ensino de gramatica o enfraquecimento da lisonja ou o fortalecimento da disciplina wagner rafaell...
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AUTARQUIA EDUCACIONAL DE BELO JARDIM FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE BELO JARDIM
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
ENSINO DE GRAMÁTICA: O ENFRAQUECIMENTO DA LISONJA OU O FORTALECIMENTO DA DISCIPLINA?
WAGNER RAFAELL PEIXOTO
BELO JARDIM- PE
2011
WAGNER RAFAELL DA SILVA PEIXOTO
ENSINO DE GRAMÁTICA: O ENFRAQUECIMENTO DA LISONJA OU O FORTALECIMENTO DA DISCIPLINA?
Monografia apresentada ao curso de Especialização em Língua Portuguesa da Faculdade de Formação de Professores de Belo Jardim, para obtenção do grau de especialista, sob orientação da Professora Ms. Dirce Jaeger.
BELO JARDIM- PE
2011
WAGNER RAFAELL DA SILVA PEIXOTO
ENSINO DE GRAMÁTICA: O ENFRAQUECIMENTO DA LISONJA OU O FORTALECIMENTO DA DISCIPLINA?
Aprovada em ___/____/____
Banca
__________________________________________
__________________________________________
BELO JARDIM- PE
2011
Dedico estre trabalho monográfico a todos os estudiosos da linguagem que, convergindo ou divergindo dos nossos ideais enriquecem o debate em torno da faculdade comunicativa.
AGRADECIMENTOS
À minha tia Carmen, por servir de norte e de espelho como profissional bem sucedida
e competente.
A toda minha família, pelo apoio e oportunidades sempre proporcionados e nunca
ausentes.
A meus professores, em especial os de Língua Portuguesa, dos Ensinos Básico, Médio,
Superior e da especialização, pelos conhecimentos compartilhados, pelas correções que tanto
me ajudaram a progredir como usuário e estudioso da língua e pela paciência com os meus
‘porquês’.
A minha orientadora, professora Ms. Dirce Jaeger, pela confiança, correção,
complacência e por apontar o caminho correto (nem sempre o mais fácil a ser trilhado).
Aos alunos e professores que responderam aos questionários usados na pesquisa.
A mim mesmo, pela perseverança de, contra a maré, acreditar na importância de um
trabalho abordando o ensino de gramática.
“Escrever é fácil. Você começa com uma
maiúscula e termina com um ponto final.
No meio, coloca ideias.”
Pablo Neruda
SUMÁRIO
1.A NORMA NA SALA DE AULA E FORA DELA ........................................................................................ 12
1.1. DIFERENTES NORMAS NO PORTUGUÊS: PADRÃO E CULTA ....................................................... 12
1.2. ABISMO ENTRE NORMA PADRÃO E VARIEDADES ...................................................................... 15
1.3.O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR QUAL LÍNGUA? ......................................................................... 16
1.4. EXEMPLIFICANDO FALHA METODOLÓGICA DA EXPLICAÇÃO DO ‘ERRO’ ................................... 19
1.5. EXISTEM ERROS MAIS ERRADOS E MENOS ERRADOS? .............................................................. 21
1.6. HÁ OU NÃO VARIEDADE SUPERIOR NA LÍNGUA PORTUGUESA? ............................................... 22
1.7. LIVROS DIDÁTICOS, GÊNEROS ORAIS E POSTURA DOCENTE ...................................................... 25
1.8. MUDANÇAS NO ENSINO DE LÍNGUAS ........................................................................................ 28
2. A LÍNGUA E SUAS RELAÇÕES COM A SOCIEDADE .............................................................................. 32
2.1. IDEOLOGIA ENFRENTANDO A REFLEXÃO .................................................................................. 32
2.2. LÍNGUA COMO ELEMENTO DE IDENTIDADE CULTURAL ............................................................ 33
3. PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................................................................. 36
4. ANÁLISE DO CORPUS ......................................................................................................................... 38
4.1. OS ALUNOS ................................................................................................................................. 38
4.2. OS PROFESSORES ........................................................................................................................ 45
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................... 48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................................. 51
APÊNDICE A- DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS ENTREVISTADOS ................................................................ 54
APÊNDICE B- ENTREVISTA ALUNOS E RESPOSTAS EM NÚMEROS ........................................................ 55
APÊNDICE C- ENTREVISTA PROFESSORES E RESPOSTAS EM NÚMEROS ............................................... 57
ANEXO A- SAMBA DO ARNESTO ........................................................................................................... 59
ANEXO B- AOS POETAS CLÁSSICOS- PATATIVA DO ASSARÉ .................................................................. 60
ANEXO C- VESTIBULAR UFPE- 2001- PORTUGUÊS 2 .............................................................................. 61
ANEXO D- NÓS MUDEMO- .................................................................................................................... 63
LISTA DE ABREVIAÇÕES USADAS
LP- Língua Portuguesa
NP- Norma Padrão
NC- Norma Culta
ELP- Ensino de Língua Portuguesa
GN- Gramática Normativa
VP- Variedade Padrão
PNP- Português não padrão
RESUMO
Neste trabalho, inserimo-nos no debate do ensino de Língua Portuguesa a partir da gramática normativa. Para empreender nossa investigação, recorremos, inicialmente, tanto a estudiosos que defendem o trabalho escolar com esse tipo de gramática quanto àqueles que postulam essa tarefa de modo a contemplar as variedades não padrão. Assim, trazemos para este trabalho monográfico, teóricos da linguística como Bagno, Azambuja, Marcuschi, Perini, Travaglia, bem como da filosofia, a saber, Antunes, Carvalho e Hacking. A pesquisa inclui, em seu corpus, falas de estudantes e professores que opinaram acerca da temática em estudo. Reunindo as leituras feitas durante a revisão bibliográfica com as observações de campo, chegamos à conclusão de que o ensino de gramática normativa, apesar das várias críticas de que tem sido alvo por parte da sociolinguística, não enfrenta tanta resistência entre professores e alunos, o que nos leva à conclusão de que essa é merecedora do status que ocupa. A gramática mostra-se, e tem sido reconhecida como tal, importante ferramenta para a aquisição da Língua Portuguesa, ao servir de referência e de embasamento do “bem-falar”. Assim, no primeiro capítulo, Norma na sala de aula e fora dela, abordamos as relações das normas gramaticais com a sala de aula e a contextualizamos também com o mundo fora dela, levando em conta as situações nas quais se faz ou não necessário maior domínio de tais normas. Tratamos aí das diferenças, pouco exploradas, entre norma padrão e culta; do abismo existente entre essas e a que soemos usar em ocasiões informais; discutimos sobre qual dessas seria papel da escola ensinar; analisamos certas explicações da sociolinguística para o que comumente chamamos “erro”, paralelamente a uma avaliação sobre os motivos que fazem alguns “erros” parecerem mais errados que outros; refletimos sobre se há ou não uma variedade que possa ser chamada de superior às demais, e aí concluímos algo que, apesar de politicamente incorreto, soa-nos mais honesto para com os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, e abordamos algumas das mudanças por que passou o ensino de língua nos últimos tempos, dando ênfase aos gêneros textuais. No segundo capítulo, A Língua e suas relações com a sociedade, damos mais enfoque ao aspecto filosófico que ao linguístico dessa problemática, e nele abordamos o sentimento de “revanche” que faz o brasileiro querer cada vez mais se livrar dos vínculos que o prendem a sua metrópole colonial, mesmo os linguísticos. Tratamos da Língua como elemento de identidade cultural, e percebemos como a nossa está cedendo à influência do inglês, sem perceber que nisso há também ferramenta de domínio. No terceiro capítulo, apresentamos o percurso metodológico que nos permitiu fazer a análise dos dados coletados a partir das entrevistas com alunos e professores, melhor explicitados no quarto e último capítulo. PALAVRAS-CHAVE: gramática, ensino, linguística, língua portuguesa.
RESUMEN
En este trabajo, nos inserimos en el debate sobre la enseñanza de la Lengua Portuguesa partiendo de la gramática normativa. Para emprender nuestra investigación, recorrimos, de primero, tanto a estudios que defienden un trabajo escolar con esa clase de gramática como también a aquellos que postulan una enseñanza de lengua que contemple las variedades no patrones. Así que traemos hacia este trabajo monográfico, teóricos de la lingüística como Bagno, Azambuja, Marcuschi, Perini, Travaglia, como también de la filosofía, a ejemplo de Antunes, Carvalho e Hacking. La pesquisa incluye, en su corpus, hablas de estudiantes y maestros que opinaron sobre la temática estudiada. Reuniendo las lecturas hechas durante la revisión bibliográfica con las observaciones de campo, hemos llegado a la conclusión de que la enseñanza de gramática normativa, a pesar de las varias críticas de las que tiene sido el objetivo por parte de la sociolingüística, no enfrenta tanta resistencia entre profesores y alumnos, lo que nos lleva a la conclusión de que es si merecedora del status que ocupa actualmente. La gramática se muestra, y es reconocida como tal, importante herramienta para la adquisición de la Lengua Portuguesa, por servir de referencia y de plataforma del “bien hablar”. Así, en el primero capítulo, Norma na sala de aula e fora dela, tratamos las relaciones de las normas gramaticales con el aula y la contextualizamos con el mundo fuera de ella, llevando en cuenta las situaciones en las cuales se hace o no necesario mayor dominio de tales normas. Hablamos ahí de las diferencias, poco exploradas, entre norma patrón y culta; del abismo existente entre esas dos y la que solemos usar en ocasiones informales; discutimos sobre cuál de esas es rol de la escuela; analizamos ciertas explicaciones de la sociolingüística para lo que normalmente llamamos “error”, paralelamente a una evaluación sobre los motivos que hacen con que algunos “errores” sean vistos como más equivocados que otros; reflexionamos sobre si hay o no una variedad que pueda ser llamada de superior a las demás, y ahí concluimos algo que, a pesar de políticamente incorrecto, nos suena más honesto para con los envueltos en el proceso de enseñanza-aprendizaje, y abordamos algunos de los cambios por qué pasó la enseñanza de la lengua en los últimos tiempos, dando énfasis a los géneros textuales. En el segundo capítulo, A Língua e suas relações com a sociedade, damos más enfoque al aspecto filosófico que al lingüístico de esa problemática, y en él abordamos el sentimiento de “revancha” que hace con que brasileño quiera cada vez más librarse de los vínculos que lo mantienen cautivo a su metrópoli colonial, mismo los lingüísticos. Tratamos de la Lengua como elemento de identidad cultural, y percibimos como la nuestra está cediendo a la influencia del inglés, sin percibir que en ello, hay también herramienta de dominio. En el tercer capítulo, presentamos el recurrido metodológico que nos permitió hacer el análisis de los datos colectados a partir de las entrevistas con alumnos y profesores, mejor explicitados en el cuarto y último capítulo.
PALAVRAS-CHAVE: gramática, enseñanza, lingüística, lengua portuguesa.
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INTRODUÇÃO
A crise por que passa o ensino de Língua Portuguesa no Brasil tem possibilitado aos
estudiosos da área um vasto debate sobre os rumos a serem tomados por parte dos que o
fazem. Têm-se, de forma constante, colocado em xeque a validade e a funcionalidade do
ensino da gramática normativa em sala de aula. Muitos são os linguistas que acreditam ser
importante dar-se uma guinada e redirecionar o ensino para que assim se prestigiem mais as
variedades da língua que não a norma padrão prescrita nos compêndios escolares.
As dificuldades dessa operação e a necessidade de alguma mudança fizeram nascer em
nós a preocupação com o assunto, enquanto docente, e o desejo de nos aprofundarmos mais,
baseados em teóricos que já escreveram sobre o tema, seja defendendo essa mudança, seja
acreditando na eficácia do modelo atual. Por não estarmos muito de acordo com o lugar da
gramática normativa destinado pela sociolinguística, dispusemo-nos a confrontar as ideias de
ambos os lados e colocarmos as nossas próprias. Mais: ir às escolas, procurar alunos e
professores para tomar-lhes emprestadas impressões acerca da atual conjuntura do ensino de
Língua Portuguesa, e saber dos envolvidos no ensino (educadores e educandos) a relevância
que dão à GN e a praticidade desse ensino, bem como a funcionalidade em suas vidas sociais.
No meio do caminho, deparamo-nos com necessidades diversas que foram sendo
incorporadas ao trabalho, como, por exemplo, a de fazer uma diferenciação entre norma culta
e norma padrão, ou então tratar dos gêneros textuais e sua atual situação nos livros didáticos
(dando espaço, inclusive, aos gêneros orais), ou ainda, a de perceber a unidade linguística
como forte elemento de identidade cultural, bem como o desejo inconsciente do povo
brasileiro em romper com um virtual domínio lusitano (domínio esse não mais existente no
plano econômico, mas refratado no linguístico, fato repulsado por muitos). Preciso também
foi aprofundar-nos nos conceitos acerca de língua transmitida e língua adquirida, e proceder a
uma reflexão sobre quais dessas é a que se acredita deva ter mais espaço nos gêneros textuais
trabalhados em sala de aula, em virtude não de sua primazia linguística, e sim de sua
relevância social.
Acreditamos na relevância do tema proposto, uma vez que o fazer docente é uma
atividade sempre inexaurível, fonte de discussões frutíferas e, amiúde, ao menos no Brasil,
dominada pela opinião da sociolinguística, crente da urgência de pôr em condições
igualitárias as variedades não padrão e a norma padrão.
