ensino de lÍngua portuguesa: uma visÃo histÓrica

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IDIOMA 23 7 ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA VISÃO HISTÓRICA Nícia de Andrade Verdini Clare (UERJ) Na qualidade de professora de Língua Portuguesa, com quarenta anos em sala de aula, nos ensinos fundamental, médio e superior, propusemo-nos a refletir sobre a traje- tória e a qualidade desse ensino, como já o fizemos tantas vezes ao prepararmos nossas aulas. O ensino no Brasil foi, inicialmente, tarefa dos jesuítas da Companhia de Jesus, com a finalidade da catequização indígena. Foram os jesuítas, entre eles Manuel da Nó- brega e José de Anchieta, credores de uma ação mais educadora, de base catequética, do que conversora (Houaiss: 1992, 147). A ação jesuítica se definia pela compreensão de que era a língua geral o caminho a seguir. Tal língua, considerada franca ou de intercur- so, tinha por base o tupi, mais especificamente a língua dos Tupinambás, entre numero- sas línguas indígenas espalhadas em território brasileiro, mas apresentava, também, ves- tígios de um português estropiado. Durante três séculos, foram os jesuítas os educadores no Brasil, sendo que o maior destaque coube ao Padre José de Anchieta, que, a respeito do tupi, legou-nos uma gra- mática: Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. A língua portuguesa transplantada para o Brasil, inicialmente, sofreu forte concor- rência da língua geral falada informalmente em todo o litoral brasileiro. Mas o portu- guês era a língua da escola, o falar polido e disciplinado em gramática, enquanto a lín- gua geral carecia de prestígio, pois era um linguajar sem tradição e aprendido de outiva. Usava-se o português na administração e todos os instrumentos jurídicos eram escritos na língua dos colonizadores. Os livros, de ficção ou científicos, também eram escritos em português, língua oficial. Assim, no século XVIII, pode-se mesmo dizer que houve um período de bilingüismo no Brasil e o idioma luso, já transplantado, começava a re- ceber os primeiros adstratos em solo americano. A instituição da língua portuguesa só se torna definitiva com a vinda de famílias de imigrantes portugueses, mas, principalmente, com o Diretório dos Índios, implantado após a expulsão dos jesuítas, em 3 de maio de 1757, pelo governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, com o aval do Marquês de Pombal e aplicado, a princípio, no Pará e no Maranhão e, no ano seguinte, em todo o Brasil. O Marquês de Pombal, sen- tindo a língua portuguesa ainda ameaçada pela língua geral, uma mistura da língua indí- gena com o português, tornou obrigatório, por instrumento legal, o ensino de português no Brasil. um fato já consumado, apenas sancionado então por ele. A finalidade era abolir essa língua geral e impor a chamada “língua do Príncipe”, ou seja, o português de Portugal. Segue abaixo uma versão do Édito de Pombal: Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que praticaram novos domínios introduzir logo nos povos conquista- dos o seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é um meio dos mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes e ter mostrado a experiência que, ao mesmo passo se introduz neles o uso da língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando, pois, todas as nações polidas do Mundo este prudente e sólido sistema, nesta conquista se praticou pelo contrário,

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IDIOMA 23

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ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA VISÃO HISTÓRICA

Nícia de Andrade Verdini Clare (UERJ)

Na qualidade de professora de Língua Portuguesa, com quarenta anos em sala de

aula, nos ensinos fundamental, médio e superior, propusemo-nos a refletir sobre a traje-

tória e a qualidade desse ensino, como já o fizemos tantas vezes ao prepararmos nossas

aulas.

O ensino no Brasil foi, inicialmente, tarefa dos jesuítas da Companhia de Jesus,

com a finalidade da catequização indígena. Foram os jesuítas, entre eles Manuel da Nó-

brega e José de Anchieta, credores de uma ação mais educadora, de base catequética, do

que conversora (Houaiss: 1992, 147). A ação jesuítica se definia pela compreensão de

que era a língua geral o caminho a seguir. Tal língua, considerada franca ou de intercur-

so, tinha por base o tupi, mais especificamente a língua dos Tupinambás, entre numero-

sas línguas indígenas espalhadas em território brasileiro, mas apresentava, também, ves-

tígios de um português estropiado.

Durante três séculos, foram os jesuítas os educadores no Brasil, sendo que o maior

destaque coube ao Padre José de Anchieta, que, a respeito do tupi, legou-nos uma gra-

mática: Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil.

A língua portuguesa transplantada para o Brasil, inicialmente, sofreu forte concor-

rência da língua geral falada informalmente em todo o litoral brasileiro. Mas o portu-

guês era a língua da escola, o falar polido e disciplinado em gramática, enquanto a lín-

gua geral carecia de prestígio, pois era um linguajar sem tradição e aprendido de outiva.

Usava-se o português na administração e todos os instrumentos jurídicos eram escritos

na língua dos colonizadores. Os livros, de ficção ou científicos, também eram escritos

em português, língua oficial. Assim, no século XVIII, pode-se mesmo dizer que houve

um período de bilingüismo no Brasil e o idioma luso, já transplantado, começava a re-

ceber os primeiros adstratos em solo americano.

A instituição da língua portuguesa só se torna definitiva com a vinda de famílias

de imigrantes portugueses, mas, principalmente, com o Diretório dos Índios, implantado

após a expulsão dos jesuítas, em 3 de maio de 1757, pelo governador Francisco Xavier

de Mendonça Furtado, com o aval do Marquês de Pombal e aplicado, a princípio, no

Pará e no Maranhão e, no ano seguinte, em todo o Brasil. O Marquês de Pombal, sen-

tindo a língua portuguesa ainda ameaçada pela língua geral, uma mistura da língua indí-

gena com o português, tornou obrigatório, por instrumento legal, o ensino de português

no Brasil. – um fato já consumado, apenas sancionado então por ele. A finalidade era

abolir essa língua geral e impor a chamada “língua do Príncipe”, ou seja, o português de

Portugal. Segue abaixo uma versão do Édito de Pombal:

Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações

que praticaram novos domínios introduzir logo nos povos conquista-

dos o seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é um meio

dos mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos

seus antigos costumes e ter mostrado a experiência que, ao mesmo

passo se introduz neles o uso da língua do Príncipe, que os conquistou,

se lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo

Príncipe. Observando, pois, todas as nações polidas do Mundo este

prudente e sólido sistema, nesta conquista se praticou pelo contrário,

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que só cuidavam os primeiros conquistadores estabelecer nela o uso

da língua, que chamamos geral, invenção verdadeiramente abominá-

vel e diabólica, para que privados os índios de todos aqueles meios

que os podiam civilizar, permanecessem na rústica e bárbara sujeição,

em que até agora se conservam. Para desterrar este perniciosíssimo

abuso será um dos primeiros cuidados dos Diretores estabelecer nas

suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não consen-

tindo por modo algum que os meninos e meninas, que pertencerem às

escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de instrução nesta

matéria, usem da língua própria das suas nações ou da chamada geral,

mas unicamente da Portuguesa, na forma que S.M. tem recomendado

em repetidas ordens, que até agora não se observam, com total ruína

espiritual e temporal do Estado. (Cunha: 1985, 80).

Entretanto, não foi apenas um decreto que tornou possível o restabelecimento da

língua portuguesa tida como padrão. Este se deve a fatores de unificação, como a língua

escrita culta e, ainda, a língua falada pelas elites e o ensino preconizado nas escolas.

