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RDS IX (2017), 3, 587-642 Empréstimos sindicados: o exercício isolado de direitos por um dos credores * 1 MESTRE TERESA NOVO FARIA ** Sumário: 1. Introdução. 2. Enquadramento geral e delimitação do tema. 3. O regime dos direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário: 3.1. Classificação das obrigações quanto à pluralidade de partes; 3.2. Regime aplicável aos direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário; 3.3. Análise de algumas cláusulas típicas: traços de solidariedade ativa? 3.4. Posição adotada. 4. A possibilidade de um credor recorrer isoladamente a tri- bunal para exigir o cumprimento da prestação: 4.1. Exigência de maiorias e acceleration; 4.2. A necessidade de interpelação admonitória; 4.3. O Caso Charmway; 4.4. Lugar para- lelo: o exercício individual de direitos pelo obrigacionista; 4.5. No processo civil: legitimidade singular ou plural; 4.6. Posição adotada. 5. Excurso: a contitularidade de direitos reais de garantia. 6. Conclusão. Jurisprudência citada. 1. Introdução O Direito Bancário tem sido, nestes últimos anos, alvo de bastante atenção, quer pelo legislador nacional ou europeu, quer pelas autoridades reguladoras nacionais e internacionais, quer pela doutrina, quer pela imprensa. A verdade é que é um ramo que tem estado em grande transformação e, talvez precisa- mente por isso, tenha crescido também o número de congressos, cursos e pales- tras subordinados a temas bancários. Neste contexto, muitos seriam os temas interessantes que se poderiam aqui abordar. Por essa razão, importa explicar as * Texto apresentado no Curso de Pós-Graduação Avançada em Direito Bancário, do Centro de Investigação de Direito Privado, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. ** Advogada na Linklaters LLP, Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Book Revista de Direito das Sociedas 3 (2017).indb 587 Book Revista de Direito das Sociedas 3 (2017).indb 587 21/09/17 15:18 21/09/17 15:18

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Empréstimos sindicados: o exercício isolado de direitos por um dos credores*

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MESTRE TERESA NOVO FARIA**

Sumário: 1. Introdução. 2. Enquadramento geral e delimitação do tema. 3. O regime dos direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário: 3.1. Classifi cação das obrigações quanto à pluralidade de partes; 3.2. Regime aplicável aos direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário; 3.3. Análise de algumas cláusulas típicas: traços de solidariedade ativa? 3.4. Posição adotada. 4. A possibilidade de um credor recorrer isoladamente a tri-bunal para exigir o cumprimento da prestação: 4.1. Exigência de maiorias e acceleration; 4.2. A necessidade de interpelação admonitória; 4.3. O Caso Charmway; 4.4. Lugar para-lelo: o exercício individual de direitos pelo obrigacionista; 4.5. No processo civil: legitimidade singular ou plural; 4.6. Posição adotada. 5. Excurso: a contitularidade de direitos reais de garantia. 6. Conclusão. Jurisprudência citada.

1. Introdução

O Direito Bancário tem sido, nestes últimos anos, alvo de bastante atenção, quer pelo legislador nacional ou europeu, quer pelas autoridades reguladoras nacionais e internacionais, quer pela doutrina, quer pela imprensa. A verdade é que é um ramo que tem estado em grande transformação e, talvez precisa-mente por isso, tenha crescido também o número de congressos, cursos e pales-tras subordinados a temas bancários. Neste contexto, muitos seriam os temas interessantes que se poderiam aqui abordar. Por essa razão, importa explicar as

* Texto apresentado no Curso de Pós-Graduação Avançada em Direito Bancário, do Centro de Investigação de Direito Privado, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.** Advogada na Linklaters LLP, Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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razões que conduziram à escolha de um tema relacionado com sindicatos ban-cários e empréstimos sindicados.

Atualmente, no comércio internacional, deparamo-nos frequentemente com a necessidade de fi nanciamento de projetos ou infraestruturas de grande dimensão ou de aquisição de grupos empresariais, as primeiras realizadas muitas vezes através da modalidade designada Project Finance. De forma muito sim-plista, pode afi rmar-se que o Project Finance é uma operação complexa de fi nan-ciamento dirigido a um projeto de investimento em concreto e não a uma empresa, que tem como suporte um conjunto diversifi cado de contratos e é tipicamente usado para a construção de grandes infraestruturas1. Nestas ope-rações – habitualmente suportadas por fi nanciamento bancário proveniente de um conjunto de bancos que constitui aquilo que habitualmente se chama um sindicato bancário – os bancos assumem riscos elevados pois as quantias a fi nanciar são avultadas, o principal ativo não existe (ainda vai ser construído!) e os prazos para amortização são normalmente bastante alargados. Como bem explica Januário da Costa Gomes, neste tipo de operação “o risco do crédito está estruturalmente dependente da consecução do projeto, razão pela qual o cash-fl ow gerado pelo mesmo terá que ser bastante para amortizar o crédito concedido”2.

Dir-se-á que já fi caram para trás os tempos áureos do Project Finance, impul-sionados pelo sector público e as suas parcerias público-privadas, em que a necessidade de investimento em infraestruturas era evidente e que agora, em Portugal, surgem cada vez menos projetos que podem benefi ciar deste tipo de fi nanciamento. A verdade é que, para além de continuarem a surgir projetos deste tipo, os fi nanciamentos sindicados são também frequentemente utilizados para outro tipo de operações como a aquisição de grupos empresariais ou a restruturação ou refi nanciamento de determinada empresa. Tanto no âmbito do Project Finance como fora dele, faz sentido que, perante necessidades avul-tadas de fi nanciamento, as instituições de crédito prefi ram partilhar o risco3

1 Sobre Project Finance no âmbito do direito português veja-se, entre outros, Gabriela Figueiredo Dias, “Project Finance (Primeiras Notas)”, in Miscelâneas do IDET, Coimbra, Almedina, 2004, p. 113-160, Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra, Almedina, 2015, p. 529 e ss., Bruno Ferreira, “Mecanismos de garantia em Project Finance”, in Temas de direito comercial ( J. P. Remédio Marques, Bruno Ferreira, Nuno Tiago Trigo dos Reis), Coimbra, Almedina, 2009, p. 105-181, Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 197 e ss., Engrácia Antunes, “Os contratos bancários”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida (com. org. José Lebre de Freitas [et al.]), Vol. II, Coimbra, Almedina, 2011, p. 123 e ss..2 Cfr. Januário da Costa Gomes, Contratos Comerciais, Coimbra, Almedina, 2012, p. 285. 3 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, ob. cit., p. 128: “o empréstimo sindicado tem a óbvia vantagem da dispersão do risco do devedor.”.

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associado ao fi nanciamento com outras instituições de crédito, ou porque as quantias necessárias excedem a capacidade de fi nanciamento de uma única ins-tituição de crédito ou porque, mesmo que não excedam, podem acarretar um excesso de concentração de risco em uma só empresa ou projeto ou implicar um esforço excessivo para cumprir rácios de capital ou de solvabilidade4 a que as instituições de crédito se encontram sujeitas. O facto de existirem diversos credores poderá tornar a negociação dos contratos mais morosa uma vez que, para além da mutuária, há vários intervenientes a negociar o contrato e a pro-curar tutelar a sua posição e, por vezes, os interesses, preocupações e regras internas dos diversos credores poderão não coincidir. Contudo, os interesses dos diversos credores estão alinhados em diversas matérias – querem garantir que irão ser reembolsados pelo crédito prestado acrescido dos respetivos juros e comissões – o que faz com que seja mais efi ciente e mais prático até para o devedor celebrar apenas um contrato de fi nanciamento em vez de assinar um contrato de fi nanciamento e um contrato de garantias com cada um dos credores. Para além das questões habituais reguladas em qualquer contrato de fi nanciamento, vai ser então necessário regular – quer seja no próprio contrato

4 Em poucas palavras, pode dizer-se que o rácio de solvabilidade mede a relação entre os fundos próprios do banco e os seus ativos ponderados pelo risco. Os fundos próprios ou capital são classifi cados em diversas categorias e incluem o capital social, as reservas, os resultados não distribuídos e outros tipos de fundos. No ativo encontram-se os direitos e os bens do banco, designadamente, para o que aqui nos importa, os empréstimos que concede aos clientes. Os ativos do banco são avaliados conforme o risco que apresentam e assim enquadrados em diferentes classes de ativos: os créditos de menor risco exigem menor percentagem de capitais próprios e os créditos de maior risco exigem maior percentagem de capitais próprios. A preocupação subjacente aos rácios de solvabilidade é assegurar que as instituições de crédito mantêm níveis de fundos próprios adequados à dimensão do seu ativo com o objetivo de garantir a sua solvência e a estabilidade do sistema fi nanceiro. Este não é o local adequado para explicar a evolução da supervisão prudencial bancária e todo o enquadramento legislativo e regulatório relacionado com estes temas. Para aprofundar um pouco melhor o tema do rácio de solvabilidade e de outros rácios e regras impostos aos bancos, veja-se pelo menos a Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013 relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento (CRD IV), o Regulamento (UE) N.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013 relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento e o Decreto-lei n.º 157/2014, de 24 de Outubro de 2014, nas suas versões atuais. Sobre a forma como a CRD IV e os Acordos de Basileia II e III (um conjunto de propostas de reforma da regulamentação bancária preparado pelo Basel Committee on Banking Supervision) afetam o mercado de empréstimos sindicados, veja-se por exemplo Loan Market Association, A Loan Market Association Guide – Regulation and the Loan Market, 3rd edition, London, The Loan Market Association, 2015, p. 5 e ss e Tony Rhodes (ed.), Syndicated Lending. Practice and Documentation, 6th edition, London, Euromoney institutional investor, 2013, p. 53 e ss.

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de fi nanciamento, quer seja noutro contrato celebrado entre as partes relevan-tes, como adiante se explicará com maior detalhe – outras questões relacionadas com as relações entre os diversos credores e as relações entre o devedor e os diversos credores.

À primeira vista, os contratos de empréstimo sindicado parecem não se enquadrar exatamente em nenhum tipo de contrato legalmente tipifi cado no ordenamento jurídico português. Para além da designação “sindicato bancário” ou “empréstimo sindicado” não surgir como nomen iuris de nenhum contrato, não encontramos nenhum outro contrato já regulado na nossa ordem jurídica que corresponda exatamente à realidade que aqui analisamos5. Em segundo lugar, basta iniciar a leitura destes contratos para logo nos depararmos em diver-sas cláusulas com algumas realidades que não conseguimos imediatamente iden-tifi car com nenhum instituto jurídico português: fala-se em acceleration, negative pledge6, cross default7, entre outras8. É certo que estes contratos não surgiram pela primeira vez em Portugal, tendo sido importados9, e que, muitas vezes, mesmo celebrados em Portugal, estão sujeitos a lei diferente da Portuguesa10.

5 Sem prejuízo do que aqui se afi rma, veja-se adiante, no ponto 2 deste artigo, pp. 596, que alguma doutrina aproxima ou identifi ca o sindicato bancário com um consórcio, tal como regulado no Decreto-Lei n.º 231/81, de 28 de julho. 6 Sobre as cláusulas de garantia e segurança do crédito veja-se, em especial, Fernando Pessoa Jorge, “A garantia contratual da igualdade dos credores nos empréstimos internacionais”, in Estudos, Vol. I, Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, Lisboa, 1983, pp. 133-176, Sérgio Coimbra Henriques, “Cláusulas de garantias e segurança. Entre a autonomia da vontade e o dever de cumprir – Alguns aspectos”, in RDS, n.º 3/4, 2014, Joana Forte Pereira Dias, “Contributo para o estudo dos actuais paradigmas das cláusulas de garantia e/ou segurança: a pari passu, a negative pledge e a cross default”, in António Menezes Cordeiro/Luís Menezes Leitão/Januário da Costa Gomes (org.), Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. IV, 2003, pp. 879-1029 e, sobre a cláusula negative pledge em particular, veja-se ainda Menezes Cordeiro, “Negative pledge: um estudo comparatístico”, in O Direito, Coimbra, A. 142, n.º 3 (2010), p.497-538.7 Sobre a cláusula de cross default em particular veja-se João Serras de Sousa, “A cross default num confronto com a lei das cláusulas contratuais gerais – uma questão de validade”, in Revista de Direito Civil, Lisboa, A. 1, n.º 2 (2016), p. 451-479 e Diana Serrinha Rosa, “As cláusulas cross default no ordenamento jurídico português”, in RDS, A. 8, n.º 1 (2016), Almedina, p. 211-246. 8 Note-se que estas cláusulas não são exclusivas dos contratos de fi nanciamento sindicado, surgindo também em contratos de fi nanciamento bilaterais. 9 Sobre a origem e antecedentes dos sindicatos bancários veja-se Luís Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, in António Menezes Cordeiro/Luís Menezes Leitão/Januário da Costa Gomes (org.), Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. II: Direito bancário, Coimbra, Almedina, 2002, p. 519-564, p. 520 e ss. em especial.10 Cfr. neste sentido Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p. 523. Veja-se que, apesar de conhecermos vários empréstimos sindicados regulados pela

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Todavia, o facto de terem origem noutra ordem jurídica e de serem redigidos, na esmagadora maioria das vezes, em inglês, traz muitas vezes difi culdades na sua transposição ou adequação ao ordenamento jurídico nacional. Ora, um jurista não se deve limitar a acolher na sua ordem jurídica uma realidade ou um contrato com origem estrangeira sem procurar aferir, à luz do Direito Portu-guês, a validade das respetivas cláusulas e soluções e a forma como poderão ser executadas na nossa ordem jurídica.