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O título do trabalho veio a calhar, pois, embora dicotômico, reflete bem o modo como
é visto o destino a ser trilhado no ensino de Língua Portuguesa. O enfraquecimento da lisonja
(ao evitar correções nos erros dos alunos) trará que benefícios aos discentes, além de não os
constranger diante de situações em que fazem uso do próprio idioma materno? O
fortalecimento da disciplina poderá mesmo fazer deles melhores usuários da língua em
situações sociais que exigem cada vez mais o domínio da norma padrão? O presente trabalho
pretende ser uma discussão entre os argumentos abundantes de ambos os lados, ao mesmo
tempo em que acredita na eficácia e no pragmatismo social da plena aquisição da norma
padrão, elemento de ascensão social e de convergência das variedades, na vida futura dos
alunos.
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1.A NORMA NA SALA DE AULA E FORA DELA
1.1. DIFERENTES NORMAS NO PORTUGUÊS: PADRÃO E CULTA
Um dos pontos que, apesar de pouco explorado, tanto nas gramáticas, óbvio, como até
mesmo nos compêndios linguísticos, é o que difere os conceitos de norma padrão dos de
norma culta da língua. E mais: qual delas deve, se é que deve, ser ensinada em sala de aula.
Optamos por trazer esta distinção no princípio do trabalho para poder, assim, nortearmos a
semântica desses termos, ainda que em certas ocasiões encontremos falas que não os
diferenciam.
Essa diferenciação não é nem simples nem ordinária. Grosso modo, tais nomenclaturas
têm sido usadas para referirem-se a eventos únicos. Daí, pode-se concluir que há uma falha e
ela não provém especificamente das gramáticas, e sim das universidades e faculdades de
formação de professores. Se há esse conceito mal explicado e pouco explorado mesmo entre
os formandos de Letras, isso se deve a uma lacuna deixada por suas formações acadêmicas.
Se por motivo de déficit cognitivo ou por desdém em relação a discussões de âmbito
linguístico, não se sabe, e nem vem ao caso, ao menos por hora.
Convém, portanto, fazer um breve comentário acerca dessas terminologias, antes de
adentrarmos em outra discussão sobre qual dessas normas deve-se ensinar. E o fazemos
tomando por base definições trazidas por Bagno (2007) e Faraco (apud BAGNO, 2002).
Por NP, compreendemos uma língua considerada pura e livre de vícios, falada em sua
totalidade por ninguém, escrita por poucos e que povoa as gramáticas de língua portuguesa
aos montes. Seria a língua que, como diz o nome, serve como padrão de referência e mais:
uma vez compreendida por todos os luso-falantes, permitiria a toda essa gente uma
comunicação efetiva, já que temos nisso o objetivo número um da existência da língua.
É essa variedade, a da NP, que encontramos nas gramáticas e que os escritores da
maioria dos meios de comunicação perseguem. E o fazem, ao contrário do que dizem muitos
sociolinguistas, não por julgarem-na superior à outra variedade. Isso ocorre, sim, por ser essa
NP sem vícios, gírias, jargões, vieses ou quaisquer outros fatores que porventura possam
dificultar o entendimento do texto por parte de algum grupo adepto de uma variante, ou
mesmo caracterizar o autor do texto como pertencente a determinada “tribo”.
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Significa dizer, por exemplo, que um texto não se escreve com a língua típica do Acre,
para que os moradores do Rio Grande do Sul possam, ao abrir um jornal acreano, lê-lo sem
dificuldade alguma. Para que isso ocorra, usa-se, então, um variante padrão, de fácil
intelecção por parte dos acreanos e dos gaúchos; dos skatistas e dos médicos; dos nerds e dos
pagodeiros; dos lavradores e dos poetas.
Há, entretanto, no imaginário popular, a impressão de que, ao que chamamos de NP,
aplica-se também a denominação de norma culta, o que não é muito apropriado, conforme
analisaremos a partir dos diálogos imaginários a seguir, proposições de M. T. Piacentini
(2005):
- Me conta como foi o fim de semana...
- Te enganaram, com certeza!
- Me explica uma coisa: você largou o emprego ou foi mandado embora?
- Tive que levar os gatos, pois encontrei eles bem machucados.
- Conheço ela há muito tempo – é ótima menina.
- Acho que já lhe conheço, rapaz.
Diz M. T. Piacentini em artigo seu que
se os falantes cultos, aquelas pessoas que têm acesso às regras padronizadas, incutidas no processo de escolarização, se exprimem desse modo, essa é a norma culta. Já as formas propugnadas pela gramática tradicional e que provavelmente só se encontrariam na escrita [conta-me como foi / enganaram-te / explica-me uma coisa / pois os encontrei / conheço-a há tempos / acho que já o conheço] configuram a norma-padrão ou língua-padrão (2005, p.1).
A definição nos parece apropriada, uma vez que por padrão entendemos aquela
variedade da língua para a qual todas as outras convergem e que serve para a comunicação
entre os falantes das demais, quando em um contexto que os reúna. Assim, é imutável (ou, ao
menos, a mudança não é constante) e merecedora de conhecimento por todos os falantes da
Língua Portuguesa. E a norma culta não poderia ser outra coisa senão aquela usada pelas
pessoas cultas, portanto, mutável e variável em função do tempo e fatores diversos. De sorte
que divergimos de Bagno (2007, pág. 63), quando afirma que “a língua é, na verdade, um
produto social e artificial, que não corresponde àquilo que a língua realmente é”.
Carvalho (2000, pág 1), filósofo conservador, afirma que, já que para a linguística não
há variedade superior a outra e, para ela, “uma língua expressiva, rica, flexível, instrumento
do pensamento livre, vale tanto quanto uma língua pobre, emperrada, bárbara,”, não haverá,
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portanto, meio linguístico para escolher entre o que é bom e o que não é, uma vez cumpridos
os objetivos da comunicação. Por outro lado, a gramática normativa (GN) é a que obtém
dados de expressividade, riqueza, coerência, integralidade e o que mais for útil a essa
identificação.
Sem fazer distinção entre normas padrão e culta, Carvalho (op. cit.) pensa que, uma
vez tendo-se a fixação da NC baseada no falar médio das classes cultas, aí sim teríamos o
preconceito linguístico na sua forma mais voraz, dado que, dessa forma, existiriam as classes
cultas, aquelas que cederam seu “falar médio” para servir como base do ensino. Essas classes
seriam, inevitavelmente, a dos que mandam, de onde dividiríamos a sociedade entre “bons
falantes e maus falantes”. Baseado nisso, Carvalho (op. cit.) defende o uso de obras dos
grandes escritores em LP como base para fundamentação da norma padrão:
A gramática normativa, ensinando a imitar os grandes escritores e não uma determinada classe social, é instrumento democratizador por excelência, ao passo que um ensino fundado na "norma culta" sociologicamente estabelecida mediante "dados objetivos" e "recursos tecnológicos" é a cristalização oportunística de um sistema de preconceitos. É a beatificação do fato sociológico consumado (2000, p.1)
Diz-nos ainda que, apesar de ter de levar em conta as “falas médias” da língua, não se
deve pautá-las como parâmetro de ensino, reafirmando que, aí sim, estaríamos ensinando a
língua dos que mandam, dos que têm mais prestígio. E prossegue na defesa do ensino da
Norma Culta como aquela dos grandes autores de LP:
Ensinar um menino a escrever como Machado ou Graciliano é libertá-lo e enobrecê-lo. Impingir-lhe como "norma culta" a fala atual média de jornalistas, publicitários, políticos e executivos é rebaixá-lo e escravizá-lo. (op. Cit.)
Em Bagno (2009), encontra-se a definição de norma padrão como algo obsoleto e, por
tal motivo, digna de indagar-se por que deve ser ensinada. Fosse mesmo obsoleta, é de
imaginar-se que há muito já estaria banida do ensino fundamental e médio no país. Se ainda
não o foi, resta-nos imaginar que, para muitos, inclusive para os elaboradores da burocracia
escolar, não é obsoleta, retrógrada, caduca ou algo que o valha. Mais adiante, iremos buscar
opiniões dos envolvidos no processo para refletirmos sobre que ideia fazem da GN.
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1.2. ABISMO ENTRE NORMA PADRÃO E VARIEDADES
Não se nega a distância existente entre as diversas variedades da LP e aquela
normatizada como padrão. Se, como nos diz Bagno (2007, pg 89), a NP não foi escolhida por
ser mais bonita, produtiva, lógica ou exata que as demais variedades, devendo-se esta escolha
a fatores sociais e políticos, é de se supor que, uma vez relegada e perdendo o espaço que
detém para as outras variedades, a norma padrão ceda o lugar que ocupa, de preferida
(sobretudo na escrita), a uma das centenas (talvez milhares) de variedades usadas no país. Não
se busca, imaginamos aqui, apenas fazer uma permuta ou um sistema de rodízio para decidir
qual das variedades será a oficial e a digna de ser usada nas condições em que hoje se usa a
NP. Porém, como de uma precisamos para redigir documentos oficiais, publicar obras
científicas e literárias, e efetivar a comunicação com os falantes mais distantes (em termos de
língua), teremos a necessidade de buscar alguma forma de padronizar a língua.
Pensamos que, se essa forma padrão não for mais aquela na qual se produziu boa parte
das coisas escritas e a qual se usou por séculos como tal, abriremos espaço para uma nova
peleja política, em que se lutará não por tesouro ou terras, mas sim pelo direito de ter a sua
variedade reconhecida como a mais influente e digna de ser usada como oficial. Ainda que
camuflada de rinha linguística, estaríamos diante de mais uma disputa por poder. Seria, sem
dúvidas, essa variedade escolhida (ou vencedora desse duelo) a dos jornalistas, escritores
modernos, advogados e estudiosos bem sucedidos do ramo da linguística. Estaríamos dando,
sem perceber, a essas pessoas, o livre direito de nos impor sua língua “variada” como a nossa
língua. Pensamos que a norma padrão vigente representa e desempenha muito efetivamente
tal papel, sem colocar etnias, faixa etária e origens sociais em lados opostos. Devemos todos,
malgrado divergências sociais, etárias, políticas e geográficas, usar uma mesma variedade
(sempre abrindo espaço para frisar a importância do contexto e da adequação exigida por ele)
imposta pelo costume e produtividade.
Não queremos também, com isso, imaginar que a NP seja imutável e estática por todo
tempo. Pensamos, sim, que não se torna possível efetuar mudanças numa forma que se chama
de padrão a cada vez que os indivíduos que dela fazem uso criarem um novo léxico ou
inovarem algo em sua sintaxe ou semântica. A NP em voga não é a mesma de um século atrás
e provavelmente não será a mesma de um século à frente. Esperemos tão somente que tais
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mudanças surjam acompanhadas de um contrato social, tal qual o de Hobbes, por necessidade,
e não por imposição de quem vê a atual norma padrão como antiquada e retrógrada.
1.3.O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR QUAL LÍNGUA?
Pensamos que língua não se ensina. Ao menos, não a materna, e não em sala de aula.
Língua se adquire no dia-a-dia, dispensando os padrões de ensino formal que são propostos a
outras áreas do saber, como exatas. A língua é usual e funcional.
Em sendo assim, em que consistiriam as aulas de Língua Portuguesa, se não em
ensinar a língua? A resposta pode não vir de modo simples e direto, como muitos esperam
encontrar em textos do gênero.
Algo a ser observado e trabalhado é o distanciamento existente entre o português
aprendido de modo natural pelas crianças e o português considerado norma padrão. Da
mesma forma que não parece promissor desvalorizar o português naturalmente falado,
também não parece justa e válida a negação a quem quer que seja ao acesso à norma padrão
ou mesmo à culta, privilegiada e que melhor unifica as centenas, talvez milhares, de
variedades encontradas em nossa língua.
Daí a necessidade de se afirmar e reafirmar que o papel da escola é, sim, ensinar
língua padrão. Ou, como diz Possenti (1996, p. 17), criar condições para que ela seja
aprendida. “Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico”. Segundo o
mesmo autor, deve-se refutar de modo categórico a ideia segundo a qual, aprender a norma
padrão é difícil e de pouca utilidade. Bem diz ele que as razões que levam os alunos a não
aprenderem (e geralmente nem quererem aprender) a norma padrão são de ordem social e
pedagógica. Nada tendo a ver com capacidades cognitivas. Em linhas gerais, quem defende o
não ensino de língua padrão por ser difícil está cometendo um preconceito abissal ao julgar
como incompetentes os falantes desta mesma língua, porém usuários de uma variedade menos
formal. E se, como docentes, pretendemos levar uma mensagem de integração social em vez
de preconceito, devemos refutar todas as manifestações que levem a isso. Cabe, portanto,
identificar também, na prática de certos sociolinguistas modernos, uma atitude de exclusão.