Além disso, o português era a língua do comércio utilizada nos portos, nas cidades

e vilas e até mesmo no seio da família, “mas ainda aí aparecia o tupi, falado pelos fâmu-

los, quase todos índios ou de descendência índia” (Sampaio: 1928, 51). Os falares ge-

rais, porém, foram, pouco a pouco, empurrados para os sertões. Nas cidades litorâneas,

só se falava a língua dos colonizadores, que representava fator de status. Nas principais

cidades, falava-se um português mais culto, “de onde as conhecidas escolas pernambu-

cana, baiana e mineira das nossas histórias literárias” (Elia: 1979, 189). Enquanto isso,

nos engenhos de açúcar, formava-se uma língua coloquial, resultante do contato entre

brancos trabalhadores e negros escravos traficados da África para o Brasil, diretamente

para Salvador, a partir de 1550.

Nas cidades imperava a língua portuguesa; na zona rural agrícola, da-

va-se o mesmo fato, porquanto os falares crioulos ou semicrioulos não

passavam de formas portuguesas alteradas na boca de aloglotas (Elia:

1979, 193)

Vêm de longe os problemas relativos ao ensino de língua materna no Brasil. Até

meados do século XVIII, esse ensino era restrito à alfabetização. Poucos educandos

tinham acesso à escolarização mais prolongada. Esses, privilegiados, estudavam a gra-

mática da língua latina, a Retórica e a Poética. (Soares: 1998, 54).

A educação escolarizada não jesuítica iniciou-se nos meados do século XVIII e se

dirigia a uma ínfima parcela da população, que foi aumentando aos poucos até que, com

a chegada ao Brasil do príncipe regente D. João, em 1808, fossem criados centros de

transmissão do saber. O Rio de Janeiro, agora capital do Reino, a partir de 1815, foi

sede da Escola Médico-Cirúrgica, do Liceu de Artes, da Biblioteca Real, além de outras

criações.

Paralelamente, a língua literária, que se desenvolvia, ganhou, no século XIX, com

José de Alencar, uma modalidade própria, aproveitando-se da cor local. Chegou-se a

cogitar da formação de uma língua brasileira, quando, na verdade, estávamos diante de

um “estilo brasileiro” (Melo: 1981, 131) – ou variedade brasileira, numa concepção

mais atual –, que iria desenvolver-se, até o século XX, quando se afirma com o movi-

mento modernista.

Verdadeiramente, o desenvolvimento cultural foi maior no segundo reinado,

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quando se instalaram no Brasil institutos históricos e geográficos que superaram as aca-

demias do século XVIII. Todavia, ainda o saber se concentrava na Metrópole, em espe-

cial em Coimbra, para onde eram enviados os jovens de famílias abastadas do Brasil, a

fim de seguir cursos de Direito, Teologia, Medicina e Engenharia.

Os estudos lingüísticos no Brasil eram, todavia, ainda empíricos; faltava-lhes um

método científico, que só começou a surgir no primeiro quartel do século XIX. A gra-

mática normativa continuava entregue a amadores. Só em fins do século XIX, com o

país já independente, os ensinos de Gramática, Retórica e Poética cedem seu lugar à

disciplina chamada “Língua Portuguesa” (Soares: 1998, 55), que se baseava no estudo

da gramática da língua e leitura de antologias que privilegiavam autores portugueses (e

alguns brasileiros que mais se destacavam pela imitação dos clássicos), passando todos

a formar o paradigma do “bem escrever” que os alunos deviam imitar. Isso porque pre-

dominavam na Lingüística as teorias histórico-evolutivas, segundo as quais o presente

lingüístico se explicava pelo passado e a fase atual do idioma representava uma corrup-

ção da fase passada. Assim, prestigiavam-se escritores lusitanos dos séculos XVI e

XVII.

Foi, ainda, essa preocupação historicista que norteou a reforma do ensino de lín-

guas, especialmente da materna, no programa elaborado por Fausto Barreto, em 1887,

de onde se originaram as primeiras gramáticas escritas por brasileiros: as de João Ribei-

ro (Gramática portuguesa, 21a ed., 1921), Pacheco da Silva Jr. e Lameira de Andrade

(Gramática da língua portuguesa, 1887), Maximino Maciel (Gramática descritiva,

1910), Alfredo Gomes (Gramática portuguesa, 2a ed., 1930) e Ernesto Carneiro Ribeiro

(Serões gramaticais, 106a ed., 1957).

No século XIX, o ensino de língua materna relacionava-se a uma tradição de teo-

ria e análise com raízes na filosofia grega, em que a linguagem era considerada expres-

são do pensamento. Só no início do século XX, com as novas teorias lingüísticas, ouvi-

ram-se os primeiros ecos de uma mudança, mas, ainda assim, o ensino de Língua Portu-

guesa se mantinha voltado à tradição gramatical, buscando-se a homogeneidade padro-

nizada e desprezando-se a heterogeneidade dialetal.

Essa preocupação com a boa escrita pôde ser comprovada, posteriormente, no iní-

cio do século XX, pela análise dos manuais utilizados na época: a Gramática expositiva,

de Eduardo Carlos Pereira (em dois volumes: curso elementar e superior), a Antologia

nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet (publicada em 1907 e consumida em 43

edições até os anos 60, baseando-se a modalidade culta em autoridades clássicas e apre-

sentando sobre cada escritor sucinta biografia histórica e literária), além de O idioma

nacional, de Antenor Nascentes; a Gramática normativa da língua portuguesa, de

Francisco da Silveira Bueno, e a Gramática metódica da língua portuguesa, de Napole-

ão Mendes de Almeida.

A gramática de Pereira (106a ed., 1957), por exemplo, era expositiva e se dedicava

ao programa oficial dos três primeiros anos ginasiais. Procurava, seguindo a então ori-

entação da Comissão de Programa de Línguas, fugir do excesso de terminologia e evitar

as subdivisões que representariam um prejuízo para a clareza. No exemplário, foram

selecionados autores clássicos e modernos seguidores dos clássicos, entre estes dando-

se preferência a Alexandre Herculano e Antônio Feliciano de Castilho.

Apresentava Pereira uma noção mais larga de língua, cujas regras não se formu-

lam a priori, ao sabor dos gramáticos, mas pelo uso das pessoas cultas. Ainda se tratava

de uma visão elitista, mas já ampliada em relação a conceitos anteriores em que a língua

era delineada em gabinetes. Dessa forma, citava escritores modernos para o abono das

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regras estabelecidas.

A prática se fazia por meio de textos antológicos, em que estruturas lingüísticas

eram submetidas à análise lógica, “que, levada ao exagero e a um vazio de só se servir a

si mesma, passou a ser, entre muitos professores, o centro de preocupação de suas au-

las” (Bechara: 1986, 37). Assim, textos do século XVI, como Os Lusíadas, de Camões,

se constituíam objetos de “terror” do alunado, que eram obrigados a analisá-los.

Entretanto, João Ribeiro (1921, 240), nas notas finais de sua Gramática, já se mos-

trava infenso às doutrinas gerais da análise lógica: “Nas minhas lições de português

feitas no Pedagogium do Rio de Janeiro, a análise lógica foi completamente eliminada

por inútil e insignificante.”

Nas primeiras décadas do século XX, a concepção de língua que orientava o ensi-

no de língua materna era a de sistema único, o que significava a não aceitação das vari-

edades. Ensinar português representava levar os alunos ao reconhecimento do sistema

lingüístico, com a aprendizagem das regras prescritas pela gramática normativa. Era

função da escola transmitir e fixar a variedade culta da língua, garantindo-lhe a continu-

idade, para, dessa forma, atender aos interesses dos grupos dominantes.

O trabalho de ‘fixação’ de uma variedade da língua acaba por levar a

um compromisso com uma visão estática da língua e a conseqüentes

assunções de crenças que ligam a mudança lingüística a conceitos ne-

gativamente avaliados pela escola. (Santos: 1996, 18)

As primeiras idéias lingüísticas chegaram até nós veiculadas por Said Ali em suas

gramáticas. Autodidata, Said Ali mantinha-se sempre em contato com os estudos euro-

peus, a ponto de, em 1919, incluir em sua obra Dificuldades da língua portuguesa capí-

tulos voltados para as doutrinas saussurianas, quando o Curso de lingüística geral, obra

póstuma de Saussure, fora publicado apenas três anos antes, em 1916.

