entrantes mineiros e a cafeicultura paulista: a trajetória ... · desenvolvimento, alcançando,...

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Entrantes mineiros e a cafeicultura paulista: a trajetória da família Villas Boas (1850-1914) Rodrigo Fontanari [...] qualquer salto da produção e da troca não é, não pode ser, stricto sensu, um simples processo econômico. Como nunca está fechada em si mesma, a economia desemboca ao mesmo tempo em todos os setores da vida. Eles dependem dela, ela depende deles. 1 Introdução Partindo do pressuposto assinalado pelo historiador espanhol Pierre Vilar, segundo o qual a história deve ser apresentada como uma totalidade capaz de congregar as mais diversas esferas da vida e os mais distintos acontecimentos da realidade humana 2 , tentará-se entrelaçar dois contextos históricos que, com o fito de serem mais bem estudados, muitas vezes foram apresentados em separado, referimos-nos: ao movimento centrífugo da população de Minas Gerais 3 , ao longo do século XIX, e o desenvolvimento da cafeicultura em São Paulo. Buscaremos demonstrar que esses eventos não correram em paralelo, mas que, no fundo, estiveram estritamente ligados. Este movimento centrífugo da população de Minas Gerais, tem haver com a dispersão geográfica do contingente humano daquelas zonas ligadas, a cada vez menos, importante atividade extrativa de metais nobres e pedras preciosas, para outras regiões da mesma província, principalmente para o Sul mineiro. Este movimento centrífugo, revela-se como um dos episódios de maior significação histórica para a região Centro-Sul do Brasil, pois assinala o momento de transformação dessa economia que, a partir de então, voltou-se à agricultura e a pecuária, ambas destinadas ao abastecimento de gêneros de primeira necessidade para o mercado interno 4 ; podendo mesmo, esse episódio, ser considerado o fundador da principal área agrícola do país e o elo essencial para a compreensão do posterior surto cafeeiro. 1 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: século XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, v.3, 1996. p.503. 2 VOVELLE, Michel. Uma história social ‘total’: rigor teórico e ciência do real em Pierre Vilar. In: COHEN, Arón et al. (Org.) Pierre Vilar: uma história total, uma história em construção. Bauru, SP: Edusc, 2007. 3 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23.ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.76. 4 Idem. p.76.

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Page 1: Entrantes mineiros e a cafeicultura paulista: a trajetória ... · desenvolvimento, alcançando, por exemplo, as cidades paulistas de Franca, Batatais e Casa Branca, além da serra

Entrantes mineiros e a cafeicultura paulista: a trajetória da família Villas Boas (1850-1914)

Rodrigo Fontanari

[...] qualquer salto da produção e da troca não é,

não pode ser, stricto sensu, um simples processo econômico.

Como nunca está fechada em si mesma, a economia

desemboca ao mesmo tempo em todos os setores da vida.

Eles dependem dela, ela depende deles.1

Introdução

Partindo do pressuposto assinalado pelo historiador espanhol Pierre Vilar, segundo

o qual a história deve ser apresentada como uma totalidade capaz de congregar as mais

diversas esferas da vida e os mais distintos acontecimentos da realidade humana2, tentará-se

entrelaçar dois contextos históricos que, com o fito de serem mais bem estudados, muitas

vezes foram apresentados em separado, referimos-nos: ao movimento centrífugo da

população de Minas Gerais3, ao longo do século XIX, e o desenvolvimento da cafeicultura

em São Paulo. Buscaremos demonstrar que esses eventos não correram em paralelo, mas

que, no fundo, estiveram estritamente ligados.

Este movimento centrífugo da população de Minas Gerais, tem haver com a

dispersão geográfica do contingente humano daquelas zonas ligadas, a cada vez menos,

importante atividade extrativa de metais nobres e pedras preciosas, para outras regiões da

mesma província, principalmente para o Sul mineiro. Este movimento centrífugo, revela-se

como um dos episódios de maior significação histórica para a região Centro-Sul do Brasil,

pois assinala o momento de transformação dessa economia que, a partir de então, voltou-se

à agricultura e a pecuária, ambas destinadas ao abastecimento de gêneros de primeira

necessidade para o mercado interno4; podendo mesmo, esse episódio, ser considerado o

fundador da principal área agrícola do país e o elo essencial para a compreensão do

posterior surto cafeeiro.

1 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: século XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, v.3, 1996. p.503. 2 VOVELLE, Michel. Uma história social ‘total’: rigor teórico e ciência do real em Pierre Vilar. In: COHEN, Arón et al. (Org.) Pierre Vilar: uma história total, uma história em construção. Bauru, SP: Edusc, 2007. 3 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23.ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.76. 4 Idem. p.76.

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Esta proposta de análise, no fundo, é uma tentativa de complementação e, até

mesmo, de extensão de uma problemática levantada em trabalho recente5, onde buscamos

refutar as interpretações que aliaram a crise da atividade mineradora com decadência

econômica e social de Minas Gerais6 e das regiões a ela conectadas, realidade essa que não

foi confirmada pela documentação – testamentos, inventários post-mortem, escrituras de

hipoteca e compra e venda – pesquisadas na cidade de Casa Branca. Pelo contrário:

“evidenciamos que muitos desses ‘entrantes mineiros’ rumaram para as terras férteis além da fronteira mineira com significativa riqueza, e aqui mantiveram sua influência política e seu padrão de acumulação, renovado posteriormente com as possibilidades trazidas pela cafeicultura”.7

Desta maneira, salientamos que a marcha da economia de abastecimento do Sul de

Minas Gerais, para a província de São Paulo, em meados do século XIX, não pode ser

encarada como simples fuga da população, derivada do contexto de crise da mineração,

mas, reafirmamos ser esta resultante de uma ativa economia de abastecimento interno que,

desdobrou-se para outras localidades com objetivo de angariar mais terras para seu

desenvolvimento, alcançando, por exemplo, as cidades paulistas de Franca, Batatais e Casa

Branca, além da serra da Mantiqueira, nas regiões banhada pelos rios Pardo e Mogi-