Possenti (op. cit.) nos traz ainda, e sua contribuição é de uma validade propícia para
este tratado, a desmistificação de duas teses defensoras do não ensino da variedade padrão. A
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primeira delas, de natureza político-cultural, encara como uma ação de violência impor a um
grupo social valores típicos de outro, como se este segundo fosse superior do ponto de vista
linguístico para ter seu dialeto levado aos demais como “correto”, em detrimento do outro
dialeto já usado por aquele grupo. O erro de tal tese, apontado por Possenti, e que ratificamos
agora, é que nenhum grupo sai prejudicado sob nenhum ponto de vista ao ser apresentado a
uma nova cultura, no caso, linguística. Negar o ensino da NP a este grupo seria o mesmo que
incentivar brasileiros a não aprenderem o inglês, por exemplo, resguardando as devidas
proporções, por ser difícil, e de outra cultura, e com um agravante: estarmos falando de uma
língua que é a mesma, ainda que diversa. Da mesma forma que o inglês é importante para
quem quer se aventurar ou terá a necessidade de ir a um lugar de cultura anglo-saxônica, a NP
lhes será extremamente necessária em várias circunstâncias sociais. Não se pretende, com
isso, convencer-lhes de que usam uma língua desprivilegiada e que deve ser evitada. Muito
pelo contrário. O primeiro passo é deixar claro que ambas (e todas as outras existentes) as
variedades são uma só língua, e que cada uma delas tem seu espaço contextual propício para
seu desenvolvimento e seu uso.
A outra tese refutada por Possenti (op. cit.) aborda um aspecto cognitivo. Segundo
essa tese “cada grupo de falantes só pode aprender e falar um dialeto... A defesa dos valores
‘populares’ suporia que o povo só fala formas populares, e que elas são totalmente distintas
das formas usadas pelos grupos dominantes.” (1996, p. 19)
Mesmo se diferentes fossem, essas formas possuem mais convergências que
divergências, uma vez que são variedades da mesma língua. Além disso, qualquer indivíduo
tem capacidade cognitiva para aprender uma nova língua (ou um novo dialeto) se for
assiduamente exposto a ele.
Daí, deduzimos que ambas as teses refutadas por Possenti são na verdade instrumentos
falaciosos usados por sociolinguistas dispostos na luta de afastar o povo de sua língua padrão,
relegando-a a um lugar pouco acessível ao alcance de uns poucos, que por isso mesmo, serão
tachados de dinossauros vernaculares e serão também vítimas de preconceito. É, aliás, como
ainda relata o autor, por motivos como esses que a correção gramatical é vista como marca
feminina e evitada, sobretudo, pelos meninos, que evitarão sempre construções como
Tu podes emprestar-me a caneta?
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Preferem a construção com o verbo na terceira pessoa do singular, embora o pronome
seja de segunda pessoa, e o pronome oblíquo proclítico, mesmo quando a norma exige o
contrário. E é isso que devemos, todos nós envoltos no processo de aprendizagem, combater:
a criação de um preconceito às avessas, em que o “padrão” seja visto como inadequado e
tenebroso.
Paralelo a essa defesa preconceituosa do fim do ensino da gramática normativa em
sala de aula, anda o pouco preparo de parte significativa dos nossos professores de língua no
que diz respeito a atrair o seu alunado para a funcionalidade de uma boa apreensão dos
conteúdos programáticos da disciplina. O resultado é que, quando se juntam tais ingredientes,
são poucos os discentes que enxergam aplicabilidade, funcionalidade e interesse em
consumirem um produto visto como antiquado, obsoleto e restrito a poucos contextos de uso.
Nessa discussão acalorada, deparamo-nos com autores defensores do “lasser-faire”
linguístico, embora eles nunca se assumam como tais. Suas obras têm um alcance amplo entre
os professores e já chegam também aos alunos. Por usarem uma retórica que se adapta muito
bem às idiossincrasias dos que têm preguiça de estudar e buscam a todo custo embasamento
para justificar seus ‘afrouxos’ linguísticos, alguns desses autores atingem um nível de
inserção difícil de ser combatido, se buscarmos a via da popularidade. Achamos mais justo,
no entanto, enfrentá-los a partir da argumentação e da ciência.
Para o presente trabalho, tomamos como base para análise e confronto das ideias duas
obras de Bagno (2002; 2007), nas quais ele tenta convencer alunos e professores de que o que
se chama erro não é erro, e o que se chama acerto não é acerto. Mistura conceitos gramaticais
e linguísticos quando busca persuadir seus leitores de que a NP é uma aberração que deve ser
imediatamente escorraçada das escolas e dos livros didáticos.
Bagno (2004) acredita que o ensino de gramática normativa deve passar por uma
“adequação à realidade dos falantes do português”, a fim de valorizar as variedades de menos
prestígio, mas de uso até mais estendido que a NP ou NC.
Possenti (1996) acredita ser oportuno que regras hoje ditas padrões passem a integrar
os termos arcaicos, e que as formas populares, mas já cristalizadas pelo uso, tornem-se a
verdadeira NP. Cita o exemplo da regência do verbo assistir no sentido de presenciar algo.
Segundo o autor, esse uso do verbo já não se encontra mais com a preposição “a” regendo o
verbo, e poucos usuários dizem “assistir ao jogo”, preferindo sempre a forma “assistir o jogo”.
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Por força do uso, portanto, a última construção deveria tornar-se padrão, e a primeira ser
inserida nos arcaísmos da linguagem.
O problema de tal visão está no fato do preconceito existente em relação a termos
arcaicos. Dizer que é arcaico usar a regência “padrão” do verbo assistir é o mesmo que dizer
ao aluno para não usá-la, pois será considerado algo antiquado, fora de moda e “careta”.
Relembrando a ideia de eliminar quaisquer espécies de preconceito com qualquer que seja a
variação linguística, inclusive as arcaicas, colocamo-nos em desacordo com tal procedimento.
Inclusive por constatarmos as rápidas mudanças lexicais, sintáticas e semânticas por que a
língua passa em espaços de tempo relativamente curtos. De tal forma, não teríamos como
normatizar nem colocar em compêndios norma alguma, por mutável que seria. Não daríamos
conta de renovar nosso acervo normativo, pois, antes de finalizarmos um, mudanças várias já
teriam ocorrido, já exigindo uma adequação daqueles estudos. Possenti (op. cit.) diz ainda o
seguinte: “Por exemplo, todos perceberíamos que gastar um tempo enorme com regências e
colocações inexistentes no uso real é, a rigor, inútil. A prova é que a maioria dos alunos que
as estudam não aprendem tais formas, ou, pelo menos, não as usa”. (1996, p. 40)
Já foi dito aqui que o fato de não aprenderem ou não usarem as regras tem origem não
em uma dificuldade cognitiva dos discentes, e sim em duas falhas, uma pedagógica, por conta
de um ensino que se mostra caduco; e outra social, pelo preconceito existente em volta de
quem usa normas desprestigiadas, mas também de quem usa as de prestígio. Não é plausível
que se defenda o abandono de normas por não serem utilizadas. Se assim procedermos,
estaremos diante de um impasse medonho, por não podermos ter um paradigma a seguir, uma
vez que a mutabilidade da língua é de ordem tão frequente que tornaria inviável a produção de
material normativo em tempo hábil para acompanhar as mudanças ocorridas.
1.4. EXEMPLIFICANDO FALHA METODOLÓGICA DA EXPLICAÇÃO DO
‘ERRO’
Bagno (2001, p. 44) sugere encararmos algumas realizações ‘não padronizadas’ como
algo decorrente de outras fases da LP e explica que, no latim, muitas palavras hoje grafadas e
20
faladas com R eram com L, o que, em sua hipótese, explica o fato de falantes não instruídos
falarem, por exemplo, PRACA em lugar de PLACA (afinal, estariam, com este vocábulo,
realizando o mesmo fenômeno ocorrido com BRANCO, forma atual da antiga palavra
Blanco). Bagno nomeia o fenômeno e, a fim de conferir-lhe autoridade científica,
exemplifica-o à exaustão. Trata-se da rotacização, fenômeno pelo qual algumas palavras
trocaram, do latim para o português, o “R” pelo “L” :
blancumà branco;
plagaà praia;
sclavuà escravo, etc
Não parece, no entanto, que uma explicação diacrônica, embora bem fundamentada e
comprovada como a de Bagno, possa servir para justificar realizações fora do padrão dos
tempos atuais, uma vez que os falantes de “PRACA” não possuem tal conhecimento
diacrônico a respeito da rotacização, ou seja, não falam assim por conhecerem a raiz latina
desse ou de tantos outros vocábulos.
Não pretendemos refutar os estudos linguísticos bem embasados e de fundamental
relevância para essa área do saber. No entanto, não podemos tomá-los como resposta para
outro fenômeno sem o direito de contestá-lo, embora tenhamos que lidar com o pragmatismo
dialético de seus defensores que enquadram os que não compartilham dessa ideia como
preconceituosos.
As realizações não padrão como PRACA, PRANTA devem ser evitadas pelos alunos e
desestimuladas pelo professor. Dar àqueles a explicação etimológica e diacrônica fornecida
por Bagno na obra citada pode servir como mera explicação do erro, e não como
embasamento para a permanência dele. Talvez se pense que a correção pode causar trauma e
desgosto no aluno, mas há de se pensar também que a complacência com o erro causará
exclusão dele em conversas de ordem mais formal e de bons postos no mercado de trabalho.
Afinal, ao se depararem com situações formais, não haverá tempo para esses falantes,
ainda que conheçam a explicação acima, repassarem-nas para os seus interlocutores, dizendo-
lhes que falam “frecha”, “frauta”, “ingrês” e “pranta” em lugar das padronizadas “flecha”,
“flauta”, inglês” e “planta” por causa do fenômeno da rotacização, ou mesmo mostrar-lhes
que Camões também o fazia conscientemente.
21
1.5. EXISTEM ERROS MAIS ERRADOS E MENOS ERRADOS?
É possível dizer também que entre os desvios gramaticais cometidos, os fonéticos
passam mais despercebidos e acabam nem sendo apontados como tais. Basta analisar as
pronúncias quase inexistentes de certos ditongos (peixe, ouro, amou) que são pronunciados
como (pêxe, ôro, amô) por pessoas de classes sociais, faixas etárias e graus de instruções
diferentes. São desvios, portanto, cristalizados pelo uso e por isso mesmo nem são apontados
por quem quer que seja. Nem por isso, há quem defenda a inserção dessas (e outras) palavras
nos dicionários e nas gramáticas. O mais importante é saber se todos que falam pêxe, oro e
amô têm a segurança de escrever as formas padronizadas (peixe, ouro e amou).
Há, no entanto, deslizes também fonéticos que são apontados como erros. Para
exemplificar, poucos pronunciam biscoi=o (biscotcho, com som de consoante africada
palatal) no lugar de “biscoito”, preferido de maioria esmagadora dos falantes. Chama à
atenção o fato de que muitos dos que veem como estranha essa pronúncia usam o mesmo
processo para a palavra “tia”, quando pronunciam tia (tchia, com o mesmo alofone), sem, no
entanto, encontrarem nisso razão para estranhamento ou preconceito.
Já os deslizes cometidos em relação à sintaxe gramatical sempre chamam mais à
atenção que os fonéticos, embora nem sempre sejam apontados na fala das pessoas de nível
social mais prestigiado. Construções como “os menino chegou” são facilmente interpretadas
como formas do plural e tornam-se mais sintéticas ao dispensar as marcas de plural no
substantivo e no verbo, mantendo-as apenas no artigo.1 Os livros que tratam do assunto são
unânimes em apontar um aspecto gramatical intrínseco e automático em quem produz uma
construção como essa, colocando-a em paralelo com construções do inglês, por exemplo, em
cuja gramática não se faz precisa a redundância do plural, apontando-o apenas nos
substantivos sem comprometer a inteligibilidade da oração.
Possenti (1996) não deixa claro, e não encontramos literatura que o faça, quais atuais
desvios merecem ser incorporados à NP e quais não, e como se daria tal procedimento.
Pergunta-se, então: que erros são toleráveis e quais não são? E os que não forem, o que fazer
com eles?
1 Mais à frente abordaremos a influência da sintaxe saxônica influenciando na brasileira, tal como nessa referida economia de marcadores de plural.
22
Como dito antes, tratam mais de explicar o deslize do que de desestimulá-lo. É claro
que estão corretos quando dizem que essas marcas de plurais, apesar de transgredirem as
normas gramaticais, são lógicas e que nenhum falante produziria a construção “o meninos
chegou” ou “o menino chegaram”, o que mostra que a marca do plural vem sempre no
primeiro elemento da construção.
Mas o que se coloca aqui como ponto da discussão não é a compreensão das
construções feitas, que já está provado que existem. Indaga-se se realmente devem os
professores de língua portuguesa abster-se de corrigir seus alunos ao ouvirem essas formas.
Sabemos que elas possuem semântica completa e até obedecem a uma sintaxe própria
(embora diferente da padrão, totalmente lógica).
As explicações encontradas para justificar os “erros” são, portanto, bastante plausíveis
do ponto de vista diacrônico, histórico, fonético, sintático e linguístico. Por outro lado,
possuem uma carga de desserviço imensa ao alunado, uma vez que não fazem com que
procurem adequar-se ao modelo padrão da língua, preferindo o relaxamento propiciado por
tais explicações ao rigor imposto pelas gramáticas normativas.
Se, em diversas situações sociais, precisaremos de adequação vocabular padrão
(exatamente aquela encontrada nas aulas de gramática da Língua, tais como domínio de
regência, concordância, etc.), de que vale saber tais explicações, porém ignorar as formas
mais valorizadas socialmente? De nada. É policiamento vão do politicamente correto.