Acresce que, embora existam pelo menos dois estudos11 interessantes e bastante completos especifi camente sobre sindicatos bancários, não existe um extenso tratamento doutrinário sobre estes temas12 13 e parece-nos que há

lei portuguesa, dos inúmeros contratos de fi nanciamento relativos a projetos de infraestruturas rodoviárias disponíveis em http://www.utap.pt/, a grande maioria não são sujeitos a lei portuguesa, à exceção, dos contratos relativos a garantias – Security Agreement e Call Option Agreement – uma vez que o regime dos direitos reais “é defi nido pela lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas” (cfr. artigo 46.º, n.º 1, do CC). O artigo 46.º do Código Civil aplica-se também, como confi rma a doutrina, aos direitos reais de garantia (cfr. Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. II, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 541). Questão mais complexa é, nos casos em que o direito real surge no âmbito de um negócio jurídico, a delimitação entre aquilo que é o estatuto contratual e o estatuto real e, consequentemente, aquilo que pode ser regulado pela lex contractus e aquilo que deve ser regulado pela lex rei sitae. Sobre este tema veja-se, entre outros, Lima Pinheiro, Direito Internacional..., ob. cit., p. 541 e ss. e João Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009, p. 379 e ss.11 Referimo-nos aos seguintes artigos: Luís Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p.519-564 e Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa: notas sobre o regime das obrigações dos membros do sindicato bancário”, in Armando Marques Guedes [et al.] (org.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 141-189. 12 Saliente-se que é possível encontrar doutrina relevante sobre os chamados empréstimos cristal, assim chamados por se extraírem as iniciais de “crédito ao investimento sindicado por tranches afetadas em leilões”. Trata-se de uma fi gura um pouco diferente porque pressupõe não só a celebração de um contrato de empréstimo e a constituição de um sindicato bancário como a celebração periódica de contratos de tomada de créditos na sequência de leilão. Sobre os empréstimos cristal veja-se, na jurisprudência, a decisão do STJ de 8 de fevereiro de 2001 publicada na RLJ, n.º 3919-3920, Ano 133.º, p. 319 e ss., com comentário de Calvão da Silva e, na doutrina, Inocêncio Galvão Telles, “Empréstimos Cristal (uma nova realidade bancária)”, in O Direito, Lisboa, 1993, I-II, pp. 177 e ss, Menezes Cordeiro, “Empréstimos Cristal – natureza e regime”, in O Direito, 1995, III-IV, pp. 463 e ss., Vasco Soares da Veiga, Direito bancário, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 1997, pp. 483 e ss., Inocêncio Galvão Telles, “Empréstimo Cristal. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 88/2003”, in O Direito, Lisboa, A.134-135 (2002-2003), p.143-154.13 São parcas as referências na doutrina portuguesa a empréstimos sindicados ou a crédito sindicado, para além dos dois artigos já referidos. Veja-se, contudo, as breves referências de António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 776-777, Januário da Costa

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diversas questões que permanecem por responder14 ou mesmo por problema-tizar. Neste contexto, propomo-nos analisar, à luz do Direito Português, um tema muito específi co no âmbito dos contratos de empréstimo sindicado sujei-tos a lei portuguesa: pode um credor, isoladamente, recorrer a tribunal para fazer valer os seus direitos ao abrigo de um contrato de fi nanciamento cele-brado por diversos bancos como mutuantes e, designadamente, recuperar mon-tantes em dívida pela mutuária sem concurso da vontade ou consentimento de um ou mais credores? Adicionalmente, e sem pretensões de resolver a questão em defi nitivo, analisaremos ainda algumas especifi cidades que a constituição de direitos reais de garantia para assegurar as obrigações emergentes dos emprésti-mos sindicados possam trazer a este mesmo tema.

Para isso, tomaremos como base as cláusulas modelo tal como constam do Multicurrency Term and Revolving Facilities Agreement da Loan Market Association (doravante designada LMA), uma vez que os contratos da LMA são os mais uti-lizados na prática – ainda que as partes possam negociar e introduzir alterações a este clausulado – e, por isso, a sua análise revela-se mais útil15. Diga-se ainda, sobre este clausulado modelo apresentado pela LMA, que não encontramos aqui um tipo de contrato de adesão em que as partes se limitam a aceitar ou rejeitar as cláusulas tal como estão, sem liberdade de negociação ou estipulação. Isto é, não nos parece que o facto de as partes recorrerem aos contratos modelo da LMA signifi que que possa ser aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais, em que as instituições de crédito desempenhariam o papel de contraente que impõe o clausulado ao outro contraente – a mutuária – que, por sua vez, não teria qualquer poder negocial ou liberdade para negociar os respetivos termos e condições. Na verdade, a documentação necessária para a celebração de um empréstimo sindicado é bastante complexa, e está sempre sujeita a forte

Gomes, Contratos Comerciais, ob. cit., pp. 282-283 e Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, ob. cit., p. 128 e ss..14 Joana Ribeiro Fragata enuncia diversas questões pertinentes em relação às quais, contudo, não adianta uma resposta: “Coloca-se assim a questão da eventual violação contratual por parte do mutuário que cumpra a obrigação perante um banco participante que não o líder do sindicato.”, “será possível sustentar que aos bancos é imposto o dever de não ingerir nas relações do líder do consórcio com o mutuário, abstendo-se de desenvolver esforços para recuperar o crédito caso o líder o possa fazer? Caso um dos bancos participantes não se abstenha de intervir na recuperação de montantes poderá este facto ser gerador de responsabilidade?” – cfr. “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa...”, ob. cit., pp. 166-167.15 Note-se que a LMA fornece diversos modelos de Facility Agreement consoante o tipo de mutuária e o tipo de crédito em causa. Optámos pelo Multicurrency Term and Revolving Facilities Agreement por nos parecer o mais comum, o mais analisado pela doutrina nacional e internacional e aquele que tem vocação para ser aplicado a mais realidades. Este contrato está pensado para Investment Grade, isto é, para uma mutuária que possui um rating acima de BBB- ou Baa.

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negociação pelas partes e pelos seus advogados, pelo que não só não é verdade que os termos e condições negociais sejam inalteráveis, como facilita e agiliza bastante o processo o facto de existirem contratos tipo, pensados e desenvolvi-dos durante muito tempo e atualizados de forma a responderem a todas as ques-tões que surgem na prática ao longo do tempo. Esta realidade traz vantagens tanto para os mutuantes como para o mutuário, pois o encurtar de tempo e complexidade nas negociações vai permitir-lhe, num mercado efi ciente, obter um crédito mais barato.

2. Enquadramento geral e delimitação do tema

Para enquadrar o tema que aqui nos traz não podemos deixar de expli-car resumidamente as partes envolvidas e a estrutura contratual16 associada a um empréstimo sindicado. A nível contratual, existirá sempre um contrato de empréstimo sindicado ou contrato de fi nanciamento (facility agreement), sendo ainda habitual encontrar um contrato entre credores ou acordo interbancário (intercreditor agreement), um contrato de garantias (security agreement), um contrato relativo às contas (accounts agreement), cartas relativas às comissões devidas pela mutuária aos bancos (fee letters) e ainda instrumentos ou contratos de cober-tura do risco de variação da taxa de juro (hedging agreements). Para além destes documentos que efetivamente constituem o sindicato bancário e documen-tam a relação creditícia entre mutuária e fi nanciadores, bem como as garantias associadas, veja-se que o processo de estruturação do empréstimo sindicado costuma iniciar-se através de uma carta-mandato (mandate letter) ou commitment letter através da qual a mutuária contrata o banco organizador (arranger) para que este obtenha o fi nanciamento desejado, isto é, encontre bancos dispostos a integrar o sindicato. Nesta fase inicial, é comum fi carem desde logo acordados os principais termos e condições do fi nanciamento na fi cha técnica (term sheet) habitualmente anexa à carta mandato17.

No que respeita às partes envolvidas, encontraremos sempre, pelo menos: (i) uma mutuária a quem será concedido o crédito; (ii) as instituições de crédito

16 Cfr. The Loan Market Association, A Loan Market Association Guide – A Guide to Syndicated Loans & Leveraged Finance Transactions, London, Loan Market Association, 2013.17 Sobre esta fase inicial anterior à formação do sindicato bancário veja-se com maior detalhe, na doutrina nacional, Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., pp. 526-531 e, na doutrina internacional, com maior detalhe sobre as diversas fases, Tony Rhodes (ed.), Syndicated Lending…, ob. cit., p. 249 e ss. e Lars Gorton, “Syndicated Loans – Some thoughts on the Reception of Anglo-American Contract Practice into Swedish Law”, in EBLR, Vol. 18, n. 1-3, 2007, p. 313-334, p. 317 e ss. em especial.

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que concedem o fi nanciamento designadas por Bancos, Partes Financiadoras ou Mutuantes; e (iii) uma entidade – normalmente um dos bancos que participa no sindicato concedendo crédito – que desempenha as funções de banco agente18. Habitualmente, serão ainda partes (i) o agente das garantias (security agent) – que poderá ser ou não a mesma entidade que o agente; (ii) uma outra sociedade, que poderá ser acionista da mutuária e que desempenha funções de garante; (iii) outras sociedades do grupo da mutuária que concedem garantias reais ou pessoais a favor das entidades fi nanciadoras; e, por vezes, (iv) instituições – que podem ou não coincidir com as entidades fi nanciadoras – que celebram com a mutuária instrumentos de cobertura do risco de variação da taxa de juro.

Como referimos acima na introdução, identifi camos nos empréstimos sin-dicados duas vertentes distintas que se podem também desdobrar, ou não, em dois contratos diferentes: a relação de mútuo ou concessão de crédito existente entre a mutuária e os bancos participantes do sindicato, regulada no contrato de fi nanciamento, e a relação dos próprios bancos entre si e destes com o banco agente que – como veremos – poderá encontrar-se regulada no contrato de fi nanciamento ou no contrato entre credores. Contudo, a divisão entre o que é regulado num ou noutro contrato não é absoluta e acabamos por encontrar matérias no contrato de fi nanciamento que respeitam às relações das institui-ções de crédito com o banco agente, ao mesmo tempo que a própria mutuária também é parte no contrato entre credores. No que respeita ao tema deste artigo, tendo percorrido quer o referido modelo de facility agreement, quer o modelo de intercreditor agreement19, verifi cámos que as cláusulas mais relevantes para a nossa análise se encontram no primeiro.

Por um lado, temos então a relação entre o mutuário e os mutuantes que, como já se deixa antever pela designação dos contraentes, tem por matriz ou

18 Como referido acima, o processo inicia-se, na verdade, com a mutuária e um banco com o qual a mutuária já tem frequentemente relação anterior que será mandatado como organizador (arranger), através da commitment letter ou mandate letter, para obter o fi nanciamento pretendido ou mais precisamente para encontrar bancos dispostos a integrar o sindicato bancário com determinadas condições e organizar o processo. Não nos referimos neste trabalho ao arranger porque é uma entidade que surge inicialmente mas não é a que mais importa para o tema aqui em discussão. De qualquer forma, o banco organizador (arranger) coincide muitas vezes com o banco agente, sendo essa a fi gura que aqui mais releva.19 O Multicurrency Term and Revolving Facilities Agreement da LMA que usamos como base para a nossa análise não tem associado um Intercreditor Agreement, contudo, podemos analisar, em alternativa, o Intercreditor Agreement for Leveraged Acquisition Finance Transactions.

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paradigma20 o contrato de mútuo21. A concessão de crédito por bancos pode revestir inúmeras modalidades (abertura de crédito, desconto bancário, crédito ao consumo, etc.), não sendo este o local adequado para descrever o regime de cada uma22. No que respeita ao contrato objeto deste artigo, o qual pode-remos designar por empréstimo bancário ou simplesmente por contrato de fi nanciamento, podemos encontrar elementos legislativos relevantes quer nos artigos 1142.º e ss. do Código Civil, quer nos artigos 394.º e ss. do Código Comercial, quer ainda no Decreto-Lei n.º 32 765, de 29 de abril de 1943 ou no Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de dezembro. Esta relação contratual entre mutuária e bancos membros do sindicato bancário é normalmente qualifi cada pela doutrina preferencialmente como contrato de abertura de crédito, pela sua maior fl exibilidade23, e não estritamente como mútuo. No nosso caso deve-mos deixar claro que, sem prejuízo da relevância do mútuo, estes contratos de fi nanciamento confi guram quase sempre aberturas de crédito, por colocarem à disposição do cliente, por determinado período de tempo, uma quantia em dinheiro – uma “facilidade” – que o cliente poderá utilizar ou movimentar mediante pedido e daí a sua habitual designação em inglês por facility agreement.

Por outro lado, existe a relação dos próprios credores entre si e destes com o habitualmente designado banco agente que, conforme referido, é nor-malmente um dos participantes no empréstimo que assume, simultaneamente,

20 Recorremo-nos da expressão usada por Miguel Brito Bastos em O Mútuo Bancário – ensaio sobre a estrutura sinalagmática do contrato de mútuo, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 9: “O mútuo como paradigma dos contratos de concessão de crédito”.21 Muito se poderia dizer sobre o mútuo, a sua habitual caracterização como contrato unilateral e real quoad constitutionem, o facto de alguma doutrina e jurisprudência mais atual afi rmar o seu carácter consensual por oposição a real quoad constitutionem ou reconhecer a existência do mútuo consensual para além do mútuo real e o trabalho recente de Miguel Brito Bastos que, contra grande parte da doutrina, vem defender a sinalagmaticidade do mútuo. A questão da natureza do mútuo é relevante para este trabalho e tem implicações a diversos níveis, designadamente no campo da cessação destes contratos por meio de resolução e na aplicação e interpretação do artigo 781.º do Código Civil. Contudo, dada a extensão deste trabalho e a delimitação do seu objeto, não é possível aprofundar este tema. Com interesse sobre este tema veja-se, entre outros, Januário da Costa Gomes, Contratos Comerciais, ob. cit., pp. 315-318, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, 11.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 380 e ss., Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II – Conteúdo. Contratos de Troca, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 141, e Miguel Brito Bastos, O Mútuo Bancário…, ob. cit., p. 17 e ss. em especial sobre a validade do mútuo consensual e p. 75 e ss. em especial sobre o seu carácter sinalagmático.22 Sobre os diversos contratos de crédito bancário veja-se, com relevância, Januário da Costa Gomes, Contratos Comerciais, ob. cit., p. 313 e ss. e p. 280 e ss., Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, ob. cit., p. 496 e ss., Menezes Cordeiro, Direito Bancário, ob. cit., 693 e ss.. 23 Neste sentido Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p. 523.