Guaçu.8

5 FONTANARI, Rodrigo. O problema do financiamento: uma análise histórica sobre crédito no complexo cafeeiro paulista. Casa Branca/ SP (1874-1914). Dissertação (Mestrado em História). Franca: FCHS/ UNESP, 2011. 6 A tese da crise secular de Minas Gerais, que teria regredido para uma economia de subsistência e entrado num período de vazio econômico após a crise da mineração ganhou expressão na obra de Celso Furtado. Ver: FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 2005. p.91. Não entraremos nos pormenores dessa discussão com o pensamento furtadiano, mas vale assinalar, que seu objetivo era outro, vale dizer: procurar fatores endógenos ou exógenos de acumulação que fossem capazes de gerar um mercado interno forte o bastante para ser o motor do desenvolvimento nacional, alicerçado, de preferência, em elementos capazes de promover a indústria. Sua lupa estava regulada para apreender movimentos econômicos e sociais mais estruturais, mérito das grandes sínteses e dos grandes paradigmas, que, bem ou mal já lançaram os principais problemas a que se debruçaram os estudos posteriores, de caráter mais específico, ou seja, calcados em micro análises. Pensamos que o mais importante, em uma narrativa histórica, é a tentativa de contemplar ferramentas que aliem o prisma micro e macro analítico. 7 FONTANARI, Rodrigo. O problema do financiamento: uma análise histórica sobre crédito no complexo cafeeiro paulista. Casa Branca/ SP (1874-1914). Dissertação (Mestrado em História). Franca: FCHS/ UNESP, 2011. p.25. 8 Para Caio Prado Júnior é desse evento que resulta os problemas de fronteira entre Minas e São Paulo: “Aliás esta corrente demográfica que se encaminha para o sul da capitania lhe ultrapassa os limites, e invade São Paulo. A longa questão das divisas entre as duas capitanias, províncias e ainda como Estados, só será

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Sendo assim, uma outra vertente explicativa que procuramos relativizar é aquela

que sinaliza que os entrantes mineiros migraram para a província de São Paulo já para se

aplicarem exclusivamente à cafeicultura.9 De acordo com as fontes documentais por nós

pesquisadas, os “entrantes mineiros não vieram para se dedicarem diretamente à

cafeicultura, mas sim à produção de gado e gêneros de primeira necessidade como, por

exemplo, açúcar, milho, arroz, feijão e queijo”.10 De acordo, com os inventários que

levantamos, antes de 1850, nenhum agricultor residente em Casa Branca, oriundo de Minas

Gerais, possuía atividade cafeeira em escala comercial. Foi somente em meados da segunda

metade do século XIX que eles começaram as plantações mais dilatadas de café, e muitos

deles já estavam estabelecidos na região, por isso não foram atraídos pelo café, e sim foram

os que a iniciaram.11

Nesse sentido ainda, apontamos que, em Casa Branca, no período anterior a 1850,

seria mais comum os entrantes mineiros se dedicarem, não à cafeicultura, mas sim a

produção de açúcar para exportação, atividade já desenvolvida no “antigo quadrilátero

paulista do açúcar”: Jundiaí, Sorocaba, Piracicaba e Mogi-Mirim12 – Casa Branca quando

foi constituída, em 1814, pertencia ao termo desta última cidade – ou pelo menos buscarem

uma aproximação desse centro produtor, com o objetivo de fornecerem gêneros de primeira

necessidade. Conforme o senso de 1825, em Casa Branca:

“[...] havia três senhores de engenho de fazer açúcar; além da plantação de cana, produção de açúcar, aguardente e lavoura de subsistência, dedicavam-se também a criação de gado. [...] A lavoura era a principal

resolvida definitivamente em 1936, tem aí sua origem. Atrás dos povoadores vinham às autoridades locais ocupar administrativamente territórios [...]”. In: PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23.ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.78. 9 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros em São Paulo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1984. p.133. 10 FONTANARI, Rodrigo. O problema do financiamento: uma análise histórica sobre crédito no complexo cafeeiro paulista. Casa Branca/ SP (1874-1914). Dissertação (Mestrado em História). Franca: FCHS/ UNESP, 2011. p.38. 11 Exemplo disso é a família que destacamos para o estudo: os Villas Boas. O patriarca José Venâncio Villas Boas era natural de Lavras do Funil, província de Minas Gerais. Pinçamos o caso dessa família por ser singular, uma vez que, deparamo-nos com três inventários envolvendo os bens dessa família em Casa Branca-SP: o primeiro, de 1847, de Maria Balbina Monteiro, primeira mulher de José Venâncio Villas Boas. O segundo, de 1854, que é uma reabertura do primeiro inventário, onde, após um pedido de revisão, os bens foram todos reavaliados. E o terceiro inventário, de 1881, do próprio José Venâncio Villas Boas. A trajetória dessa família apresenta a mutação de uma economia de abastecimento para a cafeicultura. 12 PETRONE, Maria Teresa Schorer. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio, 1765-1851. São Paulo: Difel, 1968.

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ocupação; tanto que, na primeira companhia de ordenanças, dos 167 fogos, 104 eram de lavradores, a maior parte, porém, plantando para o gasto, isto é, lavoura de subsistência ; do total de 467 fogos da freguesia, 275 eram famílias dedicadas à lavoura e os produtos eram milho, feijão, arroz e algodão”.13

Com isso, pensamos ter jogado mais luz a uma faceta importante da ocupação da

região Centro-Sul do país, que se desenvolveu sob o acicate da produção de gêneros

destinados ao mercado interno – capazes de ensejarem acumulação de capitais suficientes

para compra de terras e escravos – preenchendo, assim, o hiato existente entre atividade

mineradora e a cafeicultura destinada ao mercado internacional.

Porém, partindo dessas premissas elencadas em trabalho anterior, como já

explicitado, e inserido numa vasta tradição de pesquisas sobre esse assunto14, pretendemos

estender nossas indagações no seguinte sentido: qual foi o destino dos “entrantes mineiros”

que se dedicaram à cafeicultura? Especializaram-se rigorosamente na atividade cafeeira ou

mantiveram a tradição de montarem fazendas diversificadas? Enfim, tiveram êxito ou

fracassaram nessa empreitada que exigia um aporte monetário muito mais avultado?

Uma conjuntura favorável: a expansão da cafeicultura e a dinamização da economia.

Em boa parte dos séculos XIX e XX, o café manteve-se como o principal produto

da pauta de exportações brasileiras. Mesmo tendo amplas variações na porcentagem

produzida ao longo desses anos, o produto foi o “sustentáculo” da economia nacional entre

13 TREVISAN, Amélia. Franzolin. Casa Branca, a povoação dos ilhéus. São Paulo: Dissertação (Mestrado em História), FFLCH/ USP,1979. p.125-126. 14 Para citar alguns, dentre outros: ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da Capitania de Minas Gerais no século XVIII. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1951. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil (1808-1842). 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1993. MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: CEDEPLAR, 1980. SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 18, n. 3, p.449-495, Set./Dez.1988. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencatro. A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais, Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.