1.6. HÁ OU NÃO VARIEDADE SUPERIOR NA LÍNGUA PORTUGUESA?
Diz Bagno (2007, p. 89) que, linguisticamente, nenhuma variedade da LP tem
características que possam dar-lhe o título de superior à outra, sendo essa superioridade algo
de nuance meramente social e política, instrumento de coação e domínio por parte de seus
dominantes sobre os que não a dominam, fatores pelos quais deveria a NP ser colocada em pé
de igualdade perante as demais. A posição politicamente correta e bem aceita no universo
acadêmico se choca com a de Antunes (2008), para quem o fato de ser superior, ainda que
apenas social e politicamente (embora não linguisticamente), já faz da norma padrão superior
às demais, em virtude de seu papel de convergência entre as variedades. Diz-nos este autor
que
A língua padrão é superior às outras por ser o ponto de encontro de todas as variedades lingüísticas. Todo povo que atinge determinado nível cultural cria uma forma especial de comunicação, que vai sendo enriquecida e apurada ao longo do
23
tempo: a língua padrão, um instrumento geral de comunicação, a todos inteligível, a todos dirigido, destinando-se a qualquer região, em qualquer tempo. (2008, p. 1)
Antunes (op. cit.) também comenta a obra de Bagno e observa a ausência da distinção
já clássica feita pela linguística moderna entre língua transmitida e língua adquirida, dizendo
que
A língua adquirida é a literária, a culta, que se aprende na escola, conscientemente, metodicamente. Para quem quer, de fato, escrever certo e bem, é preciso aprendê-la pelo resto da vida. A língua adquirida é intrinsecamente superior, pois é clara, rica, intemporal, supra-regional e supra-segmental.(2008, p. 2)
Concebemos o ensino de língua em sala de aula de modo semelhante ao desse autor.
Provado está que se devem privilegiar os gêneros textuais mais utilizados pelos alunos por
toda a sua vida (não apenas profissional e acadêmica, como também socialmente). A língua
transmitida é recebida de forma natural desde os primeiros meses de vida, é repassada pelos
familiares e amigos. Não precisa (ao menos em nível fundamental e médio) de explicações e
fundamentos. De forma que enxergamos a língua adquirida como a que deve ser tratada com
privilégios em sala de aula.
Pode-se encontrar quem fale a palavra “tio” de mais de uma forma (como o fazem o
carioca e o pernambucano, via de regra). Ainda assim, ambos se farão entender porque
remeterão o signo ao significante: “tio”, padrão para qualquer falante de LP. Voltando ao
exemplo da obra de Bagno, tanto quem fala “praca” como quem fala “placa”, usando de
significantes distintos, remete-se a um mesmo significado. É de se supor uma maior eficácia
na comunicação caso houvesse a uniformidade desse significante, a despeito das explicações
diacrônicas já comentadas. Se não, vejamos o que nos diz ainda Oliveira Lopes (2010):
A linguagem formal desconhece fronteiras regionais e temporais, é duradoura e conserva o melhor do cabedal cognitivo produzido pela cultura de uma comunidade linguística. Claro que cada região e cada época possuem seus sotaques, gírias e expressões peculiares, mas é a norma padrão que garante a comunicação e a aproximação entre o maior número de pessoas no tempo e no espaço, vencendo as distâncias geográficas e de momento. (2010, p. 1)
Se quisermos defender uma integração cada vez maior entre os povos que compõem
nossa pátria, é dever nosso primar para que tal fato se dê também no campo linguístico. É
necessário, ao passo em que se permitem e mesmo se incentivam as peculiaridades regionais,
manter a LP una e inteligível em todas as situações geográficas, sociais e sociológicas. Afinal,
é sob essa regra que poderemos manter baianos e acreanos, pernambucanos e capixabas,
amazonenses e potiguares em consonância uns com os outros ao se iniciar um diálogo. Em
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tais situações, é a norma padrão a que garantirá a eficácia comunicativa. Não é demais
lembrar o processo de decadência do latim e surgimento das línguas neolatinas.
Uma vez em patamares iguais à NP e demais variedades da LP, isso daria ao Brasil
(para nos limitarmos a nosso país) dialetos diversos cada vez mais distintos (tal como ocorre
hoje com o italiano). Por outro lado, incentivar e propor meios para a aquisição das regras da
NP pelo maior número possível de falantes aproxima os falantes (em que pesem suas posições
geográficas, faixa etária, classe social, etc), e confere à LP status de língua forte e una,
fortalecendo inclusive a difusão de ideias. A esse respeito, diz-nos Oliveira Lopes (2010):
Exatamente ao contrário do que reza a ideologia do comunismo linguístico, o uso da língua modelo permite que todos tenham acesso ao conhecimento, enquanto o emprego de uma variedade linguística não-padrão circunscreve-o a um parco círculo de falantes.(2010, p.1)
Possuir o pleno domínio da NP, ainda mais hoje, frente à globalização e forte
competição nas conquistas de bons postos sociais, possibilita maior compreensão e
interpretação dos textos com os quais se depara, além de frequentemente significar também
uma maior capacidade de comunicação (não falamos dos aspectos retóricos, para o qual,
fatores como espontaneidade, postura e até indumentária concorrem, e sim do aspecto da
eloquência). Por outro lado, o não possuir tal domínio concorre para sua limitação social,
causada por uma crença vã de que seu potencial cognitivo não alcança tal nível, ou mesmo
que não seria necessário, posto que uma variedade não se sobreponha a outra.
É preciso lembrar, nesse quesito, a tentativa recente de uma definitiva padronização
entre as variantes americana, europeia e africana da LP, através do Acordo Ortográfico.
Enxergá-lo como mero instrumento de imposição política é apequenar o tema e negar-se a vê-
lo como elemento facilitador na difusão de obras literárias, legendas cinematográficas,
burocracia comercial entre as nações, etc. Acordo não é sinônimo de nem rima com
imposição. Houve concessões de todos os lados, para que, ao fim, tenhamos uma ortografia
única. Enquanto os portugueses abriram mão de suas consoantes mudas (acção, óptimo), os
brasileiros abdicaram dos acentos em ditongos tônicos nas paroxítonas (ideia, jiboia). Não é
de se duvidar que em uma próxima etapa, tente-se algo parecido na sintaxe.
Em uma obra mescla de linguística e filosofia, Hacking (1999) diz que
Aprender a falar significa aprender a pronunciar sentenças em diversos modos, não apenas pronunciar uma palavra quando na presença de uma característica. (...) Aprender a gramática é no mínimo tão importante quanto aprender palavras. O empirista sustenta não que a aprendizagem das palavras seja a totalidade da
25
aprendizagem da linguagem, mas que é o seu começo, e que é o lugar certo para iniciar uma teoria. (1999, pág 100)
Paralelo a essa visão, Hacking diz que um dos elementos da aprendizagem de palavras
é “pronunciar sons correspondentes a características de maneira que sejam aprovadas pela
sociedade”, de onde depreendemos, uma vez mais, a superioridade social (e aqui, filosófica)
dada à norma padrão de uma língua.
Por fim, não fosse a NP superior “em nada” (nos termos de Bagno) às demais, a não
ser em termos políticos, os próprios defensores dessa teoria não teriam escritas, na variedade
padrão, suas obras, uma vez que desdenham da sua importância política e social, atribuindo a
isso tanta mazela. Escreveriam, pois, em quaisquer uma das outras variedades, a fim de dar-
lhes o mesmo reconhecimento linguístico já que, nesse aspecto, equivalem-se, e para enfrentar
o status quo que mantém a NP como aquela que deve ser utilizada para divulgação de
trabalhos científicos. É o caso de pensar que o marxismo das ideias não se desprende do
capitalismo editorial e da necessidade de vender livros.
1.7. LIVROS DIDÁTICOS, GÊNEROS ORAIS E POSTURA DOCENTE
Uma crítica antiga dos professores e linguistas já tem sido atendida, ainda que a passos
curtos. Dizia-se que os livros didáticos de Língua Portuguesa não davam os devidos valor e
espaço aos textos, fazendo das normas (explicadas em frases soltas) seu principal foco. Hoje
os gêneros textuais já são uma realidade no ensino de LP, portanto, nos livros didáticos, onde
têm espaço garantido. No entanto, a didática dos professores tem mudado numa velocidade
menor que a das editoras e da burocracia educacional ao adotar os gêneros como foco
principal. Passamos a ter, assim, livros didáticos reformulados, abordando mais o texto que a
norma, ao mesmo tempo em que seguimos com professores resistentes em abandonar o
tradicionalismo e tratar apenas do texto. É um caso de se pensar se o problema não está nos
cursos de Letras em todo o país, nos quais, a linguística, disciplina obrigatória há pelo menos
30 anos, não tem conseguido mudar a metodologia dos docentes, acusação feita ainda hoje
pelos próprios linguistas. É um autorreconhecimento de falha no objetivo deles. Se não o for,
é uma demonstração crua da funcionalidade do modelo anterior, uma vez que, apesar de
serem submetidos aos conceitos da sociolinguística e a novos paradigmas didáticos, os alunos
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dos cursos de Letras formam-se e tornam-se professores iguais aos que tiveram em seus
cursos fundamental e médio.
Ao que parece, a maior parte dos formandos concorda com as teses e ideias difundidas
a respeito de uma mudança na perspectiva do ensino de Gramática e NP, afinal, os seus
professores da faculdade proliferam argumentos em favor dessa nova concepção de ensino de
língua e condenam o “sectarismo” do ensino tradicional e o ensino da norma padrão como a
melhor e pura a ser usada. Não obstante, ao entrarem em sala de aula e enfrentarem vários
turnos e turmas com as mais variadas idiossincrasias, o discurso politicamente correto dá
lugar, muitas vezes, ao tradicionalismo tantas vezes condenado. Percebe-se, talvez somente aí,
que é a NP vital no processo ensino/aprendizado de Língua Portuguesa, uma vez que outras
variedades já são dominadas pelos discentes, e é a NP o objeto a ser estudado e usado nos
textos escritos naquele ambiente.
Fica, porquanto, avaliadas tais situações, evidente a fragilidade do discurso daqueles
que pensam não ser necessário enfatizar a NP como objeto das aulas de Português.
É bem comum ouvirmos de professores de língua relatos acerca da dificuldade por
parte de seus alunos em ler e interpretar um texto além da leitura superficial. Tomando por
base Azambuja e Souza (2003), para quem “estudar um texto é trabalhar nele de modo
analítico e crítico, desvendando-lhe sua estrutura, percebendo os recursos utilizados pelo autor
para a transmissão da mensagem”. (2003, p.49)
Há que se cuidar para não se permitir o uso da gramática normativa como instrumento
de discriminação social, fato existente e persistente por muito tempo em nossa cultura
linguística. É papel também do professor de LP formar “indivíduos críticos e capazes de
interagir linguisticamente nas mais diversas situações, possibilitando a análise não apenas do
aspecto gramatical, mas da intenção do discurso, das ideias que ele pretende transmitir e de
sua importância” (MARQUES DA SILVA, 2009). Seria, no entanto, necessário um estudo,
ainda no ensino médio, do uso da língua nas situações menos monitoradas, quando a
pragmática prevalece sobre todos os outros aspectos linguísticos?
Uma das observações feitas por Bagno (2003) aponta para a prevalência da norma
padrão sobre outras normas por razões sociais e não linguísticas, já que, para ele, não há
superioridade nesta esfera por parte da NP.
Na pronúncia normal do Sudeste, a consoante que escrevemos T é pronunciada [ts] (como em tcheco) toda vez que é seguida de um [i]. Esse fenômeno fonético se
27
chama palatização [...] E todo mundo acha isso perfeitamente normal, ninguém tem vontade de rir quando um carioca, mineiro ou capixaba fala assim. Quando, porém, um falante do Sudeste ouve um falante da zona rural nordestina pronunciar a palavra escrita OITO como [oytsu], ele acha isso "muito engraçado", "ridículo" ou "errado" (2003, p. 72)
Caberá, portanto, a nós, professores de língua, combater tal preconceito, formulando
meios de aprendizado nos quais fique claro que as variedades existem e que elas não têm,
obrigatoriamente, reflexo no aspecto cognitivo dos seus falantes (e é nessa tarefa que entram
os gêneros textuais), mas também mostrando e deixando claro que é a variedade padrão
aquela à qual devemos recorrer em boa parte das situações sociais com as quais nos
depararemos ao longo de nossas vidas. É ela que faz com que todos nós, usuários de
variedades distintas, sejamos, ao final das contas, falantes de um mesmo idioma. É a NP a que
recorremos quando queremos nos comunicar com alguém de idade, posição geográfica e
social bastante diversa da nossa. É a NP usada por todos nós, inclusive pelos sociolinguistas,
para escrever textos científicos a fim de que tenham alcance máximo e amplo.
Paralelo a essa discussão, algo que merece espaço na sala de aula, e isso poucas vezes
ocorre, é o caráter valorativo que se dá ao texto escrito em detrimento do falado. Ambos são
formas de expressão sociocultural, merecedores de atenção por parte dos professores de LP.
No entanto, como o falar é mais instantâneo e de monitoramento frequentemente menor ou
nulo, tal ação é relegada, dando-se espaço quase sempre apenas ao texto escrito. Perini (2004)
diz que alguns tomam a escrita como forma "correta" da língua restando para a fala o papel de
“forma simplificada e errada” de reprodução daquela. Segundo esse autor,
[...] a diferença entre a fala e a escrita não é que a fala seja uma espécie de escrita descuidada; as noções de "certo" e "errado" são completamente inadequadas para descrever as relações entre o modo como falamos e o modo como escrevemos. (2004, p. 56).