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funções administrativas e de gestão do sindicato bancário e da relação entre os bancos e a mutuária. Estas relações entre credores são por vezes reguladas pelas partes num outro contrato designado em português por Contrato entre Credores ou Acordo Interbancário24. A pouco vasta doutrina que já se debru-çou sobre este tema procurou analisar o conteúdo socialmente típico destes contratos que regulam as relações entre credores, tendo concluído que se apro-ximam ou identifi cam com a fi gura do consórcio, regulado no Decreto-Lei n.º 231/81, de 28 de Julho25. Não é nosso objetivo, com este trabalho, tomar posição defi nitiva sobre esta questão. Contudo, não deixaremos de dizer que, embora sejam percetíveis algumas semelhanças entre um sindicato bancário e um consórcio e não seja de rejeitar totalmente a aplicação – direta ou por analogia – de algumas normas constantes do respetivo regime jurídico, não nos parece que o sindicato bancário seja uma das realidades que se pretende regular com o Decreto-Lei n.º 231/81. O seu preâmbulo deixa claro que se pretendem regular as chamadas joint ventures ou grande parte das unincorporated joint ventures e a enumeração dos possíveis objetos do consórcio constante do seu artigo 2.º inclui um conjunto de realidades onde difi cilmente se enquadra, diretamente, a concessão de um empréstimo ou a disponibilização de capital26.

24 Cfr. Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p. 523 e Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa...”, ob. cit., p. 142 em especial. 25 Cfr. neste sentido Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., pp. 541-542 em especial, Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa...”, ob. cit., p. 170 e ss. em especial e, aparentemente no mesmo sentido, Januário da Costa Gomes, Contratos Comerciais, ob. cit., p. 282. Afi rmando que o “consórcio bancário de fi nanciamento” não é um consórcio “tal como a fi gura é prevista e regulada no regime jurídico dos contratos de consórcio e de associação em participação”, veja-se Victor Sérgio de Castro Nunes, O Direito Aplicável ao Consórcio Bancário Internacional de Financiamento, Relatório de mestrado em ciências jurídicas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2000, policopiado, p. 41. Pronunciando-se também contra a consideração dos sindicatos bancários como integrantes do tipo legal de consórcio veja-se ainda Rui Pinto Duarte, “Formas Jurídicas da Cooperação entre Empresas”, in Escritos Jurídicos Vários 2000-2015, Coimbra, Almedina, 2015, p. 429. 26 A doutrina tem discutido a natureza da enumeração do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 231/81, designadamente se estamos perante uma enumeração taxativa (cfr. Raúl Ventura, “Primeiras notas sobre o contrato de consórcio”, in ROA, Ano 41, Setembro-Dezembro 1981, p. 644 e Manuel António Pita, “O Contrato de Consórcio – Notas e Comentários”, in RDES, Coimbra, A. 30, n.º 2 (Abr.-Jun.1988), p.189-235, p. 200 em especial) ou exemplifi cativa (Luis Ferreira Leite, Novos Agrupamentos de Empresas, Porto, Athena, 1982, p. 37), havendo ainda quem defenda que se trata de uma tipicidade delimitativa (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. I, Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 1992, pp. 331-332). Sobre este tema veja-se, por todos, Paulo Alves de Sousa de Vasconcelos, O Contrato de Consórcio – no âmbito dos contratos de cooperação entre empresas, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 41 e ss.

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Vejamos ainda, resumidamente, que características específi cas têm os empréstimos sindicados que possam justifi car a análise que aqui nos propomos fazer. Os contratos de onde resultam os empréstimos sindicados procuram de alguma forma limitar a possibilidade de um credor agir de forma isolada e inde-pendente. Isto é, por um lado, a documentação contratual que dá forma a um empréstimo sindicado procura garantir que cada um dos credores tem direitos e obrigações individuais e separados, enquanto, por outro lado, procura assegurar que os credores atuam em conjunto maxime, através do banco agente, quando se relacionam com o devedor. Procura ainda que cada credor seja tratado de uma forma igual ou proporcional e que nenhum deles seja benefi ciado ou pre-judicado em relação a outro, exceto na medida daquilo que for expressamente acordado pelas partes27. Estes objetivos algo contraditórios geram uma tensão e, por vezes, alguma incerteza sobre os direitos dos credores que podem ser exercidos isoladamente e aqueles cujo exercício dependerá de uma maioria simples ou qualifi cada (ou até da unanimidade) dos credores ou das respetivas participações no crédito. As entidades fi nanciadoras vivem um confl ito interno – refl etido na documentação contratual – entre ceder os seus direitos indivi-duais a favor de uma maioria que pode ou não coincidir com a sua vontade e reservarem para si um conjunto de direitos ou faculdades de exercício isolado que, contudo, vão também poder ser exercidos isoladamente pelas restantes entidades fi nanciadoras, o que pode por sua vez tornar as primeiras reféns destas últimas28. Encontrar o equilíbrio ideal entre os direitos que fi cam reservados a cada um dos credores isoladamente e os que fi cam sujeitos a uma decisão maio-ritária ou de unanimidade, é talvez, das decisões simultaneamente mais difíceis e mais importantes na negociação do conjunto de contratos de onde resulta um fi nanciamento sindicado. O equilíbrio a que as partes conseguirem chegar durante a negociação deverá fi car devidamente refl etido na redação concreta das cláusulas do contrato de fi nanciamento pois, em caso de litígio, será aí que o Tribunal irá procurar respostas29.

27 Cfr. em sentido semelhante Philip Rawlings, “Majority rule and minority rights in syndicated loans” in Journal of International Banking & Financial Law, 2016, Volume 31/Issue 2, February, p. 2 da versão online consultada em www.lexisnexis.com (mediante assinatura).28 Cfr. neste sentido Gaspar Atienza, Rodrigo Berasategui, Marcos Botella y José Guardo, “La Financiación de Proyectos de Energías Renovables”, in Cuadernos de derecho y comercio, n.º 51, 2009, p. 133, consultado online na plataforma Vlex.29 Em sentido semelhante veja-se Richard Hooley, “Enforcing syndicated credit agreements: all for one and one for all?”, in Journal of International Banking & Financial Law, 2016, Volume 31, Issue 2, February, p. 74, consultado online em www.lexisnexis.com (mediante assinatura): “A syndicated credit agreement treads a fi ne line between protecting the rights of individual lenders and maintaining collective action when the syndicate deals with the borrower. Where that line

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Ora, como é do conhecimento geral, em regra, qualquer credor pode intentar uma ação em tribunal para fazer valer os seus direitos e, designada-mente, recuperar montantes em dívida, sem ter em consideração interesses de outros30 ou, mais precisamente, sem depender da vontade de outros credores do seu devedor para iniciar a ação. Contudo, poderá também um membro do sindicato bancário propor individualmente uma ação tendente à reparação dos seus direitos ao abrigo do contrato de fi nanciamento sem ter em considera-ção a vontade dos seus cocredores? Para responder a esta pergunta teremos de analisar, em primeiro lugar, o regime dos direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário e, de seguida, perceber se há cláusulas contratuais que limitem o exercício isolado de determinados direitos pelos bancos. Com este objetivo, examinaremos ainda, de forma breve, uma decisão judicial estrangeira recente que versou este tema, pois parece-nos trazer contributos relevantes para a discussão. Pelas semelhanças que apresenta face à situação aqui discutida, veremos ainda, sumariamente, como lugar paralelo, a possibilidade de exercí-cio individual de direitos pelo obrigacionista de uma sociedade que se fi nancie recorrendo à emissão de obrigações. Ainda com o objetivo de responder à questão colocada, vamos investigar de forma perfunctória como é que esta situação pode ser processualmente confi gurada, designadamente na perspetiva da legitimidade processual do(s) banco(s). Por fi m, iremos considerar a hipótese de terem sido constituídas garantias reais a favor da pluralidade de membros do sindicato bancário, questionando se isso implicará uma resposta diferente à mesma pergunta.

Veja-se que questão diferente da que aqui nos traz é a de saber, no âmbito das situações em que, nos termos do contrato, cabe à maioria dos credores tomar determinada decisão, em que casos podem os credores minoritários impugnar em tribunal as decisões da maioria dos credores31. Não é o tema que nos propomos tratar, mas podemos adiantar que acompanhamos Vasconcelos Abreu quando afi rma que existe uma obrigação recíproca de boa-fé acrescida32. Note-se que as entidades fi nanciadoras decidem celebrar fi nanciamentos sin-

is drawn turns on the court’s construction of the wording of the particular credit agreement before it.”.30 Não se quer com isto dizer que não possam surgir no processo outros credores que tenham até preferência na satisfação do seu crédito face ao credor que iniciou a ação em tribunal. Contudo, este credor não precisou de consultar ou obter o consentimento dos restantes credores para iniciar a referida ação e procurar obter o reembolso dos montantes em dívida. 31 Sobre este tema veja-se, com interesse, Edwin Cheyney, “Syndicated Loans – Position Of Minority Lenders” in Journal of International Banking & Financial Law, 2003, Volume 18, Issue 3, March, consultado online em www.lexisnexis.com (mediante assinatura).32 Cfr. Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p. 539.

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dicados para partilhar os riscos associados ao fi nanciamento, identifi cando-se assim este tipo de contrato com uma forma de cooperação económica, e que perpassa por todo o contrato um objetivo de tratamento igualitário dos cre-dores com deveres exigentes de informação, cooperação e lealdade. Assim, e apesar de ser um direito da maioria dos credores tomar determinadas decisões, os credores minoritários poderão colocar em causa as suas decisões quando a maioria dos credores não atuar de acordo com a boa-fé, recorrendo para isso, designadamente, ao instituto do abuso de direito33.

3. O regime dos direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário

3.1. Classifi cação das obrigações quanto à pluralidade de partes

Do conjunto de contratos celebrados pelos diversos intervenientes numa operação de fi nanciamento sindicado emergem inúmeras relações relevantes e respetivos direitos e obrigações daí decorrentes, que poderiam ser aqui objeto de análise: as relações entre o mutuário e as instituições que o fi nanciam, entre o banco agente e as restantes instituições que concedem crédito, entre os vários fi nanciadores e outras empresas que concedem garantias e ainda, entre outras, as relações entre as próprias instituições que concedem crédito entre si. Interessa--nos aqui observar, em especial, o regime das obrigações que emergem, para as entidades credoras, do contrato de fi nanciamento sindicado e, principalmente, o regime da posição credora das entidades fi nanciadoras face ao mutuário que resulta desse mesmo contrato de concessão de crédito.

Considerando o disposto no nosso Código Civil, especialmente no artigo 512.º e seguintes, uma das clássicas distinções que a doutrina faz quanto às obrigações é relativa ao número de sujeitos na relação obrigacional34. As obri-

33 Sobre o abuso de direito veja-se em especial, entre outros, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V – Parte Geral, 2.ª ed., Almedina, 2015, p. 269 e ss., Cunha de Sá, Abuso do direito, Coimbra, Almedina, 2005, Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, A. 65 n.º 2 (Set. 2005), p.327-385 e, recentemente, Pais de Vasconcelos, “O abuso do abuso do direito: um estudo de direito civil”, in Revista do CEJ, Lisboa, n.º1 (1º sem. 2015), p.33-56.34 Veja-se, entre outros autores, Vaz Serra, “Pluralidade de devedores e credores”, in BMJ 69 (1957) p. 37-352 e 70 (1957), p. 5-240, Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 1966, p. 99-100, Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, p. 742, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2016, p. 661, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 13.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016,

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gações podem traduzir-se na vinculação (a) de um único indivíduo (devedor) para com outro indivíduo (credor) – obrigação singular; (b) de vários indiví-duos (devedores) para com um único sujeito (credor); (c) de um indivíduo (devedor) para com um conjunto de indivíduos (credores); ou (d) de várias pes-soas (devedores) para com outro conjunto de pessoas (credores). Nas hipóteses (b), (c) e (d) estamos perante obrigações plurais caracterizadas por uma plurali-dade de devedores ou por uma pluralidade de credores ou mesmo por ambas. Nas obrigações com mais do que um devedor ou credor, coloca-se a questão de saber quem pode exigir o quê a quem. Terá um dos devedores o dever de cumprir a totalidade da obrigação independentemente dos outros devedores? Poderá um dos credores exigir a totalidade da prestação ao devedor ou apenas a parte que lhe corresponde? A resposta a estas perguntas variará conforme este-jamos perante obrigações conjuntas35 ou solidárias.

Nas obrigações conjuntas ou parciárias cada devedor só está obrigado a prestar a sua parte na prestação e cada credor pode apenas exigir a sua quota--parte na prestação ao(s) devedor(es), sendo estas dívidas ou créditos “inde-pendentes uns dos outros, subsistindo por si mesmos e sendo cumpridos sem dependência entre si”36. Nas obrigações solidárias, haverá solidariedade passiva quando cada um dos devedores estiver vinculado perante o(s) credor(es) a rea-

p. 146 e ss., Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VI – Direito das Obrigações. Introdução. Sistemas e Direito Europeu. Dogmática Geral, 2.ª ed., Almedina, 2012 p. 745 e ss.. Veja-se ainda a classifi cação, anterior ao atual Código Civil, apresentada por José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães em Das obrigações solidárias em Direito Civil portuguez, Coimbra, Livraria Central de J. Diogo Pires,1882, pp. 2-3 e Guilherme Alves Moreira, Instituições do Direito Civil Português, vol. II, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1925, p. 31 e ss..35 Embora a expressão “obrigações conjuntas” não pareça muito feliz por poder induzir em erro quanto ao seu verdadeiro signifi cado, é o próprio Código Civil que a usa, no artigo 786.º, n.º 3, distinguindo entre codevedores conjuntos e solidários. Por esta razão, muitos autores mantêm a designação de obrigações conjuntas ou solidárias (cfr. neste sentido Antunes Varela, Das obrigações em geral, ob. cit., pp. 748 e ss., Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, ob. cit., pp. 147-148, Almeida Costa, Direito das Obrigações, ob. cit., p. 661 e ss.). Outros autores como Menezes Cordeiro e Manuel de Andrade designam as obrigações conjuntas por obrigações parciárias, expressão que é, de facto, mais esclarecedora. Na verdade, no âmbito das obrigações plurais, Menezes Cordeiro faz uma qualifi cação prévia entre obrigações disjuntivas – em que, quando da atuação, surge apenas uma das pessoas envolvidas – e conjuntivas (ou conjuntas) – em que as pessoas implicadas atuam em conjunto – e distingue depois duas possibilidades nas obrigações conjuntivas: a solidariedade e a parciariedade (cfr. Tratado de Direito Civil, VI – Direito das Obrigações, ob. cit., p. 747). Também Manuel de Andrade distingue entre obrigações disjuntas – quando a pluralidade de sujeitos é alternativa – ou conjuntas e no âmbito destas últimas é que distingue entre parciárias e solidárias (cfr. Teoria Geral das Obrigações, ob. cit., p. 100). Neste artigo, usaremos indistintamente a expressão obrigações conjuntas e obrigações parciárias. 36 Cfr. Vaz Serra, “Pluralidade de devedores e credores”, in BMJ 69 (1957), p. 68.