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1840 e 1960, derivando daí a expressão, largamente usada por essa época, de que “o café dá

para tudo”.15

A princípio, ainda nos primeiros anos do século XIX, a produção cafeeira de

maiores proporções se deu no Vale do Paraíba, onde deixou de ser cultivado para simples

subsistência e atingiu a escala comercial devido, essencialmente, à generalização do

consumo nos grandes centros internacionais e a valorização do preço do produto. Com a

escassez do solo na região do Vale do Paraíba, decorrente da característica predatória dessa

atividade que foi marcada pelo baixo nível técnico no cuidado do solo e a abundância de

terras virgens existentes em outras localidades, houve a necessidade de se buscar novas

áreas para o cultivo. É, por volta da segunda metade do século XIX, que a marcha do café

irá se dirigir rumo às terras roxas do denominado Oeste Paulista.16 “A fertilidade das terras,

a menor idade média dos cafeeiros e as técnicas agrícolas mais eficientes, proporcionavam

ao café do oeste paulista uma produtividade física cerca de cinco vezes maior do que a

verificada na antiga região”.17

A denominação “oeste paulista”, que se acha consolidada na bibliografia sobre o

tema, merece algumas considerações, a fim de melhor situá-la. Segundo o historiador

brasilianista Thomas Holloway:

Se a linha corresse do norte para o sul, tal nomenclatura estaria de acordo com os verdadeiros pontos cardeais. A costa de São Paulo, no entanto, corre de nordeste para sudoeste, e assim o planalto que estende num ângulo reto para o litoral fica na realidade mais ao norte que a oeste da capital.18

Todavia, o ponto de referência para a classificação do “oeste paulista” é o núcleo

inicial da produção cafeeira, que está situado no Vale do Paraíba. A região de Casa Branca

encontrava-se, deste modo, encravada na linha de expansão da cafeicultura que rumava do

Vale do Paraíba para o Oeste Paulista. A “onda verde” do café atingiu a localidade por

15 LOVE, Joseph. A Locomotiva: São Paulo na federação brasileira 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.64. 16 CANABRAVA, Alice P. A grande lavoura. In. HOLANDA, Sergio Buarque (coord.). História Geral da Civilização Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p. 103-163. 17 CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1977. p.32. 18 HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.31.

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volta de 1860, elevando-se nas duas décadas seguintes19, alterando e dinamizando a

economia e a sociedade local. Um dos fatores de atração do café para o município reside na

qualidade das terras, e pode ser observado em um relatório da Companhia Paulista de

Estradas de Ferro, de 1876:

[...] os terrenos que se estendem entre o Mogy-Guassú e o Pardo constituindo os municípios de Santa Rita, São Simão e Ribeirão Preto, são em quase sua totalidade terra roxa de excellente qualidade para café. Não nos referimos, porém senão a zona que percorremos neste reconhecimento sem falar em Santa Rita, por serem inteiramente livres das mais fortes geadas. [...] É verdadeiramente deslumbrante esta parte da Província. A terra roxa é à base de toda essa formação orographica. As matas indicam a maior fertilidade conhecida nesta Província pela abundancia do jaracatiá, do pau d’alho, da jangada brava, da ortiga e de outros indicadores infalliveis. 20

Um ponto fundamental que possibilitou o conhecimento desta “riqueza natural” e

atraiu as plantações de café em direção a esta “parte” de São Paulo, encontra-se em uma

série de artigos publicados por Luis Pereira Barreto, na imprensa paulista e fluminense.

Estes artigos exaltavam a qualidade da terra roxa para a plantação do café e diagnosticava

sua abundância no Oeste Paulista, promovendo uma considerável migração dos capitais do

Vale do Paraíba, e de outras localidades, para os municípios ali situados e, para Casa

Branca especificamente21.

Podemos constatar a presença de membros da elite paulista na região de Casa

Branca, já na década de 1870, com o fito de desenvolverem a atividade cafeeira. Exemplo

dessa característica pode ser distinguido de uma escritura de hipoteca realizada, em 1874,

onde Joaquim Benedito de Queirós Telles (Barão de Japi), lavrador residente em Jundiaí,

assumiu um crédito no valor de 80:000$000, a juros de 6% ao ano e prazo de dez anos para

pagamento, junto ao Banco do Brasil no Rio de Janeiro, explicitando suas intenções na

descrição do imóvel dado em garantia, que foi a Fazenda Santa Maria, em Casa Branca,

19 MILLIET, Sérgio. Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do Brasil. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1982. p.20. 20 Relatório da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, apoud GIESBRECHT, Ralph Mennucci. Caminhos para Santa Veridiana: as ferrovias em Santa Cruz das Palmeiras. Santa Cruz das Palmeiras: A Cidade, 2003. p.10. 21 MATOS, Odilon Nogueira de. Café e Ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. 4 ed. Campinas, SP: Pontes, 1990. p.97.

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contendo 484 hectares de terra, 46.000 pés de café, casas de morada, moinho, sessenta

escravos e “várias obras em construção para beneficiar café”.22 De acordo com Pierre

Monbeig:

A cultura do café na região não datava, uniformemente, da mesma época: era mais velha em Itu e Campinas, sendo que neste último município começava a dar sinal de enfraquecimento. A produção não variou muito entre 1886 e 1904-1905 em Itu, Jundiaí e mesmo em Amparo. Mais ao norte, porém, observa-se um progresso notável: a produção de Mococa passou de 93.333 arrobas a 699.100 e a de Espírito Santo do Pinhal, de 150.600 a 428.420. Os rendimentos ultrapassavam largamente os do Vale do Paraíba: 57 arrobas por 1.000 pés em Itu, 43 em Campinas, 48 em Espírito Santo do Pinhal, 30 em São João da Boa Vista e 73 em Mococa – todos esses municípios indicando plantações jovens. [...] É ao norte de Campinas, em Limeira, Araras, Rio Claro, Leme e até Piraçununga e Descalvado que o café predominava incontestavelmente. Já há muito os fazendeiros estavam aproveitando os afloramentos de terra roxa e a importância do café na depressão periférica estava diretamente ligada ao tamanho das manchas daquele solo. Nos municípios mais especializados, a estatística indica de 6 a 8 milhões de cafeeiros, com rendimentos variando de 45 a 56 arrobas por 1.000 pés e uma produção crescente.23

A economia casabranquense24 vivenciou o primeiro grande salto da expansão

cafeeira de São Paulo, ocorrido entre 1860 e 1880, quando a produção de café praticamente

dobrou.25 Com o boom da atividade cafeeira, que alterou sobremaneira a antiga economia

pautada na pecuária, houve uma crescente procura por terra e mão-de-obra escrava –

mesmo sendo o trabalho do imigrante europeu já utilizado em algumas propriedades. A

relação entre a difusão da cafeicultura e o incremento nos negócios, envolvendo a procura

de terras e escravos, pode ser vista através de algumas escrituras de compra e venda

realizadas no município de Casa Branca. Ernani Silva Bruno menciona que:

22 Oficial de Registro e Imóveis de Casa Branca. Livro de Inscripção Especial n° 2; hipoteca nº 4. 23 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros em São Paulo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1984. P.168-170. 24 Casa Branca chegou a contar com 8.5000.000 de pés de café, isso na primeira década do século XX, sendo a média de produção em torno de 70@/por 1.000 pés. Dentre os vinte principais produtores de café todos possuíam mais de 100.000 pés na década de 1910, configurando grandes plantações. In: SÃO PAULO. O Café. Estatística de Produção e de Comércio. São Paulo: Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do estado de São Paulo, 1919, 1929, 1937-38. p.65. 25 CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1977. p.35. Ainda: “Resolvido o problema da mão de obra [...]. Com efeito, entre 1886 e 1887 o novo plantio totaliza 465 milhões de cafeeiros triplicando o estoque anterior (220 milhões) e situando a capacidade produtiva em 685 milhões, no que resultaria o aumento da participação paulista no total da produção brasileira de 40%, em 1885, para mais de 60% na abertura do século XX”. p.42-43.

