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Entre as brasilidades e o pan-americanismo: os discursos identitários nos livros
didáticos de História do Brasil e História da América de Antônio José Borges Hermida e
Joaquim Silva (1951-1961)
FELIPE AUGUSTO DOS SANTOS VAZ
Resumo
Esta comunicação procede das pretensões presentes no projeto de pesquisa apresentado como
parte do processo seletivo ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de São Paulo, o qual toma como objeto de estudo livros didáticos de história. Objetos
de cultura detentores de significativa centralidade nas práticas pedagógicas, as obras didáticas
resultam de um complexo processo circunscrito por disputas de narrativas que tencionam
fazer valer determinadas memórias, legitimando certos sentidos no complexo jogo de tensões
que demarcam os contornos do campo sociocultural. Nessa lógica, sondando as narrativas que
conformaram os discursos identitários brasileiro e pan-americano, entre 1951 e 1961, bem
como percebendo o grau de importância estabelecido entre ambos, aspira-se perceber o papel
que os livros didáticos de História do Brasil e História da América desempenharam aos
projetos em questão. Para isso, predisponho a análise de quatro obras específicas, cujas
autorias são legadas a dois dos maiores escritores do ramo editorial de didáticos: a saber,
História do Brasil: para a primeira série do ginasial e História da América: 2ª série: curso
ginasial, de Antônio José Borges Hermida e História do Brasil: para a primeira série
ginasial e História da América para a segunda série do ginasial, de Joaquim Silva.
Palavras-chave: Brasilidades; Livros didáticos; Pan-Americanismo.
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
1
Introdução
Há décadas, o livro didático vem sendo objeto de estudo na academia com enfoques e
perspectivas distintas. Em todo mundo, é crescente o número de trabalhos que procuram
analisar desde a produção até os usos destes materiais, tomando como tópicos precípuos duas
possibilidades de pesquisa que - conforme Alain Choppin - dificilmente são abordadas de
maneiras completamente desmembradas: a primeira, ligada à materialidade dos manuais –
permeando, portanto, suas particularidades mercadológicas -; a segunda, propensa às
abordagens dos conteúdos que os compõem (CHOPPIN, 2004: p. 552).
Os livros didáticos se constituem como mercadorias que promovem a circulação de
determinados modelos culturais, com ideias que tornam - ou, pelo menos, tencionam tornar -
vigente um pensamento coletivo – sendo organizados, portanto, a fim de atuarem como
instrumentos unificadores, que suscitam determinadas representações1 da realidade vivida.
O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade para
educar as novas gerações, fornecendo uma imagem deformada,
esquematizada, modelada, freqüentemente de forma favorável: as ações
contrárias à moral são quase sempre punidas exemplarmente; os conflitos
sociais, os atos delituosos ou a violência cotidiana são sistematicamente
silenciados (CHOPPIN, 2004: p. 557).
Objetos de cultura que derivam de um complexo processo estruturado por "guerras de
narrativas" (LAVILLE, 1999), "estratégias de apropriação" (CHARTIER, 2002) e relações e
lugares de poder2, estes materiais fazem despontar uma constante preocupação no que diz
respeito à sua construção ao longo da história - justificando, assim, as diversas políticas de
controle impostas sobre sua confecção3.