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lizar integralmente a prestação e haverá solidariedade ativa quando um dos credores puder exigir a prestação integral ao(s) devedor(es). No ordenamento jurídico nacional, a regra geral no Direito Civil é a da conjunção, uma vez que só haverá solidariedade quando tal for determinado por lei ou por vontade das partes (artigo 513.º do CC). Porém, no Direito Comercial, a regra supletiva é a da solidariedade passiva por força do artigo 100.º do Código Comercial: “Nas obrigações comerciais os co-obrigados são solidários, salvo estipulação contrária”.

3.2. Regime aplicável aos direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário

Passando agora à análise das obrigações dos membros do sindicato bancário, rapidamente podemos concluir que estamos perante obrigações plurais. Isto é, na relação entre o mutuário e as entidades fi nanciadoras, temos um conjunto de sujeitos que se obrigam a realizar uma prestação – entregar determinada quantia – a um só sujeito (o mutuário) e este último, por sua vez, obriga-se também a realizar determinada prestação – devolver as quantias mutuadas acrescidas de juros e comissões37 – perante um conjunto de entidades. Quanto à obrigação de conceder crédito, trata-se de uma operação bancária que é expressamente qualifi cada pelo legislador como tendo natureza comercial38. Assim, nos ter-mos do artigo 100.º do Código Comercial, as obrigações dos bancos partici-pantes no sindicato bancário revestiriam a natureza de obrigações solidárias, isto é, cada um estaria obrigado a entregar a totalidade dos montantes acordados ao mutuário. Contudo, os contratos de empréstimo sindicado contêm as mais das vezes39 uma cláusula a explicitar que as obrigações das entidades fi nancia-doras são parciárias40. Para além disso, a mesma cláusula esclarece ainda que o incumprimento das obrigações por uma das entidades fi nanciadoras não afeta as

37 Para simplifi car, estamos a focar a nossa análise sobretudo na obrigação de conceder crédito e na co-respetiva obrigação de devolver as quantias mutuadas aos fi nanciadores que é a obrigação principal nos contratos de empréstimo sindicado. Como é de conhecimento geral, há muitas outras obrigações que emergem destes contratos, designadamente inúmeras obrigações de informação do mutuário para com as entidades fi nanciadoras e de não disposição ou oneração do seu património, entre outras. 38 Cfr. artigo 362.º do Código Comercial. 39 Poderá, naturalmente, haver exceções mas, seguindo mais uma vez a proposta de clausulado da LMA, o habitual é que as partes acordem que as obrigações das entidades fi nanciadoras são conjuntas ou parciárias. 40 Transcreve-se abaixo a parte relevante da cláusula 2.2 intitulada “Finance Parties’ rights and obligations”:

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obrigações de qualquer outra parte e que nenhuma dessas partes é responsável pelas obrigações de outra parte emergentes dos contratos fi nanceiros.

Considerando os objetivos das entidades fi nanciadoras na celebração de um empréstimo sindicado, nem faria sentido ser de outra forma41. Se estas pre-tendem reduzir o seu risco e exposição disponibilizando apenas uma parte do capital necessário, mas simultaneamente acordassem o regime de solidariedade passiva, estariam a sujeitar-se ao risco de terem de entregar um montante muito superior ao da sua quota-parte que, consequentemente, teriam de ter disponí-vel e teriam de considerar para efeitos de rácios de solvabilidade. Pode assim afi rmar-se, com bastante certeza, que as obrigações dos membros do sindicato bancário são parciárias e, por isso, o mutuário não poderá exigir a qualquer um destes membros a totalidade do crédito pois cada membro não responde pelas obrigações dos restantes participantes no sindicato. Todavia, se as obrigações destas instituições de crédito são independentes, não estaremos antes perante obrigações efetivamente distintas e separadas umas das outras, isto é, “uma série de empréstimos sem nenhuma ligação entre eles ou com algumas ligações entre eles”, nas palavras de Agasha Mugasha42? Não nos parece que se possa con-siderar o empréstimo sindicado como um conjunto de empréstimos distin-tos e totalmente independentes, mas antes como um único empréstimo com uma pluralidade de credores, unidos entre si não apenas pelo facto de terem o mesmo devedor em comum, mas por um conjunto de regras e condições iguais para todos, designadamente regras que os obrigam muitas vezes a tomar deci-sões em conjunto e a manter os restantes membros informados sobre aspetos relacionados com o empréstimo. Acresce que, habitualmente, os membros do sindicato delegam no chamado banco agente um conjunto de tarefas adminis-trativas, sendo também este Banco que normalmente entrega o montante total do capital mutuado ao mutuário e recebe deste último – que se libera desta

(a) The obligations of each Finance Party under the Finance Documents are several. Failure by a Finance Party to perform its obligations under the Finance Documents does not aff ect the obligations of any other Party under the Finance Documents. No Finance Party is responsible for the obligations of any other Finance Party under the Finance Documents.” 41 Neste sentido pronuncia-se também Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, p. 538. 42 Cfr. Agasha Mugasha, The Law of Multi-Bank Financing, Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 207: “It may, on the other hand, be characterized as a series of separate loans with no link between them, or separate loans with some linkages. The correct answer is obtained by understanding the drafting scheme followed by most syndicated loan agreements.”

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forma da prestação devida – o respetivo pagamento, redistribuindo-o depois proporcionalmente entre todos os membros do sindicato43.

Avançando agora para o lado ativo da relação, isto é, para a posição credora dos bancos face ao mutuário, não se encontra fundamento legal para aplicar o regime da solidariedade, uma vez que o citado artigo 100.º do CCom refere-se apenas e exclusivamente à solidariedade passiva – dos coobrigados – e não à solidariedade ativa44. Na opinião de Joana Ribeiro Fragata, “certos acordos bancários convencionam a solidariedade ativa nas relações externas dos ban-cos participantes determinando que cada um deles possa exigir a totalidade do montante em dívida ao mutuário e que o pagamento feito por este a qualquer um dos bancos participantes possua carácter liberatório”45, afi rmando ainda, a propósito do direito de regresso dos outros credores que não receberam a prestação, que esta “é, de resto, a solução seguida pela documentação modelo correntemente utilizada nos contratos de fi nanciamento sindicado”46. Não nos parece que esta seja a solução mais habitual nos contratos de fi nanciamento sindicado e deve reconhecer-se que este não é o regime plasmado na docu-mentação modelo da LMA. Estes contratos não incluem habitualmente uma cláusula a estipular a solidariedade ativa, mas muito frequentemente incluem uma cláusula sobre a mecânica de pagamentos, onde se prevê que sempre que qualquer uma das partes deva fazer um pagamento ao abrigo dos contratos fi nanceiros, deverá efetuar esse pagamento ao Agente47. Daqui se pode retirar,

43 Em sentido semelhante veja-se Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa…”, ob. cit., pp.161-162. 44 Expressamente neste sentido veja-se Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, ob. cit., p. 149, nota 364, Gravato Morais, “A solidariedade nas obrigações comerciais”, in José Lebre de Freitas [et. al.] (org.), Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 498, Pinto Furtado, Disposições gerais do Código Comercial, Coimbra, Almedina, 1984, p. 275, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, ob. cit., p. 551, Engrácia Antunes, “Contratos Comerciais. Noções fundamentais”, Direito e Justiça, vol. especial, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2007, pp. 164-165 e Engrácia Antunes, Direitos dos Contratos Comerciais, ob. cit., 2015, p. 228, e, na jurisprudência, Ac. STJ de 14.02.2006, relator Alves Velho, disponível em www.dgsi.pt, Ac. STJ de 11.10.2005, relator Lucas Coelho, disponível em www.dgsi.pt e Ac. TRL de 08.07.2004, relator Ana Grácio, disponível em www.dgsi.pt. 45 Cfr. Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa…”, ob. cit., pp.162-163. 46 Cfr. Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa…”, ob. cit., p.163.47 Referimo-nos à cláusula 29 “Payment Mechanics”, cujo primeiro número, intitulado “Payments to the Agent”, refere: “(a) On each date on which an Obligor or a Lender is required to make a payment under a Finance Document, that Obligor or Lender shall make the same available to the Agent […]”

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de facto, que o devedor não deverá pagar a cada um dos credores a sua parte, mas fi cará exonerado ao pagar o montante total em dívida, em cada momento, ao Agente. Mas será que isto é o mesmo do que estipular a solidariedade ativa? Ficará o devedor exonerado por pagar a totalidade a qualquer um dos credores ou apenas se o fi zer ao Agente?

3.3. Análise de algumas cláusulas típicas: traços de solidariedade ativa?

O facto dos diversos credores acordarem que uma determinada entidade – que, recorde-se, poderá ou não ser ela própria um credor – poderá receber a sua parte da prestação, isto é, que o devedor fi ca exonerado com a realização integral da presta ção a uma determinada entidade, não signifi ca, na nossa pers-petiva, que estamos aqui perante um regime de solidariedade. Parece-nos que haverá que distinguir entre o regime de solidariedade ativa e a possibilidade que resulta dos artigos 769.º e 770.º do Código Civil48. Nos termos do artigo 769.º, a prestação pode ser feita ao credor ou ao representante do credor, que tem portanto legitimidade para a receber49. Ora o chamado banco agente é precisamente um representante50 dos bancos credores perante a mutuária para

48 Não desconhecemos que, historicamente, a solidariedade tem surgido muitas vezes associada à representação, sendo tratada por alguma doutrina mais antiga como uma realidade que se apoia precisamente num mandato com representação (cfr. Barbosa de Magalhães, Das obrigações solidárias em Direito civil portuguez, ob. cit., p. 17 e 29, que se pronuncia sobre a solidariedade passiva: “é solidária uma obrigação em que vários indivíduos, ligados por uma representação mutua, [...]” e ainda “A solidariedade passiva suppõe entre os com-devedores um mandato de mutua representação.”). Contudo, parece-nos tratar-se de uma doutrina já ultrapassada. Veja-se, por exemplo, a crítica fundamentada feita em 1947/1948 por Gomes da Silva à teoria então maioritária na doutrina de que a solidariedade se traduz num vínculo de mútua representação – cfr. “Da solidariedade nas obrigações”, in RFDUL, Ano IV, 1947, pp. 257-348, e Ano V, 1948, pp. 289-354: “Findo este longo estudo do princípio da mútua representação, nenhuma dúvida pode restar de que ele está em absoluto desacordo com o regime da solidariedade. Inspirado em semelhanças aparentes dos efeitos da solidariedade com os da representação, é, contudo, contrariado pela organização legal das obrigações solidárias, desde os princípios gerais que a dominam até aos mínimos pormenores.” (Ano IV, pp. 303-304) e “[...] a solidariedade não é um vínculo jurídico a que falte autonomia, um vínculo jurídico que se reduza a outra instituição como a representação. Pelo contrário, a solidariedade difere essencialmente de qualquer outra instituição, nomeadamente da representação.” (Ano IV, p. 348). 49 Cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 145.50 Embora não seja o objeto central deste estudo, não podemos deixar de caracterizar, ainda que perfunctoriamente, a posição do banco agente e a sua relação com os restantes participantes no sindicato. Antes de mais, a opção de designá-lo por “banco agente” – designação usada também por Vasconcelos Abreu (cfr. “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p. 531)

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diversos efeitos, entre os quais para efeitos de recebimento da prestação devida pela mutuária a cada um dos credores. Resulta ainda do artigo 770.º que a pres-tação feita a terceiro – portanto, ainda que não se considere que o banco agente é um verdadeiro representante dos restantes credores51 – extingue a obrigação se assim foi estipulado com o credor. Ora é precisamente isso que resulta da cláusula sobre a mecânica de pagamento acima referida: devedor e credores convencionam que os montantes devidos pela mutuária devem ser entregues na totalidade ao banco agente, fi cando este autorizado a receber a prestação inte-gral do devedor e fi cando claro que este último fi cará exonerado ao entregar a prestação integral ao banco agente. Note-se que se há um acordo entre deve-dor e credor acerca da pessoa a quem deve ser satisfeita a prestação, o devedor está obrigado a cumprir a prestação dessa forma52, conforme resulta não só da própria convenção das partes como do próprio artigo 771.º do Código Civil, a contrario sensu. Pode parecer estranho que o devedor esteja obrigado a satisfa-zer a prestação perante pessoa diferente do seu credor, estando inclusivamente

contra a qual Joana Ribeiro Fragata já se pronunciou (cfr. “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa..., ob. cit., p. 154, nota 52) – deve-se apenas ao facto de, por infl uência da expressão inglesa “agent bank”, ser muito comum na prática a referência ao “banco agente”. Contudo, não se pretende qualifi car esta relação como uma relação de agência. Na verdade, o banco agente representa, para diversos efeitos, os restantes bancos participantes do sindicato e são estes que lhe conferem tais poderes através do contrato de fi nanciamento e/ou do contrato entre credores. Tipicamente, são-lhe atribuídos poderes para, em nome e por conta dos restantes credores, receber e efetuar pagamentos entre a mutuária e os bancos, receber e efetuar comunicações também entre a mutuária e os bancos, recebendo ainda toda a informação que a mutuária se encontre vinculada a prestar e, entre outras tarefas, gerir o fi nanciamento ao longo do seu tempo de vida, o que implica inúmeras funções como verifi car se determinadas condições se encontram cumpridas para que a mutuária possa efetuar um pedido de utilização com sucesso, organizar os processos de decisão recolhendo as decisões dos restantes credores sempre que necessário e respondendo à mutuária, entre outras. Tipicamente o banco agente receberá uma remuneração por esta função, a chamada agency fee, que é paga pela mutuária e não pelas entidades que o agente representa. Assim, seguimos a doutrina nacional que qualifi ca esta relação como um mandato com representação – cfr. neste sentido Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p. 537 e Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa...”, ob. cit., p. 154.51 A estipulação ou acordo do credor previstos na alínea a) do artigo 770.º não pressupõe necessariamente a representação, pois para esses casos já existe o artigo 669.º, como bem referem Pires de Lima e Antunes Varela (Cfr. Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 16).52 Referindo-se ao pagamento a representante, veja-se Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX – Direito das Obrigações. Cumprimento e Não-Cumprimento. Transmissão. Modifi cação e Extinção, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 122: “o pagamento ao representante pode envolver um suplemento de esforço, de despesa e de risco: o devedor não tem de assumir tudo isso, se não estiver voluntariamente obrigado.” (itálico nosso).

