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ENRREDOS DO CORAÇÃO: memórias de velhos quixereenses sobre raptos consentidos (1920-1940) SANDRA ALVES SANTIAGO * Resumo: Este trabalho analisa a prática de raptos consentidos em Quixeré 1 nas décadas de 20, 30 e 40 do século XX, período em que o mesmo se encontrava em processo de transição de arraial para vila e de vila para distrito, pertencendo à cidade de Russas-Ce. Através de entrevistas realizadas com velhos quixereenses percebemos que o casamento realizado através do rapto foi muito comum nesse período. Trabalhamos com a ideia de que os raptos ocorreram em Quixeré diante da impossibilidade de efetivar uma relação amorosa, o que aponta para uma mudança dos padrões matrimoniais até então estabelecidos. Dessa maneira, pensaremos o rapto, neste trabalho, como uma forma de oposição aos casamentos arranjados e negociados entre as famílias. Palavras-chave: Raptos consentidos; memória; amor; Quixeré. Introdução Do ponto de vista historiográfico, podemos dizer que os raptos consentidos estiveram presentes em toda história do Brasil e que suas tramas se acham representadas numa diversidade de fontes a exemplo dos documentos criminais, dos registros de memória, das canções e literatura de cordel. No entanto, embora o rapto tenha sido uma prática frequente até algumas décadas atrás, a produção de trabalhos sobre a temática ainda se apresenta de forma bastante acanhada na historiografia brasileira, principalmente quando a buscamos na historiografia local. * UFC, Mestranda em História, Apoio CAPES. 1 A cidade de Quixeré situa-se na Região do Baixo Jaguaribe, a 218 km de Fortaleza, ao leste do Ceará, com área de 598 K². Em seus primórdios, sua região territorial era ocupada por aldeamento indígena, sendo chamada por muito tempo de Tabuleiro dos Índios.

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ENRREDOS DO CORAÇÃO: memórias de velhos quixereenses sobre raptos

consentidos (1920-1940)

SANDRA ALVES SANTIAGO*

Resumo: Este trabalho analisa a prática de raptos consentidos em Quixeré1 nas décadas de 20,

30 e 40 do século XX, período em que o mesmo se encontrava em processo de transição de

arraial para vila e de vila para distrito, pertencendo à cidade de Russas-Ce. Através de

entrevistas realizadas com velhos quixereenses percebemos que o casamento realizado através

do rapto foi muito comum nesse período. Trabalhamos com a ideia de que os raptos

ocorreram em Quixeré diante da impossibilidade de efetivar uma relação amorosa, o que

aponta para uma mudança dos padrões matrimoniais até então estabelecidos. Dessa maneira,

pensaremos o rapto, neste trabalho, como uma forma de oposição aos casamentos arranjados e

negociados entre as famílias.

Palavras-chave: Raptos consentidos; memória; amor; Quixeré.

Introdução

Do ponto de vista historiográfico, podemos dizer que os raptos consentidos

estiveram presentes em toda história do Brasil e que suas tramas se acham representadas

numa diversidade de fontes a exemplo dos documentos criminais, dos registros de memória,

das canções e literatura de cordel. No entanto, embora o rapto tenha sido uma prática

frequente até algumas décadas atrás, a produção de trabalhos sobre a temática ainda se

apresenta de forma bastante acanhada na historiografia brasileira, principalmente quando a

buscamos na historiografia local.

* UFC, Mestranda em História, Apoio CAPES.

1 A cidade de Quixeré situa-se na Região do Baixo Jaguaribe, a 218 km de Fortaleza, ao leste do Ceará, com área

de 598 K². Em seus primórdios, sua região territorial era ocupada por aldeamento indígena, sendo chamada por

muito tempo de Tabuleiro dos Índios.

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O rapto consentido esteve presente em vários momentos da história da

humanidade, contudo, a partir de meados do século XIX e início do XX, com o surgimento do

amor romântico, essa prática passou a ser, também, uma forma de oposição ao modelo de

casamento da época, mais entendido como negócio. Diante da proibição paterna, pautada,

sobretudo, na diferença financeira e étnica, muitos homens e mulheres encontraram no rapto

uma forma de conseguir efetivar o casamento. 2

Nessa pesquisa, buscamos compreender, a partir da pratica do rapto, como estava

sendo formada essa nova maneira de amar de se relacionar maritalmente em Quixeré nos de

1920-1940, para isso, realizamos entrevistas com homens e mulheres quixereenses, com idade

entre 79 e 95 anos. A maioria dos entrevistados narraram o rapto de irmãs, tias e outros

contemporâneos, acrescentando detalhes sobre como era o namoro nesse período.