Atentando às circunstâncias que estruturaram a década de 1950, pode-se dizer que
estes materiais circularam em um contexto marcado pelo crescente questionamento de seu
papel na educação (FILGUEIRAS, 2011: p. 83). No período em questão, frente ao alvorecer
de uma nova conjuntura - caracterizada, dentre outras coisas, pelos desvelos de
democratização do ensino -, assistiu-se a manifestação de esforços que visavam trazer, cada
1 Este trabalho toma como referência o conceito de representação cunhado por Roger Chartier, compreendido
como um processo de construção de sentidos, no qual os discursos tendem a apreender, estruturar e moldar o
mundo. (CHARTIER, 2002). 2 Este trabalho compreende como “lugares de poder” determinados espaços estabelecidos dentro de um campo
sociocultural, cujos agentes possuem posicionamentos que o tornam detentores do capital cultural. Esses
espaços, por sua vez, relacionam-se – muitas vezes através de situações conflitantes -, traçando, assim, as
disputas desencadeadas naquele campo. (BOURDIEU, 1989: pp. 133-161). 3 Debruçando-se sobre as estruturas e o funcionamento dos órgãos de avaliação ao longo do tempo,
FILGUEIRAS (2011) nos ajuda a compreender a "história da política nacional para o livro didático no Brasil nos
diferentes contextos históricos" (p. 4).
2
vez mais, flexibilidade e cientificidade aos programas curriculares, conformando e articulando
um novo sentido às disputas que até então abalizavam o quadro educacional. Contudo, apesar
dos debates movidos, nenhuma profunda alteração fora notada na ordenação dos conteúdos
dos manuais de história direcionados ao alunado4.
Um dos aspectos mais marcantes dessa continuidade fora as abordagens voltadas à
composição e ratificação do nacionalismo. Vale lembrar, as obras didáticas, “profundamente
inscritos no processo de escolarização, contribuíram, em sua expressão pedagógica, na
construção das identidades nacionais” (GASPARELLO, 2004. p. 18). No caso brasileiro os
acontecimentos seguiram a mesma lógica, com a elaboração de compêndios intrinsecamente
voltados ao despertar do amor à Pátria. Seja ao longo do período Imperial ou no decorrer do
regime republicano, os tais materiais carregaram consigo discursos nacionalizantes, inerentes
à sua conjuntura histórica - pelo menos, até certo ponto.
Nos anos 50, preconizara-se um novo modo de pensar a brasilidade. Nos
apontamentos levantados por BERNARDES (2010), tem-se verificado que tal
empreendimento não mais figuraria “de maneira ufanista apregoada pelo Estado desde o
início da República até o período getulista” (p. 38), mas sim envidaria esforços na construção
de uma consciência que facultasse o devido amor à Nação brasileira e, sobretudo,
proporcionasse uma espécie de solidariedade e reconhecimento para com os demais Estados
Nacionais, afinal,
Nacionalismo e solidariedade internacional não se opõem: fortalecidos os laços que
unem o homem ao habitante de sua localidade ou país, é talvez mais fácil
robustecer os que o ligam ao ‘próximo’ mais distante; e as responsabilidades para
com a pátria, não fazem esquecer os deveres para com a humanidade. A era da
Democracia e das Nações Unidas não mais concebe o patriotismo de maneira
estreita, egoísta ou exclusivista (CASTRO Apud BERNARDES, 2010: p. 39).
Para além de intimamente ligada às políticas diplomáticas da Organização das Nações
Unidas para a Educação, para a Ciência e a Cultura (UNESCO), e levando-se em conta as
particularidades conjunturais do período - em virtude da Guerra Fria -, a aproximação entre
4 Sobre a assiduidade dos temas nos livros utilizados pelo ensino secundário, Rodolfo Calil Bernardes discorre,
por exemplo, que "(...) nos livros considerados modernizados na década de 70, 'o conteúdo veiculado é
basicamente o mesmo das obras de 1940 e 1950', o que nos fornece indícios de uma continuidade ainda mais
prolongada dos temas selecionados pela disciplina (...)" (BERNARDES, 2010: p.15).
3
Brasil e Estados Unidos deteve significativo impacto a essa nova forma de pensar o caráter
nacional – passando a adequar-se à lógica pan-americanista norte-americana5.