Já para outros estudiosos, adeptos da Teoria Associacionista, a escrita é uma mera
reprodução gráfica da fala, motivo pelo qual esta deve ter mais espaço no ensino que aquela.
Perini se contrapõe também a esses teóricos, afirmando que oralidade e escritas são formas
distintas de se comunicar e que uma não pretende ser mera reprodução da outra.
De acordo com os PCN’s (p. 54),
[...]os blocos de conteúdos de Língua Portuguesa são língua oral, língua escrita, análise e reflexão sobre a língua; é possível aprender sobre a língua escrita sem necessariamente estabelecer uma relação direta com a língua oral; por outro lado, não é possível aprender a analisar e a refletir sobre a língua sem o apoio da língua oral, ou da escrita.
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Devemos, portanto, embasados inclusive na burocracia educacional vigente, refletir
sobre a utilização dos gêneros textuais orais na sala de aula e quais seriam eles. Formar
cidadãos competentes no uso de sua própria língua extrapola ensinar-lhes a bem usar as
palavras no plano da escrita, embora tenhamos enquanto professores dado ênfase maior a essa
atitude. Em boa parte das situações sociais que serão enfrentadas pelos nossos alunos, deverão
eles fazer uso de textos orais (entrevistas de emprego são um bom exemplo disso).
Acreditamos, pois, na importância do uso desses gêneros orais também nas aulas de língua
portuguesa, visando a uma formação mais ampla dos nossos alunos.
Essa maior preocupação vem do fato de os livros didáticos, em sua maioria, ainda não
trazem uma boa contextualização dos gêneros orais. Sem essa ferramenta, ainda que bem
intencionados e esclarecidos acerca da importância do uso de tais gêneros em sala de aula, o
trabalho docente fica engessado e sem retaguarda burocrática, afinal, há de se seguir um
roteiro programático trazido pelos livros didáticos adotados pela escola. O lobby linguista,
portanto, deve ser feito, agora, não mais junto aos formandos e sim junto às editoras.
1.8. MUDANÇAS NO ENSINO DE LÍNGUAS
É inevitável constatar as muitas mudanças por que passou o ensino de Língua
Portuguesa no ensino brasileiro, dentre elas destacando-se a gramática textual, adotada por
muitos autores de livros didáticos. Essa gramática, para Marcuschi (1983, p. 7), "[...] é uma
das linhas de pesquisa mais promissoras da linguística atual, uma vez que contempla os
recursos linguísticos partindo do texto e não mais das frases.” Ainda de acordo com
Marcuschi, “este trabalho discute possíveis obstáculos causados pelo preconceito linguístico e
propõe um modelo de ensino baseado na reflexão e diversidade textual.” É de se supor que,
uma vez mencionanda a diversidade textual, o autor faça, paralelamente, a defesa também da
diversidade de variações, uma vez que em cada gênero, variações diversas se fazem presentes.
Nessas consideraçõeso, fica explícito que se deve abordar a diversidade linguística, mas nem
de longe se faz apologia a que se tenha a variação padrão excluída desse processo.
Uma das grandes transformações por que tem passado o ensino de língua portuguesa
diz respeito à introdução dos gêneros textuais em sala de aula. Assunto muito em voga nos
últimos anos, os gêneros retratam os usos sociais do texto feitos pelos usuários da língua. E se
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são esses textos aqueles de que vamos dispor ao longo da nossa vida, devem ser eles
instrumentos utilizados nas aulas de língua.
Para Marcuschi (2002), os tipos de textos (narração, descrição, dissertação e injunção)
realizam-se através dos gêneros textuais. O autor admite ainda a hipótese da heterogeneidade
tipológica, fato ocorrido quando um mesmo gênero apresenta características de mais de um
tipo. Ainda para ele, o gênero é como uma “noção vaga para os textos materializados
encontrados no dia a dia e que apresentam características sócio-comunicativas definidas” pela
situação do falante.
Travaglia (2002), que prefere os tipos de textos aos gêneros como elementos a serem
usados nas aulas, caracteriza estes por suas funções sociais, pressentidas pelos que fazem uso
da língua. Para ele, sabemos o momento e o local adequado para fazermos uso de cada
gênero.
As variedades linguísticas, em que pesem as falhas metodológicas, também têm sido
inseridas no processo de ensino-aprendizagem de língua materna, ainda que, sob a ótica da
sociolinguística, de forma muitas vezes equivocada. Bagno (2007) pensa ser um equívoco
confundir-se variedade linguística com variedade regional. Segundo o autor,
Parece estar por trás dessa tendência a suposição (falsa) de que os falantes urbanos e escolarizados usam a língua de um modo mais “correto” mais próximo ao padrão, e que no uso que eles fazem não existe variação. (2007, p. 40)
Seguindo essa linha de raciocínio, o uso de três personagens frequentes quando se
tenta abordar tal tema (Chico Bento, Adoniran Barbosa e Patativa do Assaré) mostra-se
também preconceituoso, uma vez que vislumbra levar a imagem que o modo próprio de os
três falarem é uma variedade não padrão e que deve ser evitada. Bagno (op. cit.) exemplifica
através de um balão das histórias em quadrinho de Maurício de Souza, no qual a fala de Chico
Bento é representada de acordo com a figura a seguir, ao lado de outra fala do personagem
Apesar de praticamente todos os falantes da língua portuguesa no Brasil realizarem o
ditongo OU como um Ô e as vogais “E” em posição átona como um “I”, no plano da
expressão gráfica, esse fenômeno só é apontado quando provém de um usuário da zona rural.
SORRIAM QUE EU VÔ TIRÁ O RETRATO
COMO OCÊ NUM FEZ A LIÇÃO DI CASA DIREITO, ACABÔ TOMANDO NO...
30
Fosse uma pessoa escolarizada, tais reproduções viriam muito provavelmente na sua forma
lexical correta. Fenômeno bem parecido será encontrado em textos de Adoniran Barbosa,
como por exemplo o Samba do Arnesto (anexo A), no qual usos bastantes populares (como a
forma “nós fumo” em lugar de nós fomos) se mesclam a outros restritos a poucos usuários
(como o uso do oblíquo “nos” em “Arnesto nos convidou”). A pessoalidade da obra musical
de Adoniran explica esse fato que dificilmente seria encontrado em uma fala espontânea de
um usuário da língua, fato pelo qual o exemplo não pode ser visto como uma construção
usual, logo, uma variedade da língua. Isso se repetirá em Patativa, como no seu poema “Aos
poetas Clássicos” (anexo B) e em tantos outros exemplos disponíveis a quem os busque.
Mas por que tratar de um aspecto tão sociolinguístico do uso da língua aqui? Para
mostrar que a língua é uma “atividade social, um trabalho coletivo empreendido por todos
seus falantes” (BAGNO, 2007). Se é assim, torna-se heterogênea. E é essa heterogeneidade de
usos que se toma por variedades da língua. Vemos variedades como usos reais e funcionais na
fala espontânea das pessoas, limitados, via de regra, ao plano da expressão oral, uma vez que
na escrita as formas lexicais tendem a convergirem para a padrão. É por isso que defendemos
a ideia de que as formas várias de pronunciar-se a palavra “AMOR” (amô, amor, AmoIr)
seriam cada uma delas variedades, ao passo em que escrever a palavra AMÔ em lugar da
forma AMOR não seria variedade e sim desvio léxico da norma padrão.
A crítica feita por Bagno a esse processo metodológico, com a qual nós concordamos,
dá-se, entre fatores outros, pela pressão feita pelo lobby linguista que leva os escritores e
editores dos livros didáticos a, mesmo sem uma teorização mais completa sobre o tema,
adotarem algo que pudesse atender a essa expectativa pela presença das variedades
linguísticas nos livros didáticos.
Acreditamos na importância de que os textos escritos sob quaisquer uma das normas
sejam levados aos alunos por proporcionarem conhecimento e reflexão, mas discordamos de
que sirvam de modelo de língua para os mesmos, uma vez nem representam variedades
linguísticas e, mesmo que o fizessem, tendem mais a enfraquecer pela lisonja que fortalecer
pela disciplina.
Daí que, pouco após termos passado por duas significativas mudanças na perspectiva
metodológica das aulas de LP, já recebemos pressão acadêmica e linguística para operarmos
mais uma, até que nos adequemos a um modelo pré-estabelecido por aqueles que assim
31
anseiam. Enxergamos no uso da norma padrão, una e homogênea, o melhor método para
apaziguar esse conflito por que passamos os professores de língua.
32
2. A LÍNGUA E SUAS RELAÇÕES COM A SOCIEDADE
2.1. IDEOLOGIA ENFRENTANDO A REFLEXÃO
Iludidos pela crença da origem lusitana de nossas mazelas, estudiosos nacionais
pelejam para que nos afastemos de nossas raízes europeias, estendendo o campo dessa batalha
para a linguística. Na contramão deles, pensamos que estipular normas e transmiti-las às
crianças (ou mesmo a um adulto ainda não letrado) em hipótese alguma configura violência. É
antes um exercício de conscientização de que teremos, em nossa vida social, regras (sejam
justas ou não, oportunas ou não; impostas pelo empirismo ou pelo status quo) às quais nos
devemos ater e as quais devemos respeitar e buscar cumprir.
Amiúde, argumenta-se que a NP não é realizada em sua íntegra por nenhum falante da
LP, por mais culto, escolarizado e familiarizado que este seja. A afirmação, apesar de ser
facilmente comprovada, não deve servir como argumento para retirar a NP do estamento que
ocupa. A fim de comparação, Oliveira Lopes (2010) reflete que, embora todos já tenhamos
cometido algum deslize moral, jurídico ou ético, nenhum de nós propõe o afrouxamento das
normas morais, jurídicas e éticas.
Oliveira Lopes (op. cit.) pensa que à Linguística, como ciência que se propõe ser, não
cabe o campo onde se debate a questão do preconceito, e sim os da filosofia, moral e ética:
Por exemplo, se amanhã ou depois um grupo idôneo de cientistas renomados conseguir comprovar, para além de quaisquer dúvidas, que existem raças e que uma raça específica é mais “inteligente” que as demais, isso nos dará o direito “científico” de discriminar as raças “menos inteligentes”? Claro que não! Porém, como sustentar essa negativa, se a ciência afirma o oposto? A resposta é simples: retirando do âmbito da ciência o problema da discriminação e transferindo-o para o da ética e da moral (2010, p. 2)
De tal modo, as crianças seriam educadas sob a ótica de que o preconceito (seja racial,
linguístico ou quantos mais houver) é algo a ser abominado moralmente, e não
cientificamente, como dito, visando a que, em hipótese de comprovação científica, não haja
necessidade de mudança de postura frente a tais situações. Podemos, ainda debruçados sobre
o artigo de Oliveira Lopes, perceber que “formalmente a ciência não é competente para
fundamentar os valores éticos da sociedade”.
Outro problema decorrente do deslocamento “inadequado” dessa discussão para o
campo científico é que, uma vez adotada a defesa de um tema seja ele qual for (e damos
atenção ao preconceito linguístico aqui), a Linguística assume o papel de defensora da
33
coletividade oprimida, dos ‘sem-acesso’ à norma padrão, ao passo que combate os
pensamentos contrários, dando aos seus ares de ciência e àqueles, de “preconceituoso”. É um
posicionamento maniqueísta, embasado cientificamente com conceitos corretos trazidos pelos
estudos linguísticos, mas colocados ao público de forma, a nosso ver, equivocada, por
oferecer a visão de que quem está a seu lado está com o povo, é tolerante e progressista,
restando aos demais apenas o laivo de sectário, conservador, antiquado e retrógrado. Esse
modus operandi marxista de lidar com o tema inviabiliza, antes de iniciar-se, um debate às
claras.
Um exemplo do que se diz aqui está na prova de Português 2 do Vestibular 2011 da
UFPE (anexo C) que trouxe texto de Perini (2004), onde se lê, por exemplo:
[...]do que a linguística não se ocupa é a distinção entre o “certo” e o “errado” na língua...O ensino do português muitas vezes difunde a crença de que existe uma maneira “certa” de usar a língua, e que essa é a única maneira aceitável; todas as outras são “erradas”, devem ser evitadas...Quantas vezes não nos dizem que a palavra chipanzé “não existe” (porque o “certo” seria chimpanzé)? Dizer isso é desrespeitar o fato de que milhões de pessoas dizem chipanzé. (2004)
O discurso se encaixa como uma luva e ganha de modo fácil e com ares de
politicamente correto adeptos de modo muito ágil. O problema que encontramos em posições
como a de usar um texto como esse para adolescentes que realizam uma prova de ingresso à
academia é que, ao invés de buscar fazer deles (ou identificar se são) usuários competentes da
variedade que será exigida deles em muitas situações sociais, contenta-se em fazer deles
pessoas tolerantes com o “erro”.
Fato semelhante encontramos em diversos outros textos usados nas salas de aula do
ensino médio, como por exemplo, Nóis mudemo, de Fidêncio Bogo, (anexo D) levado à sala
de aula por dezenas de professores na tentativa de mostrar a seus alunos como o “apego
exagerado às normas gramaticais” pode causar desânimo e afastar um potencial aprendiz da
sala de aula, impossibilitando-o de se tornar um cidadão mais bem instruído.
