ensinar brincando não é brincar de ensinar

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP PAULO NUNES DE ALMEIDA LÍNGUA PORTUGUESA E LUDICIDADE: ENSINAR BRINCANDO NÃO É BRINCAR DE ENSINAR. MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2007 1

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Ensinar Brincando Não é Brincar de Ensinar

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP

    PAULO NUNES DE ALMEIDA

    LNGUA PORTUGUESA E LUDICIDADE: ENSINAR BRINCANDO NO

    BRINCAR DE ENSINAR.

    MESTRADO EM LNGUA PORTUGUESA

    SO PAULO

    2007

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP

    PAULO NUNES DE ALMEIDA

    LNGUA PORTUGUESA E LUDICIDADE: ENSINAR BRINCANDO NO

    BRINCAR DE ENSINAR.

    MESTRADO EM LNGUA PORTUGUESA

    Dissertao apresentada comisso examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de mestre em Lngua Portuguesa, sob a orientao do Professor Doutor Luiz Antonio Ferreira.

    So Paulo

    2007

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  • BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________ Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira

    _______________________________________________ Prof. Dr. Joo Hilton Sayeg de Siqueira

    _______________________________________________ Prof Dra. Dina Maria Ferreira

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  • Agradecimentos

    Tenho conscincia de que, no relato de minhas observaes, pesquisa e experincias englobadas neste trabalho, no estive s. Foram muitos os que estiveram comigo nesta caminhada. Citar, aqui, todos que contriburam para este percurso que aqui se encerra, seria tarefa que tomaria muitas e muitas pginas. Relembro, ento, os principais protagonistas:

    O professor Dr. Luiz Antonio Ferreira, muito mais do que um orientador, um amigo e companheiro que soube ensinar-me a retrica da vida, a arte de viver bem,

    os professores doutores Joo Hilton Sayeg de Siqueira e Dina Maria Ferreira que, quando da qualificao, apontaram novas diretrizes e forneceram dados importantes para a consolidao deste trabalho,

    os autores das obras consultadas, pela grandiosidade de seus trabalhos e conhecimentos neles expressos e pela certeza de que no estou s,

    os professores e diretores do Colgio Ldico de Conchas, por transporem para a prtica aquilo que refleti e constru,

    o professor Silvio Luis da Silva, pelas discusses e idias a respeito deste trabalho,

    a secretria Maria ngela Serafim Alves, pela pacincia e dedicao na digitao e compreenso de meus manuscritos, e

    a minha famlia, a esposa, Valria, e os filhos, Dante Conrado, Dante Vicenzo, Alexandre e Paula, pelo prazer de ter ao meu lado uma verdadeira escola de vida.

    Por fim, devo dizer que, possvel que, entre ns, existam dvidas na forma de avaliar e interpretar as palavras, mas qualquer que seja o raciocnio e a interpretao, obrigado. Obrigado por tudo e por todos.

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  • Deixaste rolar uma lgrima pela minha vida,

    Deixarei tombar minha vida pela tua lgrima.

    Nivo de Camargo

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  • RESUMO

    O presente trabalho apresenta um panorama do uso de atividades ldicas no ensino e aprendizagem de Lngua Portuguesa e enfatiza o uso de jogos e brincadeiras na escola, com o intuito de aumentar o conhecimento das crianas acerca de sua lngua-me e de seus papis no seio da sociedade em que vivem. Para tanto, apresenta as origens da palavra ldico e seu uso na educao e, em seguida, fornece informaes acerca das fases de desenvolvimento das crianas, segundo a teoria piagetiana. Apresenta, tambm, algumas atividades ldicas que podem ser utilizadas na escola para facilitar o ensino de Lngua Portuguesa, de forma que a criana apreenda os contedos escolares relativos aprendizagem da lngua portugus e se sintam motivadas durante o processo de aprendizagem. Como ferramenta terica, abarca, sobretudo, os estudos de Brougre (2002), Brunner (1974, 1977, 1986 e 2001), Chateau (1987), Freire (1977, 1983 e 1989), Piaget (1973 e 1990), Piaget & Inhelder (1974 e 1968), Snyders (1974, 1988 e 1993), Vygotsky (1987, 2000 e 2001).

    Palavras chave: Educao Ldica, Ensino de Lngua Portuguesa, processo de desenvolvimento cognitivo.

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  • ABSTRACT

    This study presents a panorama of the use of ludic activities in the Portuguese language teaching and learning and emphasizes the use of games and plays at school in order to improve childrens knowledge about their mother tongue and their roles in society. In order to achieve its goals, it presents the origins of the word ludic, its historical aspects and the Process of Cognitive Development formulated by Piaget. It also presents some ludic activities to be used at school to facilitate the Portuguese language teaching in a way children effectively learn school subjects and feel comfortable and motivated to learn. As a theoretical feature, this study is based on de Brougre (2002), Brunner (1974, 1977, 1986 and 2001), Chateau (1987), Freire (1977, 1983 and 1989), Piaget (1973 and 1990), Piaget & Inhelder (1974 and 1968), Snyders (1974, 1988 and 1993), Vygotsky (1987, 2000 and 2001).

    Key words: Ludic Teaching, Portuguese Teaching, Process of Cognitive Development.

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  • SUMRIO Uma vida de srias brincadeiras ....................................................................................................... 9 1: Ludicidade, vivncia e responsabilidade..................................................................................... 15

    1.1: Ldico em seu sentido etimolgico ....................................................................................................15

    1.2: Ldico em ao. .................................................................................................................................19

    1.3: Concretude ldica: o jogo, a brincadeira e o brinquedo. .....................................................................22

    1.4: Ldico e comportamento humano: zonas fronteirias. .......................................................................32

    1.5: Jogos e brincadeiras: seriedade e responsabilidade. .........................................................................36

    1.6: Educao ldica. ................................................................................................................................45

    2. Ludicidade e desenvolvimento lingstico: estmulos cotidianos. ............................................... 58 2.1: Por que Piaget? ..................................................................................................................................59

    2.2: Fase pr-verbal ou sensrio-morota (0 2 anos): Semente a ser regada.............................................61

    2.3: Fase verbal I (2 4/5 anos): A oralidade brota no horizonte. ...............................................................66

    2.4: Fase verbal II (5/6 7/10 anos): Dos brotos da oralidade s folhas da escrita. ....................................73

    2.5: Fase verbal III ( 11/12 anos em diante): Razes do conhecimento sustentvel. ....................................80

    3 Ludicidade e ensino de Lngua Portuguesa: Confluncias prticas........................................... 89 3.1 Atividades para o desenvolvimento da oralidade: .............................................................................90

    3.2 - Atividades para auxiliar no processo de alfabetizao:......................................................................94

    3.3 Atividades para o desenvolvimento da leitura: ..................................................................................99

    3.4 Atividades para o desenvolvimento da escrita:..................................................................................101

    3.5 Atividades gerais para o desenvolvimento da comunicao e expresso em Lngua Portuguesa: ..110

    Aprender no brincadeira. Ou ? ............................................................................................... 117 Bibliografia ................................................................................................................................... 126

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  • Paulo Nunes de Almeida Lngua Portuguesa e Ludicidade: ensinar brincando no brincar de ensinar

    Introduo: Uma vida de srias brincadeiras _________________________

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    Uma vida de srias brincadeiras

    Quando estamos acordados temos um mundo coletivo, sonhando, no entanto, cada um se depara com o seu prprio.

    Aristteles

    Brincadeira, jogo e brinquedo so termos estreitamente relacionados com o que concebemos, nos espaos escolares, como ldico. neste meio, o escolar, que as indagaes acerca das possibilidades de uso do ldico como metodologia aliada construo do conhecimento aflora, inclusive e, em nosso caso, principalmente no que tange ao ensino e aprendizagem da lngua materna, ou seja, a Lngua Portuguesa.

    As diversas reas do conhecimento como a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Psicanlise, a Lingstica e a Pedagogia j se ocuparam do ldico e dele extraram significados distintos reflexo das vises da seara de cada uma destas reas, evidentemente - e, destes significados, partiram para defender posies especficas quanto utilidade da ludicidade para a vida prtica.

    chegada a vez da Educao, principalmente dos professores de alfabetizao e de lngua portuguesa, ento, dar sua nfase ao aspecto ldico presente nas aulas e na construo do conhecimento lingstico. Por isso, neste trabalho, caracterizamos diferentes conceitos e interpretaes possveis para o termo ldico e averiguamos sua aplicabilidade no mbito escolar como ferramenta metodolgica a proporcionar conhecimento aos alunos e, por conseguinte, fomentar a qualidade do ensino de nvel fundamental, com destaque para preocupaes com o ensino de Lngua Portuguesa, lngua me, e, portanto o veculo

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    Introduo: Uma vida de srias brincadeiras ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

    e instrumento mediador de comunicao, informao e de construo de conhecimentos. A Lngua Portuguesa, alm de ferramenta estimuladora de tenses para novas motivaes, torna-se, neste estudo, objeto fundamental interpretao do ldico e conscientizao de seu uso no processo de ensino e aprendizagem.

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    Este trabalho d continuidade s pesquisas motivadas pelas minhas inquietaes de pesquisador, cujos questionamentos e trabalho quanto utilizao do ldico e a sua aplicabilidade na vida prtica escolar no recente.