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O preço das terras foi se elevando consideravelmente à medida em que se povoaram muitas regiões de início quase desertas, e na segunda metade do século XIX elas estavam mais valorizadas em São Paulo do que no Rio de Janeiro. Ao passo que na província fluminense o alqueire de terra se vendia geralmente a duzentos mil réis, em São Paulo alcançavam as terras, mesmo em regiões distantes dos portos de exportação, duzentos a trezentos mil réis por alqueire paulista: a metade do primeiro.26

Em 1878, José Bicudo de Almeida, morador de Campinas, comprou uma Fazenda

denominada Santa Francisca, com todas as benfeitorias existentes e cafezais, situada no

termo de Casa Branca, no valor de 37:000$000. O vendedor João de Carvalho Barros havia

comprado essa mesma propriedade do finado Barão de Antonina, e foi acrescida por terras

que o vendedor recebeu na divisão da Fazenda Palmeiras, que fazia divisa com terras da

Condessa Maria Eugenia Monteiro de Barros e com terras do finado Dr. Penteado, pai do

Conde Álvares Penteado. Nessa mesma escritura de compra e venda, aparece a

transferência de um contrato de plantação de café, onde Domingos Ferreira de Rezende,

residente em Casa Branca, se obrigava a derrubar, roçar e plantar 42.000 pés de café, com

distância de 16 palmos, em quadras completamente alinhadas.27

João Carlos de Arantes aparece, em uma escritura pública de compra e venda do ano

de 1878, como comprador de cinquenta de quatro alqueires de terras sitas na Fazenda Rio

Feio, neste termo de Casa Branca, no valor de 15:000$000 [...] “cujas terras são compostas

de mattas virgens e capoeira própria para o café, de cor rocha”. Como vendedores, Miguel

Dias de Moura e sua mulher D. Maria Julia de Arantes. Aqui se destaca o tipo de solo (a

terra roxa) que é excelente para o cultivo do café, denotando a importância nos negócios

envolvendo a mercadoria terra, que conforme se expande à fronteira em direção ao

município, percebe-se, cada vez mais, a mercantilização da mesma, que nessa escritura

atingiu o preço de cerca de trezentos mil réis o alqueire.28

26 BRUNO, Ernani da Silva. Café e negro: contribuição para o estudo da economia cafeeira de São Paulo na fase do trabalho servil. São Paulo: Atlanta Editorial, 2005. p.59-60. 27 Livro de Escrituras nº 1, do Cartório do 2º Tabelião de Casa Branca, aberto em 4/9/1878. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. p.17. 28 Livro de Escrituras nº 1, do Cartório do 2º Tabelião de Casa Branca, aberto em 4/9/1878. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. p.25.

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A marcha do café, como já apontamos, atraiu também os membros da elite paulista

que, mais tarde, comporiam as fileiras do grande capital cafeeiro. Observamos, em 1878,

numa escritura que celebraram no cartório de Casa Branca, como vendedor, João Theodoro

de Nogueira e sua mulher D. Maria das Dores dos Santos Queiros, ao comprador, Dr.

Martinho da Silva Prado Junior, de vinte alqueires de terras no termo de São Simão, no

valor de 1:200$000. Nessa fonte documental, o destaque recai na caracterização do perfil

acadêmico e profissional de Martinho da Silva Prado Junior, que aparece como um

advogado formado em Sciencias Sociais e Juridicas pela Academia de São Paulo; e nos

laços existentes entre esses personagens endinheirados da capital e os mandatários locais,

habitantes das cidades do interior, que muitas vezes ficavam como intermediários nessas

transações. Nesta escritura de compra e venda, “Martinico”, como era conhecido esse

membro da família Prado, fez seu bastante procurador Dr. José da Costa Machado de

Souza, residente em São José do Rio Pardo.29

Em 1879, um outro integrante da família Prado aparece adquirindo terras na região.

Agora é Martinho da Silva Prado, que compra de João Patrício Bueno e sua mulher D.

Custodia de Jesus, um sítio denominado Arrependido, no valor de 6:000$000. [...] “foi dito

que os vendedores são senhores e possuidores de um sitio, situado neste termo, na fazenda

do mesmo nome, que consta de uma parte de terras divididas, de cultura e cerrado próprias

para o café”.30

Para finalizar os exemplos da dinamização dos negócios envolvendo a busca terras

superiores e boas para a cultura do café e, também, para demonstrar que essas transações

envolviam personagens da municipalidade que, na impossibilidade de cultivarem eles

próprios o café, aproveitaram a corrida por terras e os bons preços para venderem suas

propriedades, ou partes delas, ainda incultas, para aqueles agentes de maiores cabedais.

Podemos citar a escritura que fizeram, em 1878, como vendedores, D. Anna Eufrasia

Gavião e seus filhos e genros, moradores de Casa Branca, ao comprador Francisco

Prudente José Correa – filho do “entrante mineiro” Capitão Prudente José Corrêa, natural

29 Livro de Escrituras nº 1, do Cartório do 2º Tabelião de Casa Branca, aberto em 4/9/1878. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. p.38. 30 Livro de Escrituras nº 1, do Cartório do 2º Tabelião de Casa Branca, aberto em 4/9/1878. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. p.39.

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de Barbacena e batizado em Santo Antonio da Bertioga, Minas Gerais31 e pai do Barão de

Rio Pardo – também deste termo, de diversas partes de terras na Fazenda das Palmeiras, no

valor de 2:450$000. [...] “as terras são próprias para cultura do café, de cor rocha e

revestidas de mattas virgens e serrados, em Casa Branca”.32

Quanto às escrituras de compra e venda envolvendo mão-de-obra, percebe-se que há

uma procura sistemática por cativos que trabalhavam na terra. Como destaca a bibliografia

sobre o assunto, após 1850, com a cessação do tráfico internacional, boa parte dos escravos

comercializados era proveniente de Minas Gerais e do Nordeste do país, regiões essas

menos pujantes do ponto de vista econômico, que as tocadas pela cafeicultura. Emília

Viotti assim define esse momento:

Interrompido o tráfico externo, a população de escravos não se reproduziu tão rapidamente quanto era necessário para atender à crescente demanda de mão-de-obra. A crescente necessidade de mão-de-obra, em virtude da expansão das plantações cafeeiras no sul do país, levou os fazendeiros dessas áreas a procurarem soluções alternativas. O tráfico inter e intraprovincial permitiu o deslocamento da população de escravos dos setores rurais menos produtivos e das zonas urbanas para as plantações de café.33