Diante tais considerações, esta investigação pauta-se por compreender a tentativa de
manutenção das identidades nacional brasileira e pan-americana, entre as décadas de 50 e 60,
com o propósito de perceber o papel que os livros didáticos de História do Brasil e História da
América desempenharam aos projetos em questão, pontuando os conflitos de narrativas em
seus respectivos processos formativos, tal como as relações de poder estabelecidas entre
ambas as propostas. Tomaram-se como marcos temporal os anos de 1951 e 1961, datas que
correspondem, respectivamente, à sanção da lei nº 1.359/51 - que instituíra uma nova seriação
à disciplina História e tornava autônoma a cadeira de História da América - e à aprovação da
lei nº 4.024/61 - que outorgara a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) brasileira - com
reflexos significativos à organização dos programas curriculares.
Pensando na predileção dos objetos que este estudo contempla, expõe-se que a lógica
de seleção das fontes utilizadas se orienta por dois caminhos: a princípio, enveredando-se às
questões mercadológicas dos manuais e, a partir disto, direcionando-se às especificidades
ligadas aos sujeitos que os escreveram. Logo, serão levados em conta dois títulos voltados à
disciplina de História do Brasil, com o maior número de vendagens, e, com base em seus
autores, considerados dois títulos correlatos ligados ao ensino de História da América, sendo
eles, portanto, o História do Brasil: para a primeira série do ginasial, de Antônio José
Borges Hermida, e História do Brasil: para a primeira série ginasial, de Joaquim Silva; bem
como, respectivamente, as obras História da América: 2ª série: curso ginasial e História da
América para a segunda série do ginasial - todas publicadas sob o selo da Companhia Editora
Nacional (CEN), tomada como uma das maiores e mais importantes casas editoriais
brasileiras do século XX (TOLEDO, 2004).
Problema e justificativas
Dissertando sobre a legitimidade da ciência histórica, Marc Bloch propusera, dentre
outras coisas, o seguinte questionamento: o que, precisamente, torna legítimo um esforço
intelectual? (BLOCH, 2001: p. 44). Conforme havia pontuado, toda pesquisa em história se
5 Consubstanciada na Doutrina Monroe – que se pautava na lógica da “América para os americanos” -, o pan-
americanismo da década de 50 carregava consigo uma nova política de relações entre os Estados americanos,
deliberada pela política do "Boa-Vizinhança".
4
comporta como um esforço para conhecer melhor algo em movimento. A busca pelo
conhecimento histórico tem seu desenvolvimento motivado graças às necessidades -
encontradas pelo historiador - de compreensão dos sujeitos e estruturas que sustentam as
conjunturas ao longo do tempo – encontrando no passado razões que explicam as condições
do tempo presente. “Eis portanto o historiador chamado a prestar contas” (Ibid, p. 41).
Em virtude de tais observações, deve ser destacado que apesar de se dispor a
investigar determinadas questões referentes às representações sociais orquestradas por um
lugar de poder no passado, o projeto que ora se apresenta lida com noções ainda muito vivas
no tempo presente - sobretudo no que diz respeito ao apagamento dos conflitos sociais
coordenados por determinados setores, através dos elementos que compõem o sistema
educacional (TOLEDO; MACHADO, 2017). Num momento em que, mais uma vez, o Saber
Histórico Escolar encontra-se em xeque, as considerações a serem tecidas buscam, de um
modo geral, ampliar as discussões em relação aos estudos preestabelecidos no que se refere
aos programas educacionais propostos pelo Estado, fazendo-se notar certas propriedades que
delineiam os desígnios sociopolíticos ligados ao processo de organização do ensino.
Reiterando que a presente pesquisa toma como pano de fundo a conjuntura dos anos
1950, faz-se necessário destacar alguns fatores que caracterizaram o período em questão, para
assim, justificar tal propensão. No contexto mundial, com o fim da Segunda Guerra, a queda
dos regimes totalitários se constituiu como um acontecimento imprescindível à nova
conformação das relações sociais estabelecidas - marcadas pela promoção, em muitos
Estados, de práticas e ideias democráticas. No Brasil, com o fim do Estado Novo -
concomitantemente ao término do conflito mundial -, surge uma série de reivindicações por
parte dos setores sociais marginalizados, concebendo-se, desse modo, o advento de uma
“vacilante” (FICO in: MOTA, 2000), mas ainda assim, democracia - que perdurará até o
golpe militar em 1964.