    Depois de passar pelos cursos de Letras e Pedagogia, nos idos da dcada de 70, passei a me dedicar ao ensino nas escolas pblicas estaduais. Foram 13 anos de sala de aula, dedicados ao ensino de Lngua Portuguesa, em contato direto com as crianas e suas preocupaes, dificuldades, facilidades, saberes, no-saberes, sorrisos e lgrimas.

    Neste perodo, consegui me aproximar mais das questes educacionais e voltar meu olhar para a necessidade de se prover os professores e alunos com ferramentas educacionais que contribussem para tornar a escola um espao no apenas de aprendizagem, mas de aprendizagem e/com prazer.

    Segui, ento, os caminhos do Estado. Fui coordenador, diretor de escola e tcnico de ensino da Secretaria da Educao do Estado de So Paulo. Paralelamente, consultorias pedaggicas cruzaram meu caminho e acentuaram minha preocupao com a necessidade de se formar cidados conscientes j nos anos iniciais. A Lngua Portuguesa, ao meu ver, seria a via de acesso mais profcua para se alcanar este intento. Apaixonar-se por ela, seria, ento o veculo para percorrer o trajeto. Como faz-lo sem massificar ou militarizar o ensino? Trazer o aspecto ldico escola e sala de aula foi minha resposta.

    O ldico, ento, passou a ser parte intrnseca das minhas preocupaes pedaggicas. certo que j o fora desde os primeiros anos em que me dediquei sala de aula, efetivamente lidando com os percalos do ensinar e aprender; mas os

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    Introduo: Uma vida de srias brincadeiras ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

    questionamentos so, sempre, muitos e, por isso, justificam esse trabalho de investigao e de criao de propostas.

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    Os anos de experincia me levaram formatao de uma srie de livros dedicados ao ensino de Lngua Portuguesa nas sries iniciais e elaborao e adoo do Mtodo Ldico de Alfabetizao, cuja acepo traduzia-se no princpio de que se aprende a ler e a escrever com muito mais significao se h prazer, se h liberdade e se h desafios.

    Desafio foi o que me levou fundao do Colgio Ldico de Conchas, onde pude por em prtica o que sempre pregara. J o nome do colgio denota a preocupao com o que se cr como essncia.

    No bastou, porm, ver os frutos de meu trabalho - realizado com a ajuda de muitos colegas educadores, evidentemente consolidado com a aceitao dos livros que publiquei e a boa aceitao do Colgio Ldico de Conchas. O tempo trouxe-me s portas do mestrado e, como era de se esperar, no poderia tratar de outra coisa que no a insero do ldico na prtica pedaggica do ensino de Lngua Portuguesa e da importncia de se aprofundar os conhecimentos sobre os efeitos dessa metodologia na aprendizagem.

    Cheguei, assim, proposta deste trabalho: tecer uma reflexo sobre os aspectos conceituais, interpretativos e psicolingsticos do ldico para, se aceito e aprovado, permitir ao professor maior segurana terica para a aplicao dos jogos e brincadeiras em sala de aula o ldico, portanto e, concomitantemente, esclarecer o seu potencial de contribuio para o ensino e aprendizagem de lngua portuguesa. certo que, mesmo como uma reflexo inicial, a envergadura da proposta grande. Tratei, ento, de estabelecer objetivos mais especficos para que a empreitada se concretizasse.

    Desta forma, este trabalho enfoca, primordialmente, o ensino de Lngua Portuguesa nas sries iniciais, embora no possamos deixar de mencionar que o recorte aqui proposto , tambm, feito com o intuito de mostrar a validade pedaggica do ldico como fator essencial ao processo de construo das linguagens pr-verbal e verbal

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    associadas s habilidades integrais do ser - sejam elas fsico-motoras, cognitivas, afetivas, sociais e, at mesmo, ticas - que o englobam. Insistimos nessa viso global do ser porque entendemos que a lngua, como instrumento mediador e de interao humana, no se apresenta apenas como um ato de fala e/ou de escrita, mas se realiza impregnada de valores e princpios multidisciplinares tal como prega a moderna teoria do discurso.

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    Para isso, apresenta informaes e interpretaes de autores e especialistas de diferentes reas do conhecimento que, de certa forma, tocam na questo ldica como ferramenta pedaggica ou fomentam a literatura com suas pesquisas e contribuies para a evoluo do ensino. Dentre elas, mencionamos, principalmente, as discusses oriundas dos trabalhos de Huizinga (2001), Brougre (2002), Groos (1986), Piaget (1973) e (1990), Freinet (1960), Vigotsky (2000), Kischimoto (2002), Venncio (2005), Freire (1985) e Ferreiro (1986), as quais so associadas s observaes deste pesquisador na sua experincia como autor de livros didticos, pesquisador, professor e coordenador de um Colgio, cuja proposta pedaggica abarca o ldico como pea fundamental de sua engrenagem.

    Evidentemente no se furta, aqui, de se perceber que a questo extremamente complexa e aberta, alm de ser essencialmente multidisciplinar, ou de se reconhecer a parca existncia de posies exatas e definidas na literatura pertinente sobre conceitos imbricados ao que seja ldico.

    A preocupao deste trabalho no , portanto, de explorar todo o vasto conhecimento existente sobre os diferentes enfoques do ldico, mas oferecer uma investigao dos aspectos relevantes para a sua aplicao em sala de aula e, tambm, as origens de sua utilizao e validao como instrumento educacional importante para a prtica de Lngua Portuguesa.

    Assim, o primeiro captulo traz uma discusso acerca dos conceitos e interpretaes do ldico e versa sobre a etimologia das palavras a ele relacionadas nas

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    diversas culturas, a fim de fornecer esclarecimentos histricos de sua vida na pedagogia e na sociedade. Servem-nos de subsdios tericos, principalmente, Vygostky (2000), Wallon (1965), Huizinga (2001) Fernandes (1991), Ferreiro (1986), Piaget (1973 e 1990) Gross (1986), Buytendjik (1986).

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    O segundo captulo se volta, ento, s questes do desenvolvimento da criana, especialmente fomentado pelos estudos de Piaget (1973 e 1990) e Vigotsky (2000), em que se estabelece uma similaridade direta entre linguagem e pensamento. neste captulo que se encontram os diversos estgios (ou fases) do desenvolvimento da criana e a contribuio das brincadeiras, jogos e brinquedos para uma percepo do universo a sua volta, e as conseqentes alteraes de comportamento pr-verbal, num primeiro momento, e das aes verbais, num momento posterior.

    O terceiro captulo se centra no ensino de Lngua Portuguesa, especialmente nas sries iniciais do ensino fundamental, para promover uma reflexo a respeito da importncia do prazer em aprender. O ldico tomado por base para ilustrar diversas atividades que, alm de promover o aprendizado dos contedos escolares, fomentam a capacidade do aluno em sentir prazer nas atividades da escola. Revela, ainda, aspectos importantes do ldico no desenvolvimento cognitivo em geral e do portugus, em especial.

    Por fim, discutimos, na concluso, a respeito do ensino e da aprendizagem por intermdio de atividades ldicas e questionamos o papel do professor e da escola como elementos formadores de opinio e de comportamentos. Especialmente fazemos um apanhado das reflexes positivas da insero dos jogos, das brincadeiras e dos brinquedos nas escolas, a fim de suscitar o interesse em criar uma nova escola, uma escola na qual o aprender , acima tambm, prazer, posto que o conhecimento a ser transmitido pela escola deve ser permeado pela competncia dos professores em criar no aluno a capacidade de querer saber. O que se dar muito mais facilmente se o ldico se fizer presente.

  • Paulo Nunes de Almeida Lngua Portuguesa e Ludicidade: ensinar brincando no brincar de ensinar

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    aqui, tambm, que revisitamos os aspectos discutidos, com o intuito de retomar pontos relevantes para a compreenso de nossa proposio que, de antemo, declaramos uma porta entreaberta. Porta esta que no pretendemos fechar. Ao contrrio, intentamos abri-la ainda mais, para que mais e mais pessoas se voltem para os aspectos ldicos do desenvolvimento humano especialmente na seara da educao e do ensino de Lngua Portuguesa e entrem porta adentro para participar desta discusso que este trabalho, singelamente, pretende dar continuidade.

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  • Paulo Nunes de Almeida Lngua Portuguesa e Ludicidade: ensinar brincando no brincar de ensinar

    Ludicidade, vivncia e responsabilidade _________________________

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    1: Ludicidade, vivncia e responsabilidade.

    Quando vivemos a autenticidade exigida pela prtica

    de ensinar-aprender participamos de uma experincia total, diretiva, poltica, ideolgica, gnosiolgica, pedaggica,

    esttica, e tica, em que a boniteza deve achar-se de mos dadas com a decncia e a seriedade.

    Paulo Freire

    Convencionou-se pensar o ldico com necessidade, direito e privilgio exclusivo das crianas e, freqentemente, o termo associado ao prazer e satisfao gratuitos. Porm, em estudos mais recentes, constata-se a sua importncia para o desenvolvimento do ser humano, inclusive de suas responsabilidades perante a sociedade.

    Assim, para entendermos as relaes do ldico com a construo do conhecimento e com a formao de uma sociedade na qual o prazer seja mais presente, mesmo em atividades obrigatrias, impostas, vamos entender como o termo se aplica, tambm, aos adultos.