Partindo do conceito de diacronia de Saussure, Said Ali criou sua Lexiologia do

português histórico (1921), transformada em Gramática histórica, na 2ª edição, para

atender ao programa oficial vigente na época.

A obra de Said Ali inova, pois não parte do latim para chegar ao português, mas,

antes, trabalha do português arcaico ao moderno, apresentando duas sincronias “tão

válidas quanto a anterior” (Bechara: 1986, 52) – referindo-se à sincronia latina. Todavi-

a, a inovação do mestre não foi acolhida na época e seu trabalho só se tornou reconheci-

do após a década de 60, com os novos estudos lingüísticos já valorizados.

Na década de 40, ainda não havia um consenso sobre o que ensinar e como ensi-

nar. Cada professor estabelecia o seu planejamento, selecionando, à sua moda, o que

considerava importante para o estabelecimento de um programa de ensino.

Nessa década, com base na dicotomia langue-parole de Saussure, abriu-se para

nós o campo da Estilística. Pôde, assim, o professor distinguir estilística de gramática.

Mas, desde 1923, Sousa da Silveira, em sua obra Lições de português, embora ainda não

se dedicasse ao estudo da Estilística, já se preocupava em conceituá-las separadamente

e, do todo, já se depreendia uma colocação, acima de tudo, estilística, numa visão larga

em relação à época em que realizou seus estudos.

A linguagem brasileira corrente infringe este preceito [Não se inicia

período por variação pronominal átona] a cada momento e é força re-

conhecer que, em muitos casos, comunicando à expressão encantado-

ra suavidade e beleza (1983, 253)

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É importante reconhecer o pioneirismo de Sousa da Silveira, que, desde a 1ª edi-

ção de sua obra, opôs-se ao “dogmatismo da corrente purista”, como afirmou em seu

prólogo, e defendeu a necessidade de se recorrer a autores contemporâneos brasileiros,

sem que, por esse motivo, se desprezassem os clássicos portugueses. Assim, por exem-

plo, Machado de Assis é mais citado do que Camões. Também reconheceu a variabili-

dade lingüística, atribuindo certa importância tanto às variedades diastráticas quanto às

diatópicas.

A própria literatura nossa regional exprime-se numa língua que, ape-

sar de tudo, não deixa de ser a portuguesa; e o falar dialetal da nossa

gente inculta é, na essência, língua portuguesa. (1983, 292)

Também de Sousa da Silveira temos os Trechos Seletos, antologia cercada de co-

mentários e precedida de um estudo da língua portuguesa em seus vários aspectos. Dis-

tingue língua falada de língua escrita, brasileirismos de arcaísmos, gramática de estilís-

tica. Dessa forma, Sousa da Silveira apresenta uma didática até os dias atuais respeitada:

o estudo do texto, pelo texto, para o texto. Gramática [aqui, referindo-se à morfossinta-

xe], Semântica e Estilística são estudadas simultaneamente, pela sua proposta.

E os professores que ainda não descobriram que o texto é o grande

instrumento de ensino da língua, que leiam atentamente, repetidamen-

te, exaustivamente, as anotações de Sousa da Silveira aos Trechos se-

letos e terão encontrado o rumo definitivo da sua Didática. (Melo, a-

presentação de Trechos seletos: 1963, 3)

Mas não é apenas nos planos pedagógico e didático que distinguimos as duas me-

tades do século, no que tange ao ensino em geral. Um problema de cunho político-social

distancia frontalmente os anos pós-50 dos anteriores. A realidade é que, desde o início

do século até os anos 50, o ensino destinava-se a uma elite. As camadas populares não

tinham acesso à escola, pois as vagas eram escassas. Ora, esses alunos de uma classe

privilegiada já chegavam à escola com um domínio razoável do dialeto de prestígio, a

norma padrão culta, e seus professores eram teórica e didaticamente preparados com

excelência.

À escola cabia o ensino da gramática normativa. Textos literários compunham an-

tologias, através das quais se desenvolviam nos educandos as habilidades de leitura e

escrita. Além disso, a leitura tinha início, nessa época, em casa, no seio da família. Li-

am-se os contos de Andersen e dos Irmãos Grimm; as fábulas de Esopo e La Fontaine;

as histórias de Monteiro Lobato no Sítio do Picapau Amarelo; os livros da Condessa de

Ségur e da Sra. Leandro Dupré, entre outros.

A gramática histórica já tinha adquirido, nesse período, nova dimensão, graças ao

ensino universitário de língua materna, iniciado em 1939. Tinha como digno represen-

tante o filólogo Ismael de Lima Coutinho, que, desde sua obra mais relevante – Gramá-

tica histórica (1938) – praticava com rigor o método histórico-comparativo.

Por outro lado, a Estilística começava a ocupar um espaço no ensino, com a publi-

cação, em 1952, do livro Contribuição para uma estilística da língua portuguesa, de

Mattoso Câmara, que enveredava por um caminho até então pouco explorado por nós.

No campo da Lingüística, Mattoso Câmara publica, em 1956, o Dicionário de fa-

tos gramaticais, depois Dicionário de filologia e gramática, hoje Dicionário de lingüís-

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tica e gramática, obra de consulta, compreendendo vários verbetes, através dos quais

termos gramaticais novos e seus respectivos conceitos nos são apresentados.

Nos ensinos primário e secundário (correspondentes, respectivamente, aos atuais

ensinos fundamental e médio), nos anos 50, trabalhava-se, ainda, com a antologia. Mas

a questão do ensino ainda se mantinha problemática. As nomenclaturas eram muito va-

riáveis e cada professor seguia a sua linha, até que, diante do caos reinante, o governo

federal incumbe um grupo de gramáticos da tarefa de compilar termos técnicos, relacio-

nados à Língua Portuguesa, que deveriam ser empregados uniformemente em todo o

país. Esse glossário foi publicado, em 1959, sob forma de portaria, com o título de No-

menclatura Gramatical Brasileira (NGB), a fim de padronizar as referências descritivas

sobre a língua, numa tentativa de redirecionamento de estudos. Até os dias atuais, a

NGB encontra-se em vigor, embora submetida a várias críticas e já necessitando de uma

revisão.

A NGB não resolveu o problema do ensino, já que este não se restringe à nomen-

clatura empregada pelos professores. O objeto do ensino de Língua Portuguesa é variá-

vel o bastante para que se possa considerar que uma única doutrina dê conta dessas va-

riáveis. Além do mais, entende-se que cada professor tem o direito ético de privilegiar

essa ou aquela doutrina, sem que, por isso, seja condenado.

Dessa forma, na década seguinte, estudos e pesquisas denunciam o fracasso esco-

lar, a crise do ensino, que se mantém apesar de todas as tentativas. O alvo da alfabetiza-

ção em massa, perseguido desde a Constituição de 1946, continua inatingível. Nasce,

então, como mais uma tentativa de aperfeiçoamento do ensino, a Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional, sob o número 4024/61. Esta lei determina que “a educa-

ção é direito de todos e será dada no lar e na escola” (Art.2º). Entretanto, em parágrafo

único, admite a insuficiência de escolas e a possibilidade de encerramento de matrícula

em caso de falta de vagas.

Ainda com intenção de minimizar os problemas, a Lei 4024/61 cria os Conselhos

Estaduais de Educação. Estes se propõem a tentar melhorar a qualidade do ensino. Le-

var-se-ão em conta, a partir da Lei, a variedade dos cursos, a flexibilidade dos currículos

e a articulação dos diferentes graus. (Art. 12). Assim, a organização do ensino passa a

obedecer às peculiaridades de cada região e de seus grupos sociais.