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proibido de cumprir a sua obrigação perante o seu credor, contudo, a norma justifi ca-se, na perspetiva de Pires de Lima e Antunes Varela, por pressupor uma transmissão de legitimidade para receber o crédito53. Esta é precisamente a situação com que nos deparamos nos contratos de fi nanciamento sindicado, sendo o objetivo da partilha de risco e o princípio de igualdade entre os diver-sos fi nanciadores que justifi cam que estes acordem entre si e com a mutuária que a legitimidade para receber o crédito pertence ao banco agente. Preten-de-se evitar que a mutuária, pagando parte do crédito a determinado credor, o benefi cie em relação aos demais, por este receber primeiro ou receber uma quota-parte superior à que lhe cabe.

Pode ainda tipicamente encontrar-se neste tipo de contratos a habitual-mente designada sharing clause54, nos termos da qual todos os montantes reem-bolsados pela mutuária, a título de capital, juros, comissões ou outros, devem ser distribuídos pelos diversos credores de forma proporcional à sua participação no crédito. Esta cláusula surgiu com o objetivo de proteger os bancos uns dos outros55, isto é, para garantir que os bancos partilham o risco de crédito e também os lucros ou proveitos que obtêm com a concessão de crédito, tendo sido inicialmente pensada para acautelar aquelas situações em que, por erro, um banco receba um pagamento superior ao que lhe cabe56. A ideia é que se alguma das entidades fi nanciadoras recuperar da mutuária um montante antes dos restantes fi nanciadores ou se receber mais do que a sua proporção no cré-dito, deverá partilhar com os restantes o que recebeu de modo a que a propor-cionalidade seja reposta57. A doutrina58 identifi ca normalmente dois métodos de partilha, isto é, dois tipos de sharing clauses: a cessão de créditos entre bancos de modo a restaurar o recebimento pro rata (sharing by assignment) e a redistri-buição dos pagamentos entre os bancos (redistribution of payments). Ao longo do tempo, e especialmente na sequência da crise iraniana de 1979 e da crise argen-tina de 1981, estas cláusulas foram-se tornando mais complexas e englobando outras situações originalmente não consideradas na sua redação, como os casos

53 Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, cit., p. 18.54 Sobre a sharing clause, veja-se com relevância, entre outros, Phillip Wood, “Sharing Clauses in Syndicated Loan Agreements”, in Current Issues of International Financial Law (eds. Pierce, et. al.), Singapore, Malaya Law Review and Butterworths, 1985, p. 278 e ss. e Agasha Mugasha, The Law of Multi-Bank Financing, Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 259 e ss. 55 Cfr. Agasha Mugasha, The Law of…, ob. cit., p. 260.56 Cfr. Peter Gabriel, Legal aspects of syndicated loans, Butterworths, 1986, p. 182-183. 57 Cfr. Agasha Mugasha, The Law of…, ob. cit., p. 259.58 Cfr. Phillip Wood, “Sharing Clauses in…”, ob. cit., p. 280-286.

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em que um banco recupera montantes da mutuária por compensação e não recebe efetivamente um pagamento59.

Nos termos do contrato de fi nanciamento, o Agente – que, como se viu, deve receber todos os montantes devidos pela mutuária ao abrigo do contrato – deverá redistribuir esses montantes pelos diversos credores de acordo com a participação de cada um no crédito, guardando para si a parte que lhe cabe, que será proporcional à sua participação no crédito. Através da sharing clause, para além do banco agente, também os outros credores, se receberem ou por outra forma recuperarem algum montante da mutuária, estão obrigados – através do banco agente – a distribuir esses montantes recebidos pelos restantes membros do sindicato bancário. Este regime parece refl etir o direito de regresso previsto no artigo 533.º do Código Civil para as obrigações solidárias com pluralidade de credores. Mas será que isto é o mesmo que estipular solidariedade ativa? Será que cada um dos credores pode exigir do devedor a prestação integral?

Note-se que, como fi cou referido, além de não existir no contrato modelo sob análise qualquer cláusula que estipule expressamente a solidariedade ativa, temos uma cláusula que parece conduzir o intérprete a concluir precisamente o contrário. Veja-se a redação da alínea b) da Cláusula 2.2 acima já citada “Finance Parties’ rights and obligations”: “The rights of each Finance Party under or in connection with the Finance Documents are separate and independent rights and any debt arising under the Finance Documents to a Finance Party from an Obligor shall be a separate and independent debt”60. Isto é, o contrato é explícito ao afi rmar que os direitos de cada entidade fi nanciadora são separados e independentes. Para além de não se estipular expressamente a solidariedade61, há outros elementos do regime da solidariedade ativa que não coincidem com o que se encontra habitualmente acordado nestes contratos. Na verdade, o mutuário não pode escolher o credor a quem efetuar a prestação conforme resultaria do artigo 528.º, n.º 1, do CC pois, nos termos do contrato, a mutuária deve efetuar o pagamento ao banco agente, conforme fi cou acima explanado.

59 Cfr. Peter Gabriel, Legal aspects of..., ob. cit., p. 183-187 e Agasha Mugasha, The Law of…, ob. cit., pp. 261-263.60 Inclui-se aqui a redação da alínea b) conforme era proposta pela LMA até Outubro de 2015, data em que sofreu uma alteração que será devidamente explicada e contextualizada infra no ponto 4,3, p. 617 e ss., e nota 95 em especial.61 Uma vez que estes contratos modelo estão redigidos em inglês, para que a solidariedade se encontrasse estipulada entre as partes deveria encontrar-se uma cláusula semelhante a “the Lenders’ rights arising from the Finance Documents are joint and several”.

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3.4. Posição adotada

Em suma, ainda que seja possível encontrar alguns traços de solidarie-dade ativa como a sharing clause ou outros elementos que parecem aproximar a situação sob análise do regime da solidariedade ativa62, não nos parece que este seja o regime que as partes desejam estipular com o clausulado contratual típico, especialmente considerando a expressa referência ao facto dos seus direi-tos serem separados e independentes. Assim sendo, e seguindo neste ponto o ensinamento de Vaz Serra, não nos parece que deva presumir-se que as partes tenham querido essa solidariedade ativa63. Como refere Tapia Sanchéz64, a inclusão de uma sharing clause apresenta uma certa contradição com a indepen-dência dos créditos das partes credoras, pois obriga-as a partilhar proporcional-mente com as demais os montantes recebidos da mutuária. Mas esta partilha e sistema de proporcionalidade nos pagamentos são justifi cados, na opinião da Autora, por se tratar de um contrato de cooperação económica. A sharing clause representa uma manifestação do princípio de igualdade de tratamento dos cre-dores que também encontra expressão contratual nas cláusulas de negative pledge e pari passu65. Se é verdade que cada um dos participantes no sindicato bancário gosta de ver a sua posição como individual e separada dos restantes, no que res-peita ao pagamento os bancos não querem fi car à mercê da escolha da mutuária.

62 Referimo-nos ao facto dos bancos participantes acordarem que uma outra entidade – que é também, habitualmente, um banco participante – pode receber a totalidade da prestação. Como se viu, esta circunstância, embora se aproxime do regime da solidariedade que permite ao devedor extinguir a obrigação satisfazendo apenas um dos credores (cfr. artigo 532.º do CC), não implica necessariamente a existência de uma obrigação solidária pois pode obter-se o mesmo resultado através da nomeação de um representante do credor ou através de um acordo que autorize um terceiro a receber a prestação em vez do credor.63 Cfr. Vaz Serra, “Pluralidade de devedores ou de credores”, in BMJ n.º 69, 1957, p. 75. O autor refere-se especifi camente à questão de se estipular como regra, no Código Civil, a solidariedade ativa ou a parciariedade e justifi ca a sua opinião afi rmando que “A solidariedade activa é perigosa para os credores, cujos interesses podem ser frustrados por qualquer deles, que, recebendo a prestação, deixe de entregar aos outros a parte respectiva;”. Entretanto, foi precisamente o regime da conjunção ou parciariedade que fi cou consagrado como regra no Código Civil, e as razões apresentadas pelo autor a favor da parciariedade são transponíveis, na nossa perspetiva, para a interpretação do contrato relevante face à lei portuguesa, que é a tarefa que aqui levamos a cabo.64 Cfr. MARÍA ROSA TAPIA SÁNCHEZ, “El contrato de préstamo bancario El préstamo sindicado”, in SOLER, ENRIQUE GADEA/MARTÍN, ADOLFO SEQUEIRA (coord.), La Contratación Bancaria, Dykinson, Madrid, pp. 754-772, consultado online na plataforma Vlex, p. 769.65 Cfr. Phillip Wood, “Sharing Clauses in…”, ob. cit., p. 278.

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Trata-se de um regime peculiar, pois as partes pretendem que o banco agente possa receber o montante total em dívida, exonerando assim o devedor, mas não pretendem que qualquer um dos outros credores possa exigir o mon-tante total em dívida à mutuária. Contudo, considerando que o regime-regra no ordenamento jurídico português é o da conjunção, que nada no Direito Português impede as partes de nomearem um representante para receber as prestações que lhe são devidas e que a lei portuguesa dá liberdade às partes para estipularem o regime de solidariedade, não se vê obstáculo legal a que as partes estipulem alguns traços de solidariedade sem, contudo, pretenderem a aplicação total do regime de solidariedade ativa com todas as suas consequências. Esta possibilidade parece ser mesmo sugerida por Vaz Serra que, ao pronunciar-se sobre as vantagens e desvantagens do regime de solidariedade ativa entre credo-res, afi rma que, mesmo sem optarem por esse regime, se os credores “tiverem interesse em que um seja autorizado a receber a prestação por inteiro, poderão a todo o tempo conferir-lhe poderes para tanto mediante procuração”66.

Retomando algumas das questões acima colocadas, pergunta-se o que acontece se a mutuária, incumprindo o acordado, entregar a um dos credores que não o banco agente o montante integral ou parcial da prestação67? Acei-tando as conclusões até aqui extraídas, diremos que, não se tratando de obri-gações solidárias, nem tendo sido o banco participante a receber os montantes como representante dos demais, tal pagamento foi feito a terceiro e não será considerado liberatório, a não ser que se verifi que uma das situações previstas no artigo 770.º do Código Civil. Dir-se-á: mas se o contrato de fi nanciamento determina que qualquer entidade fi nanciadora que receba um montante reem-bolsado pela mutuária deve distribuí-lo pelos restantes credores na propor-ção da respetiva participação no crédito, como poderá o pagamento feito pela mutuária a um banco participante que não o banco agente não ter carácter

66 Cfr. Vaz Serra, “Pluralidade de devedores ou de credores”, in BMJ n.º 70, 1957, p. 6-7 e, no mesmo sentido, Marcel Planiol, Georges Ripert, Traité Pratique de Droit Civil Français, Paris, LGDJ, 1931, Tome VII, n.º 1060, que afi rmam que os credores podem obter a vantagem da solidariedade ativa através de um mandato sem se sujeitarem, simultaneamente, aos seus inconvenientes (sendo o maior destes inconvenientes o facto de todos os credores fi carem à mercê de cada um dos outros credores que podem receber o montante total e apropriar-se dele ou dissipá-lo). O melhor é então, na opinião dos autores, que os credores fi quem separados e não corram o risco de insolvência do credor que receber o dinheiro. 67 Conforme mencionado acima na Introdução, Joana Fragata coloca questão semelhante não adiantando, contudo, uma resposta: “Coloca-se assim a questão da eventual violação contratual por parte do mutuário que cumpra a obrigação perante um banco participante que não o líder do sindicato” (cfr. Joana Ribeiro Fragata, “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa...”, ob. cit., pp.166).

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liberatório? Poderá não ter porque as partes acordaram a quem devia ser rea-lizada a prestação e a mutuária não cumpriu o acordado e não é o facto de os bancos participantes terem cautelosamente previsto o que deveria ser feito a quaisquer montantes pagos (indevidamente) aos bancos participantes que dá o direito à mutuária de violar o acordado e escolher a quem pretende entregar as quantias em dívida. O que os bancos pretendem evitar, ao determinarem que os pagamentos devem ser todos feitos ao banco agente, é precisamente, por um lado, que seja a mutuária a escolher a que banco paga, ao invés de serem os próprios bancos a acordar quem deve ter essa tarefa administrativa (e em quem confi am para tal tarefa), e, por outro lado, que fi quem à mercê de qualquer um dos bancos participantes que receba a prestação e deixe de a entregar aos res-tantes. Recorde-se que o cenário outrora julgado impossível de que um banco se tornasse insolvente é hoje bem mais realista face às instituições de crédito que, a nível nacional e internacional, foram objeto de medida de resolução ou se apresentaram à insolvência.

Mas poderá este pagamento feito a um credor diferente do banco agente ser liberatório para a mutuária em algum caso? Vejamos o regime do artigo 770.º do Código Civil. Se o contrato de fi nanciamento estipula que o pagamento deve ser feito ao banco agente e não aos restantes bancos, difi cilmente estare-mos perante o caso previsto na alínea a) do artigo 770.º. Não sendo o credor, enquanto instituição de crédito, herdeiro de quem recebeu a prestação, nem existindo lei que determine a extinção da obrigação por esta forma, e assumindo que o banco que recebeu a prestação não adquiriu o crédito relevante, ou o credor ratifi ca a prestação assim feita – o que não nos parece frequente, mas não é impossível – ou apenas nos resta a hipótese da alínea d) do artigo 770.º. A situação menos problemática será aquela em que um banco participante (que não o banco agente) que receba valores reembolsados pela mutuária ao abrigo do contrato de fi nanciamento notifi ca o banco agente desse recebimento e age depois de acordo com as suas instruções, entregando ao agente a diferença entre o montante que recebeu e o que receberia se o pagamento tivesse sido feito ao banco agente. Se assim for, se o banco participante entregar ao banco agente a referida diferença, podendo depois o banco agente distribuí-la pelos restantes credores, parece fi car preenchida a alínea d) do artigo 770.º, pois o cumprimento acaba por reverter a favor dos credores relevantes e não há razão para que se considere a prestação como não realizada. Contudo, na hipótese de o banco participante que recebeu a totalidade do montante reembolsado não notifi car o banco agente ou não devolver os montantes devidos aos restantes credores, a previsão da alínea d) não será preenchida, pois os credores não rece-berão os montantes devidos e, portanto, aplicar-se-á o disposto no artigo 476.º, n.º 2, do Código Civil, não se extinguindo a obrigação da mutuária. Trata-se

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de um cumprimento indevido porque feito a pessoa não autorizada pelos cre-dores a receber a prestação, podendo esta ser repetida, isto é, o autor da pres-tação pode exigir a sua restituição68 e continua vinculado ao seu cumprimento.