    1.1: Ldico em seu sentido etimolgico No mbito etimolgico, primeira vista, encontramos uma semelhana de sentido

    entre os termos ldico, jogo, brincadeira e brinquedo. Cada um dos termos usado e compreendido de uma maneira irrestrita, que faz lembrar divertimentos e aes relacionadas ao mundo infantil. Mesmo no dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa (2001), esta abrangncia, esta generalizao dos termos se faz presente:

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    Ludicidade, vivncia e responsabilidade ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

    Ldico relativo a jogo, a brinquedo que visa mais ao divertimento do que qualquer outro objetivo. Que se faz por gosto, sem outro objetivo que o prprio prazer de faz-lo ; tendncia ou manifestao que surge na infncia e na adolescncia sob forma de jogo, divertimento. (Houaiss, 2001, p. 1789)

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    Porm, ao analisarmos a origem etimolgica desses termos, verificamos que ldico tem sua origem no latim clssico, ludus, que significava jogos, principalmente jogos com bola. A palavra jogo, por sua vez, origina-se no latim popular, iocus, que significava jogo, divertimento, gracejo, pilhria. H, ento, uma ampliao de significados entre os termos. O primeiro, mais restrito relaciona-se, primordialmente, ao brinquedo (bola, por exemplo), ao passo que o segundo possui maior extenso semntica.

    Devemos salientar, ainda, que existe uma relao significativa entre as palavras iocus e inio (Jnio), cuja etimologia aponta para os antigos habitantes da regio da Jnia, conjunto de colnias da Antiga Grcia, localizadas no litoral asitico do mar Egeu. Curiosamente, conta a lenda que os romanos, para conquistar a regio, infiltraram seus atletas nos jogos de competio da Jnia, o que favoreceu a conquista.

    J, para os romanos, os termos ldico e jogo (ludus e iocus) eram sinnimos e, em sua evoluo semntica, mantiveram o sentido de jogo como divertimento, mas incorporaram conotaes diferenciadas e emprestaram ao termo ldico acepo mais abrangente do que a palavra jogo.

    O portugus, como sabido, uma lngua derivada do latim vulgar, Latim Clssico e Vulgar, tm, porm, usos distintos no emprego do lxico. Cmara Jr. (1979), nos lembra que as palavras do latim popular eram cuidadosamente evitadas na lngua clssica.

    Assim, do chamado latim clssico, derivam-se, no portugus moderno, termos eruditos que tm participao notada no vocabulrio utilizado nas mais diversas reas do conhecimento .

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    Cavalcanti (1996), recorrendo obra de Cmara Jr, comenta sobre essa generalizao:

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    os termos do latim popular muitas vezes derivaram os substantivos e verbos, enquanto do seu equivalente no latim clssico, formaram-se palavras que designam o conjunto de aes relativas quele substantivo. (Cavalcanti, 1996, p. 3-4)

    E oferece, como exemplo, algumas derivaes importantes:

    LATIM VULGAR PORTUGUS LATIM CLSSICO PORTUGUS

    Caballus Cavalo Equus Eqino, eqestre

    Cattus Gatu Felis Felino

    Casa Casa Domus Domiclio

    Jocus Jogo Ludus Ldico Apprendere Aprender Discere Disciplina

    Bibere Bebr Potare Potvel

    Grandis Grande, grandeza Magnus Magno, magnitude

    Esse fenmeno no , porm, privilgio da Lngua Portuguesa. Outros idiomas tambm possuem, geralmente, um termo que designa semanticamente um sentido amplo e outro, restrito, embora ambos tenham em sua acepo idias e significados parecidos, prximos. A riqueza do conceito de jogo, pois, existe nas mais variadas posies lingsticas e grupos de lnguas.

    No francs, por exemplo, o termo jouer significa tanto jogar, como brincar e representar. Essas aes so atitudes muito prximas e mesmos superpostas, e cujos contornos impossvel delimitar (Chateau, 1987, p. 13).

    No ingls, play tem uma variedade muito grande de aplicaes e caracteriza aes que vo desde os movimentos rpidos, gestos com as mos, bater palmas e exerccios at

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    o sentido de brincar, simplesmente. A acepo assumida pela palavra, portanto, abrange tanto jogar, quanto brincar, quanto tocar; provavelmente porque estas palavras remetem idia de movimento, do gesto rpido ou dos movimentos com os dedos. Por outro lado, o termo game apresenta um significado mais restrito relacionado com o que entendemos por jogos estratificado em etapas e fases, como a partida de futebol, real ou virtual, mas, ainda assim, menos do que play.

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    No alemo, spiel refere-se a jogo, divertimento, brincadeira e representao de um modo geral, ao passo que o termo spatz d idia de gracejar, fazer rir, denotando um significado de entendimento.

    No chins o termo wan, que significa jogo leve ou brincadeira, est mais prximo das atividades infantis. Neste mesmo idioma, encontramos o termo theng, cuja acepo se aproxima agon, do grego, cujo significado remete ao que entendermos por competio. Nesta ltima acepo, o termo pode se relacionar com a competio na vida econmica e poltica e, se utilizado na seara da sade, remete luta contra doenas .

    H, ainda, nas lnguas semticas, uma reduo no sentido de jogo, tanto em hebreu quanto em rabe, como esclarece Albornoz (2002).

    certo que h uma riqueza do conceito de jogo nas mais variadas posies lingsticas e grupos de lnguas, mas o agn, do grego, ou competio, do portugus moderno, e o ludus, do latim clssico, ou o nosso ldico, podem andar juntos em muitas lnguas.

    Talvez o conceito to presente na atualidade, da Jihad islmica, que se presta a certa ambivalncia e multiplicidade de tradues, constitua uma dessas aglutinaes de sentido e inclua formas do jogo de combate que apela ao impulso profundo de luta e superao agonstica contida no seu humano. (Albornoz, 2002, p. 9-10)

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    Ludicidade, vivncia e responsabilidade ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

    Devemos salientar que, embora seja recorrente a existncia de termos similares, imprescindvel observar que essa similaridade no absoluta. H variaes e abrangncias maiores ou menores, afeitas ao uso do termo em circunstncias especficas, que devem ser consideradas na aplicao de cada um deles.

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    1.2: Ldico em ao. A evoluo semntica das palavras ldico, jogo e brincadeira acompanhou as

    pesquisas sobre o significado dos termos nas diferentes cincias, o que lhes emprestou uma variedade de conceituaes e interpretaes.

    Estudos recentes tm demonstrado que o termo ldico no se identifica literalmente com o termo jogo. O jogo contm o ldico, mas nem sempre o ldico contm o jogo e a brincadeira, porque o sentido destas pode extrapolar as acepes e conceituaes emprestadas ao jogo. Conforme a evoluo semntica, os significados de um e de outro parecem encontrar-se, mas mantm um movimento, uma tendncia identificao e manuteno da autonomia de cada um dos termos.

    No entanto, preciso reconhecer que ambos comportam acepes mais amplas ou mais restritas, conforme a situao e o contexto em que so empregados. Neste reconhecimento, falamos em tendncia, mas salientamos a necessidade de se explorar, com cuidado e vagar, os conceitos envolvidos em cada situao de enunciao em que so empregados.

    Semelhante observao deve ser feita com o uso do termo brincadeira, que a ambos os anteriores se associa em alguns empregos no portugus do Brasil.

    Dantas (2002) chama a ateno para essas distines peculiares aos usos dos termos ao afirmar que:

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    Ludicidade, vivncia e responsabilidade ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

    brincar e jogar - dois termos distintos em portugus e fundidos nas lnguas de cuja cultura somos devedores: o francs (jouer) e o ingls (play). Por causa disto, freqentemente desperdiamos a diferenciao de ordem psicogentica que a nossa lngua nos permite. Brincar anterior a jogar, conduta social que supe regras. (Dantas, 2002, p. 111)

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    O ldico, propriamente dito, a ao, a dinmica de como se joga ou de como se brinca. Para compreendermos essa afirmao, pensemos que a tomada de posse de um brinquedo, por si, no determina o ldico, mas a sua ao. Num tabuleiro de xadrez, ou de dama, por exemplo, o que determina o ldico a ao, o ato de jogar, de mexer as peas, de atacar e de ser atacado. Ao se utilizar objetos como uma boneca, uma casinha ou um carrinho, o que interessa o ato de brincar, de manipular esses objetos colocando em evidncia seu corpo e sua imaginao.

    Nos os estudos de Gilles Bougre (2002), percebe-se a mesma tendncia em se compreender ambos os termos. Para ele a ludicidade da brincadeira ou do brinquedo no reside no fato de serem jogos, embora se tornem ldicos no momento em que so, efetivamente, utilizados para se realizar a brincadeira ou o jogo. O ldico apresenta sempre um sentido de ao e explorao: ver como , desmontar, participar, construir, engajar-se e at mesmo se sacrificar, se a ao for encarada como esprito ldico desafiador e de superao de limites.

    Ao ldica, de um modo geral, pode ocorrer em duas situaes. A primeira, quando o participante age com o objeto em si, ou seja, uma criana pode agir ludicamente com um brinquedo, com o corpo ou com alguma coisa nova que provoque interesse e satisfao. Da mesma maneira, um pesquisador pode ter um comportamento ldico quando o objeto de sua pesquisa lhe d prazer e satisfao. Mesmo um adolescente, se ficar horas e horas em frente ao seu computador e isto lhe proporciona prazer, estar, tambm, em uma atividade ldica. A segunda acontece no processo de interao humana, na presena do outro, sejam os pais, os irmos, os amigos, os vizinhos, os professores

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    etc. Dirime-se, com esta percepo, a confluncia dos termos. O ldico est, ento, relacionado diretamente com a percepo do homem acerca de algo.