Nosso interesse em mapear as práticas de raptos consentidos em Quixeré nos anos

de 1920-1940,3 consiste em perceber o rapto como oposição ao modelo de casamento

tradicional, onde eram os pais quem decidiam pelos filhos. Buscamos, também, perceber os

impedimentos e as motivações que levavam as famílias a se impor a determinados

relacionamento, resultando no rapto consentido.

“[...] o rapto caracterizava-se por fugas de moças que queriam afirmar seu direito

de amar, independente das ordens paternas, raça, dinheiro ou credo”. (SILVA, 2010: 89).

Este seria, então, indicio de que uma nova forma de se relacionar maritalmente estava

surgindo? Quais sentimentos, medos e revoltas carregaram aqueles que tiveram que enfrentar

a família para realizar um casamento por amor?

Ao narrarem as histórias vividas por homens e mulheres da época, mas,

principalmente, ao narrarem suas próprias histórias, ao falarem de si, os entrevistados

trouxeram à tona os desejos, amores, paixões e tantos outros sentimentos e sensações, pois

sabemos que a memória tem a capacidade de nos levar de volta a lugares que, ás vezes,

somente nós conhecemos; nos traz de volta emoções que um dia foi dividida com alguém

muito importante, e que, no presente, de forma muito mais elaborada, nos faz chorar, sorrir,

2Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2003) ressalta que o casamento, na família patriarcal, era realizado por

interesse econômico, político e étnico. Conf. ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma

invenção do falo – uma história do gênero masculino (Nordeste - 1920/1940). Maceió, edições catavento,

2003. p. 61. 3 A escolha temporal da pesquisa foi delimitada a partir das entrevistas realizadas.

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“reviver” o passado de múltiplas formas, já que “as lembranças também se alteram quando

revistas.” (LOWENTHAL, 1998: 101).

Por tanto, falar dos raptos consentidos a partir das lembranças de velhos

quixereenses é adentrar a um espaço extremamente sensível e desconhecido, de paixão, de

lágrimas, de táticas4 e resistências, de luta para conseguir efetivar uma relação. Se “o passado

é sempre conflituoso” como falou Beatriz Sarlo (2007) ao se referir a relação de desconfiança

vivida entre história e memória, diríamos que neste trabalho, abordar o passado será

duplamente conflituoso, já que é a história e a memória tentando da conta de conflitos

familiares, sociais e emocionais que desembocaram em raptos consentidos.

“Revivendo emoções”: narrativas do amor e da coragem

Lembranças, em todos esses aspectos, tendem a se acumular com a idade. Embora

algumas estejam sempre se perdendo e outras se alterando, o estoque total de coisas

recordáveis e recordadas aumentam à medida que a vida transcorre e as experiências

se multiplicam. (LOWENTHAL, 1998: 78).

Com um sorriso de satisfação o Sr. Luiz Agostinho Santiago5, 93 anos de idade,

falou-nos, abertamente sobre seus amores de juventude. Vivendo os anos da velhice, em uma

casa simples marcada pelo tempo, o Sr. Luiz parecia revigorar-se relatando e ressignificando a

própria memória, sua companheira de todas as horas. Era como se o passado “continuasse ali,

longe e perto, espreitando o presente como lembrança que irrompe no momento em que

menos se espera [...].” (SARLO, 2007: 09).

4 O conceito de tática está fundamentado em Michel de Certeau. Ao estudar as estratégias que o mercado

desenvolvia para conseguir vender seu produto ao consumidor, Certeau percebe que este possui táticas de

consumo, que não aderia àquelas estrategicamente pensadas pelos fabricantes. A esse homem “ordinário”,

Certeau atribui as artes de fazer, a astúcia de inventar, de burlar, de “bricolar”, de maneira a tirar sempre proveito

do que lhe é posto. Essas “táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar proveito do forte, vão

desembocar então em uma politização das práticas cotidianas.” (CERTEAU, 1994: 45). A tática pode, então, ser

definida como a ação do imediato, pois é criada dentro da situação, ao contrário da estratégia que é previamente

pensada. Dito de outra maneira, é uma jogada dentro do campo do adversário, um saber lidar com o que está

estabelecido dentro de um território de poder sem obter poder. Cf. CERTEAU (1994). 5 O Sr. Luiz Agostinho de Santiago, faleceu no dia 29 de outubro de 2011, aos 93 anos de idade, no hospital

Geral da cidade de Fortaleza, vítima de um AVC. A entrevista à nós concedida, foi gravada poucos dois meses

antes de seu falecimento.