No campo da Educação, acentuadas mudanças seriam registradas como frutos dos
reflexos desta nova conjuntura - sobretudo, no que diz respeito ao ensino secundário.
Considerado, àquela época, como um caminho à ascensão social dos indivíduos, os embates
em torno de sua descentralização, bem como as exigências das camadas populares, fez
desencadear o início de sua ampliação - caracterizada pelo contínuo aumento do número de
alunos; a expansão do número de escolas, bem como a grande procura, empreendida pelo
Estado, por professores a fim de serem atendidas as demandas assistidas.
5
Porém, apesar de sua democratização, as insatisfações ainda eram muitas. Havia um
imenso descompasso entre o modelo de ensino vigente - voltado, até então, à formação de
uma pequena elite "condutora da nação" - e a nova realidade da cultura escolar - demarcada
por sua nova conformação social. Dessa maneira, as discussões sobre sua organização não
cessaram. Diversos intelectuais debruçaram-se sobre a problemática do ensino médio -
propondo, cada qual, modelos que levavam a cabo sua necessária manutenção.
De um modo geral, as pautas sobre a renovação do ensino girava em torno de pontos
como as causas e consequências de sua expansão; as discussões entre os defensores da escola
pública frente aos apologistas da escola privada; a preocupação quanto à formação adequada
do professorado; a criação de novos órgãos voltados às políticas de avaliação e criação dos
livros didáticos, bem como a flexibilidade da legislação educacional - adaptada, agora, às
novas exigências da configuração social do ensino.
No bojo destas abordagens, tem-se justificada, portanto, as vicissitudes das
investigações debruçarem-se acerca do ensino secundário - interpretado como um campo em
constante disputa, cujos agentes buscavam legitimar suas representações acerca da realidade.
Os embates em torno de sua organização ao longo do tempo se constituem como
circunstâncias significativas à compreensão da produção dos manuais escolares.
Nesse sentido, tomar os livros didáticos como objetos de análise justifica-se por um
encadeamento de fatores que salientam a importância econômica, pedagógica e, sobretudo,
político-ideológica (OLIVEIRA, 1984) que envolve seu processo de elaboração, circulação e
usos no decorrer da história. Desse conjunto, é oportuno destacar sua centralidade nas práticas
pedagógicas (SILVA, 2013); o fato de se constituírem como o material mais utilizado nas
escolas; sua capacidade de transpor às instituições escolares as orientações curriculares; seu
caráter de importante ferramenta tradicional na história ensinada, bem como por nortear as
atividades docentes (BITTENCOURT, 2009: pp. 293-321).
Agregado a isso, metodologicamente, tomar como ponto de partida a análise das obras
mais vendidas implica em considerar dados de grande relevância às investigações almejadas -
oferecendo, por exemplo, algumas pistas em relação às disputas estabelecidas entre Estado,
editoras, autores e outros sujeitos e instituições envolvidos no processo produtivo de tais
materiais. Obras com números significativos de vendagens pressupõe àquelas que passaram
pelo crivo dos órgãos avaliativos e detiveram grande aceitação nos meios escolares -
6
considerando-se, é claro, as estratégias de mercado utilizadas pelas casas editorias que
objetivavam ter maior aceitação de seus produtos.