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    Nesta perspectiva, os pais, os professores, por exemplo, podero ter um comportamento ldico, quando sua dinmica combinar e interagir com o interesse e o prazer dos alunos para dela participar e alcanar um processo interativo de construo de aprendizagem.

    Por outro lado, as aes ldicas nem sempre tm o carter de prazer ou de satisfao de necessidades. Muitas vezes, podem ser substitudas pelo esforo, sacrifcio ou fardo pesado; mas jamais perde o carter, a essncia, o esprito, o sentimento do comportamento ldico, se as aes forem compreendidas e aceitas como normas do jogo, como formas de superao de limites ou motivao para novas aes.

    Uma criana pode at sentir, quando seu time perde na escola, mas esse sentimento parte integrante do esprito do jogo. Salvaguardados alguns exageros, um universitrio, quando se submete a um trote no primeiro ano de sua vida acadmica, aceita de bom grado as tarefas e punies impostas pelos veteranos, sem, contudo, perder o esprito desse tipo de brincadeira. Numa brincadeira como a de cabo de guerra, na qual duas equipes fazem um esforo enorme ao puxar a corda, o que vale no o esforo, o sofrimento do ato, mas o sentimento ldico presente na ao.

    Dada a complexidade da questo, numa viso menos acurada, pode parecer paradoxal: Se ldico, jogo ou brincadeira, como pode ser considerado esforo, sacrifcio ou fardo pesado? No seria, ento, anti-ldico, anti-jogo, anti-brincadeira?

    Buytendijk (1986) comenta que,

    se uma lebre jovem reage repentinamente a uma presso do caador, sem uma causa de satisfao, no joga ou brinca. Diz-se tratar de um arranque espontneo do instinto de fuga. A fuga nunca tem matiz de prazer, ao contrrio, envolve matiz

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    significativo de coao, medo ou pavor, ou seja, um comportamento anti-ldico, anti-jogo. (Buytendijk, 1986, In: Baly, 1986, p. 53)

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    Da mesma forma, as brincadeiras de mau gosto (muito usadas hoje em dia pelos adolescentes) chamadas de bulling apresentam-se para a vtima como uma ao anti-ldica, pois gera o desrespeito, a violao de regras, o desconforto.

    Percebemos, com isto, que o Ldico e as concepes para se chamar algo de ldico obedece a alguns critrios que o definem e delimitam. Dentre esses critrios, destacamos que, para se entender como ldica, a ao :

    a) desinteressada: a ao encontra a finalidade em si mesma (o que no quer dizer que no estejam interessadas em participar e/ ou vencer);

    b) espontnea: oposta s obrigaes e responsabilidades, ou seja, o jogo uma assimilao do eu, por oposio ao pensamento srio que equilibra o processo

    assimilador com a acomodao aos outros e as coisas (Piaget, 1975, p. 191);

    c) prazerosa: agradvel, e esse prazer corresponde expresso afetiva dessa assimilao;

    d) libertadora: h a libertao do eu por soluo de compensao, ou seja, no h uma preocupao com o conflito;

    e) supermotivada: necessidade de satisfazer uma tenso, de superar limites, com desafios e ousadias; e, por fim,

    f) livre: no obedece a um princpio regulador imposto pelos adultos, acontece de acordo com as convices e cultura dos prprios participantes.

    1.3: Concretude ldica: o jogo, a brincadeira e o brinquedo. Com as observaes anteriores, percebemos que o termo ldico revestido de

    acepes, de sentidos, de significados diferentes de jogo, de brincadeira e de brinquedo;

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    entendido como a dinmica, a ao desencadeada por esses ltimos e essa a acepo adotada neste trabalho. Doravante, nos ateremos s distines pertinentes ao uso e significado dos termos jogo, brincadeira e brinquedo.

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    1.3.1: O jogo. As questes a respeito do termo jogo so complexas porque a compreenso do

    que sejam, efetivamente, jogos envolve, em geral, um conjunto de regras e conceitos que lhe caracterizam como jogo. Vejamos como essas peculiaridades do termo so tratadas na literatura pertinente.

    Para iniciarmos nossa discusso, trazemos os ditos de Kishimoto (2002a), cuja viso nos mostra a existncia de termos que, por serem empregados com significados diferentes, acabam tornando-se imprecisos, como o jogo,o brinquedo e a brincadeira. A variedade de jogos conhecidos como faz-de-conta, simblicos, motores, sensoriomotores, intelectuais, cognitivos, de exterior,de interior, individuais, coletivos metafricos, verbais, polticos, de palavras, de adultos, de animais, de salo e inmeros outros mostra a multiplicidade de fenmenos includos nas categorias de jogo.

    Dada a multiplicidade de associaes que fazemos com a palavra jogo, sua prpria semntica passa a ser difusa, porque

    a heterogeneidade dos elementos estudados sob o nome de jogo to grande, que se levado a supor que a palavra jogo no passa de um ardil que, pela sua enganadora generalidade, alimenta firmes iluses acerca da suposta familiaridade de condutas diversificadas. (Callois, 1990, p. 187)

    Kishimoto assume a proposta de Brougre sobre a existncia de uma famlia do jogo, na qual todos os fenmenos chamados de jogo teriam alguns princpios ou semelhanas entre si, constituindo algo em comum, como os fios de uma teia. Essa famlia do jogo, segundo Kishimoto, foi inicialmente proposta por Wittgenstein ao aglutinar

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    semelhanas e pontos comuns na maioria dos jogos. Essa concepo de famlia do jogo reiterada por Venncio (2005):

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    a famlia do jogo seria ento a instncia aglutinadora, que se concretizaria na existncia de seus membros, ou seja, nas mais diferentes manifestaes de jogo que poderiam ser agrupadas pelas suas semelhanas, alm de levar em considerao suas diferenas (Venncio, 2005, p. 40-41)

    Com Henriot (1989), comeam a delinearem-se os traos centrais do jogo, uma espcie de definio stricto sensu. No se pode chegar ao jogo, se no h uma conjuno de conduta subjetiva, intencional, e uma situao objetiva, constatvel.

    Em primeiro lugar, para que haja jogo necessrio que o sujeito tenha conscincia de que est jogando e que se manifeste com uma conduta compatvel situao. Qualquer conduta pode transformar-se em jogo, por meio da equivalncia metafrica, quando a interao do jogador est presente. Desta forma,

    pode-se chamar de jogo todo o processo metafrico resultante da deciso tomada e mantida como um conjunto coordenado de esquemas conscientemente percebidos como aleatrios para a realizao de tema deliberada-mente colocado como arbitrrio (Kishimoto, 2002a, p. 35)

    Em segundo lugar, necessrio que haja um conjunto de regras estabelecidas e definidas pela situao de jogo na qual se determinam os limites da ao na cultura humana. Um jogo s jogo, numa dimenso mais universal, se for regido por uma espcie de regras. H um roteiro e desobedec-lo mudar o jogo. As regras, que so condio sine-qua-non, precisam ser aceitas pelos participantes.

    Na Antiguidade, as regras alcanaram a categoria do sagrado. Na antiga Grcia e em Roma, o sagrado se sobressai nos espetculos apresentados em forma de esportes e de artes e nos tribunais de justia. Eram ambas as coisas ao mesmo tempo, ou seja, um elemento sagrado da mais alta importncia, sem deixar de ser, essencialmente, um jogo.

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    Na civilizao moderna, h inmeras situaes que demonstram a condio do sagrado no comportamento. Numa situao de jogo, na qual o jogador compete imbudo do esprito de jogar, atira-se ao sacrifcio, em funo daquilo que acredita ou aceita como condies do jogo. As crianas e os adolescentes, ao praticarem os jogos, no aceitam a quebra das regras, pois tal ao representa, para eles, a ruptura do sagrado.

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    Esse reflexo cultural se espraiou e, hoje, nossos adolescentes ainda tm, geralmente, uma viso sacralizada do jogar: as regras so fundamentais e no podem ser subvertidas sob pena de denegrir at a moral. Percebemos, esta perspectiva ao notarmos que um violador de regras freqentemente chamado de ladro, larpio, espertinho ou salafrrio; todos termos cuja acepo remonta aos violadores no apenas do jogo, mas doxa vigente na sociedade.

    As regras delimitam os parmetros a serem seguidos pelos participantes do jogo, que , j o dissemos, uma atividade ldica. Por resqucio cultural bastante potente, ambos, regra e jogo, so revestidos de uma aura que exige concentrao, adequao e respeito.

    Em terceiro lugar, a expresso de liberdade um outro fato que caracteriza o jogo. No jogo, a liberdade de ao do jogador uma prtica voluntria e de motivao episdica, fruto da ao da pessoa e do meio. O que a caracteriza no jogo, diferentemente da liberdade intuitiva e espontnea da brincadeira, o grau de intencionalidade como um fenmeno de ao da conscincia expressa de diferentes formas. Nesta ao se encontram embutidas noes de tica, de solidariedade, de liberdade e de limites da conduta humana. evidente que essa liberdade, ou ao voluntria, depender sempre de fatores internos ao sujeito (motivaes pessoais) e de estmulos externos, conforme a conduta de outros parceiros da atividade. por isso que h a necessidade de regras que norteiam o acordo comum entre os participantes do jogo; so essas regras que delimitam o que se pode e o que no se pode fazer naquele jogo especfico.