A cidade de Casa Branca, entre 1870 e 1880, transformou-se num dos principais

mercado de escravo interprovincial de São Paulo. Abastecia-se de negros vindos do

nordeste e de Minas Gerais e fornecia, quase que na sua totalidade, toda a mão-de-obra

cativa para a região da Mogiana.34

Nesse aspecto, nossa interpretação segue em sentido inverso ao proposto por

Roberto Borges Martins, defensor da ideia de “que Minas não foi um fornecedor de mão de

obra cativa para outras áreas e, em particular, que a idéia de que a decolagem do setor

31 Testamento de Prudente José Correia (1867). Caixa Vermelha (4). Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. 32 Livro de Escrituras nº 1, do Cartório do 2º Tabelião de Casa Branca, aberto em 4/9/1878. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. p.42. 33 COSTA. Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 4.ed. São Paulo: Editora Unesp, 1998. p.33. 34 BRUNO, Ernani da Silva. Café e negro: contribuição para o estudo da economia cafeeira de São Paulo na fase do trabalho servil. São Paulo: Atlanta Editorial, 2005. p.62.

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cafeeiro se fez com escravos mineiros redundantes é francamente delirante”.35 Não

defendemos o argumento extremo que a cafeicultura paulista tenha decolado

exclusivamente em função dos cativos originários de Minas Gerais, isso seria mesmo

“delirante”. Mas aludimos, que em certa medida, principalmente aquelas regiões

fronteiriças a província de São Paulo e com solos impróprios para plantações de café36,

poderiam ser fornecedoras, em potencial, de escravos para a pujante cafeicultura

avizinhada. Isso, ainda, não desmonta o argumento central de Martins, de que Minas Gerais

manteve-se como a maior importadora de cativos durante o século XIX.

Para o caso em questão, vale frisar que Casa Branca, em função da expansão da

cafeicultura, recebeu escravos de diversas regiões do país, principalmente da Bahia, Piauí,

Ceará e Minas Gerais, como pode ser observado através dos livros cartoriais referentes às

décadas de 1870 e 1880.37 Modelo dessa conjectura, envolvendo transações de escravos

para São Paulo, especialmente para a cidade de Casa Branca, pode ser sinalizado através de

alguns exemplos que serão arrolados abaixo.

Em uma escritura de compra e venda, do ano de 1878, aparecem os seguintes

personagens, todos residentes na Província da Bahia, como vendedores: Lazaro Gonçalvez

Fraga, Monoel Joaquim dos Santos, João José de Faria, Dr. Manoel José Gonçalvez Fraga,

D. Maria de Candida Moura Azevedo, D. Maria Luisa da Conceição; venderam, pelo preço

de 23:100$000, os escravos: Autino (18 anos), Marqueza (17 anos), Lucia (8 anos),

Francisca (9 anos), Anna (13 anos), João (40 anos), José (19 anos), Epiphano (40 anos),

Mariano (40 anos), João (12 anos), Evaristo (23 anos) e Benedicta (30 anos), todos apto

para os serviços na lavoura. O comprador desses cativos era Bernardo Álvares Leite

Penteado, residente em Campinas, mas com terras em Casa Branca.

35 MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: CEDEPLAR, 1980. p.4. 36 Essa concorrência pelas melhores terras jogará papel fundamental na distribuição geográfica da atividade cafeeira. Um exemplo evidente dessa desvantagem entre as regiões que possuíam solos propícios ou não a cafeicultura, pode ser dado entre as cidades mineiras de Poços de Caldas, Andradas e Caldas, sendo as duas primeiras mais bem classificadas nesse quesito, “ao passo que os solos mais pobres dos planaltos de campos naturais, onde se situava a Vila de Caldas, ficaram à margem dos benefícios trazidos por esta cultura por serem impróprios para ela”. In: ROVARON, Carlos Eduardo. Ocupação da região da Caldeira Vulcânica de Poços de Caldas-MG: Séculos XVIII-XX. Dissertação (Mestrado em História), FFLCH-USP, 2009. p.214-215. 37 Os Livros de Escrituras do Cartório do 2º Tabelião de Casa Branca, encontram-se no Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca.

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O Capitão José Caetano de Lima, residente em Casa Branca, em documento feito

por oficial público, no ano de 1879, comprou os escravos Roza (17 anos) e Germano (19

anos), no valor de 2:900$000, dos vendedores Francisco dos Santos, Fernando dos Santos e

do Capitão Augusto P. Goulart, todos de Montes Claros, Província de Minas Gerais;

corroborando, deste modo, a proposição de que escravos afluíam dessa província para as

lavouras de café de São Paulo.

Outro ponto importante nesse conjunto é que a “interrupção do tráfico determinou

também a alta nos preços dos escravos. De 1850 a 1880, o preço dos escravos subiu

constantemente, chegando em certos casos a seis vezes o seu valor inicial”.38 Por volta de

1850, o preço dos escravos em São Paulo girava em torno de quinhentos a setecentos mil

réis – o que já se julgava ser um absurdo.39 “Comprados na Bahia ou no Rio, os cativos

custavam, em torno de 1880, no Oeste de São Paulo, de dois a três contos de réis”. É nesse

valor, mais ou menos, que podemos observar uma escritura de compra e venda firmada no

tabelião de Casa Branca, em 1879, envolvendo Antonio José de Souza, como vendedor de

um escravo de nome Adão, de cor preta, solteiro, natural da Província de Minas Gerais,

com 24 anos, e o comprador Luis José de Souza, no valor de 2:400$000.40

Essa ânsia por terras e escravos, motivada pela onda verde do café, promovia, em

muitos casos, uma verdadeira armadilha, na qual o crédito era a única solução encontrada

para se expandir às plantações – e quando realizado com juros altos era também a ruína dos

lavradores. Os fazendeiros “compravam os negros [...] à vista ou a prazo, como podiam e

como não podiam, dissipando as sobras, hipotecando as propriedades, empenhando as

safras”.41 Veremos, mais adiante, que investir na produção de café sem capitais próprios,

via crédito comercial, pode ter sido um dos motivos da bancarrota de muito entrantes

mineiros, ou de seus descendentes diretos, que se aventuraram por tal vereda.

38 COSTA. Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 4.ed. São Paulo: Editora Unesp, 1998. p.33. 39 BRUNO, Ernani da Silva. Café e negro: contribuição para o estudo da economia cafeeira de São Paulo na fase do trabalho servil. São Paulo: Atlanta Editorial, 2005. p.63. 40 Livro de Escrituras nº 1, do Cartório do 2º Tabelião de Casa Branca, aberto em 4/9/1878. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. p.53. 41 BRUNO, Ernani da Silva. Café e negro: contribuição para o estudo da economia cafeeira de São Paulo na fase do trabalho servil. São Paulo: Atlanta Editorial, 2005. p.63.

