo que a acumulação esbarre contra entraves ao seu
incremento, com a retração das atividades produtivas e comerciais, acúmulo de estoques de
invendíveis no mercado, seguido de queda nos preços, a superabundância relativa de capital
industrial sob uma forma que impede o cumprimento de sua função precípua.
A parte do valor-capital que existe sob a forma de títulos da mais-valor antecipada
encontra-se, assim, depreciada, uma vez que as receitas sobre as quais elas são calculadas
também estão diminuídas. A cadeia de obrigações de pagamento em vista de liquidação fica
deste modo, rompida em múltiplos fragmentos, contribuindo para a crise de crédito, cujas
repercussões são violentas e concorrem decisivamente para o declínio da reprodução total.
Contudo, uma vez que o processo de reprodução tenha alcançado uma condição de
prosperidade que precede o estado expansivo, forçando uma tensão extrema, o capital fictício
atinge um grande aumento de volume20
. Hilferding (1985), teria assim utilizado a noção de
capital fictício como uma ponte pênsil entre as crises de desproporção, estabelecida pelos
20
Este aspecto é o mais contraditório do capital fictício em Marx. Se por um lado ele funciona como alavanca da
superprodução e da superespeculação comercial desenfreadas, atuando sobre a reprodução do capital em seu
extremo limite, acelerando as explosões violentas (estouro de ‘bolhas’ financeiras) e crises que dissolvem o
“modo de produção capitalista”, de outra maneira, ele cria um modo de produção para além do capital – um
“modo de produção acionário”.
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departamentos do capital social e a expansão do capital financeiro através das categorias de
“dividendos” e “lucros de fundador”, tornados assim possíveis pela centralização dos capitais.
A separação entre propriedade e função do capital produzida pelo capital fictício, modela a
expansão das sociedades por ações até os dias atuais.
Não obstante, a análise pós-keynesiana abstrai e ignora o capital fictício, o qual não
possui existência que na divergência entre os preços “ativos reais” e “ativos financeiros”
evocados mais adiante21
. A autonomização destes gera uma crise endógena ou cíclica no seio
de mecanismos econômicos e regularidades sociais que são desequilíbrios parciais e
provisórios, que se sustentam e são superáveis no quadro do modo de regulação em vigência,
nos termos de “pequenas crises” o que, por seu turno, transforma o ciclo de crescimento desse
capital fictício num regime de acumulação puxado pelas finanças22
. Este ciclo conjuga os
movimentos de preços dos dois “tipos de ativos” funcionando, independentemente, em cada
mercado. A análise pós-keynesiana enfatiza a conjuntura do mercado financeiro como o fator
chave no desenrolar efetivo dos ciclos econômicos. O desajustamento entre o custo de
produção dos ativos reais e a sua avaliação no mercado financeiro contribui de forma decisiva
para a instabilidade financeira das empresas. No entanto, a dinâmica cíclica observa uma
clivagem fundamental. Com efeito, os custos de produção dos ativos reais dependem do
processo de mercado real e tendem a se modificar lentamente. Por sua vez, os preços dos
ativos financeiros possuem uma reação rápida aos humores do mercado financeiro.
Na fase ascendente do ciclo econômico as empresas são incentivadas tomar capital de
empréstimo e a aumentar a relação dívidas/fundos próprios, intentando financiar novos
investimentos. À medida que a expansão prossegue, as posições financeiras dos tomadores de
recursos financeiros incentivados pela especulação, que se refletem nos preços desses ativos,
crescem muito mais rapidamente que os custos dos ativos reais. Na seqüência, têm-se um
contínuo alargamento da brecha formada entre o fluxo antecipado e o fluxo realizado que,
inicialmente é favorável à expansão, prosseguindo num regime virtuoso de crescimento
financeirizado, quando os efeitos patrimoniais induzem um comportamento do investimento
21
A análise pós-keynesiana parte de três fundamentos originários de Keynes: a) o tempo histórico; b) o futuro
incerto e não-ergódigo (probabilizável) e c) economia monetária (monetarizada) de produção de empresa
moderna. 22
Esta questão aproxima a abordagem pós-keynesiana dos desenvolvimentos da abordagem da regulação
francesa.
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determinado pela rentabilidade dos ativos. Entretanto, esta expansão torna-se cada vez mais
desfavorecida pela estrutura financeira tornada mais precária e frágil. Finalmente a bolha
especulativa estoura com a chegada da recessão/depressão. Esta fase é a purgação dos capitais
produtivos e financeiros em pletora. A estagnação prolongada está ausente de seu mecanismo.
Finalmente, o período de recuperação permite que o processo venha a repetir-se outra vez.