Isso, por sua vez, nos ajuda a refletir sobre os motivos que explicam o fato de os
títulos aqui examinados pertencerem à Companhia Editora Nacional. Depositária de uma
expressiva política editorial, a instituição comandada por Octalles Marcondes Ferreira e
Monteiro Lobato, tanto pelas coleções publicadas quanto pela propaganda de seus livros -
conforme pontuado por TOLEDO (2010: p. 146) - deteve papel fundamental à produção e
distribuição dos manuais escolares entre as décadas de 1930 e 1970 - consolidando-se como
uma verdadeira "agência da educação moderna do público leitor" (Ibid., p.146). Além disso,
deve ser ressaltado seu posicionamento político-ideológico, pois
A ideia de que a Nacional constitui e reproduz em suas publicações a cultura
nacional e universal, contribuindo para o desenvolvimento da nação brasileira é
eixo fundamental da formação do empreendimento, a começar pelo próprio nome
da empresa, que, por um lado, propõe a unificação do território em termos de
distribuição comercial e, por outro, sugere a identidade cultural consumida pelos
livros por ela produzidos (Ibid., p. 146).
Logo, situado seu "lugar de origem", deve ser sublinhado que interpreto os livros didáticos
aqui examinados como significativos “(...) aparelhos de produção simbólica onde se
constituem suas linguagens e representações e por meio dos quais ela ganha uma realidade
própria” (MICELI In: BOURDIEU, 1999: p. XIII) - dando sentido a um determinado projeto
nacionalista.
Nessa lógica, deve ser sublinhado que debruçar-se sobre a questão do nacionalismo,
requer lidar com um determinado segmento do conceito de identidade - neste caso,
depositário de um caráter homogeneizador (BITTENCOURT, 1999: pp. 9-10).
Imprescindivelmente, a ideia de memória também vem à tona, visto que é através desta -
organizada por determinados grupos e produzindo, portanto, certas representações do social -
que se forja a identidade nacional - marcada, fortemente, pelo despertar de um sentimento de
pertencimento àquela cultura. Logo, os argumentos que explicam as abordagens promovidas
sobre tais conceitos partem da percepção de que os mesmos estiveram intrinsecamente
alinhados às propostas pedagógicas, os debates entre educadores de posturas ideológicas
diversas, às orientações de trabalho aos professores e aos manuais obrigatoriamente utilizados
pelos alunos (Ibid., p. 10).
7
Mas, tendo vista os motivos até aqui traçados, o que, afinal, justifica tomar como
marcos temporal os anos 1951 e 1961? Especificamente, em 1951, as reformas educacionais
outorgadas pelo ministro da educação Ernesto Simões Filho trouxeram mudanças
significativas aos princípios que até então regulamentavam o ensino de História. Com a
promulgação da lei nº 1.359/51 - que modificava a lei nº 4.244/42, determinada pelas
Reformas da Educação viabilizadas por Gustavo Capanema, em 1942 - uma nova seriação à
disciplina de História era proposta, sendo obrigatória em todas as séries do ensino secundário.
Para além, com a lei em questão, a disciplina de História da América ganhava autonomia em
relação à História Geral, tendo seus componentes curriculares organizados pelo próprio
Governo Federal - situação que, por sua vez, se alteraria apenas em 1961, com a
regulamentação da primeira LDB através da lei nº 4.024/61, a qual retirava da União a
responsabilidade de organização dos componentes curriculares, passando-a para cada Estado,
conforme salientara FONSECA (2005 Apud ALVES, 2008: p.7).
Note, portanto, que uma das preocupações desta pesquisa é levar em consideração um
contexto no qual os currículos - e, também, os livros didáticos - eram organizados por um
determinado lugar de poder, atendendo a um determinado fim - que mudará apenas no início
dos anos 60.
Por fim, analisando conjuntamente os objetos selecionados, as considerações a serem
produzidas buscarão sanar uma série de questionamentos como: como se conformavam as
relações entre políticas públicas e as políticas editoriais da Companhia Editora Nacional?