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A história do Sr. Luiz não é exatamente de rapto, mas seu namoro foi marcado

pela oposição paterna. Ao falar do seu amor e namoro o Sr. Luiz nos trouxe detalhes cheios de

sentimentos, que nos ajudará a entender os casos de raptos que serão apresentados mais à

frente, como o do único beijo que diz ter marcado os encontros de namoro às escondidas com

a jovem Francisca Maria de Jesus:

E graças, graças a Deus que ela morreu sem nenhum pecado, tenho certeza que...

desses namoro nosso escondido, só nos dois. A única coisa no mundo que nós

tivemo, foi eu da um beijo nela, assim, porque na ultima noite que eu fui lá pra casa

da finada Dão, ela disse: “- papai vai me levar pra Aracati, pra acabar com nosso

namoro, mais tá perdido, tá pensando errado, aí vai desculpando por aí, vamo se

despedir, eu vou passar pouco tempo lá”. Aí nessa, na saída, eu digo: “- vai simbora

amanhã”, aí eu dei um beijo nela. (SANTIAGO, 2011: 05-06).

Não é do nosso interesse aqui, tentar descobrir se o Sr. Luiz falou a verdade ou

não ao negar a existência de uma intimidade maior entre ele e sua namorada, afinal “o que

nossas fontes dizem pode não haver sucedido verdadeiramente, mas está contado de modo

verdadeiro.” (PORTELLI, 1996: 64). Desse modo, interessa-nos pensar que ao afirmar que

nada, além de um único beijo, houvera entre o casal, o entrevistado tentou proteger a moral e

a honra de Francisca, valores caros à época e que o Sr. Luiz ainda guardava consigo, mesmo

já tendo passado décadas.

A honra da família dependia da virgindade das mulheres que a formava. Por isso,

se fazia uma forte vigilância em torno das moças, principalmente quando começavam a

namorar. A sexualidade feminina estava associada a valores morais e religiosos, implícitos na

fala de nosso entrevistado, quando diz que ela morreu sem nenhum pecado, em relação ao

namoro dos dois.

Quando pensamos sobre o namoro nas primeiras décadas do século XX é quase

impossível fugirmos da imagem de um casal, sentado na sala da casa, com o pai ou mãe do

lado, sob a luz da lamparina. No entanto as narrativas do Sr. Luiz nos levam a refletir sobre

outros espaços e formas de namoro, ao relatar que namoravam às sós, embaixo de pés de

ateiras, já que o namoro havia sido proibido pelo pai da moça:

Nós namorava na casa duma tal de Dão [...]. Tinha lá umas aterá, nós dois namorava

escondido lá de baixo das aterá.

[...]

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Num queria o casamento né, o jeito era namorar escondido, namoremo um horor de

tempo, mais de um ano, mas foi escondido.

[...]

Aí um bucado de aterá, nós ia pra lá, chegando lá tinha um banquim, aí lá nós

ficava até... bem, eu ficava viu, ela voltava pro ponto, aí conversava por ali, pra

poder voltar de novo. (SANTIAGO, 2011: 01- 04).

Namorar isolados, em baixo de árvores, sozinhos, sem a vigilância de um familiar,

não era uma boa opção para as moças de “família”, pois, poderiam ser alvos de mexericos

pela vizinhança. No entanto, o namoro aqui narrado, não era um namoro comum, uma vez que

havia sido proibido pelo pai da jovem. Namorar às escondidas, buscar outros espaços para se

encontrar, provavelmente foram alternativas encontradas por muitos casais da época,

impedidos de viver um amor.

Apesar das táticas utilizadas pelos casais da época para realizar os encontros e,

mesmo contando, às vezes, com o apóio de amigos, não faltavam pessoas dispostas a acabar

com as tramas de um namoro como este aqui narrado. Mesmo conseguindo manter o namoro

em segredo por mais de um ano, o Sr. Luiz lembra o momento em que foram descobertos pela

irmã da moça, a qual se encarregou de entregá-los ao pai: “Aí eu sei que uma noite finada

Maricota foi batê lá e... pegô nós mesmo... num pego no flagrante porque quando a finada

Dão apontou dizendo: “- lá vem fulano”, aí vai pra de baixo da bicha, da laranjeira... das

atêra.” (SANTIAGO, 2011: 04).