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    Percebemos, com essas observaes, que o jogo, alm de ter em si uma concepo do ldico, tem, tambm, aspectos restringentes: as regras; e, como veremos a seguir, difere da brincadeira porque tem um objetivo especfico delimitado, ou seja, se caracteriza por ser:

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    a) regrado: delimita os parmetros a serem seguidos pelos participantes, e

    b) intencional: explicita o grau de intencionalidade como um fenmeno de ao de conscincia expressa de diferentes culturas.

    1.3.2: A brincadeira. A brincadeira, diferentemente do jogo, incorpora em seu significado a ao ldica

    propriamente dita com regras mais simples. Nela predominam a liberdade, a espontaneidade e o prazer. Geralmente, fruto da tradio cultural oral, da observao, da heterogeneidade e da diversidade de atividades oferecidas pela cultura ldica do meio ou pela criao e representao espontnea construda a partir de necessidades naturais do ser, sejam elas biolgicas (fsicas), cognitivas (mentais), psicolgicas (afetivas, emocionais, de ateno ou de concentrao), sociais (relativas ao grupo social), lingsticas (relacionadas linguagem) ou culturais (afeitas s questes contextuais).

    No significado de brincadeira, est presente um conjunto de interpretaes e sentidos, que variam de acordo com a idade, o sexo, a cultura, o meio e a poca. No nos difcil compreender que, para os ndios, uma brincadeira como a do arco e da flecha tem um sentido; ao passo que, para o homem branco, outro; ou mesmo que a brincadeira com bonecas pode ter vrias interpretaes, que vo desde o manuseio natural da imitao de uma representao simblica, at a ideologia de dominao que se quer transmitir criana.

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    Venncio (2005) mostra que o brincar tambm uma forma de lidar com a tenso entre o interno e o externo e de dominar o mundo externo, atravs de um processo de gradualizao e simbolizao. Neste sentido, ao brincar, a pessoa est tentando controlar o mundo, compreender e interpretar a si mesma, em um processo mental no qual outorga significaes s coisas e incorpora um espao transacional.

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    Para a criana, o brincar um modo de controlar o mundo externo, assim, a criana no pode controlar a presena ou no da me, mas pode controlar um pedao de pano que, simbolicamente, enquanto objeto transacional, representa a me e o espao da fantasia. (Venncio, 2005, p. 33)

    Brougre (2002) analisa o brincar como um fenmeno cultural. Para este autor, o brincar um ato da criao cultural por excelncia, que vai permitir ao individuo criar uma relao aberta e positiva com a cultura:

    se brincar essencial porque brincando que o paciente se mostra criativo. Brincar torna-se o arqutipo de toda a atividade cultural, que, como a arte, no se limita a uma relao simples do real. Brincar no apenas uma dinmica interna do indivduo, mas uma atividade dotada de uma significao social,como outras, necessita de aprendizagem. (Brougre, 2002, p. 19-20)

    certo que a criana constri sua cultura ldica no ato de brincar, de perceber e lidar com a realidade a sua volta. Nesse sentido, dependendo da cultura ldica veiculada no meio, situa o nvel da intencionalidade como um fenmeno da ao da conscincia expressa de diferentes formas, embutindo em seu significado as noes de valor, tica,

    solidariedade, liberdade e da conduta humana (Kishimoto, 2000, p. 13). O movimento da liberdade, da poltica, da religio, das artes, dos esportes, quando se trata de jogo, neste nvel, atinge uma outra dimenso de interpretao. O que determina, na realidade, essa condio de interpretao a cultura ldica construda pela pessoa, pelo meio, ou seja, toda a cultura como tal que se expressa no contexto e no comportamento das pessoas ao interagirem (ou no) neste contexto, ou seja,

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    o brincar tem um lugar e um tempo. No dentro, em nenhum emprego da palavra ... Tampouco fora, o que equivale a dizer que no constitui parte do mundo repudiado, do no eu, aquilo que o indivduo decidiu identificar (com dificuldade e at mesmo no sofrimento) como verdadeiramente externo, fora de controle mgico. Para controlar o que est fora, h que fazer coisas, no simplesmente pensar ou desejar, e fazer coisas toma tempo. Brincar fazer.(Winnicott,1975 apud Venncio, 2005, p. 33)

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    A brincadeira contm tambm a liberdade de ao do jogador ou melhor, do brincador - a ao voluntria ou de motivao interna e episdica da ao ldica, ou seja, imaginao e representao da realidade metafrica e simbolicamente. A pessoa, quando brinca est sempre representando situao como se fossem verdadeiros atores. Da mesma forma, a flexibilidade do jogo e da brincadeira permite que as pessoas estejam sempre mais dispostas para exercitar livremente suas idias e condutas de comportamento do que em outras atividades no ldicas.

    Com esta assertiva, concorda Kishimoto (2002), ao alegar que a brincadeira assume nuances importantes para o desenvolvimento da criana. Vejamos:

    Ao brincar, a criana no est preocupada com os resultados. o prazer e a motivao que impulsionam a ao para a explorao livre. A conduta ldica, ao minimizar as conseqncias da ao, contribui para a explorao e a flexibilidade do ser que brinca, incorporando a caracterstica que alguns autores denominam futilidade, um ato sem conseqncia. Qualquer ser que brinca atreve-se a explorar, a ir alm da situao dada na busca de solues pela ausncia de avaliao ou punio. Brunner entende que a criana aprender a solucionar problemas e que o brincar contribui para isso (Kishimoto, 2002b, p. 143-144)

    Percebemos, ento, que o carter do brincar est estreitamente relacionado com a capacidade de envolver-se em atividades prazerosas, desconectadas de regras e objetivos preestabelecidos. Neste sentido, associa-se ao conceito de liberdade, porque no requer um treinamento ou instrues detalhadas, necessita, sim, de inteno de prazer. Quando o

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    termo aplicado a atividades de adultos, podemos incluir, ento, as anedotas, os trocadilhos e outras aes do gnero; quando aplicado a atividades infantis, inclumos os vrios tipos de atividades prazerosas peculiares s crianas, como o pega-pega, o esconde-esconde, cujas regras so mnimas, e s brincadeiras livres com carrinhos, bonecas, etc.

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    Em ambos os casos, porm, importante que se consiga superar as sensaes, emoes e percepes consideradas previsveis e adequadas para buscar o diferente, o imprevisvel, o no usual. Com isto, reflete sempre uma ao:

    a) prazerosa: desenvolve aes de prazer e satisfao, em oposio tcnica, ao fardo pesado e insatisfao.

    b) intencional: envolve aes das conscincias dos participantes expressas em diferentes formas, nas quais a significao revestida de valor, autocontrole, adequao e desenvolvimento das capacidades.

    c) de liberdade: permite que os participantes usem de sua espontaneidade, sua flexibilidade na representao simblica e sua disposio para executar livremente suas aes e idias.

    1.3.3: O brinquedo. Se, anteriormente, fomos levados a concepes mais abstratas, o mesmo no

    ocorre com o termo brinquedo. O termo refere-se quilo que material no jogo e na brincadeira e a estes se acopla para possibilitar a sua execuo, como suporte. Assim, se estamos brincando de (ou jogando) xadrez, o brinquedo o tabuleiro e suas peas. Se jogamos (ou brincamos de) bola, o brinquedo a bola propriamente dita.

    Fisicamente perceptvel, visvel, ttil, o brinquedo tem por funo dar criana um aparato fsico, em substituio ao acervo imaginrio que ela faz uso em algumas

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    brincadeiras ou jogos, para que ela possa manipul-lo. o brinquedo que metamorfoseia e fotografa a realidade e pode, ainda, representar o imaginrio preexistente criado por desenhos animados, seriados de tv, filmes de fico, sonhos, mundo encantado, contos de fadas, piratas, ndios, bandidos, etc.

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    Pode, tambm se apresentar como um acessrio que, em conexo com a brincadeira e o jogo, estimula vrias habilidades: a lingstica (ou verbal), a lgico- matemtica, a espacial, a sonora (ou musical). Neste sentido, o brinquedo acompanha o processo de interao e funciona como um intensificador. o brinquedo que permite aos grupos uma interao mais objetiva e, porque objetiva, mais fcil de partilhar.

    Ao voltarmos nossa ateno para os aspectos na formao da criana, verificamos a importncia que recebe o brinquedo na mente dos pequenos. Segundo Vygostky (2000, p. 126) enorme a influncia do brinquedo no desenvolvimento de uma criana. no brinquedo que a criana aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invs de numa esfera

    visual externa, dependendo das motivaes e tendncias internas, e no por incentivos

    fornecidos por objetos externos.

    Preferencialmente, o brinquedo expressa personagens sob formas de bonecos, como manequins articulados ou super-heris, mistos de homens, armas, mquinas e monstros. Estas configuraes dos brinquedos so, sabemos, representaes do imaginrio corporificadas pela indstria e, por isso, so revestidas de um carter ideolgico de consumo ou de dominao, de acordo com o lugar, o meio, a poca, as condies culturais e etc. Os fabricantes ou os sujeitos que constroem os brinquedos, neles introduzem (conscientemente ou no) sua cultura e sua ideologia nas quais, por certo, verificam-se imagens que oscilam de acordo a cultura e ideologia em que esto inseridos.1

    1 Philipe ries(1981) no livro Histria social da criana e da famlia descreve no cap. 4 comenta a influencia da ideologia do contexto no comportamento das crianas no uso de jogos , brincadeiras e brinquedos.