Qual a credibilidade dos autores aqui selecionados à lógica produtiva da editora? O que
explica o fato de suas obras ligadas à História do Brasil corresponder aos títulos mais
vendidos, enquanto aquelas voltadas à História da América não? Como as obras de História
do Brasil representavam a sociedade, legitimando - ou não - a brasilidade? E quanto às
representações dos Estados americanos nos manuais de História da América? Ou ainda, as
representações do Brasil, nestas obras? Tem-se ratificada a lógica pan-americanista?
Discussão bibliográfica
Dimensionado sob os domínios da Nova História Cultural, deve ser acentuado que o
presente trabalho analisará a representação da realidade produzida por determinados objetos
culturais - levando-se em conta seus mecanismos de produção, assim como os dispositivos
que permitem suas apropriações (BARROS, 2003). Dessa forma, as reflexões tecidas tomarão
8
como respaldo considerações caras a CHARTIER (1991; 2002) – cujos estudos se inserem no
entrecruzamento das análises críticas dos textos, da história dos livros e das práticas- e
BOURDIEU (1999) – cuja preocupação recaíra sobre a organização dos campos simbólicos.
Para a compreensão das disputas que se estabeleceram no campo da Educação, será de
grande valia o trabalho de FONSECA (2004), que buscou investigar a questão da qualidade
do ensino secundário entre 1946 e 1961, tomando como objeto de estudo as escolas
secundárias de São Paulo6. Na esteira destas abordagens, TOLEDO (2017), em trabalho
recente, no qual argumentara sobre as tendências políticas do tempo presente e suas
consequências à conformação do Ensino Médio público, nos faz refletir sobre a função social
do ambiente escolar, bem como o papel deste nível de ensino no decorrer da história. Ainda,
as considerações construídas por BERNARDES (2010) - que apontara certos aspectos do
ensino de História nas escolas secundárias -, BRAGHINI (2005) - que também chamara
atenção a determinadas particularidades da qualidade de ensino destas instituições - NUNES
(2000) - cujas reflexões destacaram os "momentos decisivos" deste nível de ensino -
constituem-se como fontes fundamentais.
Ademais, levar em conta "o exercício de interpretação e análise de obras, ideias,
discursos requer um exercício constante de pensar o contexto histórico, social, político no
qual foram gestados" (PEREIRA, 2015: pp. 337-356). Logo, a proposta desta pesquisa pretende
evidenciar certos prismas da intelectualidade ligados às novas formas de pensar a organização
do sistema educacional, propondo, para isso, o exame de alguns periódicos nos quais
circularam as ideias que envidaram a renovação da educação brasileira, sendo eles: a revista
Ensino Secundário e a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) - ambas ligadas às
campanhas fomentadas pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), por seu turno,
dirigido por Anísio Teixeira. Para além, ressalta-se também a importância de sondar algumas
das principais obras produzidas por ALMEIDA JÚNIOR (1959); CARVALHO (1971) e
RAMOS (2009) - cada qual pensando uma resolução à problemática do ensino secundário.
Em contrapartida, deve ser aqui apresentada a intenção de debruçar-se também sobre a
Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (RIHGB), tentando perceber e situar o
6 Este trabalho auxilia a compreensão da complexidade dos debates sobre a renovação da educação ao longo dos
anos 50, promovidos por algumas frentes em prol dessa manutenção: pesquisadores ligados a Anísio Teixeira;
àqueles vinculados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e àqueles inerentes às ideias de Almeida
júnior e Laerte Ramos de Carvalho - ligados, por seu turno, à Universidade de São Paulo.
9
posicionamento dos intelectuais a ela ligados, frente às discussões da renovação da esfera
educacional e, sobretudo, do ensino de História.