Descoberto o namoro, o pai da jovem a mudou de cidade, e a única alternativa do

casal foi manter o relacionamento através de bilhetes, trocados em segredo, com o auxilio do

irmão da moça:

Mas aí soube que eu tava com esse namoro aí, caregô ela lá pra Aracati, levo pra lá,

pra num... acabar logo o casamento. Aí levo pra lá, mas deixa que cumpade Jão era

muito meu amigo,meu cunhado, muito meu amigo. Dizia [...] “Cê quiser mandar

algum bietim pra Nininha pode levar, confie em Deus que eu levo e trago.” Eu

confiava nele porque ele levava e trazia, levava e trazia. (SANTIAGO, 2011: 01-02).

Apesar da proibição por parte do pai da moça e, ao contraria da irmã que entregou

o casal, o irmão da jovem resolveu ajudar e apoiar o namoro, o que nos faz pensar sobre o que

motivava alguém a se envolver de forma tão efetiva em uma relação proibida pela família e,

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neste caso em especial, por ser um irmão homem da moça, responsável por zelar a honra da

mesma e consequentemente o nome de toda a família.

Interessante pensar, ainda, que o casal manteve o namoro por mais de um ano

através da troca de bilhetes, quantas cartas, correspondências devem ter sido trocadas, é uma

pena não termos tido acesso a esse material, provavelmente tenham se perdido com o passar

dos anos ou destruídas quando recebidas para não serem descobertos. Sobre correspondências,

Giselle Martins Venancio (2004) lembra que por meio delas as pessoas que estão distantes

compartilham ideias, projetos e, claro, afetos. Embora o conteúdo dos bilhetes trocados entre

Luiz e Francisca chegue até nós em forma de profundo silêncio, a informação de sua

existência já é suficiente para, pelo menos, pensarmos a perseverança de um jovem casal, que

impedidos de se encontrarem, vêem na escrita, uma forma de driblar a proibição paterna,

reinventando novas maneiras de se relacionar e amar.

Apesar de todos os impedimentos impostos ao namoro de Luiz e Francisca, no

final, o pai resolveu aceitar o casamento, mas provavelmente porque viu que a filha não

desistiria do mesmo. Em várias falas o Sr. Luiz fez questão de ressaltar a coragem da jovem

Francisca em enfrentar o pai e a moral da época:

E até que um dia, já tava com bem um ano que tava lá, aí: “- papai me leve pra casa

que eu... o senhor tará pensando que vai me prender toda a vida aqui, pra eu num

casar com Luiz Agostinho tá, tá atrapalhado, que eu vô me casar mesmo é com ele,

num ai perigo.” (SANTIAGO, 2011: 02).

Francisca, através de sua coragem, representa as demais mulheres de sua época

que em nome do amor, enfrentaram a família, a sociedade e a religião para fazer valer o seu

direito de escolha; com isso, podemos dizer que os sujeitos historicamente oprimidos, como

as mulheres, tem a capacidade de “fazer da necessidade virtude, que modificam sem

espalhafato e com a astúcia suas condições de vida.” (SARLO, 2007: 16).

Muitas mulheres não tiveram a mesma sorte da jovem Francisca que, apesar de,

inicialmente, o pai se opor, tempos depois aceitou o casamento. Muitas tiveram que lançar

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mão de táticas para fazer valer sua vontade, como foi o caso da jovem Maria Joaquina6,

também impedida de casar com o homem a quem amava, acabou fugindo de casa.

A fuga de Joaquina nos foi narrada por sua irmã, Rita da Silva, de 82 anos de

idade. De toda a narrativa, o que ficou mais evidente foi a coragem e a bravura da jovem

Joaquina e de sua futura sogra, ao enfrentar o patriarca:

Joaquina fugiu. Deu uma carrera tão grande, que o véi pegô o cavalo, pegô o cavalo

e saiu atrás dela. Quando entrô na casa da Raimunda veia, Raimunda vinha cum

facão na mão, pa cortar meu pai, oia. Aí, papai bispô na porta.