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    Atualmente, com o avano da industrializao, a diversidade de opes de brinquedos incomensurvel. Vamos, ento, voltar nossos olhos para os tradicionais para que no nos alonguemos em questes mais voltadas s tecnologias do que ao interesse deste trabalho.

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    Tomamos por exemplo um carro de polcia. Ao tomar este brinquedo, a criana deve movimentar em sua mente os aspectos de polcia e de motorista que construiu em sua mente. O mundo volta observado e ao se por como motorista do carrinho, alm de interagir com seu conhecimento de motoristas reais que conhece, a este aspecto acrescenta a funo social do policial. Tem, ento, trs concepes em uso simultaneamente: o carro (e sua funo de locomoo), o motorista (e sua funo de manipular o carro) e o policial (e sua funo de revestir o homem-motorista de mais um aspecto social: o de policial).

    Interessante lembrar que esta cadeia de significao, posta em movimento, se constri por elementos de faz-de-conta, em que valores simblicos so acrescidos aos objetos-brinquedos.

    assim, ento, que entendemos que a funo do brinquedo est estreitamente ligada ao valor simblico que a criana lhe confere no ato de brincar. H, assim, uma associao de fico e realidade que possibilita a representao do mundo por meio dos objetos, os brinquedos. Nos lembra Vygotsky (2000) que a criana, ao brincar, estabelece uma relao imaginria com o mundo interior e exterior, ao passo que o brinquedo serve de representante fsico deste imaginrio. A essa percepo, o autor acrescenta que o brinquedo mais a memria em ao do que uma situao imaginria nova (Vygotsky, 2000, p. 134).

    Podemos, ento, dizer que o brinquedo, alm de criar o elo entre o imaginrio e o real, pode contribuir para o desenvolvimento da criana porque

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    ... no brinquedo como se ela fosse maior do que na realidade. Como no foco de uma lente de aumento, o brinquedo contm todas as tendncias do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento. (Vygotsky, 2000, p.134)

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    Precisvamos estabelecer essas diferenas aqui expostas, embora saibamos que, em suas obras, Vygotsky fale de brinquedo como sinnimo de brincadeira com a finalidade de representar a fala interior e admita que o brincar a relao imaginria criada pela criana, ao passo que o brinquedo a representao fsica deste imaginrio como j o dissemos e mudam de acordo com a idade.

    Voltamos a este ponto para esclarecer que a criana d nfase ao significado no brincar, no no objeto; mas este significado precisa de um piv: o brinquedo, que se configura como sendo:

    a) representao fsica do objeto: substitui o acervo imaginrio de que a pessoa faz uso ou manipula.

    b) fonte de desenvolvimento cognitivo: serve de estmulo s funes e capacidades fsicas, perceptivas e mentais.

    1.4: Ldico e comportamento humano: zonas fronteirias. Durante muito tempo os termos ldico, jogo e brincadeira apresentaram um

    significado relacionado ao divertimento e s aes recreativas funcionais-motoras do ser humano. Dispensavam, assim, qualquer significado relacionado com as realidades superiores do homem e eram vistos apenas como fenmenos biolgicos de divertimento. Huizinga (2001) registra esta noo, vejamos:

    ...observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evolues, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar, mediante certo ritual de atitudes e

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    gestos. Respeitam a regra que os probe morderem, ou pelo menos com violncia a orelha do prximo. Fingem estar zangados e, o que mais importante, eles, em tudo isso, experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos cachorrinhos constituem apenas uma das formas mais simples de jogo entre os animais. Existem outras formas muito mais complexas, verdadeiras competies, belas apresentaes destinadas ao pblico. (Huizinga, 2001, p. 03)

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    Evidentemente, sem a complexidade dos jogos mais elaborados, essa demonstrao dos jogos simplificados dos animais serve de base para se pensar o carter biolgico do jogo e da brincadeira.

    No sculo XIX, a Psicologia da criana recebe forte influncia da Biologia e faz transposies dos estudos dos animais para o campo infantil. Karl Gross, um dos pioneiros estudiosos do jogo no comportamento humano, considera o jogo como pr-exerccios de instintos herdados, estabelece uma ponte entre a Biologia e a Psicologia e, em 1896, introduz o vocabulrio jogo nas Cincias Humanas. Define o jogo como uma necessidade biolgica, um instinto e, psicologicamente, um ato voluntrio. Esta perspectiva recebe aceitao dos estudos do comportamento humano, tanto que em estudos contemporneos essa posio , tambm, considerada, tanto que Kishimoto (2000) diz que se ao jogo remete o natural, universal, biolgico, ele necessrio para a espcie, para o treino dos

    instintos herdados (Kishimoto, 2000, p. 31).

    Gross, no final do sculo XIX, explora o significado de jogo enquanto ao espontnea, natural, prazerosa e livre posto que sob influncia da Psicologia e, tambm, antecipa a sua relao com a educao dos instintos. Ao admitir que o jogo se trata de uma necessidade biolgica, um instinto e, psicologicamente, um ato voluntrio, d um grande passo para a compreenso do seu significado no comportamento humano, especialmente se considerarmos o conhecimento que havia na poca de suas descobertas.

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    Toma importante carter nessa viso o fato de atribuir ao termo jogo todas as manifestaes motoras ligadas a uma finalidade instintiva e mental. Por esta concepo, os jogos ultrapassam as aes de andar, pular, correr, pegar, sugar, etc. e passam a serem vistos como aes superiores ao serem utilizados para imitar, generalizar, repetir, encaixar, esconder, construir, etc., o que nos leva a compreender que o ato de jogar passa a ser entendido como a ilustrao, a criao, de um mundo parte do real, numa instncia, que o representa, em outra instncia. Esta perspectiva que nos traz a concepo de que o jogo contribui para a formao das estruturas mentais superiores, porque criativo, inventivo.

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    Partindo da proposio de que jogar sempre jogar com algo, uma vez que s jogam os que se acercam de um objeto ou finalidade especficos em funo de algum sentido, faz-se necessria a reflexo do que estaria subjacente a essa ao. Questionamentos tais como: Por que jogam? Por que brincam? Por que se atiram a esse tipo de necessidade, cujas conseqncias so tanto prazer quanto desagrado? O que h por trs dessa ao?

    Inicialmente, a teoria de Gross apresenta aspectos que abrem um enorme leque de interpretaes para a anlise destas questes. Define uma teoria geral do ldico denominada como pr-exerccios que se caracterizam pelo prazer que acompanha toda a tendncia instintiva. De um modo geral a noo de pr-exerccio reduz-se assimilao do funcional ou da mecnica que se consolidam pela repetio ativa.

    H no jogo, portanto, a ao mecnica e ritualizada como resposta instintiva (o beb quando toma banho repete vrias vezes a ao de bater na gua porque esse ato consubstancia o prazer e os efeitos produzidos pelo ato, o que gera alegria e satisfao) e h, tambm, a repetio diferida, caracterizada pela resposta associada a uma representao simblica (quando vai dormir abraa o travesseiro ou a fralda numa referncia ao dormir e aos aconchegos dos pais).

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    Gross defende, ainda, que os exerccios fsicos transformam-se em fico simblica, ou seja, em representao simblica da realidade, marcando os primrdios do processo de construo do pensamento e da linguagem, que se cruzam num ponto comum: a teoria dos signos. Significante como objeto real, referente, e significado como processo simblico de representao mental, imagem acstica. Entre ambos, a Lngua como elemento de intermediao desses elementos.

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    Com uma anlise dos postulados de Gross podemos dizer que essas aes acima descritas tm utilidade funcional e desempenham um importante papel no desenvolvimento do indivduo no apenas como satisfao de uma necessidade do presente, mas tendo em vista o futuro.

    Esta noo de vistas ao futuro percebida em Piaget, que retoma os estudos de Gross e de outros investigadores do assunto e incorpora em suas teorias os exerccios ritualizados, repetitivos, por ele chamados de sensrio-motores como preparatrios da realidade simblica. Nessa transio, considera a diferenciao progressiva entre o significante e o significado e atribui representao mental o processo construdo pela imitao, uma espcie de simulao da realidade.

    A imitao, entendida por Piaget como uma assimilao do real, passa a ser um dos fatores essenciais ao nascimento e ao desenvolvimento de mltiplas capacidades cognitivas como a memorizao, o raciocnio, a imaginao, a comunicao verbal, a interao social e o equilbrio emocional.