Dentro dos prismas didático-pedagógicos, vale frisar que os exames se inclinam sobre
duas disciplinas específicas – a saber: História do Brasil e História da América. A fim de
interpretar o papel social das matérias referidas - debruçando-se sobre seus conteúdos, mas
sem deixar de refletir outros fatores que às compõem - considero cruciais certas premissas
canalizadas ao campo da história das disciplinas - que, localizada sob "o guarda-chuva da
nova história cultural" (FRAGO, 2008: p.188), constitui, juntamente com a história dos
conteúdos e a história dos currículos, o tripé fulcral ao parecer atento da constituição temática
dos manuais escolares7. Neste âmbito, vozes como as de CHERVEL (1990); FRAGO (2008);
GOODSON (2002), DIAS (1997) e BITTENCOURT (2004) se cruzam na composição dos
fundamentos pretensos.
Apontando as epistemologias voltadas ao processo de criação dos livros didáticos,
destaco alguns teóricos cujos estudos são tomados como arcabouço aos argumentos
conjecturados, sendo eles: MUNAKATA (2004), BITTENCOURT (2009) e CHOPPIN
(2004) - que, de modo geral, apresentam o arranjo do panorama educacional interligando-o à
elaboração, publicação e usos dos materiais em questão. Busca-se, diante tais abordagens - e
considerando as fronteiras temporais estipuladas - acentuar a necessidade de refletir sobre
alguns coeficientes que acabam por intervir no funcionamento destes mecanismos de
produção como, por exemplo, os programas oficiais; os critérios de avaliação dos órgãos
especializados e a lógica mercantil editorial – o que se torna viável através das ponderações
construídas por FILGUEIRAS (2011) e MÁSCULO (2008).
Pensar nos sentidos que delinearam a trajetória da Companhia Editora Nacional
também se torna crucial. Nesse sentido, as considerações projetadas por TOLEDO (2004) e
HALLEWELL (1985) situam-se como vultosos aportes, visto que trazem certos pormenores
que possibilitam perceber a formação de suas estruturas, bem como seu funcionamento no
decorrer do tempo. Associado a isso, tencionando captar o diálogo entre as políticas de Estado
e os desígnios editoriais da Nacional, tornam-se necessários certas noções produzidas por
Roger Chartier e Pierre Bourdieu, em virtude de corroborarem ao entendimento do lugar de
poder ocupado pela instituição, assim como suas estratégias de representação e apropriação
7 Como bem observa Antonio Viñao Frago: "(...) a análise dos livros de texto a do material de ensino como
produtos pedagógicos e culturais, somente adquirem um sentido histórico pleno quando se inclui no âmbito mais
amplo da história das disciplinas". (FRAGO, 2008: p. 192).
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aos leitores as quais se destinava - o que permite a reflexão acerca de seu monopólio sobre o
capital cultural legitimado8.
Com a intenção de apreender, brevemente, alguns pormenores ligados à formação da
identidade nacional brasileira, as discussões propostas por BITTENCOURT (1999) nos
lançam luz sobre a intrínseca relação entre ensino de história e constituição do nacionalismo
ao longo das décadas iniciais do regime republicano. Para além, como continuação ao recorte
temporal que a obra acima referida se propõe, as considerações trabalhadas por
BITTENCOURT (2004) discutem a nova proposta, assistida nos anos 1950, que tencionam
levar em conta uma nova forma de pensar a brasilidade.
Agregado a tais proposições, faz-se imprescindível evidenciar as perspectivas dos
intelectuais que fomentaram determinados projetos institucionalizados pelo Estado, que
tangenciaram as formas de interpretar o Brasil e sua identidade nacional. De início, torna-se
interessante tomar como estudos propedêuticos os trabalhos específicos de MAIO (1999) -
que tratara de maneira minuciosa os intentos; o processo de elaboração e as consequências do
plano de trabalho orquestrado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) – e ORTIZ (1985) - que se empenhara em depreender a
organização cultural promovida pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB).
Traçadas as considerações gerais, busca-se destacar certos estudos como aqueles produzidos
por WAGLEY (1963); BASTIDES e FERNANDES (2008); PINTO (1953); AZEVEDO
(1955); RIBEIRO (1956); IANNI e CARDOSO (1960) e RAMOS (2004).