Joaquina gritô: - Tô é aqui, num vô me imbora não, fugi pa me casar cum Zé e vô

me casar cum ele, viu? (SILVA, 2011: 07).

Desta fala podemos destacar a bravura de duas mulheres, primeiramente da jovem

Joaquina, que fugiu de casa correndo, sozinha, na frente de seu pai, desafiando a sua

autoridade. Em seguida vemos a coragem de sua futura sogra, Raimunda, que além de receber

a moça em sua casa, saiu ao encontro do pai da mesma, com um facão na mão para ameaçá-

lo, ao ponto do pai da jovem recuar e não poder impedir o casamento.

Para além do desejo de amar, vemos aqui, a formação de uma nova figura

feminina, que para fazer valer sua vontade, começava a enfrentar os padrões e as regras que

lhe eram impostas, passando a “[...] ameaçar a dominação masculina de forma insuportável

para homens que teriam sido educados numa ordem patriarcal.” (ALBUQUERQUE JR.,

2003: 34).

Quando o amor fala mais alto: Do impedimento à efetuação do rapto

Muitos foram os motivos que fizeram com que os casais das primeiras décadas do

século XX optassem pelo rapto. A falta de recursos financeiros para realizar o casamento, por

exemplo, era um deles, para Falci (2000) essa podia ser uma forma de não ser preciso fazer

festa, num contexto em que muitos pais acabavam tendo um gasto fora de suas condições ao

casar as filhas.

6 Substituímos o nome desta depoente por um nome fictício, assim como, os nomes dos sujeitos presentes nas

suas narrativas.

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No entanto, nossos entrevistados relataram como principal motivo da fuga, a

oposição da família. E por que a família se opunha? Observamos três motivos que se

repetiram nos relatos quanto à oposição familiar: em primeiro lugar quando o parceiro

escolhido era negro; em segundo, quando a condição social de um, era inferior a do outro; e,

em terceiro, quando o homem era dado à boêmia.

A historiografia brasileira sobre a questão racial é amplamente rica, abordando

vários aspectos acerca de como foi se constituindo a diferenciação de cor no Brasil. Nossa

herança racial é fruto da intensa mistura entre portugueses, índios e escravos, da qual resultou

a formação de um ambiente historicamente marcado por uma sociedade “altamente

estratificada entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, entre escravos e senhores, entre

‘brancos’ e ‘caboclos’.” (FALCI, 2000: 242). Em um contexto de desigualdades e

preconceitos diversos, ser negro representava do ponto de vista socioeconômico o mais

desprezível dos lugares sociais:

[...] em primeiro lugar e acima de tudo, o homem, o fazendeiro, o político, local ou

provincial, o “culto” pelo grau de doutor, anel e passagem pelo curso jurídico de

Olinda ou Universidade de Coimbra, ou mesmo o vaqueiro. O pior de tudo era ser

escravo e negro. Entre as mulheres, a senhora, dama, dona fulana, ou apenas dona,

eram categorias primarias; em seguida ser “pipira” ou “cunha” ou roceira e,

finalmente, apenas escrava e negra. (FALCI, 2000: 242).

Em vista, pois, das desigualdades e preconceitos historicamente constituídos,

muitas famílias, ao tomar conhecimento que a filha ou filho tinha como pretendente uma

pessoa dita de cor, ou seja, de pele escura, mobilizava-se para impedir a consumação de uma

relação que se iniciava com o namoro. Através de uma postura austera manifestada

principalmente pelo pai, o impedimento do consórcio afetivo, marcado pela diferença de cor,

era o desejo de não querer “misturar” a família e perder, assim, os caracteres do padrão racial

branco, tido como superior.

O Sr. Raimundo Souza7, 79 anos de idade, conta que em sua mocidade teve um

namoro impedido por conta da cor de sua pela, pois o pai de sua namorada o considerava

negro: “num queria não porque eu era nego, era, é, e eu num era nego, não, eu tinha a cor

branca, todos os documento meu, era, era cor branca. Papai num era nego, papai era moreno,

7 Substituímos o nome deste depoente por um nome fictício.

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mamãe era lôra [...].” (SOUZA, 2012: 05). O Sr. Raimundo parece tentar defende-se quanto a

sua cor, fazendo referência, inclusive, aos seus documentos, o que atesta as marcas do

preconceito que o mesmo carregou e a força que a questão racial tinha para a permissão ou

proibição das relações afetivas entre as pessoas, ou seja, ser negro era um elemento suficiente

para fazer emergir o preconceito a muito sedimentado nas relações sociais.