    A ato ldico por excelncia, a imitao fornece os elementos representativos necessrios constituio da representao mental propriamente dita, o que se completa com o aflorar e o desenvolvimento de mltiplas capacidades, que evoluem a cada fase do desenvolvimento do ser humano. Associada ao ensinar, destaca-se sua importncia:

    No desenvolvimento a imitao e o ensino desempenham um papel de primeira importncia. Pem em evidncia as qualidades especificamente humanas do

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    crebro e conduzem a criana a atingir novos nveis de desenvolvimento. A criana far amanh sozinha aquilo que hoje capaz de fazer em cooperao. Por conseguinte, o nico tipo correto de pedagogia aquele que segue em avano relativamente ao desenvolvimento e o guia; deve ter por objetivo no as funes maduras, mas as funes em vias de maturao. (Vygotsky, 1979, p. 138)

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    Evidentemente, as respostas a esses questionamentos levantados por Gross e Piaget carecem ainda de uma acurada empreitada analtica posto que, neste campo de anlise, surge a conscincia de haver, nestas aes, o sentido ldico, ou seja, o ato de jogar ou brincar como atividades humanas importantes, pois h alguma coisa muito significativa implcita. Autores importantes dos estudos do comportamento como Gross, Buytendijk, Piaget, Wallon, Vygotsky, Chateau, Freinet, Kishimoto, Brougre, Winnicott, Ferreiro, dentre outros, caminham na mesma direo: de certa forma, todos tm procurado mostrar a importncia do ldico na vida do ser humano.

    1.5: Jogos e brincadeiras: seriedade e responsabilidade.

    J criamos, aqui, a percepo de que o ldico de que tratamos muito mais vasto do que poderia imaginar um leigo. Com o perdo do trocadilho, no estamos brincando. Devemos nos lembrar de que, se a criana se realiza em seu mundo ldico, no qual o jogo e a brincadeira proporcionam uma fuga do real, uma evaso; o adulto procura no jogo e na brincadeira o apagamento, o esquecimento mesmo que momentneo de seus problemas, ou seja, o jogo e a brincadeira tornam-se instrumentos de transmutao da realidade.

    O ldico uma necessidade, intrnseco ao ser humano e em suas manifestaes pelas brincadeiras, pelos jogos e mesmo pelos brinquedos que se fomenta a inteligncia e a capacidade de convivncia, de abstrao, de socializao e progresso na

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    vida do homem, pois uma criana que no sabe brincar, ser um adulto que no saber pensar (Chateau, 1987, p. 15).

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    Interessante lembrar que, em nossa sociedade, o trabalho tido como uma atividade absolutamente sria, ao passo que o jogar e o brincar, no. Porm, ao contrrio do que se pensa, os atos de jogar e de brincar implicam atitudes to srias quanto aquelas encontradas no ato de trabalhar. Para realiz-los imprescindvel agilidade, raciocnio, concentrao, percepo, sensibilidade, etc. No estaramos nos valendo de dois pesos e duas medidas? Provavelmente.

    Vejamos, por exemplo, uma criana que aprende desde cedo a ouvir e a repetir as frases da me: brinca com os sons numa espcie de preparao para uma aprendizagem da linguagem futura. Uma criana que brinca com um objeto, produzindo rudos, movimentos, montando-o ou desmontando-o est exercitando aprendizagens superiores. Da mesma forma, quando joga bolinha de gude, no est apenas exercitando os msculos finos da mo para acertar a bolinha no buraco, ao contrrio, neste simples jogo, exercita aes mentais de equilbrio, velocidade, distncia, auto-controle, memria visual, etc.

    Nesta perspectiva, devemos defender, aqui, que cada brincadeira, cada brinquedo, cada jogo da criana, por mais simples que seja, est repleto em maior ou menor grau de exerccios de funes essenciais ao desenvolvimento global do ser humano. Ao analisarmos mais profundamente a questo, verificamos que h algumas tendncias que se aproximam de um consenso, sem, contudo, tornar unssono o discurso a respeito do assunto.

    A primeira tendncia a que nos reportamos defende e incorpora a concepo do ldico, jogo e brincadeira como um impulso natural do ser humano em toda a sua complexidade psicolgica, por este prisma, o ldico est intrnseco no brincar e garante que a capacidade de brincar se manifeste em toda a vida do ser humano (Huizinga, 2001, p. 124).

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    A seguir, temos a viso Winnicott (1975), que d atividade ldica um carter de fenmeno humano necessrio e significativo. ele quem nos lembra de que trs realidades envolvem o ser humano: a realidade do eu interior, na qual se compem todos os agentes e fenmenos necessrios para a condio humana; a realidade externa, que envolve todas as condies relacionadas ao meio e, por fim, a realidade intermediria, que se caracteriza pela ao do eu sobre a realidade externa, o que se d pela assimilao da realidade, do real, em contato com as pessoas do seu meio. Em um exemplo simples, lembramos que a criana pequena precisa da me e esta, por sua vez, exerce influncia sobre o eu da criana.

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    Ainda segundo Winnicott (1975), essa ao intermediria de explorao essencialmente ldica no incio da vida e fomenta os pilares do comportamento da vida inteira. Para ele, o brincar acontece nesta rea intermediria entre a realidade externa e a realidade interna e , para a criana, a atividade mais importante que realiza.

    A superposio desta rea intermediria na vida das pessoas d sentido capacidade de brincar dos indivduos como fato necessrio satisfao de suas necessidades, de suas tenses, no apenas fsicas, mas tambm afetivas, cognitivas e sociais para que o ser humano se realize e se complete.

    O brincar , nesta perspectiva, uma forma de lidar com o mundo real e domin-lo, o que se d por intermdio de um processo gradual de simbolizao ou representao mental. Quando brinca, representa, imita, as crianas se exercitam no apenas como uma ao fsica e instintiva, mas como um ato complexo, originrio das primeiras relaes estabelecidas com o mundo, herdeiro das primeiras experincias no campo dos fenmenos transacionais das capacidades humanas superiores que acontecem por toda a vida: o homem s completo quando brinca (Shiller, apud Chateau, 1987, p. 13).

    Se, por um lado, a criana brinca desde cedo com o corpo, com a voz, com os rudos, com os gestos dos adultos, com os movimentos de objetos, com os sons das letras,

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    com as palavras, com os desafio; por outro, precisamos perceber que os olhos do beb, nos primeiros meses de vida, movimentam-se para todos os lados como se quisessem devorar o mundo e, precisamos o reconhecer, desvendam a realidade com curiosidade e imaginao, como que num desafio de desvendar e recriar o mundo.

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    Para Claparede, citado por Chateau (1987, p. 14) , estas atividades todas, as brincadeiras, os jogos, os brinquedos so sempre atividades srias, como o prprio

    trabalho o bem, o dever, o ideal de vida. a nica atmosfera na qual seu ser psicolgico

    pode envolver-se e, conseqentemente, pode agir. No se pode imaginar a infncia sem as brincadeiras as mais variadas, desde a casinha ao carrinho, h sempre uma parcela de imitao e, por conseguinte, de reflexo sobre a vida adulta, num mtuo jogo imbricado de realidade e brincadeira, ou seja, exerccio ldico. neste aspecto que a criana, ao se utilizar da realidade intermediria, atravs de aes ldicas, desenvolve as possibilidades e capacidades e

    concretiza as possibilidades virtuais que afloram sucessivamente superfcie de seu ser, assimila-as e as desenvolve, une-as e as combina, coordena seu olhar e lhe d vigor (Chateau, 1987, p. 14)

    Desde cedo, ento, as aes ldicas so funcionais e significativas. Muitos dos gestos e movimentos como o bater dos ps, ficar em p, balbuciar, pegar e deixar cair objetos etc. apresentam significao especfica, pois servem para que a criana cumpra um trabalho capital, uma funo: ela se molda em si mesma, se exercita movendo as pernas, o que lhe permitir andar mais tarde; esboa seus murmrios, primrdios da construo da linguagem e exercita no pegar, no deixar cair de objetos, a coordenao motora grossa e fina.

    Mais adiante, com o desenvolvimento dessas habilidades, adquire a capacidade de desenhar, rabiscar, traar, montar e desmontar objetos, cantar, declamar: a construo da capacidade da leitura e da escrita a se formar. Da mesma forma, ao seriar, agrupar,

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    comparar quantidades, contar e diferenciar esboa a formao das relaes cognitivas necessrias s operaes lgico-matemticas.

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    Embora no seja bvio, na criana, cada gesto, cada ao, tem sempre um significado que corresponde a uma funo simples que, posteriormente, faz emergir em fase posterior as aprendizagens superiores como a fala, a escrita, o clculo e todas as demais necessrias para a vida adulta, em sociedade.

    Neste sentido, voltamos nossa reflexo inicial: Ser que os jogos, as brincadeiras, os brinquedos funcionais ou simblicos, que compem a realidade intermediria teriam apenas a funo de divertir ou alcanar um prazer sensual? Ser que as crianas, ao jogarem bolinhas de gude esto apenas se divertindo? Por certo o aqui discutido responde a essas perguntas negativamente, e, ento, reiteramos nossa argio acerca da importncia maior dessas atividades, como, por exemplo, o desenvolvimento da velocidade, lateralidade, auto-controle, equilbrio e tantas outras j elencadas.

    Um outra tendncia na linha da interpretao da natureza dos jogos a defendida por Vygotsky. Sua teoria sobre a natureza do ldico contrape-se com a concepo de brincadeira como fonte de prazer para a criana ou como instinto natural, posto que, para ele, os elementos fundamentais da brincadeira so a situao imaginria, a imitao e as regras:

    enorme a influncia do brinquedo no desenvolvimento da criana [...] O jogo da criana no uma recordao simples do vivido, mas sim a transformao criadora das impresses para a formao de uma nova realidade que responda s exigncias e inclinaes da prpria criana. (Vygotsky, 2000, p. 126)

    Com isto, percebemos que na origem do jogo, entrelaam-se processos geradores de tenso, que surgem pelo fato de as crianas comearem a experimentar necessidades que no poderiam, ainda, ser satisfeitas. Essas operaes de tenso a que nos referimos contribuem, tambm, para a compreenso da incapacidade de serem satisfeitas as suas

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    necessidades e desejos; o que se d pela diminuio da capacidade de esquecer a no satisfao de outras necessidades, graas s transformaes ocorridas em sua memria.