Na mesma dialética, procurando captar os contornos do pan-americanismo, será válido
levar em conta as considerações de SHEININ (2000); MANZUR (2002) e VARGAS (2009);
além de analisar alguns volumes da revista Américas – publicada e coordenada pela
Organização dos Estados Americanos (OEA) -, reconhecida como um dos maiores veículos
de difusão cultural mobilizador das ideias pan-americanistas.
Para além, considero de suma importância perceber a posição do autor perante os
elementos mencionados e, para tanto, parto do pressuposto de que "os autores dos livros
didáticos não são simples espectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de
agente" (CHOPPIN, 2004: p. 557). Lembrando que os escritores aqui abordados pautam-se
por Antonio José Borges Hermida e Joaquim Silva, as pesquisas não deixaram de lado certos
8 Sobretudo no que diz respeito ao conceito de capital cultural, as perspectivas de Pierre Bourdieu se tornam
primordiais: (BOURDIEU, 1983. pp. 89-94).
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pormenores ligados às suas respectivas biografias – algo possibilitado graças ao emprego dos
balanços levantados por PINTO JÚNIOR (2010), RIBEIRO JÚNIOR (2008) e BRAUNA
(2013).
Objetivos
Gerais
Investigar as representações e as estratégias de apropriação presentes nos livros didáticos de
História do Brasil e História da América, bem como o lugar de poder do qual partem tais
aspectos.
Específicos
Desvelar as relações entre as narrativas históricas e a construção da memória;
Destacar a relação entre as identidades referidas e o apagamento dos conflitos sociais;
Perceber a importância dos periódicos como veículos de circulação de ideias e
modelos culturais;
Frisar a função social exercida pelo ensino secundário ao longo da história da
educação;
Demonstrar que o livro didático é uma ferramenta imprescindível à construção
identitária;
Significar a importância das identidades referidas aos que a projetam;
Demonstrar o grau de importância estabelecido entre os “nacionalismos brasileiro” e
pan-americanismo;
Depreender as relações entre políticas públicas e políticas editoriais da Companhia
Editora Nacional;
Compreender a organização e o funcionamento da Companhia Editora Nacional;
Evidenciar as disputas desencadeadas na organização do campo educacional;
Destacar o lugar de poder de Antônio José Borges Hermida e Joaquim Silva no
interior da C.E.N.
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Apresentação das fontes
- Biblioteca do Livro Didático na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(USP): o acervo de livros didáticos da biblioteca em questão constitui-se como uma das
maiores fontes para as pesquisas ligadas aos livros didáticos. Nele, encontra-se um dos
exemplares abarcado por esta proposta: História da América: 2ª série: curso ginasial, de
Antônio José Borges Hermida.
- Centro de Memória e Pesquisa Histórica (CMPH): abriga o Acervo Histórico da
Companhia Editora Nacional. Para além das obras História do Brasil: para a primeira série
do ginasial (Antônio José Borges Hermida); História do Brasil: para a primeira série
ginasial (Joaquim Silva) e História da América para a segunda série do ginasial (Joaquim
Silva), o referido acervo oferece um vasto número de documentos produzidos no decorrer do
funcionamento das atividades editoriais da CEN: correspondências; pareceres dos órgãos
avaliativos; fichas de movimentação das obras publicadas; traduções dossiês e miscelâneas.
- Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: aqui, pretende-se ao
recolhimento - através da digitalização - de algumas fontes primárias subsidiárias, que
auxiliam a compreensão da conjuntura político-educacional do recorte determinado. Nessa
lógica, destaca-se a presença, em seu acervo, de alguns números de periódicos como o Ensino
Secundário (CADES), a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) e a revista
Américas (OEA).
- Universidade de São Paulo: Aqui, é válido destacar a necessidade de consulta a dois
acervos distintos, na busca de mais alguns números do periódico Américas - catalogados,
portanto, na biblioteca da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e no
acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).
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