4. A possibilidade de um credor recorrer isoladamente a tribunal para exigir o cumprimento da prestação

Passando agora à análise da específi ca questão a que pretendemos dar res-posta com este artigo, pergunta-se se uma das entidades fi nanciadoras poderá, isoladamente, fazer valer os seus direitos em tribunal. Isto é, perante o não cumprimento voluntário da mutuária, designadamente o não pagamento de um montante em dívida, tem um credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e executar o património do devedor, conforme é habitual-mente reconhecido a qualquer credor ao abrigo do artigo 817.º do Código Civil? Bem sabemos que os contratos de fi nanciamento costumam enumerar um conjunto considerável de factos ou situações a que chamam eventos de incumprimento (events of default) como o incumprimento cruzado (cross default), a insolvência, uma declaração incorreta ou enganadora (misrepresentation), a mudança de controlo societário de um dos garantes69, entre outros. Contudo, a nossa análise basear-se-á no não pagamento pela mutuária dos montantes em dívida na devida data, por ser o incumprimento por excelência de um contrato de mútuo.

4.1. Exigência de maiorias e acceler ation

O contrato modelo da LMA inclui uma cláusula que refere que cada enti-dade fi nanciadora pode separadamente, exceto se constar dos contratos fi nan-ceiros uma cláusula que estipule de forma especifi camente diferente, fazer cum-prir os seus direitos que decorrem dos contratos fi nanceiros ou estão com estes relacionados70. À partida, dir-se-ia, portanto, que sim, ao abrigo dos contratos

68 Cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, ob. cit., p. 146.69 A mudança de controlo da mutuária surge habitualmente qualifi cada não como incumprimento mas como evento que permite ao credor (i) cancelar os montantes que ainda estejam disponíveis para a mutuária desembolsar; e (ii) obter o reembolso antecipado obrigatório dos montantes em dívida.70 Trata-se da Cláusula 2.2, parágrafo (c): “A Finance Party may, except as specifi cally provided in the Finance Documents, separately enforce its rights under or in connection with the Finance Documents”.

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fi nanceiros todos os credores têm o direito de exercer os seus direitos e exigir judicialmente o seu cumprimento e cada um deles não depende dos restantes para os exercer. Parece ser também este o entendimento da doutrina portu-guesa que especifi camente se pronunciou sobre o tema71. Contudo, algumas cláusulas do contrato de fi nanciamento parecem fornecer indicação contrária.

Continuando a análise do contrato modelo, logo nos deparamos com outra cláusula nos termos da qual, perante um evento de incumprimento – como o não pagamento – o banco agente pode, e deverá fazê-lo se receber instru-ções de credores cujas participações no montante mutuado correspondam a pelo menos 662/3% do total, cancelar os montantes disponíveis para emprés-timo e declarar que todas as prestações72 ou parte delas se encontram vencidas, devendo ser pagas de imediato73. Trata-se da cláusula designada nos contra-tos por “Acceleration”74 que confere direitos potestativos75 aos mutuantes. Por

71 Neste sentido pronuncia-se, por duas vezes, Vasconcelos Abreu em “Os sindicatos bancários no direito português”, cit., p. 538 e 539: “Cada um dos bancos participantes pretende, numa situação de rotura, motivada pelo incumprimento do cliente, manter salvaguardada a sua liberdade de decisão, designadamente no que respeita à instauração do competente procedimento judicial contra o cliente.” e “A própria decisão de accionar judicialmente o cliente, relativamente à qual cada banco quer manter incólume o seu poder de decisão, não escapa ao referido dever de informação e consulta aos demais bancos.”. Também Joana Ribeiro Fragata afi rma a “faculdade que cada banco conserva de poder recorrer por si próprio a instâncias judiciais para fazer valer os seus direitos ao abrigo do contrato de fi nanciamento […]” em “O acordo interbancário como contrato de cooperação associativa…”, ob. cit., p. 155. 72 Note-se que usamos aqui a expressão “prestação” em sentido diferente daquele que usámos até agora neste texto. Já não estamos aqui a referir-nos a “prestação” em sentido técnico, isto é, ao objeto da obrigação, mas antes às frações ou tranches em que pode ser divido o cumprimento, precisamente, do objeto da obrigação. Esta designação é também usada no nosso Código Civil no artigo 781.º. 73 Cláusula “23.13 Acceleration”: “On and at any time after the occurrence of an Event of Default [which is continuing] the Agent may, and shall if so directed by the Majority Lenders, by notice to the Company: (a) cancel the Total Commitments whereupon they shall immediately be cancelled; (b) declare that all or part of the Loans, together with accrued interest, and all other amounts accrued or outstanding under the Finance Documents be immediately due and payable, whereupon they shall become immediately due and payable; and/or (c) declare that all or part of the Loans be payable on demand, whereupon they shall immediately become payable on demand by the Agent on the instructions of the Majority Lenders.”74 Pessoa Jorge refere-se mesmo à “aceleração do contrato” (Cfr. Pessoa Jorge, “A garantia contratual da igualdade dos credores nos empréstimos internacionais”, ob. cit., p. 140), enquanto Bruno Ferreira se refere a um aceleramento (Cfr. Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário e Exigibilidade Antecipada, Coimbra, Almedina, 2011, p. 131).75 Referindo-se expressamente à existência de um “direito potestativo de interpelar o devedor antecipando o vencimento da obrigação” veja-se Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário e Exigibilidade Antecipada, ob. cit., p. 248.

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um lado, atribui-lhes a possibilidade de cancelarem os montantes de crédito que se encontravam disponíveis e prontos para serem utilizados pela mutuária mediante pedido, uma vez que, como foi anteriormente explicitado, estes con-tratos de fi nanciamento são habitualmente aberturas de crédito. Por outro lado, surge também a possibilidade de vencimento antecipado imediato das restantes prestações, conforme previsto no artigo 781.º do Código Civil, que se traduz mais propriamente na exigibilidade imediata76 das restantes prestações. Muito já se escreveu, na doutrina e na jurisprudência, sobre este artigo 781.º, desig-nadamente sobre a sua redação infeliz77, ao referir que “importa o vencimento de todas” como se de um vencimento automático se tratasse, sobre o tipo de obrigações visadas pelo preceito e, especifi camente no que respeita ao mútuo, sobre o facto de o vencimento das restantes prestações implicar ou não a obri-

76 Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, ob. cit., p. 31: “Vencimento imediato signifi ca, neste caso, exigibilidade imediata”. Sobre a interpretação deste artigo torna-se necessário esclarecer que, apesar do preceito se referir, ao contrário do que fazia o Código de Seabra, ao vencimento automático e não à exigibilidade antecipada, a esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência entende que estamos perante um caso de exigibilidade antecipada. Isto signifi ca que, se o devedor faltar ao pagamento de uma das prestações, não se vencem imediatamente as restantes prestações, nem o devedor se constitui desde logo em mora em relação à totalidade da obrigação em todas as suas frações. O credor tem, contudo, desde logo, o direito de exigir a realização de todas as restantes prestações (e não só daquela que o devedor não cumpriu). Neste sentido, veja-se, entre outros, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed. (reimp. da ed. de 1997), Coimbra, Almedina, 2015, pp. 53-54, Almeida Costa, Direito das Obrigações, ob. cit., p. 1018, Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida – sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fi ador, Coimbra, Almedina, 2000, p. 955, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, ob. cit., p. 156, Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário e Exigibilidade Antecipada, ob. cit, pp. 187-188. A grande maioria da jurisprudência pronuncia-se também no mesmo sentido, podendo ver-se, a título de exemplo, o Ac. do TRP de 18 de Fevereiro de 1993, Processo 733/92, relator Fernando de Azevedo Ramos, publicado na CJ, Tomo I, 1993 e consultado online em http://www.colectaneadejurisprudencia.com/content/Home.aspx e o Ac. do TRL de 20 de Outubro de 2009, Processo 1535/09, relatora Rosa Maria Mendes Cardoso Ribeiro Coelho, consultado também online. Aparentemente em sentido contrário veja-se o Ac. do TRL de 27 de Junho de 1996, publicado na CJ, Tomo III, 1996, e consultado online: “considerou o Mmº Juiz “a quo” que a falta de pagamento, pela ré, da prestação de capital que devia satisfazer ao autor em 7-12-92, implicou, nos termos do disposto no artº 781º do C. Civil, o vencimento imediato das demais prestações – que deveriam ser satisfeitas em 7-12-93 e 7-12-94 – conferindo ao autor o direito de reclamar a totalidade do capital mutuado através da subscrição das obrigações, bem como o direito aos juros remuneratórios vencidos também em 7-12-93 e aos juros de mora sobre a totalidade do capital desde a referida data (7-12-92) até integral pagamento”.77 Ver, por todos, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX – Direito das Obrigações, ob. cit., p. 85 e ss.

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gação de pagamento dos juros remuneratórios78. Não cabe no âmbito deste trabalho dissecar o preceito, pelo que apenas se dirá, conforme é salientado pela doutrina, que o artigo 781.º é um caso de perda do benefício do prazo79. Note-se que, no mútuo oneroso, nos termos do disposto no artigo 1147.º do CC, presume-se que o prazo foi estipulado a favor de ambas as partes – devedor e credor – porque uma tem interesse em utilizar o capital durante determinado período de tempo e a outra tem interesse em receber os juros que correspon-dem ao prazo acordado.

Signifi ca isto que, perante o não pagamento de uma prestação, os únicos direitos que os credores têm são o de cancelar os montantes disponíveis e o de declarar o vencimento antecipado das obrigações da mutuária e, mesmo em relação a estes direitos, estarão dependentes de um acordo de pelo menos 2/3 dos credores (ou das respetivas participações no crédito) neste sentido? Parece-nos que não, que esta cláusula apenas signifi ca que para estes fi ns – can-celamento dos montantes disponíveis e exigibilidade antecipada das restantes prestações – um credor não poderá atuar de forma isolada, sendo necessária a instrução de uma maioria qualifi cada de credores. Contudo, a cláusula não impede, na nossa perspetiva, que um credor isolado procure obter o pagamento do montante que já lhe é devido independentemente de qualquer declaração a exigir antecipadamente as restantes prestações.

4.2. A necessidade de interpelação admonitória

Ainda que não seja declarado o vencimento antecipado das obrigações da mutuária ou que os montantes disponíveis não sejam cancelados, verifi cando-se o não pagamento de uma prestação pela mutuária, que requisitos devem estar verifi cados para que um credor possa recorrer a instâncias judiciais para fazer valer os seus direitos ao abrigo destes contratos? Para que se considere defi ni-tivamente não cumprido um contrato não basta, nos termos da lei Portuguesa, que haja um mero não pagamento de uma prestação. Se o devedor não pagar, na data acordada, uma das prestações do montante em dívida, ele constituir--se-á automaticamente em mora (artigo 805.º, n.º 2 do CC). Contudo, para

78 Sobre este tema é essencial consultar o acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ n.º 7/2009 de 25 de março de 2009, processo n.º 08A1992, relator Cardoso de Albuquerque, disponível em www.dgsi.pt, que conclui: “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados.”79 Cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, ob. cit., p. 152.

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que a mora se converta em incumprimento defi nitivo é preciso algo mais: nos termos do artigo 808.º do Código Civil, “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fi xado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”. Assim, no pressuposto de que a prestação ainda é possível e que o credor não perdeu interesse na prestação do mutuá-rio80, para que a mora se converta em incumprimento defi nitivo será necessário que seja dado um prazo adicional razoável ao devedor para cumprir e que este não cumpra a prestação nesse prazo81.

Para que um credor possa exercer os seus direitos em tribunal, designada-mente exigir o pagamento do seu crédito, terá de se verifi car previamente o incumprimento defi nitivo da obrigação ou a existência de mora é sufi ciente? O atraso no cumprimento, ou neste caso no pagamento de uma prestação, é sufi -ciente para um credor estar apto a exigir em tribunal o cumprimento da obriga-ção. O incumprimento defi nitivo de uma obrigação impõe-se sim para que seja possível recorrer à resolução do contrato82, pois enquanto for possível e houver interesse da parte do credor no cumprimento de determinado contrato, não faz sentido resolvê-lo. Contudo, por outro lado, também não se poderia exigir ao credor que aguardasse eternamente pelo cumprimento do devedor e, por isso, a lei prevê a interpelação admonitória como modo de por fi m a esta espera83.

No âmbito do Direito Inglês também parece bastante pacífi co na doutrina que um credor isolado poderá demandar o devedor em tribunal pelo paga-mento da sua quota-parte numa prestação cuja data de amortização já ocorreu, sem qualquer interpelação adicional, enquanto em relação às restantes presta-

80 Embora não seja impossível conceber um caso em que haja perda de interesse do credor, nos casos como o nosso em que se trata de uma obrigação de pagamento, serão muito pouco frequentes as situações em que efetivamente exista perda de interesse do credor em receber o pagamento. Pires de Lima e Antunes Varela referem contudo, como exemplo, que se um credor do preço tiver vendido um prédio por necessidade urgente de dinheiro e, entretanto, tendo o comprador entrado em mora, o credor tiver sanado as suas difi culdades fi nanceiras, poderá deixar de ter interesse na venda (cfr. Código Civil Anotado, Vol. II, ob. cit., p. 71). 81 Menezes Cordeiro considera esta interpelação admonitória, especialmente no que respeita às obrigações sem prazo, um “calvário burocrático” que “não serve quaisquer interesses sócio-económicos”, oferecendo algumas boas sugestões para aliviar esta situação, como por exemplo: que as partes possam desde logo fi xar, ab initio, um prazo peremptório fi ndo o qual se considerará existir incumprimento defi nitivo ou que o prazo razoável resulte de declaração unilateral do credor (cfr. Tratado de Direito Civil, IX – Direito das Obrigações, ob. cit., pp. 258). 82 Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, cit., p. 71: “O credor não pode, em princípio, resolver o negócio em consequência da mora do devedor. O que pode é exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos sofridos.” 83 Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, ob. cit., p. 114-115.