2.2. LÍNGUA COMO ELEMENTO DE IDENTIDADE CULTURAL
É sabido que o idioma de um povo é um dos mais, se não o mais, importantes
elementos de identidade cultural. É a principal convergência de quem faz parte desse povo e a
principal divergência com quem não faz. É a língua portuguesa que faz um rico fazendeiro
34
acreano de 70 anos de idade ser tão brasileiro quanto um pedreiro gaúcho de 22 anos de idade.
O filósofo Olavo de Carvalho (1999), ao tratar sobre a busca pela identidade nacional diz que,
Enquanto nossos vizinhos buscavam sabiamente fortalecer os laços que os uniam à cultura hispânica de origem, lutávamos obsessivamente para cortar toda nossa raiz lusitana (1999, p.2)
Carvalho segue no tema e compara nosso idioma ao espanhol, oficial de nossos
vizinhos, e percebe a reafirmação da língua de Cervantes como reafirmação de identidade de
tais países, em contraponto ao português que, segundo ele,
[...]perde terreno dentro de solo brasileiro e é acossado pelo barbarismo midiático manietado pelos fiscais politicamente corretos, açoitado pelos feitores da incorreção obrigatória.(1999, p.2)
O filósofo comenta a obra Preconceito Lingüístico: O que é, como se faz (BAGNO,
1999), uma das obras da sociolinguística nacional mais lidas nos cursos de Letras e de
formação de professores em geral em todo o país. Ele dá conta de encontrar um afrouxamento
da norma padrão portuguesa, o que acarretará no domínio cada vez maior da norma inglesa, e
não do “democratismo igualitarista das falas populares”, defendido no citado livro. Para
ilustrar, argumenta que tal fato já ocorre, ao encontrarmos palavras portuguesas formando
uma oração com sintaxe típica do inglês, como em "amanhã estarei indo viajar", em
preferência à forma “amanhã viajarei”, mais típica da sintaxe lusitana. O exemplo, mais que
uma assimilação eventual, revela como se vem procedendo, talvez de modo involuntário, a
uma adaptação do nosso repertório à forma estrangeira. Revela mais: a posição frouxa frente
ao mau uso gramatical não fortalece as variedades não padrões do português, e sim a norma
padrão alheia, saxônica.
Para o filósofo, a obra de Bagno seria fruto de extrema inteligência (ainda que
misturada com maquiavelismo, na acepção popular do termo) se tivesse a intenção de pôr fim
à unidade linguística lusófona para sobreposição da americana. Porém, não é esse o fim ao
qual se presta Bagno, marxista que não sabe a quem serve e que, de tempos em tempos,
percebe, sob ira e revolta, que seu objetivo deu errado.
Para os alunos dos diversos níveis e até para aqueles que não estudam, é cômodo e soa
politicamente correto aos ouvidos alheios que os deixem escrever como falam e que falem
como soem fazer, sem orientá-los em direção à uniformidade da norma padrão. É provável
que, agindo assim, eles se sintam menos excluídos social e linguisticamente. No entanto, dá-
se o inverso, pois é essa atitude justamente que mais os exclui, por privá-los do acesso a
conversas cultas. Segundo Carvalho (op. cit), “Tudo depende de saber se preferimos
35
enfraquecê-los pela lisonja ou fortalecê-los pela disciplina”. É daí que advém o título do
presente trabalho.
A preferência da NP por parte não apenas dos usuários como também dos sistemas de
ensino é tamanha, que se pode inclusive, constatar, como o faz Bechara (2006, p. 11), um
retorno por parte dos livros didáticos a insistir no padrão culta da linguagem, seja através das
normatizações da gramática ou mesmo através das seleções textuais que, segundo o autor,
refletem esse padrão.
Já para Saussure (1949, apud BECHARA, 2006, p. 11), a GT está “fundada na lógica
e desprovida de toda a visão científica e desinteressada da própria língua”, e a conceitua como
“disciplina normativa, distante da observação pura, cujo ponto de vista é necessariamente
restrito.” (grifo nosso).
Acreditamos verdadeiramente na preocupação daqueles que veem preconceito na
atitude de muitos usuários cultos da língua com aqueles que não compartilham a mesma
capacidade linguística. É preciso assegurar-lhes o curso na intercomunicação social. Porém,
pensamos, tal como Bechara, que o respeito às variedades “não lhe furta o direito de ampliar,
enriquecer e variar esse patrimônio inicial”. Afinal,
Enquanto a posição populista perpetua a segregação linguística das classes subalterna, a educação linguística deverá ajudar a sua liberação (SIMONE, 1979, apud BECHARA, 2006, p12).
O ensino linguístico deverá partir da atividade oral, pois que constitui a base para a
aquisição ideal de quase todas as competências linguísticas. Mas vale lembrarmos que a
função do professor deve ser a de estimulador e que não deve também perder de vista a sua
missão programaticamente corretiva.
Pensamos que a Gramática deve ter papel didático, e não dogmático, como já disse
Bechara (2006, p. 50). Citando Wagner e Pinchon, o autor nos diz que a GN pertence mais à
educação que à instrução, já que objetiva mostrar aos usuários como dizer isso e repelir
aquilo, a fim de atender às expectativas do contexto social.
36
3. PERCURSO METODOLÓGICO
Propusemo-nos a conversar com determinado número de alunos e professores e colher
impressões dos mesmos acerca do ensino de gramática, bem como de sua funcionalidade. Nos
apêndices B e C, estão registradas as perguntas feitas no questionário, cujos detalhes
comentamos a seguir.
Procuramos 50 alunos de Língua Portuguesa, divididos da forma exposta no apêndice
A, de modo a contemplar ambos os sexos, procedência da instituição (se privada ou pública,
e, se pública, estadual ou federal) e nível de estudo; e lhes pedimos que respondessem a um
questionário (apêndice B) sem identificação nominal, apenas sinalizando o sexo, a idade, o
nível de ensino e o nome da instituição, a fim de tornar mais espontâneas e reais suas
respostas, uma vez que admitimos a possibilidade de se sentirem coagidos se houvesse
necessidade de identificação. Nenhum dos alunos foi escolhido por manifestar simpatia pela
matéria, bem como nenhum é aluno do redator do presente trabalho. Foram escolhidos
aleatoriamente pela ordem na caderneta em turmas nas quais não havia relação próxima entre
nós e eles. Acreditamos que isso confere mais legitimidade aos resultados. Apresentamos no
apêndice B as respostas quantitativas dadas por eles às perguntas às quais foram submetidos.
No decorrer do texto, no entanto, trabalharemos quase sempre com números percentuais.
As escolas nas quais buscamos esse alunado foram escolhidas por critérios levando em
conta o nível de ensino e se públicas ou privadas. Condições socioeconômicas do público não
foram levadas em consideração, a fim de não escolhermos escolas nas quais adolescentes de
maior poder aquisitivo (fator este muitas vezes relacionado com a capacidade cognitiva)
fossem os entrevistados, fator esse que poderia intervir nas análises.
Entrevistamos alunos nas seguintes escolas particulares:
Colégio Diocesano de Belo Jardim (8 alunos)
Colégio Adventista de Belo Jardim (7 alunos)
Nas seguintes escolas públicas federais:
IFPE- Campus Belo Jardim(10 alunos)
IFPE- Campus Pesqueira (10 alunos)
Nas seguintes escolas públicas estaduais:
CEEBEJA, Belo Jardim (7 alunos)
Bento Américo, Belo Jardim (8 alunos)
37
Conversamos com 10 professores de língua portuguesa nas mesmas instituições onde
conversamos com os alunos. Quatro homens e seis mulheres. Não por escolha metodológica,
e sim pelo quadro de professores não apresentar mais homens do que esse número na função
de docente de língua portuguesa. A exemplo do primeiro questionário, neste também não
pedimos identificação e apenas procedemos a leitura dos mesmos após todos os entrevistados
haverem concluído sua participação. De antemão, antevimos algumas respostas por se
tratarem de perguntas que mexem com a autoestima. Ainda que de forma anônima,
deduzíamos que poucos iriam responder diferente do que fizeram por exemplo na questão
primeira e na segunda.
Por se tratar de um número reduzido de entrevistados, achamos por bem apresentar os
números reais e não percentuais como feito com os alunos. O apêndice C mostra os números,
as perguntas e respostas.
38
4. ANÁLISE DO CORPUS
4.1. OS ALUNOS
PERGUNTA 1
O primeiro dado já digno de registro e de surpresa é que 36% deles afirmam gostar,
sim, das aulas de gramática em suas escolas, enquanto 14% dizem que não gostam e 50%
gostam pouco. Analisando por segmentos de sexo e de instituição, encontramos os seguintes
dados:
• dos que afirmam que gostam, 50% são meninos e 50% meninas, o que destrói, ao menos
em nosso campo de pesquisa, a tese de que as meninas são mais simpáticas ao ensino de
gramática;
• dos que gostam, 60% estudam até segundo ano do médio, e 40% estão ou no terceiro ou no
quarto (a pesquisa inclui alunos das escolas federais técnicas, que trabalham com alunos no
nível médio por 4 anos);
• os que afirmam gostar de gramática são 40% alunos da escola técnica, 40% das escolas
particulares e 20% das escolas estaduais.
Nossa reflexão sobre esse dado aponta para a qualidade do ensino e, consequentemente,
para o interesse despertado no alunado. As escolas federais onde desenvolvemos a pesquisa
são consideradas excelentes escolas e contam em seu corpo docente com professores que,
além de capacitados, trabalham indiscutivelmente sob melhores condições, quer sejam
financeiras, quer sejam estruturais. Pensamos que resultado parecido deve surgir se forem
pesquisadas quaisquer disciplinas, uma vez que o déficit da escola pública estadual não atinge
tão somente a área de Língua Portuguesa. Vale ressaltar ainda que a escola estadual onde
Pergunta 1 SIM POUCO NÃO
Você gosta das aulas de gramática na sua escola? 35% 50% 14%
39
buscamos respostas não é um Centro de Referência (as chamadas escolas integrais), pois
procuramos exatamente confrontar também dados de escolas onde sabemos que há uma
qualidade de ensino melhor (caso da particular e das federais), com alguma onde suspeitamos
não dispor da mesma qualidade. Que fique registrado que não culpamos o corpo docente por
essa qualidade abaixo do desejado, e sim os órgãos governamentais a quem cabe a tutela das
referidas escolas.
PERGUNTA 2
Quando a pergunta feita é sobre o nível de dificuldade (fácil ou difícil) encontrado na
disciplina e o quanto lhes é agradável o ensino (legal ou chato)2, encontramos os seguintes
dados:
• 62%3 dizem achar legal, enquanto 38% dizem ser chato o ensino de LP.
• 62% dizem ser difícil, ao passo em que 38% dizem ser fácil o ensino de LP.
Esses foram talvez os dados mais complicados para serem analisados. A expectativa
inicial nossa era ver números mostrando que os alunos que acham fácil aprender gramática
também acham “legal”, enquanto os que acham difícil achariam também “chato”. Entretanto,
as respostas apuradas mostram o seguinte:
• 30% dos que acham “legal” acham fácil,
• 70% dos que acham legal acham difícil.
• 55% dos que acham “chato” acham fácil.
• 45% dos que acham chato acham difícil.
PERGUNTA 3
2 Os termos ‘chato’ e ‘legal’ foram usados por se tratar de um questionário aplicado a um público jovem, a fim de deixar-lhes mais à vontade ao respondê-lo. 3 Para fins de facilitar a leitura, os números percentuais estão arredondados. Talvez por isso haja, em alguns momentos, desigualdade na soma dos percentuais.
40
A próxima indagação feita aborda a aplicabilidade do que se aprende nas aulas de
gramática. Ao contrário do que se poderia esperar como resultado, a maioria diz que a utiliza
em sua vida social: Observem os dados:
• 52% usa.
• 48% usa pouco.
• nenhum dos 50 disse nunca usar.
Em relação ao gênero, nessa questão, outra situação causa surpresa: os alunos do sexo
masculino responderam em maior número quanto ao uso social da gramática em suas vidas
sociais. Entre os alunos que dizem usá-la, 55% são do sexo masculino, e 45%, feminino. Já
dos que afirmam usar pouco, 43% são do sexo masculino 57% do feminino. Os que usam são
em sua maior parte alunos das redes particular e federal: 78%. Ainda assim, o número dos
alunos da escola estadual que a usam chega a 22%.
PERGUNTA 4
O próximo item a lhes ser perguntado foi, se eles pudessem decidir, se teriam aulas dessa
disciplina. Os números encontrados foram muito positivos para nosso estudo:
• 76% dizem que sim, teriam aulas de gramática.
• 24% não as teriam.
Segregados quanto ao sexo, praticamente um empate. Os que dizem sim em relação às
aulas de gramática são 49% homens e 51% mulheres. E por escolas, uma leve diferença para
as particulares, com 36%, enquanto as públicas estaduais tiveram 32% e as federais 32%
também.
Talvez tenha sido esse o número que mais confirma nossas expectativas, uma vez que
o senso comum aponta para um total desprezo por parte dos alunos em relação ao valor o
aprendizado da NP em sala de aula. Eles, além de a usarem, defendem seu ensino. Acreditam,
portanto, na importância social de dominarem a forma padronizada da língua.