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Com o mar de café se estendendo sobre Casa Branca, houve uma consistente

especialização na economia local, que passou a se fundamentar, cada vez mais, na atividade

cafeeira. Em meados da década de 1890, a economia que antes estava baseada na criação de

gado e nos negócios comerciais advindos da função de entreposto que a cidade ocupava no

Caminho de Goyas, sofreu grande alteração. O café transformou-se no pilar do erário

casabranquense. O município se voltou quase que exclusivamente para a produção da

rubiácea destinada ao mercado externo, perdendo muito das feições pretéritas de localidade

fornecedora de gêneros de abastecimento interno.

Uma fonte histórica crucial possibilita-nos enxergar essa alteração nos padrões

econômicos da cidade, que procurava, cada vez mais, destacar sua recém adquirida

“vocação” para o café, pode ser observada em um trecho do Relatório e roteiro da medição

para divisão judicial da Fazenda São José da Serra, da família Villas Boas, realizado em

1895:

A fazenda denominada São José da Serra [...] está locada a 35° noroeste da cidade de Casa Branca, na distancia aproximada de vinte e quatro quilômetros, e a 53° nordeste da estação de Tambahú, linha férrea Mogyana, na distância de treze quilômetros. As estradas que a ligam a Casa Branca, atravessando grandes regiões de campos razos, são boas, porém todo o comércio e tráfego é feito para o Tambahú. Geologicamente, divide-se esta fazenda em duas regiões distinctas: a parte a noroeste, cabeceiras dos córregos Areão, Cachos e Bocaina, ocupando a quarta parte da área total da fazenda é composta de terras boas, isto é, ricas em óxido de ferro e húmus, semeadas de pequenos blocos de exorias que atestam sua origem vulcânica, porém manchada de terrenos de aluvião em que se encontram os granitos erráticos boleados, e chapadões de areia solta imprestáveis para qualquer cultivo. [...] Pela sua altitude, exceção dos chapadões arenosos, toda esta região se presta a cultura do

café, que frutifica regularmente na média de oitenta arrobas por mil pés. A região á sudeste até o córrego da Prata, e noroeste, acompanhando o Rio Pardo, é composta de campos razos de boa qualidade que muito se prestam para a creação de gado lanígero e cavallar; infelizmente a

industria pastoril está aqui completamente abandonada; apenas algum gado vaccum, em diminuta quantidade, de raças ordinaríssimas, povoam estes campos que poderiam dar bons resultados quando tratados com alguns conhecimentos zoothechinicos.42

42 Divisão da Fazenda São José da Serra, Casa Branca, 11 de Janeiro de 1895. Caixa Villas Boas. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. Segundo a mediação, finda em 1896, a propriedade, outrora denominada Paciência, constou ter nove mil centos vinte e cinco hectares e oitenta ares

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Pela descrição acima, fica claro que toda a região de Casa Branca se prestava ao

café, fato que corrobora a dinamização dos negócios envolvendo terras e mão-de-obra com

esse objetivo. Enfim, temos agora um possível painel da economia de Casa Branca após a

expansão cafeeira. O que procuraremos mostrar, agora, é a como se comportaram os

mineiros frente a essa decolagem. Teriam todos aderidos à especialização produtiva e ao

ímpeto cafeeiro?

Veredas incertas: plantar ou não plantar café, eis a questão.

A economia de abastecimento que se estabeleceu em Casa Branca, ainda na aurora

do século XIX, advinda, como vimos, do Sul de Minas, foi dinamizada pela expansão

cafeeira na segunda metade desse mesmo século, sendo intensificada nas décadas de 1870 e

1880. É em decorrência da intensificação das plantações de café, e por conseguinte, com a

progressão dos trilhos da Mogiana até a cidade, em 1878, que houve uma significativa

mudança nos padrões de acumulação, que mesmo permanecendo atrelado as condicionantes

do mercado interno, foi, cada vez mais, marcado por sua conexão com o mercado

internacional, graças às portentosas safras de café colhidas nas fazendas da região,

acarretando, assim, a mercantilização da vida e a intensa busca pela cafeicultura.

De acordo com o dados da Secretaria da Agricultura, Commercio e Obras Pública

do Estado de São Paulo, a respeito dos maiores produtores de café da municipalidade de

Casa Branca, para o período de 1909-1919, pode-se observar a evidente adoção da

cafeicultura por alguns aqueles denominados “entrantes mineiros” ou seus descendentes

diretos. Dentre os vinte maiores produtores de café, temos os nomes de: Bento Ribeiro

Nogueira, com 360.000 pés de café; Coronel Prudente José Correa, com 197.000 pés de

café; Dr. Francisco Thomaz de Carvalho, com 170.000 pés de café; Capitão Domingos

Villela de Andrade, com 140.000 pés de café etc.43

(9.625,80 hectares), ou seja, três mil novecentos setenta e sete alqueires e setenta centésimos (3.977,60 alqueires). 43 SÃO PAULO. O Café. Estatística de Produção e de Comércio. São Paulo: Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do estado de São Paulo, 1919, 1929, 1937-38. p.65.

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Um outro indício que demonstra a suposta conversão de “entrantes mineiros” em

cafeicultores e que os mesmos foram agentes cruciais na constituição do complexo cafeeiro

paulista, pelo menos na região limítrofe da Serra da Mantiqueira, pode ser observado

através da figura do Coronel Antonio Marçal Nogueira de Barros (um dos fundadores da

cidade de São José do Rio Pardo, vizinha à Casa Branca). Ele era natural de “Baependi,

estado de Minas Gerais, e foi um cidadão de grande prestígio pessoal e político. Foi

fazendeiro abastado, tendo sido, também, o fundador das primeiras grandes lavouras de

café do município de São José do Rio Pardo”.44

Se, contudo, fica claro que esses “entrantes mineiros” se voltaram à produção de

café, cabe saber como eles procederam a essa mudança estratégica, se continuaram a

plantar outros gêneros de abastecimento e a criar seu gado, ao lado das fileiras de café;

ainda, resta saber de onde vieram os capitais necessários para essas plantações, visto que as

terras “somente seriam utilizadas no café [...] quando dispusesse de capital suficiente para

arcar com o ‘custo de formação do cafezal’, que, como é sabido, imobiliza recursos durante

cinco anos, com retorno praticamente nulo nesse período”.45

Segundo Delfin Netto, acerca dos anos de 1886-1906, “o formidável aumento da

produção paulista do café havia sido possível, em parte, à custa de uma redução da

agricultura de subsistência”.46 Ou seja, desse ponto de vista, para produzirem o café teriam

que abandonar a produção “tradicional” para o mercado interno. Uma observação mais

circunscrita e próxima à região estudada, também coaduna esse viés interpretativo, e aponta

que na “segunda metade do século XIX, a cidade de Franca deixou a criação de gado e a

agricultura para abastecimento interno em um segundo plano e passou a fazer parte do

conjunto privilegiado das regiões produtoras para o mercado externo”.47

Essas afirmações não ecoam integralmente na documentação pesquisada, pelo

menos para a segunda metade do século XIX, e para fazendas de “raízes mineiras” a

44 NOGUEIRA JUNIOR, José Jorge. Nogueiras do Brasil: descendentes de Da. Ana de Jesus Leme do Prado Nogueira. s.e.: s.l., 1962. p.111-112. 45 CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1977. p.54. 46 DELFIM NETTO, Antonio. O Problema do Café no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; Ministério da Agricultura/SUPLAN, 1979. p.23. 47 BRIOSCHI, Lucila Reis. Fazendas de Criar. In: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. BRIOSCHI, Lucila Reis. (Orgs.) Na Estrada do Anhanguera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: Humanitas FFLCH/ USP, 1999. p.76.