De uma maneira geral, a análise pós-keynesiana do capital compartilha com o
paradigma analítico de MARX-HILFERDING (MH) a instabilidade inerente da economia
monetarizada que se erige sobre um sistema de empresa com decisões descentralizadas e
propriedade privada. O máximo que estes problemas de coordenação macroeconômica podem
conduzir é a existência de ciclos de demanda efetiva23
. Desta forma, o capital deixa de ser uma
relação de produção historicamente determinada para ser um construto coisificado com
propriedades teóricas, formando, de um lado, recursos produtivos dotados de capacidade
produtiva na geração de excedentes e, de outro, uma quantidade monetária capaz de gerar mais
dinheiro. A redução da crise a sua tão somente dimensão financeira oculta as capacidades que
o crédito possui no capitalismo. A natureza cíclica de um ciclo “puro” do capital produtivo e
de um ciclo “puro” do capital financeiro é completamente estorvada pelas próprias tendências
do capital em seu movimento geral. Nos termos, de Marx a fictização do capital é uma
tendência necessária que se desenvolve a partir do crédito e das inovações financeiras que o
crédito ao capital adquire ao se substantivar. Um ciclo sem tempo tem que se inscrever no
tempo dos ciclos24
. No movimento dos capitais numerosos premidos pela concorrência
intercapitalista, sua aparição fictícia é a diferença que cada um em particular procure se
colocar frentes aos outros. Esta alteridade incessantemente buscada é que o permite ultrapassar
seus limites quantitativos.
23
Este aspecto remete à uma discussão que em função da polêmica epistemológica envolvida não caberia ser
discutida aqui, mas que procura integrar de forma “teórica” e “analítica” tendência e ciclo econômico. A
controvérsia repousa sobre componentes “autônomos” e “induzidos” do investimento associados,
respectivamente, à demanda efetiva (ciclo) e à mudança estrutural (tendência). 24
A tendência necessária do capital é: circulação sem tempo de circulação; esta tendência é a determinação
fundamental do crédito e das invenções de crédito do capital. […] O maior resultado que o crédito aporta nesta
via é o capital fictício; de outro modo, o crédito aparece enquanto um novo elemento de concentração, de
destruição de capitais em capitais particulares centralizados. De certa maneira, o tempo de circulação do dinheiro
é objetivado […] O antagonismo do tempo de trabalho e do tempo de circulação contém toda a teoria do crédito,
à medida que a história da circulação intervém », Marx, Grundrisse (1985).
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5. Conclusões
A proto-economia política da financeirização surge com a crise da economia política
ricardiana, ainda no primeiro quartel do século XIX, quando as grandes questões levantadas
pelos desenvolvimentos teóricos deste autor – dentre elas a problemática da repartição da
renda entre as classes sociais organizadas sob o capitalismo industrial - e de seus seguidores,
entraram em franco declínio. Daí em diante a chamada “economia vulgar”, utilizando-se uma
expressão de Marx, estabeleceu um diapasão mais moderado para o debate, conduzido em
termos escolásticos. Os ricardianos de “esquerda” como Hodgskin, procuraram através da
crítica ao ricardianismo conservador e na defesa dos interesses das classes trabalhadoras,
aproximar a economia política para construção de argumentos teóricos e políticos que
fortalecessem os argumentos do “trabalho contra as pretensões do capital”. Contudo, capital e
trabalho lograram permanecer como categorias fetichizadas, enquanto a teoria sobre o “mais-
valor” não era formulada, o que restringiu a reflexão teórica, mas contou com
desenvolvimentos embrionários fecundos, capazes de se aproximar de categorias de análise
mais consistentes. Neste ponto justamente, interrompem-se os aportes de Hodgskin:
reconhecendo os limites expansivos da taxa de lucro e sua tendência declinante nos contornos
de uma acumulação real cada vez mais estreitada, restringida pela acumulação financeira ou
em “juros compostos”, segundo sua expressão peculiar.
Neste âmbito, luz e sombra se projetam no conceito de capital fictício proveniente de
Marx e nos desenvolvimentos contemporâneos que acordam quanto ao seu vertiginoso
desenvolvimento no capitalismo recente sob a forma de financeirização. Nos limites da
presente conclusão, não serão discutidas as possíveis controvérsias quanto a pacifica aceitação
da convergência conceitual dessas construções. Admite-se, entretanto, como em qualquer
movimento categorial em busca de expressão mais rigorosa, uma identidade provisória que
possibilita sua percepção nos movimentos longos da história.
A expansão do capital fictício e a sua crescente transformação em capital
financeirizado ultrapassa a mera superfície de um universo virtual de intercâmbios monetários
sem contrapartidas no mundo real. Para além dele, o investimento financeiro deixa de ser uma
mera transferência de ativos, para ser também uma utilização da renda. Os empregos da renda
20
sob forma financeira e a expropriação rentista do sobretrabalho são, deste modo, marco
referencial de uma economia política da financeirização.
6. Bibliografia
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