Joana da Silva8 também teve seu romance impedido, desta vez era o pai que se

opunha ao namoro, em detrimento a diferença da cor da pele do casal. A história de Joana foi

contada por sua irmã Maria de Jesus9, 79 anos de idade, a qual descreve a situação e os

motivos que fizeram sua irmã fugir:

[...] ela pegô a namorar cum esse rapaz. E lá, meu pai, num queria que ela namorasse

cum ele porque era moreno. [...]. Aí, quando foi um dia, [...] ela saiu, ao meio dia,

quando, nada dela aparecer mais. Aí, quando foi de tarde, chegô a futura cunhada

dela dizendo que ela tava lá. Aí, foi minha mãe disse pá meu pai: - “Joana fugiu,

fugiu só.” [...]. (JESUS, 2011: 01).

Em vista das desigualdades étnicas, historicamente constituídas, muitas famílias,

ao tomar conhecimento que a filha ou filho tinha como pretendente uma pessoa dita de cor, ou

seja, de pele escura, mobilizava-se para impedir a consumação de uma relação que se iniciava

com o namoro. Através de uma postura austera manifestada principalmente pelo pai, o

impedimento do consórcio afetivo, marcado pela diferença de cor, era o desejo de não querer

“misturar” a família e perder, assim, os caracteres do padrão racial branco, tido como

superior.

A história de Joaquina, já narrada acima por sua irmã Rita da Silva, nos ajuda a

pensar como se dava o impedimento a partir da desigualdade socioeconômica, pois sua sogra,

a mesma que no ato da fuga lhe deu abrigo, e enfrentou o pai da mesma com um facão, no

final das contas, também não aprovava o casamento. Conforme a depoente, a futura sogra de

sua irmã “[...] num queria que Joaquina casasse com Zé [...], achava ele importante, achava

ele mais que ela, queria não [...].” (SILVA, 2011: 01).

8 Este nome é fictício. 9 Substituímos o nome desta depoente por um nome fictício, assim como, os nomes dos sujeitos presentes nas

suas narrativas.

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Com base no depoimento de Rita da Silva, é possível inferir que havia uma

preocupação em preservar os bens acumulados nas famílias mais abastardas. O fato de a

diferença socioeconômica ter constituído empecilho em que se tornava quase proibido uma

moça pobre contrair núpcias com um rapaz rico, ou vice-versa, mostra que o casamento

durante muito tempo foi pensado como um negócio, permeado por interesses. As famílias

mais ricas, donas de terras e gados, como os fazendeiros, tinham a intenção de preservarem

seus bens através do casamento dos filhos, por isso procuravam pretendentes do mesmo nível

social.

Para além da diferença socioeconômica e étnica, a boemia também era um motivo

pelo qual os pais da moça poderia se opor a um namoro. Na época em que Luiz e Francisca

namoravam, Luis ficou sabendo que um compadre de seu futuro sogro, o aconselhou a

impedir o casamento, alegando o seguinte: “[...] – Cumpade num deixe aquele criatura casar

com sua filha não, que ele vai matá-la de fome, e só o... o pretexto dele é só violão, o que vai

viver é violão, e aí como é que vai viver.” (SANTIAGO, 2011: 01). Vemos aqui a

participação da sociedade na figura do compadre do sogro que o alerta quanto ao perfil

boêmio do jovem Luiz que, vivendo de festas e de tocar violão, não seria capaz de prover a

casa e nem de sustentar sua filha e seus futuros netos.

Preocupado com a vida que sua filha Francisca levaria ao lado de Luiz, o pai da

moça, viu a boêmia de Luiz como motivo suficiente para se opor ao namoro. Mas como já

vimos acima, depois de uma longa jornada de namoro às escondidas e de oposição familiar, o

sogro acabou aceitando o casamento. No entanto, nos perguntamos que contratos foram feitos

para que Luiz fosse aceito naquela família e o que teve que deixar de lado para viver esse

amor. Relembrado o lado boêmio e sua relação posterior com o sogro o Sr. Luiz falou o

seguinte:

Só sei que festa pra todo o canto que houve no mundo, pra dança, na época que

Oliveira me levava... quando me casei acabou-se, nem hoje mesmo, tá ali meu

violão, guardado lá em Antônio [...], [seu filho] nem pego mais.

[...]