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    Ao brincar, a criana imita o comportamento adulto tal qual ela observa em seu contexto. Neste sentido, a imitao assume o papel fundamental no desenvolvimento da criana em geral e da brincadeira em especial medida que faz aquilo que viu o outro fazendo; mesmo sem ter clareza do significado da ao, medida que deixa de repetir, por imitao, passa a realizar efetivamente a atividade imitada anteriormente, criando-lhe novas possibilidades e combinaes. No est, portanto, apenas copiando um modelo em uma atividade mecanicista, est construindo um nvel individual, prprio, a partir do que observou nos outros.

    As situaes imaginrias criadas pela criana ao brincar esto interligadas com a capacidade de imitao, que evoluem e trazem consigo regras de comportamento implcitas, advindas das formas culturalmente constitudas pelas atividades dos grupos a que pertencem:

    da mesma forma que uma situao imaginria tem que conter regras de comportamento, todo jogo com regra contm i uma situao imaginria. Jogar xadrez, por exemplo, cria uma situao imaginria. Por qu? Porque o cavalo, o rei, a rainha, etc. s podem se mover de maneiras determinadas; porque proteger e correr peas so, puramente, conceitos de xadrez. Embora no jogo de xadrez no haja uma substituio direta das relaes da vida real, ele , sem dvida, um tipo de situao imaginria. O mais simples jogo com regras transforma-se imediatamente numa situao imaginria, no sentido de que, assim que o jogo regulamentado por certas regras, vrias possibilidades de ao so eliminadas. (Vygotsky, 2000, p. 125)

    Como na atividade ldica a criana inclui as aes reais e os objetos reais, caracteriza, com isto, a natureza da transio da atividade da brincadeira, pois opera significados novos a cada ao.

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    Sob esta perspectiva, podemos compreender o jogo e a brincadeira como algo construdo pela prpria criana em sua realidade interior, a partir da qual a criana recria a realidade utilizando-se de sistemas simblicos sob a gide de um contexto scio-histrico-cultural, ou seja, a realidade externa, fruto da atividade social humana. , portanto, alm de uma atividade instintiva, biolgica, um fenmeno psicolingstico e scio-cultural porque em brincadeiras e jogos, com os brinquedos, a criana aprende a agir numa esfera cognitiva e lingstica, no apenas numa esfera visual externa. Esta se d muito mais em decorrncia das motivaes e das tendncias internas do que por incentivos fornecidos por objetos externos. Nesta perspectiva, os objetos externos, os brinquedos, servem de subsdios para o desenvolvimento cognitivo.

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    No imaginrio popular, frases como: Brincadeira coisa sria! Fulano no leva nada a srio! Fulano leva tudo na brincadeira! No hora de brincadeiras! Hoje no estou para brincadeira! e, mesmo, Fulano no srio! incorporam sentidos de jocosidade e de seriedade aos termos ldico e brincadeira.

    Por certo que a oposio entre brincadeira e seriedade , em nossa sociedade, senso comum. No latim, serius ope-se a jogo e refere-se quilo que o no jogo: algo que no diverte. O sentido de srio sofre, atualmente, algumas oscilaes que vo do srio, entendido como rigidez e rispidez, ao no srio, mais voltado para o que entendemos por banalizao.

    Huizinga (2001) ao comentar sobre o assunto aponta para uma distino interessante e defendo que o carter do no-srio da brincadeira no implica, exatamente, que ele deixe de ser sria, especialmente porque, em suas postulaes, o ato de brincar uma ao inerente condio humana. Brinca-se sempre em funo de algo.

    Para ele, quando uma criana brinca, ela o faz de forma bastante compenetrada e com muita seriedade. A pouca seriedade a que se faz referncia, estaria mais relacionada com o vis cmico, com o riso, que se contrape idia de atividade compenetrada.

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    Percebemos, ento, que a acepo adotada pelo imaginrio popular no conflui para aquela adotada pelos estudiosos do assunto, resta-se, de confluncia em ambas as vises sobre o assunto a noo de que, sim, Brincadeira coisa sria!

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    No questionamos mais a natureza da ao ldica na criana como para a construo de elementos necessrios a formao do ser homem como um todo ou a sua natureza de fomentar a definio da realidade interior.

    na observao do adulto que as interpretaes sobre o ldico, a brincadeira e o jogo tomam outros sentidos ou funes, posto que assumem o sentido intencional e deixa de ser um impulso de tendncias ou simples manifestaes de tenses, mas passa a ser um ato consciente e voluntrio. A perspectiva de relaxamento ou de ocupao do tempo livre passa a ter sentido apenas na vida adulta. A criana, ao contrrio, no brinca simplesmente para relaxar ou descansar; para se constatar isto, basta observar seu comportamento ao brincar: ela nunca se cansa.

    No universo do adulto, o ldico, o jogo e a brincadeira assumem funes de aliviar as tenses e remediar o tdio. A respeito deste carter, Pascal, citado por Chateau (1987, p. 321) comenta que a nica ocupao do desocupado do ocioso, como do senhor de outrora para quem a guerra era to jogo quanto a corte.

    H, nessa interpretao, uma conotao de algo desagradvel, amargo, pesado, que tem de ser digerido. V-se como se comportam os jogadores nos ambientes de jogatina dos clubes e cassinos, marcados por um ambiente escuro, ttrico, carrancudo em total oposio ao recreio das crianas na escola, nos quais vemos reinar a alegria, a gritaria, a satisfao e o prazer puro.

    Se nos voltamos para o aspecto das tenses a que se refere Vygotsky, percebemos uma divergncia marcante entre os adultos e as crianas neste nterim. Na criana, a tenso gera necessidade e inadaptao reconstruda pela criao da atividade

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    espontnea e ldica para a satisfao de suas mltiplas necessidades. No adulto, gera a tenso fruto dos estresses e das necessidades voluntrias.

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    certo, porm, que h, para o adulto, uma conotao de reencontro com o processo de representao simblica do mundo infantil. Volta-se infncia no para simplesmente se descontrair ou passar o tempo, mas para a busca da satisfao de tenses frutos de necessidades voltadas para a conquista do sonho, dos desejos, do desafio de superioridade, da prova de conhecimento, da auto-afirmao. Por isso o adulto ocupa-se dos esportes, da arte, das descobertas cientficas e de muitas conquistas ditas superiores.

    A ludicidade cresce caracterizada pelo prazer de participar de atividades como hobby, pelo simples sucesso de ganhar (ou perder), de colecionar, de realizar trabalhos voluntrios/comunitrios, sem a preocupao de obrigatoriedade. A atividade torna-se secundria porque o objetivo est fora de seu cerne.

    Neste sentido, no adulto, o simples relaxamento cede lugar ocupao livre e prazerosa das aes. No incomum vermos pessoas se dedicarem cada vez mais a atividades como as acima elencadas no apenas como forma de auto-satisfao, mas, tambm, como forma de construo de uma nova realidade social: os trabalhos comunitrios e voluntrios talvez sejam a maior expresso do que aqui se afirma. A preocupao, alm de ser voltada para a ocupao, tambm abarca uma alterao do meio em que se vive, de acordo com as convices a que se filia o homem em sua vida adulta.

    Makarenko (1985), educador russo, enxerga este sentido de satisfao, prazer, auto-afirmao presentes no adulto como uma atribuio de felicidade s atividades ldicas. Para ele, a realidade pode tornar-se base, a prpria fonte de prazer e deve estabelecer uma relao entre a alegria presente e a aspirao a um futuro melhor, feliz. Em sua concepo, a felicidade no um ato da realidade interior, mas da coletiva. ele

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    quem tambm afirma que uma nao s feliz se toda a sua populao for feliz acrescenta, portanto, ao ldico, um valor eminentemente poltico-social.

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    1.6: Educao ldica. Muito aqui j discutimos a respeito da importncia do ldico na vida das pessoas

    em geral. Mostramos como, na infncia, a ludicidade abarca importantes aspectos do comportamento e da formao do ser humano para atuar em uma sociedade adulta. Tambm defendemos a importncia de, na vida adulta, manterem-se vivas as perspectivas ldicas de olhar e atuar no mundo, o que cria uma instncia de prazer em atividades que, numa viso menos acurada, parecem ser obrigaes entendiantes.

    Chega o momento, ento, de voltarmos nossos olhos para a aplicabilidade do ldico na escola de uma maneira mais pontual, de uma forma que se possa refletir sobre o seu papel na formao do cidado e, concomitantemente, na prtica de ensino de uma forma geral, e na de Lngua Portuguesa, em especial.

    certo que no podemos nos escusar de reconhecer a importncia de atividades obrigatrias em nossa sociedade, no estamos, absolutamente, defendendo a ociosidade e a irresponsabilidade. O que nos move, doravante, a percepo de que o homem o agente no processo de seu prprio desenvolvimento e de que a escola, o ensino em geral, deve ser um facilitador desse processo de desenvolvimento; ao que acres