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ções fi cará dependente do banco agente, atuando sob instruções da maioria dos credores, declarar o respetivo vencimento ao abrigo da cláusula de accele-ration84. Apesar de ser possível no Direito português, não podemos deixar de salientar que, tipicamente, perante o atraso no pagamento de uma prestação, nenhum credor avança de imediato para tribunal, optando sempre por notifi car o devedor para cumprir. Isto dever-se-á ao facto da interpelação poder efetiva-mente compelir o devedor a cumprir ou porque, avançando para tribunal após o incumprimento defi nitivo, o credor tem mais opções ao seu dispor, podendo pedir o pagamento da prestação em atraso ou de todas as prestações ou ainda resolver o contrato.

A cláusula de “Acceleration”, contudo, não faz referência a qualquer notifi -cação adicional que converta a mora em incumprimento defi nitivo. Será que essa ausência se deve ao facto de os contratos da LMA serem construídos tendo por base o Direito Inglês, devendo nós, ao adaptá-los e analisá-los à luz do Direito Português, proceder a esta alteração? Não nos parece necessário que a referência à interpelação admonitória seja incluída na Cláusula de “Accelera-tion”. Primeiro, esta cláusula não regula as condições de exercício do direito de resolução do contrato, pelo que poderia não ser o local adequado para incluir essa referência. Em segundo lugar, se a necessidade de interpelação admonitória com cominação de defi nitividade para conversão da mora em incumprimento defi nitivo é uma exigência legal, não é necessário que os contratos reproduzam o que já decorre necessariamente da lei. Por fi m, saliente-se que a exigência de conversão da mora em incumprimento defi nitivo coloca-se no caso de o cre-dor pretender resolver o contrato, mas não parece colocar-se para que o agente possa exigir antecipadamente o cumprimento das restantes prestações85.

84 Cfr. neste sentido, entre outros, Hugh Pigott, “The Historical Development of Syndicated Eurocurrency Loan Agreements”, in International Business Lawyer, 1982, Vol. 10 (vi), consultado online em http://heinonline.org, p. 203: “unless the loan has been accelerated by a majority vote of the syndicate, an individual bank can only sue for the monies which the borrower has failed to pay at the date of the suit” e Richard Hooley, “Enforcing syndicated credit agreements …”, ob. cit., p. 76. 85 No sentido de que basta uma situação de mora para que o credor possa exigir o pagamento antecipado das restantes prestações ao devedor, pronunciam-se Bruno Ferreira (Cfr. Contratos de Crédito Bancário e Exigibilidade Antecipada, ob. cit., p. 188) e Pires de Lima/Antunes Varela (Cfr. Código Civil Anotado, II, ob. cit., p. 32). Bruno Ferreira refere que Pedro Romano Martinez adota a posição contrária, contudo, não nos parece ser esse o sentido do texto deste autor. Na verdade, o que Romano Martinez afi rma é que “a mora no cumprimento de uma parcela do que tiver sido emprestado não confere ao mutuante o direito de resolver o contrato” e não que não confere o direito ao mutuante de exigir o pagamento antecipado das restantes parcelas do que foi emprestado. Assim, parece-nos que o autor entende que, em geral, é necessário o incumprimento defi nitivo para o exercício do direito de resolução do contrato de mútuo, exceto

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Assim, já vimos que, nos termos da lei Portuguesa, para um credor exi-gir o pagamento do seu crédito em tribunal é muito frequente que, após o incumprimento do pagamento de uma das prestações pela mutuária, esta seja notifi cada para cumprir a prestação em falta num prazo razoável. Este pode ser mais um obstáculo ao exercício individual de direitos por um credor porque muitas vezes as partes acordam, para facilitar, que todas e quaisquer notifi cações entre a mutuária e as entidades fi nanceiras devem ser feitas através do banco agente. Se assim for, dependerá do que for contratualmente acordado saber se um credor pode isoladamente notifi car a mutuária ou se tem poderes para ins-truir o banco agente para a notifi car com esse objetivo. Embora normalmente todas as comunicações entre mutuária e entidades fi nanceiras sejam, de facto, feitas através do banco agente, não encontramos nenhuma cláusula no contrato modelo da LMA que impeça uma entidade fi nanceira de notifi car a mutuária para pagamento do montante em dívida com o objetivo de conversão da mora em incumprimento defi nitivo.

Perante o não pagamento pela mutuária de uma prestação, também se pode dar o caso do banco agente, a pedido da maioria de credores contratualmente exigida, interpelar o devedor exigindo o pagamento das restantes prestações. Se, entretanto, a mutuária não pagar os montantes em dívida e a maioria dos credores não instruir o agente para efetivamente demandar a mutuária em tri-bunal ou, em alternativa, o conjunto de credores não iniciar um processo em tribunal com vista a obter o pagamento forçado dos montantes em dívida, o que pode fazer um credor isoladamente? Na nossa opinião, a diferença entre a situação descrita acima – em que o banco agente não exigiu o cumprimento antecipado à mutuária das restantes prestações – e esta última situação, está no quantum que o credor isoladamente poderá pedir em tribunal. No primeiro cenário, o credor isolado apenas pode pedir a sua quota-parte na prestação não paga pela mutuária, enquanto no segundo cenário ele poderá pedir o paga-mento da sua quota-parte na totalidade do crédito concedido, incluindo em relação às prestações que só se venceriam mais tarde, mas que, por força do não pagamento de uma fração e da exigência de pagamento antecipado pelo banco agente, já se venceram e são exigíveis.

4.3. O Caso Charmway

no caso muito específi co previsto no artigo 1150.º do CC em que basta a mora no pagamento dos juros vencidos – cfr. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 345-354.

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Embora a doutrina que em Portugal se pronunciou sobre o tema não pareça ter grandes dúvidas de que cada credor reserva para si o direito de acionar judi-cialmente a mutuária, a verdade é que, dissecando passo a passo as medidas neces-sárias para concretizar esse direito, esta hipótese apresenta, como vimos, diversas difi culdades. A nível internacional é possível também encontrar diversos autores que afi rmam este direito de cada participante no sindicato exercitar de forma autónoma e independente os direitos que lhe correspondem86. Recentemente, contudo, foi publicada uma decisão de um Tribunal de Primeira Instância de Hong Kong, o caso Charmway Hong Kong Investment v Fortunesea (Cayman) Ltd & Ors, de Julho de 2015, (doravante designado “Caso Charmway”)87 que veio acender a discussão, protagonizada por diversos intervenientes e um pouco por todo o mundo88, sobre os direitos individuais dos credores e especifi camente o direito de cada credor, isoladamente, fazer valer os seus direitos em tribunal. Muito sumariamente, neste caso está em causa um contrato de fi nanciamento sujeito à lei de Hong Kong e baseado no modelo recomendado pela LMA que analisamos também neste artigo. Na sequência da falta de pagamento pela mutuária, a maioria dos credores decidiu iniciar um processo em tribunal para fazer valer os seus direitos. Após a venda de parte da dívida a outras entidades, mudaram algumas das instituições que integravam o grupo de credores e o novo grupo maioritário de credores decidiu instruir o agente de garantias para que este terminasse o procedimento judicial cujo objetivo era obter o cumprimento forçado dos direitos dos credores. Um grupo minoritário de credores disputou a validade destas instruções e iniciou o seu próprio procedimento judicial com o objetivo de obter o pagamento dos seus créditos. A mutuária e o grupo maio-ritário de credores veio opor-se a este procedimento argumentando que, nos termos do contrato de fi nanciamento, os credores minoritários não tinham um direito independente de recorrer a tribunal para obter o cumprimento forçado dos seus créditos. O tribunal decidiu que, ao abrigo do contrato, um credor não

86 Neste sentido veja-se, entre outros, Tapia Sánchez, “El contrato de préstamo bancario…”, ob. cit., p. 764 e Richard Hooley, “Enforcing syndicated credit agreements…”, ob. cit., p. 76. Mas a posição não parece ser unânime: cfr. Philip Rawlings, “The management of loan syndicates and the rights of individual lenders” in Journal of International Banking Law and Regulation, vol. 24, 4, 2009, p. 179-185, consultado online em http://legalresearch.westlaw.co.uk (mediante assinatura).87 Esta decisão está disponível para consulta, em inglês, em https://cases.legal/en/act-hk1-93976.html. 88 Veja-se ainda o artigo de Philip Rawlings de 2009 em que o autor aborda diversas decisões judiciais nos Estados Unidos da América sobre este tema e afi rma que, na maioria dos casos, os tribunais negaram o direito de um credor individual iniciar ação em tribunal mas outros casos houve em que a decisão foi no sentido oposto – cfr. “The management of loan syndicates and the rights of individual lenders”, ob. cit., p. 3 e ss. da versão online.

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tinha um direito individual a recorrer a tribunal para obter o pagamento da sua quota-parte do empréstimo contra a vontade da maioria dos credores e decidiu assim mesmo tendo já sido declarado o vencimento antecipado do empréstimo ao abrigo da cláusula de acceleration89.

Os credores minoritários basearam a sua argumentação no facto de a Cláu-sula 2.2 do contrato de fi nanciamento dar o direito a cada credor de recor-rer a tribunal para obter o pagamento do seu crédito de forma independente nos casos em que uma tranche do empréstimo se tornasse devida ao abrigo do contrato mas não fosse paga pela mutuária. A cláusula 2.2 do contrato de fi nanciamento relevante era fundamentalmente a mesma que a cláusula modelo proposta pela LMA que acima se transcreveu90. O Tribunal de Primeira Ins-tância de Hong Kong invocou que um empréstimo sindicado, pela sua natu-reza91, criava um único empréstimo unitário e que, na ausência de uma cláusula expressa que atribuísse a um credor individual o direito a fazer valer os seus direitos em tribunal de forma independente, cabia aos credores maioritários, agindo de acordo com a boa-fé, decidir que procedimentos judiciais deveriam ou não ser tomados.

O Tribunal reconheceu que o contrato de fi nanciamento continha algumas cláusulas que permitiam a um credor individual propor em juízo uma ação, de forma independente, para ver satisfeito o seu crédito, mas apenas em certas circunstâncias. Por exemplo, nos casos de ilegalidade, mudança de controlo ou pagamento antecipado devido a custos acrescidos ou a pagamento de impos-tos. Afi rma o Tribunal que os casos em que se vislumbra que qualquer credor possa, individualmente e independentemente dos restantes membros do sindi-cato bancário, fazer valer o seu direito em tribunal obtendo, designadamente, o pagamento que lhe é devido, são os casos em que o mutuário está obrigado a pagar um montante a determinado credor. O que acontece, por exemplo,

89 Cfr. Richard Hooley, “Enforcing syndicated credit agreements: all for one and one for all?”, ob. cit., p. 74. 90 Cfr. ponto 3,3, página 607 e ponto 4.1, página 611, nota n.º 70 deste trabalho.91 O Tribunal afi rma mais precisamente o seguinte: “The Credit Facility Agreement does not state that each advance by a Lender constitutes a separate and aliquot loan. Clause 2.1 provides that the Lenders are to make available to Rightway “a term loan facility in aggregate amount equal to the Total Commitments”. Total Commitments is defi ned to mean “the aggregate of the Commitments of all the Lenders”. The language used in these clauses and also clause 5.3, which deals with Advance of Cash Loan and provides “The Administrative Agent must promptly notify each Lender under the Facility of the details of each requested Cash Loan and the amounts of its shares in that Cash Loan”, is not language consistent with each Lender making separate and aliquot loans. Rather the clauses talk of aggregating each Lender’s Cash Loan and this suggests the creation of one unitary loan.”. “Rightway” signifi ca Rightway China Real Estate Limited, que é a mutuária nestes contratos.

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nos casos de Illegality92 ou Right of replacement or repayment and cancellation in relation to a single Lender93. O Tribunal considerou que estas cláusulas demons-tram como opera a Cláusula 2.2, clarifi cando que esta última não atribui um direito geral de obter o pagamento forçado do crédito nem refere em que casos, ou se de todo, emerge do contrato uma dívida para um credor individual. A presença de diversas cláusulas no contrato de fi nanciamento que atribuem ao Agente um papel na recuperação do pagamento foi também um fator tido em consideração pelo Tribunal. A título de exemplo, o Tribunal refere a cláu-sula de acceleration acima analisada, por determinar que o banco agente pode atuar sob instruções da maioria dos credores e não de um credor individual.

Os intervenientes no mercado dos empréstimos sindicados, especialmente no Reino Unido, designadamente advogados, professores de Direito e até asso-ciações, reagiram a esta decisão judicial, tendo-se manifestado bastante sur-preendidos com o sentido da mesma. A opinião maioritária manifestada é de

92 “If, in any applicable jurisdiction, it becomes unlawful for any Lender to perform any of its obligations as contemplated by this Agreement or to fund or maintain its participation in any Loan [or it becomes unlawful for any Affi liate of a Lender for that Lender to do so]:(a) that Lender shall promptly notify the Agent upon becoming aware of that event;(b) upon the Agent notifying the Company, each Available Commitment of that Lender will be immediately cancelled; and(c) to the extent that the Lender’s participation has not been transferred pursuant to paragraph (d) of Clause 8.6 (Right of replacement or repayment and cancellation in relation to a single Lender), each Borrower shall repay that Lender’s participation in the Loans made to that Borrower on the last day of the Interest Period for each Loan occurring after the Agent has notifi ed the Company or, if earlier, the date specifi ed by the Lender in the notice delivered to the Agent (being no earlier than the last day of any applicable grace period permitted by law) and that Lender’s corresponding Commitment(s) shall be cancelled in the amount of the participations repaid.” 93 “(a) If:(i) any sum payable to any Lender by an Obligor is required to be increased under paragraph (c) of Clause 13.2 (Tax gross-up); or(ii) any Lender claims indemnifi cation from the Company under Clause 13.3 (Tax indemnity) or Clause 14.1 (Increased costs),the Company may, whilst the circumstance giving rise to the requirement for that increase or indemnifi cation continues, give the Agent notice of cancellation of the Commitment(s) of that Lender and its intention to procure the repayment of that Lender’s participation in the Loans or give the Agent notice of its intention to replace that Lender in accordance with paragraph (d) below.(b) On receipt of a notice of cancellation referred to in paragraph (a) above, the Commitment(s) of that Lender shall immediately be reduced to zero.(c) On the last day of each Interest Period which ends after the Company has given notice of cancellation under paragraph (a) above (or, if earlier, the date specifi ed by the Company in that notice), each Borrower to which a Loan is outstanding shall repay that Lender’s participation in that Loan.”