Nessa fase, destaca-se a conferência realizada por Celso Cunha no MEC, em de-

zembro de 1964, sobre o tema “O ensino da língua nacional”. Publicada nesse mesmo

ano, pela Livraria São José, a conferência prima por uma abordagem corajosa: a defesa

da unidade da língua, contrária a uma uniformização arbitrária, dissociada da realidade

lingüística.

A situação começa a se transformar ainda na década de 60, quando se firma o pro-

cesso de democratização da escola – em verdade, uma conseqüência de um novo mode-

lo econômico: o povo, em geral, conquista o direito à educação sistemática. Mas não se

trata, apenas, de uma mudança educacional. Surgem novas condições sociopolíticas.

Todo o país vive uma metamorfose. Com a ditadura militar, a partir de 1964, passa-se a

buscar, no país, o desenvolvimento do capitalismo, mediante expansão industrial, e o

fim das ideologias socialistas e comunistas. Na busca incessante desse objetivo, fecham-

se escolas e diretórios acadêmicos de universidades; perseguem-se professores e alunos

acusados de comunistas e acaba a liberdade de imprensa.

A proposta educacional, agora, passa a ser condizente com a expectativa de se a-

tribuir à escola o papel de fornecer recursos humanos que permitam ao Governo realizar

a pretendida expansão industrial.

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Com o povo conquistando o direito à educação sistemática, a clientela da escola

pública começa a modificar-se fundamentalmente. As escolas primárias municipais não

são mais freqüentadas pelos filhos das camadas mais privilegiadas da população. Aos

poucos, o aspecto elitista da escola pública desaparece e sua clientela passa a ser consti-

tuída de camadas populares. Cria-se o critério de carência para o acesso às escolas pú-

blicas. Em conseqüência, o professor passa a ter uma nova preocupação em sala de aula:

a heterogeneidade dialetal de seus alunos.

Acostumados, até então, a uma camada de alunos distintos, a quem ministravam a

norma padrão culta, agora os professores se sentiam despreparados para enfrentar esse

problema.

Mas não foram apenas os alunos que mudaram. Também os professores, nos pri-

meiros sessenta anos do século, pertenciam a uma elite sócio-cultural. No Rio de Janei-

ro, formados pelas Escolas Normais – inicialmente o Instituto de Educação e a Escola

Normal Carmela Dutra – eram a fina flor do Magistério Público. A nova lei acaba com

o privilégio de o Município e o Estado formarem seus professores. O prestígio do Ma-

gistério começa a se desfazer com a nova política salarial. Os professores já não são os

mesmos. As classes média e alta, que, antes, optavam pelo Magistério, por vocação ou

interesse profissional, passam a interessar-se por outras profissões mais rendosas. Co-

meça a evasão no Magistério e a mudança de perfil do professor.

Nos anos 70, começa a mudar a clientela dos Cursos Normais. Antes, uma profis-

são que conferia status às moças de classe média e alta; agora, a ascensão social para os

que pertencem à camada mais pobre da população.

Em conseqüência dessa mudança, a qualidade do ensino se faz menos refinada,

buscando-se uma adequação ao novo momento. E as classes média e alta começam a

abandonar a escola pública e a procurar as instituições particulares, notadamente as de

formação religiosa.

As concepções de lingüística européia e norte-americana, que começaram a che-

gar ao Brasil principalmente na década de 40 foram, desde o início, mal interpretadas

por professores da época, o que, como já se falou, resultou na comissão criadora da

NGB (1957-1959). A partir de 1963, implantou-se a disciplina Lingüística no currículo

mínimo dos Cursos de Letras. Segundo Uchôa (1991, 34), foi uma decisão precipitada

que causou graves distorções, pois professores sem formação lingüística se tornaram

responsáveis por seu ensino

A mesma avaliação é feita por Kato:

Em virtude da falta de formação específica da maioria dos professores

de Lingüística da década de 1963-1973, muitas aberrações podem ter

sido cometidas em nome dela. Assim, a ciência passa a ser questiona-

da por culpa de uma legislação precipitada e dessa formação precária

que levou muitos professores treinados nessa época, e também autores

de livros didáticos, a proporem e utilizarem propostas pedagógicas em

cima de conceitos e princípios mal compreendidos. (Kato: 1988, 52)

Na mesma época, o governo militar, para fazer face à demanda, autoriza a instala-

ção de faculdades particulares, sem planejamento ou fiscalização e, ao mesmo tempo,

sem preocupar-se com a qualificação docente. Paralelamente, expande a rede de ensino

público para receber a massa de analfabetos que iriam prestar serviço ao modelo indus-

trial que estava sendo criado. A isso se considerou “democratização do ensino”. Os con-

teúdos curriculares, de valor imediatista, passam a ter características instrumentais.

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Nesse clima, é sancionada a Nova Lei de Diretrizes e Bases, a 5692/71, que esta-

belece a língua nacional como instrumento de comunicação e expressão da cultura bra-

sileira. A partir de então, a disciplina Língua Portuguesa torna-se Comunicação e Ex-

pressão no que passou a ser considerado 1º segmento do 1º grau (1ª à 4ª série); Comuni-

cação e Expressão em Língua Portuguesa, no 2º segmento (5ª à 8ª série), só se configu-

rando como Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no 2º grau.

No ensino de 1º e 2º graus, dar-se-á especial relevo ao estudo da lín-

gua nacional, como instrumento de comunicação e como expressão da

cultura brasileira. (Lei 5692/71, Art.1º, parágr. único)

Diante da nova realidade lingüística dos alunos, os professores mantêm-se indeci-

sos: nivelar por baixo ou reprovar em massa nas primeiras séries de cada curso. Não

havia outras opções: ou se mantinha a qualidade do ensino e se tinha uma reprovação

maciça nos anos iniciais ou se baixava o nível de ensino, permitindo a aprovação de

alunos sem base. Nenhuma das hipóteses contentava aos professores e estes, no 2º grau,

perguntavam-se como ensinar análise literária a um aluno que nem reconhecia um subs-

tantivo.

O Brasil entra numa fase chamada de “milagre econômico”. O governo se concen-

tra na área tecnológica e já não se importa com o humanismo. Em conseqüência, altera-

se a atribuição da escola. No final do curso de 2º grau, o cidadão deverá estar qualifica-

do para o trabalho. O curso de 2º grau (atual ensino médio) passa, portanto, a ser profis-

sionalizante, e as escolas, em geral, alteram seus currículos, forjando uma “qualificação

profissional”, que, em verdade, jamais saiu do papel.

A preparação para o trabalho, como elemento de formação integral do

aluno, será obrigatória no ensino de 1º e 2º graus e constará dos planos

curriculares dos estabelecimentos de ensino. (Lei 5692/71, Art.4º, pa-

rágr. 1º)

Encarar a língua como instrumento de comunicação é uma concepção mecanicis-

ta, adequada aos fins pragmáticos do ensino. Trata-se de objetivo, no mínimo, abrangen-

te e parcamente delimitado em termos curriculares. Não mais a língua é encarada como

sistema único, o que a adequava a um ensino elitista. Para atender às camadas populares

que, agora, assolam as escolas, urge um ensino utilitário com a língua voltada para a

oralidade. Cada vez mais, o ensino torna-se menos normativo e, portanto, menos rigoro-

so, em relação aos padrões cultos da língua. Ensinar gramática passa a ser coisa ultra-

passada. Em decorrência, esse ensino vem a configurar-se pela Teoria da Comunicação:

o aluno deve ser capaz de “funcionar” como emissor e receptor de mensagens pela utili-

zação de códigos verbais e não-verbais. Em outras palavras: de forma pragmática, a

língua não é mais encarada como sistema único, o que propiciava um ensino elitista;

agora, propunha-se o desenvolvimento das habilidades de expressão e compreensão de

mensagens, um ensino compatível, portanto, com o uso da língua.