41
PERGUNTA 5
Na sequência, responderam sobre que assuntos lhes causam mais dificuldades no
ensino da LP. Os assuntos apontados como os mais difíceis pelos pesquisados foram, na
ordem, acompanhados da quantidade de alunos que o citaram:
4
4 Nesse item da pesquisa, permitiu-se mais de uma reposta. Por isso, o número de respostas
aqui é maior que o número de alunos pesquisados.
Assuntos Difíceis Número % de alunos
Regências 24
Concordâncias 15
Análise Sintática 7
Conjunções 4
Tipos de orações 4
Transitividade Verbal 5
Pontuação 5
Conjugação de verbos 4
42
PERGUNTA 6
Já as situações onde eles se veem mais estimulados (ou forçados) a usarem a NC são
as seguintes, igualmente acompanhados pela quantidade de citações:
5
Fica, dessa forma, perceptível e irrefutável que, entre as situações nas quais se sentem
mais propensos ao uso da NC da língua, estão aquelas nas quais haverá contato com pessoas
de formação intelectual maior (professores, pessoas cultas e formação superior, juntas
somaram 19 citações). Perdem apenas para apresentações de trabalhos acadêmicos, nas quais,
embora interajam com colegas de mesmo nível, devem rebuscar ao máximo a fala. São
5 Nesse item da pesquisa, permitiu-se mais de uma reposta. Por isso, o número de respostas
aqui é maior que o número de alunos pesquisados
Situações Número % de alunos
Apresentação em público 15
Professores 8
Pessoas cultas 6
Pessoas com formação
superior
5
Pais 4
Redação escolar 4
Diante do diretor 2
Atividades profissionais e
reuniões
2
Cargos superiores 2
Entrevista 2
Pessoas que dominam a
Gramática
2
Pessoas desconhecidas 2
43
exatamente as situações descritas nas quais acreditamos ser útil o uso da língua padrão. O
afrouxamento da exigência por parte da escola do domínio da NP não faria desaparecerem
essas situações em que é preciso dominar a referida norma. Isso apenas faria com que
houvesse menos pessoas prontas e capazes para usá-la e, assim, galgar melhores posições
sociais.
PERGUNTA 7
Quisemos saber ainda sobre o quanto eles veem a língua que usam nas situações
descritas na pergunta 6 distante da que usam com os amigos, por exemplo, no cotidiano.
24% dizem que entre os dois momentos, há um distanciamento muito grande, ao passo
que há um empate entre os que dizem haver mais coisas em comum que diferenças ou então
que são iguais (38% cada uma das respostas).
Foi outro item a causar surpresa. Revela, no entanto, que, ao usarem a NP ou NC, não
estamos vestindo a máscara de um extraterrestre irreconhecível por todos e que apenas
assusta. Reforça, de certa forma, nossa crença a respeito.
Veja o quadro da distribuição quanto ao sexo:
Em % Há um distanciamento muito grande
Há mais coisas em comum que diferenças
É quase igual
Homens 28 36 36
Em % Há um distanciamento muito grande
Há mais coisas em comum que diferenças
É quase igual
Total 24 38 38
Em % Há um distanciamento muito grande
Há mais coisas em comum que diferenças
É quase igual
Mulheres 20 40 40
44
Como pode ser constatado, entre os alunos do sexo masculino, o distanciamento entre
as duas variedades é maior que entre alunas. Consequentemente, as meninas tendem a dizer
mais que os alunos que há semelhanças em maior número que diferenças entre as mesmas
variedades. Esse item traz à baila, outra vez, o mito que dá conta de afirmar que a correção
gramatical é uma característica mais feminina que masculina. Essa temática, apesar de muito
instigante, não cabe nesse tratado.
PERGUNTA 8
A derradeira questão visou a indagar-lhes como se sentiam emocionalmente ao se
verem forçados a usarem uma forma mais rebuscada da língua (sem especificar se Padrão ou
Culta):
34% afirmam sentirem-se à vontade, sem nenhum tipo de mal-estar;
8% acreditam sentir angústia;
24% dizem que se sentem pressionados;
34% sentem-se estimulados.
A essa altura dos questionários, já não nos causaram estranheza tais números. Ao
menos nos campos de pesquisa deste trabalho, não se evidenciou o que muitos tomam como
verdade inconteste. 68% dos alunos se sentem ou estimulados ou à vontade, ao passo que
32% sentem algo negativo (angústia e pressão).
Finalizamos a análise dos questionários aplicados aos alunos com a impressão de que
o ensino atual de LP não está tão no fundo do poço como se supõe, grosso modo. Ao menos,
não na perspectiva dos discentes.
À VONTADE ANGUSTIADO PRESSIONADO ESTIMULADO
34 8 24 34
Nas situações descritas na questão 6, em que utiliza com mais cuidado regras gramaticais, você se sente... (respostas em %)
45
4.2. OS PROFESSORES
PERGUNTA 1
Perguntamos aqui como os alunos desses docentes se portam em suas aulas diante do
assunto gramatical. As respostas com mais citações foram as de caráter positivo (engajados e
atentos, cada uma com três citações). As de caráter negativo (indiferentes e ansiosos pelo
término) foram citadas por duas pessoas cada uma. Os professores do sexo masculino se
dividiram: dois responderam “engajados”, e dois, “indiferentes”. Entre as mulheres, as
respostas foram diversas (um “engajados”, três “atentos” e dois “ansiosos pelo término da
aula”).
PERGUNTA 2
Nesta segunda questão, quisemos saber dos docentes o seu pensamento sobre si
mesmos enquanto ao domínio dos conteúdos trabalhados. O resultado, esperado, mostra que
sete de dez deles se julgam seguros. Apenas um se diz inseguro e dois afirmam estudar muito
antes de ensinar determinados assuntos.
Foram exatamente essas duas primeiras perguntas as que julgamos com respostas mais
difíceis de serem analisadas, pois mexem diretamente com o brio dos professores. A questão
aqui seria sociológica e não linguística, motivo pelo qual não nos atrevemos a entrar no
mérito. A pergunta, retórica, não carece de resposta e sim de reflexão apenas: Quais deles
foram sinceros com o questionário e o são consigo mesmos?
PERGUNTA 3
Neste item, foi-lhes perguntado como agiriam se lhes coubesse alterar o ensino de LP
atual. Dentre os nossos entrevistados, nenhum diz que eliminaria as aulas de gramática (até
porque vivem de ensiná-la). Seis dizem que o manteriam como se encontra; três, que dariam
outra perspectiva; e um, mudaria os conteúdos trabalhados.
O resultado mostra que, apesar do forte lobby da moderna sociolinguista, raivosas
alterações no ensino de LP não seriam bem-vindas. Ao menos não se mostram necessárias,
46
uma vez que a maior parte de nossos docentes está contente com a situação atual. Dos que
responderam que mudariam o conteúdo ou dariam outra perspectiva (quatro, no total), todos
disseram que essa nova perspectiva seria a linguística textual. Não houve espaço para
perguntar-lhes se não acham que isso já vem ocorrendo, ou então, o que fariam com a
gramática normativa.
PERGUNTA 4
Quando questionados sobre se estariam de acordo com o fato de usos populares
tornarem-se padrão, oito professores disseram que estariam de acordo se mudanças sintáticas
(o exemplo citado- vide o apêndice C- tratava de mudanças na regência dos verbos assistir
e namorar) ocorressem nas gramáticas tradicionais. Apenas dois se disseram contra
tais mudanças.
A princípio, enxergamos uma forte discrepância entre essas respostas e as dadas ao
item anterior. No entanto, fazemos a seguinte leitura: os docentes, apesar de se dizerem
satisfeitos com o atual modelo de ensino, bem como seguros do conteúdo trabalhado, não se
fecham a possíveis mudanças na gramática, por vislumbrarem nisso, segundo alguns
comentários colhidos, um afago na população que hoje não se vê como usuária da língua
culta. Seria como uma forma de acolher essa gente que faz a língua ser viva e reconhecer sua
importância para o processo.
PERGUNTA 5
Por fim, perguntamos que alterações fariam, se o pudessem, nas regras gramaticais
vigentes. Dos dez, cinco escreveram que não alterariam, apenas acrescentariam as regras que
já são de uso comum pelos usuários da língua, sem, no entanto, tirar das regras o que já está
consolidado. Por coincidência(?), todos esses cinco haviam respondido antes que estão
satisfeitos com a situação do ensino de línguas atual.
Dos quatro que haviam, antes, respondido que procederiam a alterações na perspectiva
do ensino, direcionando-o ao texto, todos citaram a “regência” como algo que alterariam na
gramática. Três também citaram a “concordância” e a “crase”. Dois ainda falaram em
47
“pontuação” e outros dois em “acentuação” de modo geral. Um citou ainda a questão da
“análise sintática das orações”.
Reparamos aí grande convergência, apesar do baixo número de entrevistas, com as
respostas dadas pelos alunos em item semelhante a este.
48
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentando ao máximo fugir de um juízo de valor político, faz-se necessário comentar
algo que, de tão repetido, transformou-se em um lugar-comum. Um chavão. Sem dar
importância à regra que aconselha evitá-los, vemo-nos em uma situação bem propícia a
afirmar: no mundo capitalista, globalizado e competitivo que ora nos cerca, no qual vale a
regra de “os mais adaptados sobrevivem”, soa extremamente desonesto, embora politicamente
interessante e correto, que argumentos bem embasados linguisticamente sejam usados por
autores para desestimular a juventude (maior alvo dos escritos sociolinguistas, como por
exemplo as novelas sociolinguistas de Marcos Bagno) a uma adequação às normas vigentes,
exigidas em vestibulares, concursos públicos e mais: na linguagem formal, com a qual essas
pessoas terão de lidar em boa parte de suas vidas profissional e pessoal. É claro que os
argumentos desses jamais aparecerão como desestímulo, e sim como respeito às diferenças.
Percebemos, através dos questionários aplicados, que a maioria dos próprios docentes
não cedem a esse lobby sociolinguítisco, e seguem sem suas aulas com o seu modus operandi
tradicional, mesmo após tantos anos, até mesmo décadas, de bombardeio ideológico que
manda transformar aulas de língua em aulas de linguística.
Os defensores da gramática normativa reconhecem e aplaudem os feitos da linguística,
sem, no entanto, reconhecer-lhe, como bem diz Lyons (apud BECHARA, 2006, p. 58) o papel
de pelourinho da gramática tradicional, ainda mais quando, após as críticas, fica o vazio sem
apresentação de nada que a suceda de modo profícuo. Há convergência nossa com o
pensamento do escritor quando aponta a gramática normativa e sua abordagem tradicional
como sendo “pelo menos tão boa quanto qualquer outra alternativa (sic) que tenha sido até
agora apresentada”. Lyons (apud BECHARA, [op. Cit.] p. 58)
Adaptação, nas ocasiões propícias, às normas vigentes. É isso que pensamos dever ser
oportunizado às classes em se tratando de norma culta. As variedades não padrão já estão por
aí. Correm campos, ganham as ruas, os livros, a TV, as músicas... Pensemos, pois, nos textos
mais exigentes: monografias, artigos, reportagens e tantos outros gêneros, inclusive os orais,
que exigem tais conhecimentos.
A afirmação de que os sociolinguistas visam a por fim no ensino de gramática
normativa em sala de aula é combatida com outra, tão falsa quanto: os defensores da GN não
49
aceitam em hipótese alguma o uso de variedades que não sejam a norma padrão ou a norma
culta. Concordamos com as palavras de Bechara:
Hoje, por um exagero de interpretação de “liberdade” e por um equívoco em supor que uma língua ou uma modalidade é “imposta” ao homem, chega-se ao abuso inverso de repudiar qualquer outra língua funcional, que não seja aquela coloquial, de uso espontâneo na comunicação cotidiana. Em ambas as atitudes há realmente opressão, na medida em que não se dá ao falante a liberdade de escolher, para cada ocasião do intercambio social, a modalidade que melhor sirva à mensagem, ao seu discurso. (2006, p. 14)
Claro está que o uso popular acomoda muito bem todas elas, cada qual em seu espaço
adequado. Evidente, para nós, também está que, no espaço acadêmico, a mais avalizada e
merecedora (seja do ponto de vista cultural, social ou mesmo linguístico) de ser estudada,
aprofundada e principalmente usada, é a variedade padrão da língua. Permitir que mudemos a
variedade padrão (haverá sempre uma que se faça necessário para “padronizar” um texto ou
modelo de comunicação) ao bel-prazer dos que se julgam capacitados para determinar que
variedade deve ser padronizada é assinar procuração para que moldem a nossa língua. É
reconhecer-lhes o direito de nos imporem, apenas por capricho, novos modelos a serem
seguidos, ou, pior, modelo nenhum a ser seguido
Acreditando que não se deva inverter o preconceito existente contra falantes de
normas desprestigiadas da língua, passando a desmerecer aqueles falantes adeptos de uma
forma mais padronizada (na acepção cronológica e sociológica do termo), podemos concluir
com esse trabalho que: sim, é possível, lógico e recomendável convivermos com grupos
sociais adeptos de variantes diversas entre as quais uma mais padronizada (via de regra,
utilizada em contextos bem especificados) e que deve ser objetivo do ensino de Gramática em
sala de aula. Mais que isso: tal ensino não deve ser combatido nem mesmo secundarizado, e
sim incentivado como instrumento de ascensão, portanto, permitido a todos quantos se
oportunizem.
Acreditamos que cabe aos professores a tarefa de levar além as atividades de leitura,
interpretação e produção de textos, passando a estimular seus alunos a desvendar as teias que
compõem o texto, seus pressupostos, subentendidos, intenções, contexto de enunciação, etc.