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realidade pareceu ser mais complexa, e tencionada por uma gama variada de unidades

produtivas, umas mais e outras menos dedicadas ao café.48

Em 1881, Antonia Ignacia de Medeiros, realizou na cidade de Casa Branca, o

inventário de seu marido José Venâncio Villas Boas, natural de Lavras do Funil (MG). Sua

fortuna foi estimada na vultuosa soma de 355:000$000. Dentre os bens, possuía a Fazenda

São José da Serra com 61 escravos, no valor de 272:053$360. Desfrutava de 127 porcos, 41

carneiros, 42 bois de carro, 224 vacas, 77 cavalos e éguas e 17 bestas. Uma produção de 4

quartéis de cana e um cafezal avaliado em 23:000$000. Em comparação com o inventário

de sua primeira mulher, feito em 1854, um dado interessante que pode ser constatado é: à

redução dos animais, principalmente os de carga, seguida por uma atitude “arrojada” de

manter a participação no ramo de transportes, numa época de modernização, adquiriu,

assim, 20 ações da Companhia Mogiana, avaliadas em 4:000$000. Dentre os bens móveis

notamos a existência de um debulhador de milho (25$000), 60 carros de milho

(1:200$000), 160 alqueires de feijão (400$000), 40 alqueires de arroz (100$000), 2204

arrobas de café limpos (7:911$000), 400 arrobas de café beneficiados em Santos

(1:600$000), 110 arrobas de açúcar (440$000) e 60 barris de aguardente (690$000).

Constatamos, também, o alto valor de empréstimos com juros efetuados por José Venâncio

Villas Boas, na importância de 54:730$600, configurando uma atividade análoga de

capitalista. 49

Assim, realça-se o significativo papel desempenhado pela economia de

abastecimento interno e sua efetiva dinâmica que, não só mantinha a subsistência da

fazenda, mas também foi capaz de gerar capital comercial suficiente para, aos poucos,

serem reinvestidos em outras atividades econômicas, ligadas à dinâmica do complexo

cafeeiro.

Por outro lado, assistimos uma transfiguração rumo à especialização na cafeicultura

em fortunas menores e “emergentes”. No mesmo ano de 1881, foi realizado o inventário de

48 Lélio Luiz de Oliveira aponta que, em Franca, a cafeicultura não eliminou a economia de abastecimento interno, pelo contrário, revigorou está atividade. In: OLIVEIRA, Lélio Luiz de. Heranças guardadas e transições ponderadas: história econômica do interior paulista 1890-1920. Franca: UNESP-FHDSS; FACEF, 2006. 49 Inventário post morten de José Venâncio Villas Boas (1881). Caixa Inventários 71. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca.

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José Esteves Villas Boas, filho de José Venâncio Villas Boas (descrito acima) morador da

Fazenda do Barreiro, em Casa Branca. Sua mulher, Maria Balbina de Carvalho, foi a

inventariante de expressiva riqueza para os padrões da época, que chegou a montar o total

de 96:441$000. O casal era possuidor de 23 escravos (29:000$000), 47 cabeças de gado

vaccum, duas partes de terras: na Fazenda Palmeiras e na Fazenda Morrinhos

(33:000$000), 23.000 pés de café (21:200$000), uma casa com máquina a vapor

(10:000$000) e duas casas: uma no pátio da cadeia, em Casa Branca, e outra na Fazenda

Barreiro (1:800$000).50 Aqui, vemos cerca de 30% da riqueza empregada em atividades

voltada à cafeicultura, isso se contarmos somente os pés de café e a máquina para

beneficiamento. Nesse caso, sinal que os descendentes, nem sempre, mantinha o padrão de

diversificação dos pais, o que poderia ser um risco em tempos de crise do café.

Esse risco latente que acompanha a especialização produtiva de agentes que até

então se dedicavam a culturas diversificadas e de abastecimento, chega à condição extrema

em momentos de baixa do preço da atividade exportadora, culminando com a execução dos

bens hipotecados ou penhorados. Nesse contexto, vemos a execução hipotecária movida,

em 1898, por Floriano Ferreira & Irmãos, comissários estabelecidos em Santos, contra

Pedro Alexandrino Villas Boas, lavrador em Casa Branca. Pedro Alexandrino era senhor e

possuidor de uma fazenda denominada Bom Sucesso, contendo casa de morada, moinhos,

pastos, oito casas para colonos, cobertas de telhas e 40.000 cafeeiros. Sua fazenda

compreendia, ainda, 17 porcos (365$000), 1 vaca (55$000), 2 cavalos (220$000), 20 bois

de carro (1:210$000), 8 carros de milho (200$000) e a safra pendente calculada em 600

arrobas de café (3:600$000). Sendo tudo avaliado em 46:159$200. Ao que parece, essa era

uma propriedade de médio porte e destinada totalmente ao mercado externo, ou seja, a

cafeicultura, haja vista que só o cafezal estava orçado em 22:000$000, quase 50% de toda

riqueza.51

O empréstimo em conta corrente, foi realizado em 1895, no valor de 20:348$960,

com juros de 12% ao ano, junto a casa comissária Floriano Ferreira & Irmãos, e como a

50 Inventário post morten de José Esteves Villas Boas (1881). Caixa Inventários n°71. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. 51 Execução Hipotecária a favor de Floriano Ferreira & Irmãos (1898). Caixa S/D. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca.