Já não se trata mais de levar ao conhecimento do sistema lingüístico –

ao saber a respeito da língua – mas ao desenvolvimento das habilida-

des da expressão e compreensão de mensagens – ao uso da língua.

(Soares: 1998, 57)

No ensino, essa alteração de objetivos se fez sentir no propósito de desvalorização

IDIOMA 23

15

da prática pedagógica de gramática normativa, através de regras. O professor que “ensi-

nasse gramática” era considerado desprestigiado: “foi nesse período que surgiu a até

então impensável polêmica sobre ensinar ou não ensinar gramática na escola fundamen-

tal.” (Soares: 1998, 58).

A língua como sistema era relegada a segundo plano para que se passasse a valo-

rizá-la como instrumento de comunicação. Ensinavam-se os elementos de comunicação

e funções da linguagem. Dava-se, ainda, valor à expressão corporal como uma forma de

linguagem. As gramáticas de Bechara, Celso Cunha e Rocha Lima, até então alvos de

ensino, eram substituídas por outras, que ensinavam através da ilustração. As antologias

desapareciam e, em seu lugar, surgiam livros didáticos mais atraentes em sua forma,

explorando-se cores e recursos gráficos. Seu conteúdo – esse, sim – deixava a desejar. A

interpretação dos textos não era mais elaborada pelo professor junto a seus alunos. As

perguntas – em geral, tipo “cavalo branco”, perguntas de resposta óbvia, sem nenhuma

reflexão – eram as mais comuns. Havia o livro do professor, com as respostas às ques-

tões formuladas para que o professor nem precisasse pensar. Era uma “parafernália di-

dática” (Geraldi: 1997, 93), que ia das respostas nos manuais do professor até vídeos

destinados ao ensino de determinados tópicos. Esses livros vinham adequados aos no-

vos professores que ingressavam no Magistério sem grande preparação prévia.

Dava-se ênfase, então, apenas a textos jornalísticos e publicitários, praticamente

ignorando-se os literários (desses, só o gênero crônica era utilizado, em geral). Havia,

ainda, destaque para textos não-verbais, charges e histórias em quadrinhos, com seus

códigos especiais, que passam a figurar na quase totalidade dos manuais didáticos. Não

são um mal, certamente, mas não devem ser a exclusividade, como também não o de-

vem ser os textos literários.

Pela primeira vez, exercícios de expressão oral tornam-se parte dos manuais didá-

ticos. Os textos literários de estilo mais elaborado somem desses manuais. São substitu-

ídos por crônicas, onde se explora a língua coloquial. Há, portanto, uma inversão. Os

autores da maioria dos livros didáticos se preocuparam exclusivamente com a língua

oral, visando à comunicação, e se esqueceram de que é objetivo do professor de portu-

guês trabalhar também a língua escrita (especialmente, a padrão, desconhecida, em ge-

ral, dos alunos) para ampliar os recursos de expressão de seus alunos. Assim, alguns

professores “da velha guarda” preocupavam-se em procurar livros didáticos que ainda

atendessem às suas expectativas, como os de Magda Soares, Domício Proença, Maria

Helena Silveira, Carlos Maciel e outros.

Desde o final dos anos 70, diante do caos que se estabelecera no ensino, decidiu-

se pela inclusão de redações em provas e exames vestibulares, acreditando-se em que se

teria nessa atitude uma solução para a crise do ensino. Esqueceu-se, todavia, de que,

para a melhoria da expressão de nossos alunos, não basta o domínio da técnica de reda-

ção. Fazer uma boa dissertação não consiste em estar ciente de que se devem utilizar

quatro a cinco parágrafos, sendo um de introdução, dois ou três de desenvolvimento, um

de conclusão, num espaço de vinte e cinco a trinta linhas. Urge, tão-somente, uma mu-

dança de atitude do professor quanto às atividades de produção textual de seus alunos e

como avaliar essa produção.

O que se cobrava nas redações era a obediência ao padrão culto da língua, nessa

época já tão afastado da realidade culta corrente. Assim, corrigia-se o emprego passivo

do verbo assistir, o uso do pronome reto em entre eu e você, o emprego do oblíquo em

para mim ver e se esquecia de que o grande problema da produção textual é a interlocu-

ção. Uma carta a um amigo era, por exemplo, escrita de forma cerimoniosa, para aten-

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16

der às normas prescritivas da língua.

O aluno é levado a reproduzir estereótipos ou generalidades sobre os

mais variados assuntos, compondo, então, a redação (e não a produção

de um texto) com base na imagem que ele assimilou do gosto e da vi-

são de língua do professor. (Uchôa: 1991, 65).

Essa atitude perdurou durante a década de 70 e início de 80. Nesse período de

mudança, já na segunda metade dos anos 80, alguns professores, em fase de pós-

graduação, cursando mestrado e doutorado, apresentam alternativas para a melhoria do

ensino de Língua Portuguesa (Souza: 1983) e publicam suas dissertações e teses, ques-

tionando o ensino a partir da gramática normativa. Grandes nomes da Lingüística e da

Gramática também se manifestam, como poderemos ver no primeiro capítulo. Algumas

editoras criam coleções que buscam o questionamento e a reflexão, como é o caso da

coleção Princípios, da Ática.

Tentando minimizar o problema, no final da década de 70, as escolas normais,

como o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, criam disciplinas extraordinárias, como

TEOTI (Técnica de Estudos e Organização do Trabalho Intelectual) e EOE (Expressão

Oral e Escrita) para servirem de ponto de apoio ao Curso Normal e, portanto, aos futu-

ros professores do ensino fundamental, que, a essa altura, ainda sentiam dificuldades de

expressão e organização lógica do pensamento.

Do programa de TEOTI, constavam a organização de resumos, quadros sinóticos,

tabelas, técnica de sublinhar um texto, enfim tudo que pudesse facilitar o estudo e orien-

tar a pesquisa dos alunos.

EOE era uma disciplina instrumental. Parte dos “erros” comuns cometidos pelos

alunos era revista e, através de uma bateria de exercícios, dúvidas do tipo mas ou mais,

por que, porquê, por quê ou porque, há, à ou a passavam a ser esclarecidas. Pretendia-

se, pois, oferecer subsídios para uma melhor expressão escrita, mas o ensino ainda se

limitava ao conceito de que escrever bem era escrever corretamente. Tomava-se por

base unicamente o padrão culto da língua. E, ainda nesse momento, os alunos eram o-

brigados a decorar, por exemplo, que a locução adjetiva “de tia” corresponde ao adjeti-

vo “avuncular”. Pergunta-se: para quê? Por quê? Em que momento irão empregar essa

forma?

Vale lembrar que esse tipo de ensino sem propósito, vez por outra, era questiona-

do até na imprensa, como por exemplo numa deliciosa crônica de Rubem Braga, intitu-

lada “Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”.

O livro-base de estudo era a Nossa gramática, de Luiz Antonio Sacconi, inteira-

mente calcado na gramática normativa, tradicional.

No início dos anos 80, ainda preocupadas com a defasagem dos alunos, escolas

tradicionais, como o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, aumentam em duas horas

a carga horária de Português no primeiro ano do 2º grau (hoje, de novo, ensino médio),

para maior aproveitamento em redação. Mas também as “aulas de redação” eram, em

geral, artificiais. O professor escolhia um tema e os alunos escreviam sobre ele.

Sentindo a necessidade de rever seu planejamento, também o Colégio Pedro II re-

avalia seus objetivos e propõe, na década de 80, um novo conteúdo programático para

os ensinos fundamental e médio. Com relação a este conteúdo, dá-se ênfase à morfos-

sintaxe. As classes de palavras são estudadas dentro da oração em suas relações sintáti-

cas. Todo o ensino é sugerido a partir da leitura expressiva de um texto. A finalidade

maior do ensino de Português, no primeiro grau, continua sendo a utilização adequada

IDIOMA 23

17

da norma culta do idioma. Todavia, a composição oral, em suas nuanças, será recomen-

dada.