Cremos, ainda, que para que esses objetivos sejam plenamente alcançados, o ensino de
gramática normativa surge como instrumento imprescindível, eficaz e aceito pela
comunidade, conforme aferimos nos questionários.
50
Os questionários aplicados ajudaram a mostrar que o abismo no processo de ensino-
aprendizagem sugerido parece não ser tão profundo, ou ao menos não tão difícil de ser
sanado. Percebemos ainda que parte considerável do público envolvido no processo ensino-
aprendizagem (discentes e docentes) não percebe toda essa crise alardeada pela
sociolinguística, tampouco vislumbra uma mudança no trato com a gramática tradicional e
suas relações com a sala de aula.
Ao iniciarmos esse trabalho monográfico, objetivávamos justamente contrapor
argumentos contrários (de um lado os sociolinguistas, do outro os gramáticos, e entre eles, os
filósofos), para, então, embasados teoricamente, e com o suporte das opiniões de professores e
alunos, posicionarmo-nos, hoje, ao lado dos que defendem o ensino da gramática normativa
como algo extremamente válido, útil, importante e eficaz, o que não implica dizer que não
possa passar por um processo de adequação (seja tecnológica, social, ou mesmo atualização
de seu léxico ou sua sintaxe). Afinal, se o mundo muda, porque não o faria o ensino? Mas isso
desde que não perca a sua essência, qual seja a de padronizar a língua, oferecer um suporte
aos falantes e oportunizar os falantes da língua a terem uma comunicação estabelecida de
forma eficaz e, sobretudo, una.
Assim como nas demais áreas do saber, a gramática tem um valor formativo inclusive
maior que o normativo. Que não seja descartado, pois. Nem pelos discentes, menos ainda
pelos docentes. Bechara (op. cit.) traz, muito adequadamente, o debate sobre a frouxidão em
termos de domínio da norma culta por parte inclusive dos professores de língua: “Professor de
português, ensinando a desacreditar os padrões da língua escrita e culta, acabaram eles
mesmos por desconhecer esses padrões.” (2006, p. 60). A afirmação, aliás, serve aos dois
senhores: os professores desconhecem os padrões por frouxidão ou por tamanha inoperância e
funcionalidade dos referidos padrões? Excelente discussão que pode e deve pautar futuros
trabalhos.
51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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______, Marcos. A Língua de Eulália. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2001.
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52
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PERINI, Mário A. A língua do Brasil amanhã e outros mistérios. São Paulo: Parábola, 2004.
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TRAVAGLIA, L. Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2002
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APÊNDICES
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APÊNDICE A- DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS ENTREVISTADOS
DISCENTES: SEXO x NÍVEL DE ENSINO
DISCENTES: SEXO x INSTITUIÇÃO
DISCENTES: NÍVEL DE ENSINO x INSTITUIÇÃO
Até 2° médio Acima do 2° médio TOTAL Masculino 15 10 25 Feminino 10 15 25
TOTAL 25 25 50
Particular Pública estadual Pública federal TOTAL Masculino 10 8 7 25 Feminino 5 7 13 25
TOTAL 15 15 20 50
Particular Pública estadual Pública federal TOTAL Até 2° médio 8 8 9 25
Acima do 2° médio 7 7 11 25 TOTAL 15 15 20 50
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APÊNDICE B- ENTREVISTA ALUNOS E RESPOSTAS EM NÚMEROS
Instituição: Série/semestre: Idade: Sexo:
1. Você gosta das aulas de Gramática na sua Instituição? ( 18 ) SIM ( 25 )POUCO ( 7)NÃO
2. Para você, aprender o conteúdo das aulas de Gramática é...(marque duas opções)
(31)LEGAL (19) CHATO (19)FÁCIL (31)DIFÍCIL LEGAL E FÁCIL: 9 PESSOAS LEGAL E DIFÍCIL: 21PESSOAS CHATO E FÁCIL: 11 PESSOAS CHATO E DIFÍCIL: 9 PESSOAS
3. Você usa na sua vida social (ou profissional) o que aprende nas aulas de gramática? (26) SIM (24 )POUCO ( )NÃO
• 17 homens SIM 8homens POUCO • 9 mulheres SIM 16 mulheres POUCO
4. Se dependesse de você, haveria aulas de Gramática?
(38) SIM (12 )NÃO
5. Que assuntos de Gramática você tem mais dificuldades? Regências- 24 Concordâncias-15 Análise Sintática- 7 Conjunções- 4 Tipos de orações- 4 TV- 5 Pontuação- 5 Conjugação de verbos- 4
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6. Em que situações sua fala tem mais preocupação com regras gramaticais?
Diante do diretor- 2 Pessoas cultas- 6 Pais-4 Pessoas com formação superior-5 Professores-8 Atividades profissionais e reuniões-2 Cargos superiores-2 Entrevista-2 Apresentação em público (trabalho escolar, seminários)-15 Pessoas que dominam a Gramática-2 Redação escolar-4 Pessoas desconhecidas-2
7. Comparando o modo como você usa a gramática na(s) situação(ões) acima citadas com o
modo como conversa com os amigos, você diria que... (12) HÁ UM DISTANCIAMENTO MUITO GRANDE (19) HÁ MAIS COISAS EM COMUM QUE DIFERENÇAS (19) É QUASE IGUAL
8. Nas situações descritas na questão 6, em que utiliza com mais cuidado regras gramaticais, você se sente... (17) À VONTADE (4) ANGUSTIADO (12) PRESSIONADO (17) ESTIMULADO
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APÊNDICE C- ENTREVISTA PROFESSORES E RESPOSTAS EM NÚMEROS
Função:_________________________________ Idade:__________________________________ Escolaridade:____________________________ 1- Em relação aos conteúdos de suas aulas de Gramática, seus alunos portam-se...
(2)INDIFERENTES (3) ATENTOS (3) ENGAJADOS (2) ANSIOSOS PELO FIM DA AULA
2- Você se julga, em relação ao conteúdo gramatical que ensina... (7) SEGURO (1) INSEGURO (2) ESTUDO BASTANTE ANTES DE REPASSAR O CONTEÚDO 3- Se dependesse de você, as aulas de gramática... ( ) SERIAM EXTINTAS (6) PERMANECERIAM COMO ESTÃO (1) MUDARIAM O CONTEÚDO (3) TERIAM OUTRA PERSPECTIVA DE ABORDAGEM Em caso de marcar a última alternativa, qual seria a perspectiva? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 4- Você estaria de acordo se por acaso mudassem as regras gramaticais fazendo com que construções populares passassem a ser consideradas padõres (como por exemplo, “assistir o jogo” ou “namorar com alguém”)? ( ) SIM ( ) NÃO 5- Se coubesse a você mudar regras da Gramática Portuguesa, em quais delas você mexeria? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________
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ANEXOS
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ANEXO A- SAMBA DO ARNESTO
Samba do Arnesto- Adoniran Barbosa
O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás Nós fumos não encontremos ninguém Nós voltermos com uma baita de uma reiva Da outra vez nós num vai mais Nós não semos tatu! No outro dia encontremo com o Arnesto Que pediu desculpas mais nós não aceitemos Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa Mas você devia ter ponhado um recado na porta Um recado assim ói: "Ói, turma, num deu pra esperá Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância, Assinado em cruz porque não sei escrever"
Disponível em http://letras.terra.com.br/adoniran-barbosa/43968/
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ANEXO B- AOS POETAS CLÁSSICOS- PATATIVA DO ASSARÉ
Poetas niversitário, Poetas de Cademia, De rico vocabularo Cheio de mitologia; Se a gente canta o que pensa, Eu quero pedir licença, Pois mesmo sem português Neste livrinho apresento O prazê e o sofrimento De um poeta camponês. Eu nasci aqui no mato, Vivi sempre a trabaiá, Neste meu pobre recato, Eu não pude estudá No verdô de minha idade, Só tive a felicidad De dá um pequeno insaio In dois livro do iscritô, O famoso professô Filisberto de Carvaio. No premêro livro havia Belas figuras na capa, E no começo se lia: A pá — O dedo do Papa, Papa, pia, dedo, dado, Pua, o pote de melado, Dá-me o dado, a fera é má E tantas coisa bonita, Qui o meu coração parpita Quando eu pego a rescordá.
61
ANEXO C- VESTIBULAR UFPE- 2001- PORTUGUÊS 2
A linguística se ocupa de muitos aspectos da linguagem e de seu uso; um aspecto do uso da
linguagem de que a linguística não se ocupa é a distinção entre o “certo” e o “errado” na
língua.
O ensino do português muitas vezes difunde a crença de que existe uma maneira
“certa” de usar a língua, e que essa é a única maneira aceitável; todas as outras são “erradas”,
devem ser evitadas. Isso é reforçado por colunas em jornais, gramáticas escolares, livros de
“não erre mais” e a pressão social de todo momento. Essa atitude, com suas perniciosas
consequências, tem sido objeto de crítica por parte de linguistas e professores, mas continua
muito presente na escola e na vida.
Não há a menor base linguística para a distinção entre “certo” e “errado” – o linguista
se interessa pela língua como ela é, e não como ela deveria ser. Imaginese um historiador que
descobre que determinado povo antigo praticava sacrifícios humanos. Ele, pessoalmente, pode
desaprovar esse costume, mas nem por isso tem o direito de afirmar que os sacrifícios não
ocorriam – um fato é um fato, e precisa ser respeitado. No entanto, quantas vezes não nos
dizem que a palavra chipanzé “não existe” (porque o “certo” seria chimpanzé)? Dizer isso é
desrespeitar o fato de que milhões de pessoas dizem chipanzé.
Um linguista parte sempre dos fatos, e a cada passo verifica suas teorias em confronto
com eles: se muitos falantes dizem chipanzé, então ele precisa registrar esse fato, e levá-lo em
conta em sua descrição e teorização. E se todo mundo diz me dá ele aí, essa é uma estrutura
legítima da língua falada do Brasil, e precisa figurar na descrição.
A oposição entre “certo” e “errado” muitas vezes corresponde, no fundo, à oposição –
essa, sim, legítima – entre língua falada e língua escrita. É fato (e, portanto, temos que
respeitar) que a gente não escreve como fala. E se é um fato, deve figurar em algum ponto de
uma gramática completa da língua. Mas se é errado escrever me dá ele aí em uma carta
formal de pedido de emprego, é igualmente errado sentar na mesa do bar e dizer dê-me esse
copo. Cada variedade da língua é apropriada em seu contexto próprio, e os falantes sabem isso
muito bem, tanto é que empregam com toda a segurança a variedade adequada à situação do
momento: ninguém fala como escreve, e ninguém escreve como fala. Isso, já que é um fato,
merece ser descrito e eventualmente ensinado. Mas note-se a diferença: não se trata de dizer
que me dá ele aí é “errado”, mas que é uma forma coloquial, usada na fala. Diga-se, de
62
passagem, que as formas faladas são usadas em uma variedade muito maior de situações, em
ocasiões muito mais numerosas, por um número muito maior de falantes do que as formas
escritas. Assim, elas são as representantes mais genuínas da língua do Brasil. [...]
Diz-se, às vezes, que os linguistas são permissivistas para quem “tudo vale, desde que
haja comunicação.” Não é verdade. Por exemplo, praticamente ninguém questiona a
conveniência de se ensinar o uso do português padrão escrito, desde que limitado aos
contextos em que ele é socialmente aceito. O português padrão é, queiramos ou não, a nossa
língua erudita, e, no que pese seu caráter exclusivamente escrito, está aí para ficar. O que se
defende é o respeito aos fatos: a língua falada também existe e constitui um objeto de estudo
interessante e importante.
Um linguista, portanto, não deve fazer julgamentos de valor a respeito de seu objeto de
estudo –para ele, qualquer variedade da língua tem interesse, desde que realmente exista e
seja usada (ou tenha sido usada) por uma comunidade. Uma pessoa que não consegue se
libertar da sensação de que certas formas da língua são “feias”, “erradas” ou de alguma
maneira desagradáveis deveria procurar outra profissão que não a de linguista ou professor de
línguas.
(PERINI, Mário A. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento
gramatical. São Paulo: Parábola, 2006, p.21-23. Adaptado.)
63
ANEXO D- NÓS MUDEMO-
Por Fidêncio Bogo
O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional. Era
abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar
defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, toda poesia e misticismo.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão
daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um
episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem
enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e
trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes
heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda. Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá?
-Tá, fessora!
'No recreio, as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo!
No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola!
- Oxente! Módi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da mininada!
Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem
na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no
diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço.
Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia
anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
64
- É, professora, meu fio não aguentou as gozação da mininada. Eu tentei fazê ele continua,
mas não teve jeito. Ele tava chatiado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda
côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos
de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando
alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro,
com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de
sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo”, lembra?
Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro, Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu ? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu . Comi o pão que o
diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia fria, um "gato" me
arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo,
passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já
fui para. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu
não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo
que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada comecei
a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que
restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência.
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- O rapaz afastou-me de si suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa.
Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para
mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da
guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos,
mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Super usada, mal usada, abusada, ela é uma
guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a
criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas- e se torna o terror dos alunos. Em vez de
estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas
estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas
de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está
errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa
sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu ! Você não seja você! Renegue suas raízes!
Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!"
E siga desarmado para o matadouro.