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dívida não foi quitada no prazo estipulado de três anos, elevou-se a cifra de 49:311$090,

em 1898, no início de uma conjuntura de crise da lavoura cafeeira. A saída, nesse caso, foi

dada na instância judicial, pois os credores exigiram o pagamento do empréstimo,

culminado com a execução dos bens dos devedores em praça pública.52

Se, por um lado, a especialização aparece como um problema para os integrantes do

médio capital cafeeiro, estritamente ligados a terra e à produção de café, a diversificação

surge como uma alternativa, pois mesmo não tendo as condições para diversificarem suas

fortunas como os integrantes do grande capital cafeeiro – como os Prados e os Penteados,

que tinham investimentos em casas comissárias, bancos, indústria e ferrovias – esses

lavradores amparados pela tradição mineira, costumeiros plantadores de gêneros de

abastecimento e criadores de gado, também conseguem uma relativa segurança dedicando-

se ao mercado interno paralelamente a produção de café. De acordo com Lélio Luiz de

Oliveira, que estudou a cidade de Franca (SP), o peso dessa tradição mineira repercutiu de

forma que as “fazendas e fazendeiros não se limitaram à cafeicultura. A nova atividade deu

mais fôlego e dinamizou a produção destinada ao mercado interno local e de longa

distância. O caráter misto das fazendas foi reafirmado”.53

Nesse sentido, podemos observar a trajetória de Moisés Venâncio Villas Boas, pois

“resistiu” ao período de crise que vigorou de 1898 a 1906. Ele era um dos filhos de José

Venâncio Villas Boas, entrante mineiro que já descrevemos acima, possuidor de uma

grande fortuna montada sobre fazenda diversificada, isto é, voltada tanto o mercado interno

quanto ao mercado externo. Moisés Venâncio Villas Boas nasceu em 1852, na cidade de

Casa Branca, e morreu em 1906, na cidade de Tambaú, comarca de Casa Branca. Sua

existência corre em paralelo as transformações da economia casabranquense, sob os

imperativos da expansão cafeeira. Sua mulher, Maria Balbina de Carvalho, concluiu seu

inventário no ano de 1907, e arrolou os seguintes bens: a Fazenda Açude (30:000$000),

situada no município de Tambaú, com casa de morada, terrenos de campos, divididos no

lugar denominado Barro Vermelho (1:000$000), na mesma fazenda, 1 casa para

empregado, 16 casas para colonos, 1 moinho, 1 paiol com quarto e cocheira, 1 tulha com

52 Idem. p.149. 53 OLIVEIRA, Lélio Luiz de. Heranças guardadas e transições ponderadas: história econômica do interior paulista 1890-1920. Franca: UNESP-FHDSS; FACEF, 2006. p.43

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varandas, 1 monjolo e cerca de 70.000 cafeeiros (55:000$000). Continha, além disso, 18

vacas com cria, 28 vacas sem cria, 38 novilhas e garrotes, 31 bois de carro, 24 éguas, 7

cavalos, 3 touros, 6 burros, 1 poldro e 45 porcos (11:000$000).54 Desta maneira, explicita-

se que a cafeicultura não era uma “atividade que ao se implantar em uma região eliminava

as anteriores”.55 Houve sim, uma tensão latente entre o velho e o novo padrão de

acumulação, que acabou repercutindo sobre todas as esferas da vida.

Considerações finais

Vimos que a região de Casa Branca, estava encravada na linha de expansão da

fronteira do café, vertendo-se num pólo de atração de variados segmentos sociais, atraindo

os potenciais cafeicultores do Vale do Paraíba, Campinas, Jundiaí e São Paulo, que

chegando ali, deparavam-se, com uma leva mais antiga de proprietários já estabelecidos: os

entrantes mineiros. Abriram-se diversas possibilidades para estes antigos povoadores

vindos de Minas Gerais.

Contudo, podemos avaliar que, mesmo a cafeicultura tendo se constituído como

centro dinamizador da nova economia, a implantação dos cafezais não se deu de maneira

repentina. Em boa medida, isso ocorreu devido à tradição mineira, uma vez que:

“A habitual auto-suficiência das fazendas, que trazia segurança aos proprietários, foi um fator de manutenção das práticas econômicas arraigadas. Houve resistência em fazer investimentos vultuosos em uma nova lavoura, cujos resultados dependiam dos preços internacionais e da manipulação dos atacadistas. Produzir para o autoconsumo e para os mercados conhecidos era mais seguro”.56

Um outro fator que pode ocasionado essa mudança morosa no padrão de

investimentos dos fazendeiros de Casa Branca, foi à dificuldade de captação de crédito, que

era mais acessível aos membros do grande capital cafeeiro.57

54 Inventário post morten de Moisés Venâncio Villas Boas (1907). Caixa Inventários n°92. Museu Histórico e Pedagógico Alfredo e Afonso de Taunay de Casa Branca. 55 OLIVEIRA, Lélio Luiz de. Heranças guardadas e transições ponderadas: história econômica do interior paulista 1890-1920. Franca: UNESP-FHDSS; FACEF, 2006. p.22. 56 Idem. p.44. 57 FONTANARI, Rodrigo. O problema do financiamento: uma análise histórica sobre crédito no complexo cafeeiro paulista. Casa Branca/ SP (1874-1914). Dissertação (Mestrado em História). Franca: FCHS/ UNESP, 2011. p.86-99.

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Mesmo assim, percebe-se que houve, de fato, uma nítida alteração nos padrões

econômicos do espaço em destaque, refletindo uma conjuntura maior, onde o café passou a

ser o produto mais rentável e por isso o mais amplamente cultivado, tencionando pela força

do lucro a organização produtiva das fazendas – em Casa Branca mais do que me Franca,

por exemplo. Pelo menos, uma coisa é certa: o imaginário de muitos daqueles que se

dedicaram a tal atividade esteve prenhe de esperanças em dias melhores graças aos lucros

que poderiam ter com o café; mas, como vimos, nem sempre a realidade coincidiu com

essas esperanças.

De acordo com o exposto aqui, podemos assegurar que tanto os pequenos

produtores quanto os grandes fazendeiros especializados na produção (médio capital

cafeeiro), estabelecidos em Casa Branca, sofreram com a falta de uma política de crédito

agrícola consistente, ficando reféns de um crédito comercial, de alto custo e de curto giro.

As palavras de Renato Perissinotto são esclarecedoras quanto à dominância do capital

mercantil sobre a produção:

Enquanto o grande capital tinha capacidade de autofinanciamento, podendo enfrentar as diversas dificuldades da economia cafeeira, a lavoura, por sua vez, via-se completamente desprotegida, sem condições de enfrentar crises de preços e submetidas à especulação comercial. Se, por um lado, podemos inferir a partir da persistente ausência de crédito a fraqueza política da lavoura, por outro lado, podemos também deduzir desse fato a força política do grande capital cafeeiro que conseguia, assim, perpetuar a dominação mercantil sobre a produção.58

Talvez, esse caráter de escassez de crédito, tenha sua parcela de significação para a

perpetuação do modelo de fazenda mineira, montada sempre sobre bases diversificadas;

não uma diversificação eloqüente, como a dos membros da elite paulista, que investiram

quase sempre no segmento urbano, mas uma diversificação produtiva calcada na tradição e

em hábitos pretéritos que, também, beneficiou-se do aumento da população e das cidades

do complexo cafeeiro. Difícil fazermos a nítida separação das distintas causas e

consequências que atuaram nesse processo de transformação econômica. Tarefa difícil,

58 PERISSINOTTO, Renato M. Classes dominantes e hegemonia na Republica Velha. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. p.91.

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igualmente, era escolher entre as possíveis veredas pela qual seguir diante desse torvelinho

de acontecimentos. Seguir ou não seguir a tradição, eis a questão.

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