O ensino da gramática terá por fundamento a prática oral e escrita da

língua portuguesa, visando à gradual transposição da língua transmiti-

da para a língua adquirida. (PGE: 1986, 49)

Paralelamente, são criados projetos de integração entre as séries 4ª e 5ª, visando a

que, ao ingressar na 5ª série, os alunos sintam não uma quebra, mas, ao contrário, a con-

tinuidade de um ensino voltado ao aprimoramento da expressão oral e escrita. É de ex-

trema preocupação o incentivo à leitura e à produção textual, que será sempre avaliada,

inclusive como parte integrante das provas únicas, realizadas no meio e no fim de cada

período escolar.

Por seu lado, as editoras, tentando colaborar com os novos planejamentos e, ao

mesmo tempo, orientar os professores, lançam inúmeros manuais de redação e os distri-

buem entre professores, esperando que os adotem. Entre esses, destaca-se a série Criati-

vidade, de Samir Curi Meserani, que realmente explorava e estimulava a capacidade

criadora do aluno, de forma inteiramente espontânea e gradual.

Havia uma quantidade de manuais, mas quase todos se baseavam na conhecida

obra de Othon Moacir Garcia, Comunicação em prosa moderna, cuja leitura deveria ser

recomendada a todo professor porque ensina a escrever aprendendo a pensar (Garcia:

1975, 275). Sua obra divide-se em dez partes e abrange todos os conhecimentos neces-

sários a quem pretende aprimorar-se na arte de escrever e de ensinar a escrever. Seus

três primeiros capítulos são fundamentais, uma vez que estudam a frase, o vocabulário e

o parágrafo, norteando-se sempre pelas relações semânticas e sintáticas.

A partir de 1985, uma nova realidade preocupa o ensino: os exames vestibulares

constatam o despreparo dos vestibulandos, que, apesar de todos os esforços, redigem

mal e não entendem o que lêem. Matérias jornalísticas apresentam os erros ortográficos

dos candidatos a uma vaga nas universidades. Percebe-se que a preocupação maior ain-

da é com a ortografia, esquecendo-se de que a expressão é o ponto nevrálgico da produ-

ção escrita. Ninguém comenta, por exemplo, a falta de coesão e coerência num texto

escrito, mas riem dos erros ortográficos. De qualquer maneira, urge a volta da redação.

Em busca de uma solução, leitura e redação passam a ser exigidas em provas. Paralela-

mente, os alunos lêem livros impostos pelos professores e, na maioria das vezes, inade-

quados à sua faixa etária e grau de cultura. Vêem-se alunos de 6ª e 7ª séries sendo obri-

gados a ler, por exemplo, romances de José de Alencar e de Machado de Assis.

Alguns professores tradicionais condenam os colegas que adotam livros, como os

de Lígia Bojunga Nunes e Ana Maria Machado, por serem escritos em linguagem colo-

quial. Esquecem-se dos belíssimos recursos de expressão que permeiam tais livros, es-

ses, sim, adequados à faixa etária do ensino do então 1º grau. Uma cobrança inadequada

força os alunos a decorarem a história narrada para, logo após, essa “leitura” ser avalia-

da em provas.

Em cursos pré-vestibulares, cria-se a disciplina Técnica de Redação, cujo objetivo

é preparar os alunos para as dissertações dos exames vestibulares, dissertações essas que

devem apresentar coesão e coerência, além de parágrafos definidos com o propósito de

se estabelecer introdução, desenvolvimento e conclusão. À criatividade, sobrepõe-se a

apologia pura e simples da forma.

Observando as dificuldades de expressão até mesmo dos estudantes de Letras,

cursos superiores de Letras passam a oferecer disciplinas de apoio, como é o caso de

IDIOMA 23

18

TECOE (Técnica de Comunicação Oral e Escrita) na UERJ.

Enfim, pensava-se que se ensinava; os alunos pensavam que aprendiam. Mas o re-

sultado era, ainda, apesar de todos os esforços, uma expressão pobre, calcada , apenas,

em modelos pré-concebidos.

É nesse momento de crise que se faz ouvir a voz de Evanildo Bechara. Destaca-

mos como de alta importância no momento histórico de reflexão sobre ensino de língua

materna a obra Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? (1986), que sempre provo-

cou muita discussão em torno dos temas focalizados, desencadeando uma série de ou-

tras produções, de diferentes autores.

Nesse trabalho, após um levantamento histórico do comportamento pedagógico,

em relação ao ensino de gramática normativa, nas décadas de 60 e 70, o autor conclui

que a “perseguição” à gramática normativa, tradicional, é tão errada quanto o privilégio

dedicado ao código oral, coloquial, em detrimento do dialeto padrão. Segundo o mesmo,

ambas as atitudes “são de natureza monolíngüe” e desprezam o fato de que “cada falan-

te é um poliglota na sua própria língua” (Bechara, 1986, 12-3).

O filólogo alinha-se com os postulados preconizados por Coseriu (1980). Assim,

observa que “toda língua funcional tem a sua gramática como reflexo de uma técnica

lingüística que o falante domina e que lhe serve de intercomunicação na comunidade a

que pertence” (1986, 13).

O falante dispõe, portanto, de várias línguas funcionais: a que usa com mais fre-

qüência e faz parte do seu cotidiano e as que costuma decodificar, em diferentes situa-

ções de discurso. Nesse caso, o papel do professor se resume em incentivar o aluno a

escolher a língua funcional adequada a seu momento de expressão. Isso pressupõe li-

berdade, possibilitada pela capacidade de entender a língua como um diassistema, que

abrange variedades diatópicas, diastráticas e diafásicas.

Posiciona-se o autor, pois, contrário ao glotocentrismo, à doutrina de uma única

língua – no caso, a língua padrão. Quando a questão é “gramática e ensino”, propõe que

se extraiam da linguagem todos os recursos que “podem significar”, como diz o lingüis-

ta inglês Halliday (1974, 274-87).

Essa mudança proposta no ensino requer, sem dúvida, uma reforma de currículo e

de atividades didáticas. É preciso não esquecer que a língua “não é um rol de nomencla-

turas” (Bechara: 1986, 23) e que seu ensino deveria seguir um método natural, quer di-

zer, diretamente proporcional ao desenvolvimento lingüístico dos alunos. Com esse

pensamento, defende que, nas aulas de gramática, dever-se-á previamente determinar

que língua funcional será objeto de descrição e, simultaneamente, contrastá-la com ou-

tras línguas funcionais, sempre que for possível.

Findas essas considerações, observa-se que o autor discute politicamente o ensino

de gramática. Em outras palavras: direciona seu pensamento para uma determinada ide-

ologia em que a sociedade brasileira deve participar como um todo na luta pela educa-

ção, “pois o destino da educação se confunde com o próprio destino dessa mesma soci-

edade” (1986, 23).

É a partir daí que pergunta se ensinar gramática significaria opressão. Interroga-

se, ainda, em relação aos limites da liberdade. Nesse momento, embora reconheça e

admita a língua coloquial como um dos usos lingüísticos (como uma língua funcional,

portanto), não aceita o privilégio que alguns autores lhe dão e, conseqüentemente, o

“ensino” dessa modalidade de língua.

Que a língua coloquial esteja presente no ensino da língua estrangeira,

IDIOMA 23

19

compreende-se...mas no tocante à língua materna... (Bechara: 1986,

60).

Entretanto, reconhece que “o ensino lingüístico na escola deverá partir da ativida-

de oral” (p. 46), o que significa que a gramática internalizada – aqui entendida como o

repertório lingüístico que todo falante possui – será o ponto de partida do ensino.