Lá eu trabanhei muito à ele [ao sogro], cê vendo, terminô um homem bom pra mim,

Ave Maria, fez tudo pra.... (SANTIAGO, 2011: 05 e 06).

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É possível inferir que o jovem Luiz teve que mudar, deixar a vida boêmia e

trabalhar, para ganhar a confiança do sogro e ser aceito nessa família, pois devemos lembrar

que o casamento representava “[...] um conjunto de obrigações e direitos, de valores e práticas

reconhecidas e reafirmadas cotidianamente.” (VIEIRA JÚNIOR, 2002: 103).

Podemos perceber que os impedimentos alegados pelas famílias sobre ser negro,

ser pobre e ser boêmio não conseguiram se sobressair a nova maneira de amar e de se

relacionar que estava surgindo. O rapto, como forma de oposição aos impedimentos impostos,

conseguiu transpor as barreiras do preconceito e das relações arranjadas para realizar

casamentos por amor.

Conclusão

A ameaça à honra e à integridade moral foi uma preocupação comum em Quixeré

nas décadas de 1920-1940, de modo que, a família, a sociedade e a Igreja empenhavam-se em

vigiar, ditar regras e impor valores, sobretudo para suas moças. No entanto, quando moças e

rapazes saiam do caminho que lhe eram impostos, transgredindo as normas, quebrando as

regras, seja através do rapto ou do defloramento, as famílias rapidamente buscavam limpar a

honra da raptada e, por conseguinte, o nome da família. Se tratando de outras regiões do

Ceará houve quem recorresse à polícia, ao tribunal ou aos jornais da época; houve também

que tenha feito “justiça com as próprias mãos”, matando o “homem sedutor”. Os casos que

abordamos neste trabalho, referem-se apenas aos que “limparam a honra” com casamento.

Não podemos afirmar até que ponto o casamento redimiu esses casais diante da

sociedade em que viveram, mas uma coisa é possível inferir, tanto os homens como as

mulheres carregaram o estigma do rapto pelo resto da vida. Pois o casal tornava-se alvo de

mexericos por um bom tempo; a mulher, principalmente, ficava mal vista – “mal falada”,

tanto quando cedia aos próprios desejos, deixando-se ser deflorada, como nos casos em que,

em parceria com o namorado, planejava a fuga.

Os relatos de memória nos possibilitaram perceber vários sentimentos que

envolveram os raptos consentidos: sentimento de posse por parte dos pais, em relação as suas

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filhas; sentimentos de superioridade, quando a cor branca era posta acima da cor negra ou

quando o rico era visto como melhor que o pobre; mas encontramos também vestígios da

coragem, do amor e das emoções que um dia moveram, ou, que ainda movem esses sujeitos.

ENTREVISTAS10

JESUS, Maria da. Fuga amorosa. Quixeré, 2011. Entrevista concedida a Sandra Alves

Santiago. 79 anos.

SANTIAGO, Luiz Agostinho de. Um amor proibido. Quixeré, 2011. Entrevista concedida a

Sandra Alves Santiago. 93 anos.

SILVA, Rita da. A fuga de Joaquina. Quixeré, 2011. Entrevista concedida a Sandra Alves

Santiago. 82 anos.

SOUZA, Raimundo. Fugindo pela janela. Quixeré, 2012. Entrevista concedida a Sandra

Alves Santiago. 79 anos.

Referencias Bibliográficas

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do

gênero masculino (Nordeste - 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Edhraim Ferreira

Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.

DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

FALCI, Miridan Knox. Mulheres do sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del. (Org.).

História das mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2000: 241-273.

LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. In: Projeto História, n. 17. Novembro

de 1998.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:

companhia das Letras. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

SILVA, Renata Lutiene da. Famílias, direito, normas e poder: os diversos relacionamentos

familiares em Juiz de Fora, MG (1890-1920). 2010. Dissertação (Mestrado em História) –

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei. 2008.

10 Os nomes dos entrevistados, substituídos por nomes fictícios ao decorrer do texto, também foram substituídos

na referência das fontes.

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VENÂNCIO, Giselle Martins. Cartas a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela

história. In: Gomes Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de

Janeiro: FGV, 2004.

VIEIRA JR. Antônio Otaviano. Nas margens do casamento: sedução masculina e conflitos

amorosos em Fortaleza (1799-1820). In: SOUSA, Simone de; NEVES, Frederico de Castro

(Orgs.). Gênero. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.