Contextualizando no tempo a obra em análise, observamos que ela já representa

uma evolução, pois conclama a que outros autores escrevam sobre o mesmo tema - en-

sino da gramática e, inclusive, comecem a propor uma metodologia de ensino.

“Escrevam, discutam, polemizem! ” – constitui a “chamada”, embora breve, para

a reflexão e conseqüente posicionamento em torno da questão ensino. A coleção Princí-

pios, em que se insere a obra, caracteriza-se, entre outros objetivos, por lançar idéias a

serem desenvolvidas/debatidas no meio acadêmico.

.Resumindo, o autor posiciona-se contra a opressão lingüística, contra o glotocen-

trismo e o ensino metalingüístico e defende a liberdade de expressão.

Fazendo do estudo da gramática um fim em si mesma, pôde-se facil-

mente observar que tal atividade nem ministrava aos alunos, através

do conhecimento das normas gramaticais, o conhecimento da língua,

nem tampouco a habilidade expressiva. (Bechara: 1986, 39).

Mais uma vez, sobressai o nome de Celso Cunha, dessa vez aliado ao de Lindley

Cintra. Ambos conjugam, em sua Nova gramática do português contemporâneo (1985),

o normativismo e o descritivismo, numa tentativa de conciliação. Pela primeira acepção,

apresentam, de maneira didática, as regras relativas à norma culta do português atual,

tomando por base não apenas escritores clássicos, mas também brasileiros, africanos e

portugueses a partir do Romantismo, no século XIX. Já numa posição descritiva, os

autores ainda apresentam aspectos da língua coloquial, além de variedades diatópicas.

Houve, inclusive, a intenção de valorizar os recursos expressivos do idioma, tornando

sua gramática uma “introdução à estilística do português contemporâneo” (1985, 15).

Celso Pedro Luft foi, também, um nome de destaque na década de 80. Com a pu-

blicação, em 1985, de Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna,

o autor foi tido como revolucionário no tocante ao ensino de Língua Portuguesa, daí a

necessidade de incluí-lo nessa relação.

Nessa obra, aqui referida pela 3a edição, de 1994, Luft afirma que, ao contrário do

que muitos pensam, não é contra a gramática, “pois esta é imanente às línguas” (1994,

11). O que, na verdade, o preocupa é o ensino opressivo de língua materna. Propõe, en-

tão, uma mudança radical nesse ensino, em que se passe a usar, como ponto de partida,

a gramática que o aluno domina, ou seja, a gramática internalizada a que outros autores

irão referir-se posteriormente.

Segundo Luft, o que falta ao educando é liberar o que “já sabe” (ou seja, sua gra-

mática internalizada) e, certamente, ampliar suas capacidades através de uma “prática

sem medo, um ensino sem opressão” (1994, 12). Com essa observação, antecipa-se à

posição posteriormente assumida por Franchi (1987), Travaglia (1995/1998), Possenti

(1996/1998) e Geraldi (1991;1996/1998), defendendo o desenvolvimento das aptidões

dos alunos através da prática.

O que os distingue, todavia, é o fato de o autor em foco não chegar a precisar em

que consiste essa “prática sem medo” (Luft: 1994, 12) a que se refere. Discute o pro-

blema, mas não chega a apresentar alternativas em termos pragmáticos.

IDIOMA 23

20

Para o autor, “quem fala sabe a gramática da língua”, logo a escola não necessita

de informar teoria gramatical aos alunos, pois não é por esse meio que teremos escrito-

res habilidosos e leitores proficientes. O que importa, portanto, é a ampliação de voca-

bulário, o desenvolvimento dos recursos expressionais, enfim a possibilidade de o aluno

tomar consciência da língua e, a partir daí, ser capaz de dominar a escrita. Assim, o au-

tor destaca o papel da liberdade referida no título de sua obra. Seu desejo é formar “ci-

dadãos lúcidos e livres, senhores de sua linguagem” (1994, 12).

Luft relaciona o ensino de língua ao conceito universal de liberdade, pois “a gra-

mática mal ensinada incute servilismo” (1994, 93). Partindo desse princípio, espera que

o ensino conduza à liberdade - ponto comum com o filólogo Bechara (1986), já referido.

Estabelece, também, distinção entre “teoria artificial”, que ele chama de Gramáti-

ca (com G maiúsculo) e “teoria natural”, gramática (com g minúsculo) - respectiva-

mente, o que Coseriu (1980) chama de “gramática 1” e “gramática 2” Em outras pala-

vras, Luft distingue a gramática explícita, metalingüística, da gramática tomada como

objeto, a gramática interiorizada. Defende a idéia de que o estudo da Gramática, unica-

mente como metalinguagem, não é indispensável ao domínio da comunicação. Chegar-

se-á, pois, à comunicação através da prática e não da teoria.

Podemos nos mover sem saber que músculos, nervos, ossos estão em

funcionamento; sem saber as regras da locomoção. Quanto pianista

toca de ouvido, sem conhecer teorias de notas, de acordes ou harmo-

nização, sem saber explicitamente as regras – a gramática – da músi-

ca. (Luft, 1994, 18)

Assim, ao invés de regras gramaticais, as aulas de Português devem abranger lei-

tura com comentário, análise e interpretação de “bons” (grifo nosso) textos e produção

constante de textos “bons” – comentário subjetivo, pois depende de critérios variáveis.

O autor ainda esclarece que muitos professores, rejeitando a gramática tradicional,

de natureza metalingüística, se valem dos conhecimentos teóricos de Lingüística. Esta

passa a ser a “tábua de salvação”. Mas a teorização moderna, de base lingüística, não

deve substituir a teoria gramatical, de caráter tradicional. O que se procura, em termos

de ensino, não é uma teoria “melhor” e, sim, uma prática mais eficiente. Por conseguin-

te, cabe ao professor o embasamento teórico que irá guiá-lo em suas aulas práticas. Essa

posição se afina com a de Franchi (1987) e já a definia Georges Mounin:

É o docente quem deve saber Lingüística e Gramática para bem ensi-

nar esse manejo, e não forçosamente o discípulo, muito menos a cri-

ança. (apud Luft: 1994, 97)

Diante dos protestos da área educacional, o Conselho Federal de Educação decide

estabelecer a medida de retorno da disciplina “Português”, eliminando as denominações

relativas à Comunicação. Esse caráter vacilante de denominar a disciplina referente ao

ensino da língua materna , alás, sempre foi uma constante. Nas décadas de 40 e 50, usa-

va-se Linguagem para o antigo primário. Tal atitude traduz a falta de consenso, não só

na referência, mas também no que ensinar.

Entretanto, não se trata somente de substituir uma denominação, mas de encetar

uma nova atitude que se esperava obter frente ao ensino de língua materna.

Paralelamente, novas ciências lingüísticas – a Sociolingüística, a Psicolingüística,

a Pragmática, as teorias do discurso e do texto – desenvolvidas nesse período, come-

IDIOMA 23

21

çam, inclusive, a influenciar no ensino de língua portuguesa.

Chega-se, portanto, a mais um momento de questionar que gramática queremos

ensinar: a gramática entendida como um sistema único ou a gramática como um diassis-

tema? Valoriza-se a língua escrita, a língua oral, ou ambas? Qual a função do texto?

Ensina-se redação ou trabalha-se com produção textual? Cobra-se ou incentiva-se a lei-

tura? Parece-nos já se ter chegado a um consenso: ensina-se a gramática como diassis-

tema, valorizando-se todas as modalidades lingüísticas, adequadas a cada situação em

particular; o texto é estudado em suas potencialidades expressivas; trabalha-se com pro-

dução textual; incentiva-se sempre a leitura.

Diversos lingüistas começam a escrever artigos e publicar livros sobre o ensino de

língua portuguesa. Destacamos os nomes de Carlos Franchi, Mário Perini, Sírio Possen-

ti, Luiz Carlos Travaglia, João Wanderley Geraldi, Luiz Percival Leme Britto, Rodolfo

Ilari, Carlos Eduardo Falcão Uchôa, Magda Soares, Luiz Marques de Souza, Marcos

Bagno, entre outros.

Se perguntássemos a qualquer professor secundário por que se ensina

gramática, ele responderia provavelmente que o conhecimento da

gramática, devidamente assimilado, é um pré-requisito da expressão

correta. Se entendo bem, afirmações como esta querem dizer que o in-

divíduo que conhece gramática tem melhores condições para controlar

sua própria expressão, evitando assim incorreções (...) Esse projeto,

que poderia ser chamado de ‘boa expressão como subproduto da gra-

maticalização’, é problemático. Primeiro, porque cabe perguntar se

uma prática, um hábito, qualquer que ele seja, deve sempre resultar de

uma opção consciente; segundo, porque parece claro que o esforço de

abstração exigido para adivinhar o que está por trás de certas defini-

ções das gramáticas escolares vai além da capacidade do aluno médio

[vai além da capacidade de boa parte dos lingüistas não-dogmáticos].

(Ilari: 1997, 54-5).

A década de 90 já representa uma evolução. Encabeçado pela UFRJ e pela UNI-

CAMP, começa a mudar o Vestibular. As provas, não mais de múltipla escolha, revelam

amadurecimento na elaboração e preocupação com a expressão escrita dos candidatos,

em questões que exigem reflexão e conhecimento da língua.

As redações, nos exames vestibulares, começam a mudar de feição. Diante do e-

xame de textos variados, em diferentes linguagens, em torno de um mesmo núcleo te-

mático, o aluno é incitado a produzir seu próprio texto.

Deve o professor fomentar permanentemente o contato do aluno com

a múltipla variedade de situações e logo com a pluralidade de discur-

sos daí recorrentes. (Uchôa: 1991, 66)

Nessa década, as principais universidades brasileiras começam a discutir o tema

“ensino de língua materna”. Congressos e Simpósios são realizados em vários pontos do

país. Na UERJ, por exemplo, instituiu-se por iniciativa da professora Maria Teresa

Gonçalves Pereira, em 1996, o I Fórum de Estudos Lingüísticos para debater o ensino

de Língua Portuguesa. O evento tem se repetido ano após ano, trazendo novas contribu-

ições e ganhando o apoio de novas figuras representativas da UERJ, como os professo-

res André Valente, Cláudio Cezar Henriques e José Carlos de Azeredo. Na UFF, o pro-

fessor Carlos Eduardo Falcão Uchôa cria, em 1998, durante a implantação do curso de

IDIOMA 23

22

Doutorado, uma linha de pesquisa em estudos lingüísticos voltados para o ensino de

língua materna. Foi sob sua orientação que a tese de que se origina este artigo começou

a amadurecer.

Há vários anos, Uchôa vem defendendo que o “ensino de língua materna deve

cuidar de modo prioritário (não absoluto) da língua escrita” (1991, 35) daí advindo,

também, sua recomendação de que se inclua, nos cursos de Letras, uma ementa voltada

para a Lingüística Aplicada ao ensino de língua materna. Não será, com certeza, a cria-

ção de uma nova gramática da língua, em bases descritivas modernas, a redenção do

ensino. O que lhe parece fundamental é a “preocupação com a criação de atitudes críti-

cas do futuro professor em relação à língua e ao seu ensino” (p. 37).

De pouco adiantará tal gramática, esperada por tantos como redentora

com vistas à renovação do ensino, se o professor persistir em falar ou

em defender uma “boa linguagem” em termos absolutos, continuando

a orientar o seu ensino na base da rigidez normativa e de atitudes sem

fundamento – sem saber colocar-se, digamos, ante uma ocorrência

como a gíria, recriminando-a simplesmente como linguagem pobre,

vulgar, ao invés de procurar caracterizá-la e mostrar a sua expressivi-

dade e adequação a certos contextos.(UCHÔA: 1991, 36).

Crendo, pois, na importância da visão crítica do professor de Língua Portuguesa,

Uchôa propõe que se cuide “com maior atenção e maior realismo” dessa formação, a-

proximando Universidade e ensinos fundamental e médio, de tal forma que o futuro

professor não apresente uma atitude preconceituosa face à variedade dialetal de seus

alunos, o que já se tornou uma realidade desde o momento em que as diferentes classes

sociais tiveram acesso à escola.

Nos últimos anos, nota-se uma maior preocupação com a formação dos professo-

res de Letras. O governo incentiva e cobra a pós-graduação. Criam-se os PCNs (Plane-

jamento de Currículo Nacional), visando a orientar e padronizar o ensino segundo os

mais modernos parâmetros.

Algumas instituições adotam o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como

base de ingresso nas Universidades, compondo a primeira fase do exame vestibular.

A LDB nº 9394, de 20/12/1996, em seu Art.36, estabelece que a língua portuguesa

será encarada como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício

da cidadania, contemplando, assim, todas as modalidades expressivas, sem encará-las de

forma privilegiada ou não. Os ensinos de 1º e 2º graus são rebatizados, respectivamente,

de ensino fundamental e médio. Mas, ainda assim, o Magistério permanece mal remunerado e sem condições de

trabalho. Falta-lhe, inclusive, muitas vezes, o giz e o apagador. E o professor, verdadei-

ro artista, é obrigado a fazer malabarismos no palco da sala de aula para dar conta, com

seriedade, de um trabalho realizado em mais de uma escola como condição de sobrevi-

vência.

Tentativas de resolver a questão do ensino continuam. No Governo Fernando

Henrique Cardoso, o Ministério da Educação implantou, em nível nacional, o chamado

“Provão”, com a finalidade de avaliar o aproveitamento dos alunos formados pelas uni-

versidades brasileiras, de norte a sul. Os atuais governantes resolveram aperfeiçoar o

modelo, inserindo outros critérios que vêm recebendo críticas nos meios políticos e aca-

dêmicos, mas persiste a idéia de que é preciso avaliar o ensino ministrado nos cursos

superiores.

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Condenado por uns, aprovado por outros, o “Provão“ se mantém e revela, pelo

menos, um mérito: apontar as Universidades que apresentam grandes falhas no ensino.

Toda a sociedade letrada toma conhecimento, pelos órgãos de divulgação de massa, dos

conceitos atribuídos às universidades brasileiras. Sentindo-se expostas, essas Universi-

dades voltam a atenção a seus currículos e reavaliam seu corpo docente, preocupando-

se, a partir daí, em contratar novos professores com formação em mestrado e doutorado.

Nada disso, porém, é definitivo. Educação será sempre um processo de questio-

namento. Temos consciência de que nunca chegaremos a uma plenitude, mas o mais

importante, nesse momento, é a nova concepção de língua que começa a delinear-se.

Língua, agora, não é apenas instrumento de comunicação, mas, principalmente, enunci-

ação, discurso, que estabelece relações de intercomunicação. Os processos de leitura e

escrita passam, portanto, a ser resultantes da interação autor-texto-leitor.

De acordo com a nova concepção, altera-se o papel desempenhado pelo aluno. Es-

te passa a ser ativo e construtor de suas próprias habilidades e conhecimentos, através

de um processo contínuo de interação com outros receptores e com a própria língua, que

funciona como código. A criatividade não é mais considerada um fator isolado, depen-

dente de um dom inato e especial. Criativo é todo ato de fala, porque a linguagem é cri-

ação e re-criação de si mesma.

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N. do Org.: Este artigo é uma adaptação do capítulo de introdução da tese de doutora-mento "Ensino de Língua Portuguesa: teorias, reflexões e prática", defendida na UFF em 2002.