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que, considerando a jurisprudência existente em Inglaterra94 e a ideia genera-lizada e difundida no mercado, seria pouco provável que um Tribunal Inglês decidisse da forma como decidiu o Tribunal de Hong Kong. Perante a reação do mercado e a preocupação que certamente esta decisão gerou em muitas instituições de crédito, a LMA emitiu um comunicado e alterou a redação dos seus contratos modelo de fi nanciamento em Outubro de 2015. A nova redação95, mais extensa, da cláusula sobre os direitos das entidades fi nanciadoras pretende reforçar a natureza individual do direito de cada credor ao pagamento de todos os montantes devidos e a recorrer a tribunal isoladamente para exercer esse direito. Embora a LMA assegure que estas alterações não eram estritamente necessárias ao abrigo da lei Inglesa, uma vez que seria improvável que um tri-bunal decidisse da forma como decidiu o Tribunal de Hong Kong, afi rma-se também que estas alterações ajudam a clarifi car os direitos de um credor indi-vidual e refl etem as preocupações do mercado perante o Caso Charmway96.

94 Um dos casos ingleses que ilustra esta posição é o Bluecrest Mercantile BV and another v Vietnam Shipbuilding Industry Group and others [2013] EWHC 1146 (Comm), abreviadamente designado “Vinashin”. Neste caso, o High Court de Inglaterra estava a analisar se um scheme of arrangement Inglês poderia ser utilizado por uma empresa de construção naval detida pelo Estado Vietnamita e embora o caso fosse centrado no próprio scheme of arrangement, o Tribunal estava preparado para declarar a suspensão de dois outros processos distintos que tinham sido iniciados por credores minoritários. Neste contexto, o mutuário aceitou nas suas declarações em defesa da suspensão dos processos que não tinha qualquer defesa quanto ao mérito do pedido e o Tribunal aceitou este ponto sem qualquer discussão: “In its written submissions in support of the stay application dated 17 April 2013, Vinashin made it clear that it had no defence to the substantive claims.” (disponível online em http://www.insol.org/emailer/Oct_2013_downloads/ Vinashin_Ruling%202%20April%202013.pdf ). 95 A nova redação da Cláusula 2.2 (Finance Parties’ rights and obligations) do modelo recomendado pela LMA para o contrato de fi nanciamento acrescenta agora nos pontos (b) e (c) o seguinte: “(b) The rights of each Finance Party under or in connection with the Finance Documents are separate and independent rights and any debt arising under the Finance Documents to a Finance Party from an Obligor shall be a separate and independent debt is a separate and independent debt in respect of which a Finance Party shall be entitled to enforce its rights in accordance with paragraph (c) below. The rights of each Finance Party include any debt owing to that Finance Party under the Finance Documents and, for the avoidance of doubt, any part of a Loan or any other amount owed by an Obligor which relates to a Finance Party’s participation in a Facility or its role under a Finance Document (including any such amount payable to the Agent on its behalf) is a debt owing to that Finance Party by that Obligor.(c) A Finance Party may, except as otherwise stated specifi cally provided in the Finance Documents, separately enforce its rights under or in connection with the Finance Documents”. (as partes sublinhadas a itálico são os excertos que foram introduzidos de novo e as partes traçadas são as que foram eliminadas).96 Cfr. Nota emitida pela Loan Market Association a 28 de outubro de 2015 sobre a alteração à Cláusula “2.2 Finance Parties’ rights and obligations”, em especial o ponto 4: “While amendments to the LMA’s suite of English law facility documentation are not felt to be necessary from a legal

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4.4. Lugar paralelo: o exercício individual de direitos pelo obrigacionista

Entramos agora num breve excurso sobre a possibilidade de um obriga-cionista exercer judicialmente, de forma individual, o seu direito de crédito. Na nossa perspetiva, este subcapítulo justifi ca-se porque o fi nanciamento de uma sociedade por empréstimo bancário apresenta semelhanças com o fi nan-ciamento por emissão de obrigações que tornam útil perceber de que forma é resolvida a questão que aqui analisamos numa realidade semelhante, mas dis-tinta. Acresce que a emissão de obrigações tem surgido cada vez mais como alternativa ao fi nanciamento por empréstimo bancário, pelo que se torna rele-vante perceber se há diferenças de regime neste campo que possam justifi car a opção por um ou outro tipo de fi nanciamento97. Veja-se que tanto num caso como no outro estamos perante formas de conceder fi nanciamento a uma sociedade em que encontramos um número plural de fi nanciadores que tem necessidade de se organizar entre si e que tem habitualmente um representante comum. Em ambos os casos haverá quer interesses comuns quer interesses pró-prios dos obrigacionistas e dos membros do sindicato bancário e em ambas as situações há mecanismos, ainda que distintos, para os diversos fi nanciadores se organizarem e tomarem decisões. Parece-nos que em ambos os casos se pode vislumbrar aquela tensão entre o carácter individual dos direitos dos fi nancia-dores e a pertença a um grupo unitário, sujeito às mesmas regras. A extensão deste artigo não permite que nos debrucemos sobre a emissão de obrigações e o respetivo regime, pelo que remetemos para a bibliografi a sobre o tema98.

perspective, the LMA recognises the global reach of its recommended forms of documentation and the need for its documentation to refl ect current market developments and concerns.” (disponível em área de acesso reservado da página www.lma.eu.com).97 Sobre a opção entre fi nanciamento através da emissão de obrigações – fi nanciamento externo direto – e através de empréstimo bancário – fi nanciamento externo indireto – veja-se Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, ob. cit., p. 123 e ss.98 Sobre a emissão de obrigações e o respetivo regime vejam-se, entre outros, Jorge M. Coutinho de Abreu (Coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. V, Coimbra, Almedina, 2012, p. 759 e ss., Nuno Barbosa, Competência das Assembleias Obrigacionistas, Coimbra, Almedina, 2002, António Silva Dias, Financiamento de Sociedades por Emissão de Obrigações, Lisboa, Quid Juris, 2002, António Menezes Cordeiro (Coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, p. 928 e ss., Paulo Câmara, “O regime jurídico das obrigações e a protecção dos credores obrigacionistas”, in RFDUL, Vol. XLIV, N.º 1 e 2 (2003), p.109 e ss., Ana Rita Almeida Campos/Hugo Moredo Santos, “Organização de obrigacionistas: algumas notas para refl exão sobre o representante comum”, in RDS, Ano III (2011), N.º 4, p.891-923, Florbela De Almeida Pires, Direitos e organização dos obrigacionistas em obrigações internacionais, Lisboa, Lex, 2001.

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Mergulhando diretamente no tema sob análise, a questão é se um credor obrigacionista pode reagir individualmente contra a sociedade, isto é, se pode fazer valer os seus direitos violados individualmente ou depende da assembleia ou do representante comum ou de todos os outros obrigacionistas. A pergunta pode, na verdade, ser dividida em dois casos distintos: quando estão em causa interesses próprios e particulares de um obrigacionista e quando estão em causa interesses comuns. Se o direito lesado respeitar apenas a um obrigacionista, sem afetar os restantes, parece não haver dúvidas de que esse obrigacionista pode tutelar os seus interesses sem depender de qualquer representante comum ou da assembleia de obrigacionistas, tendo assim legitimidade para instaurar a ação relevante99. Na verdade, a assembleia está limitada à deliberação sobre assuntos de interesse comum dos obrigacionistas (cfr. artigo 355.º, n.º 4, do CSC) e ao representante comum cabe também apenas defender os interesses comuns dos obrigacionistas (cfr. artigo 359.º, n.º 1, do CSC). Contudo, a doutrina divide-se quando estão em causa interesses comuns ou direitos que, independentemente da designação que lhes seja atribuída, afetam outros obrigacionistas. Enquanto alguns autores são da opinião que cada obrigacionista tem legitimidade indi-vidual para “em nome próprio, proporem acções tendentes à reparação efectiva dos seus direitos ainda que a causa de pedir abranja também os demais obrigacionistas”100, outros defendem que, existindo uma conduta da sociedade que afete os direitos de todos os obrigacionistas, então só o representante comum, autorizado pela assembleia, terá legitimidade para iniciar o processo judicial101.

Aprofundando um pouco mais o tema, veja-se que os autores que defen-dem a legitimidade individual do obrigacionista limitam depois, de certa forma, a sua posição, ao deixarem claro que se referem a situações em que a assembleia não deliberou no sentido de autorizar o representante comum a atuar judi-cialmente. Assim, reconhecem o poder de iniciativa individual de um obri-gacionista mas, em caso de contradição com uma ação coletiva deliberada por

99 Neste sentido veja-se Nuno Barbosa, Competência das Assembleias Obrigacionistas, ob. cit., p. 143, António Silva Dias, Financiamento de Sociedades por…, ob. cit., p. 215, Jorge Pinto Furtado, Código Comercial Anotado, vol. II, tomo II, Coimbra, 1986 (reimp), p. 687 e Carlos Osório de Castro, Valores mobiliários: conceitos e espécies, 2.ª ed., Porto, Universidade Católica,1998, p. 155.100 Cfr. António Silva Dias, Financiamento de Sociedades por…, ob. cit., p. 215. No mesmo sentido veja-se Nuno Barbosa, Competência das Assembleias Obrigacionistas, ob. cit., p. 144 e, na jurisprudência, Ac. do TRL de 27 de Junho de 1996, consultado online, e Ac. do STJ de 10 de Fevereiro de 1998, Relator Conselheiro Figueiredo de Sousa, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt.101 Neste sentido veja-se Luís da Gama Lobo Xavier, em Nota ao Acórdão de 11 de Maio de 1995, publicado na RDES, ano XXXVIII, 1996, pp. 365-384, p. 376-379 e nota 2 em especial, e Osório de Castro, Valores mobiliários: conceitos e espécies, ob. cit., p. 155.

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assembleia, esta última prevalece102, considerando o carácter vinculativo das deliberações para todos os obrigacionistas, incluindo os discordantes103 (cfr. artigo 355.º, n.º 8, do CSC). Isto signifi ca que, enquanto não existir delibe-ração da assembleia, um obrigacionista pode pleitear individualmente porém, perante a atuação coletiva, fi ca impedida a atuação individual, a não ser que a ação individual tenha sido intentada em momento anterior à deliberação104.

No caso particular da reclamação de créditos dos obrigacionistas em ação executiva existe norma específi ca a regular o tema – o artigo 355.º, n.º 4, alínea d) do CSC. Nuno Barbosa interpreta este artigo no sentido de se tratar de uma reserva de competência da assembleia, isto é, o representante comum não pode agir em defesa do interesse dos seus representados sem deliberação da assembleia, salvo em caso de urgência105. Quanto à possibilidade de reclamação individual dos créditos, o autor parece admiti-la também, pois refere que os obrigacionistas poderão fazê-lo “individual ou coletivamente”106.

Os casos parecem-nos verdadeiramente semelhantes, embora nos emprés-timos sindicados não exista uma assembleia e nos empréstimos obrigacionistas possamos eventualmente encontrar um número mais elevado de credores, por vezes difíceis de identifi car107. Tal como no que respeita aos obrigacionistas os autores analisam as normas do CSC para concluir que estas não impõem uma atuação plural para agir em juízo108, nos empréstimos sindicados analisamos o contrato e a lei (Código Civil e Código de Processo Civil) para chegar a con-clusão semelhante. Tal como se afi rma que se o legislador quisesse consagrar a legitimidade plural necessária no CSC tê-lo-ia feito expressamente, decla-rando que apenas o representante comum tem legitimidade para intentar ações relativas a interesses comuns dos obrigacionistas, também se pode afi rmar que

102 Cfr. António Silva Dias, Financiamento de Sociedades por…, ob. cit., p. 217.103 Cfr. Nuno Barbosa, Competência das Assembleias Obrigacionistas, ob. cit., p. 156 e António Silva Dias, Financiamento de Sociedades por…, ob. cit., p. 218.104 Neste caso deverá ser arguida a exceção de litispendência (cfr. artigos 580.º e 581.º do CPC), como bem refere Nuno Barbosa, Competência das Assembleias Obrigacionistas, ob. cit., p. 156, nota 389.105 Os casos de urgência serão, na verdade, a maioria, pois o prazo para deduzir a reclamação é de 15 dias (cfr. artigo 788.º, n.º 2, do CPC) e, caso os obrigacionistas deliberem em assembleia geral convocada, a convocatória para a assembleia deve ser publicada com a antecedência mínima de um mês ou 21 dias, conforme os casos (cfr. artigo 377.º, n.º 4, do CSC, ex vi artigo 355.º, n.º 2, do CSC).106 Cfr. Nuno Barbosa, Competência das Assembleias Obrigacionistas, ob. cit., p. 158.107 Cfr. neste sentido Philip Rawlings, “Majority rule and minority rights in syndicated loans”, ob. cit., p. 5.108 Naturalmente que referimo-nos aqui aos autores que têm esta opinião, como Nuno Barbosa (cfr. Competência das Assembleias Obrigacionistas, ob. cit., p. 145), e não aos que interpretam as normas do CSC de um modo diferente.

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se a vontade das partes do contrato de empréstimo sindicado fosse realmente impedir o recurso à tutela jurisdicional de forma individual, então deveria estar claramente expressa no contrato e não está.

4.5. No processo civil: legitimidade singular ou plural

Vejamos agora, muito sumariamente, como deverá ser processualmente confi gurada esta situação em tribunal. Isto é, interessa-nos saber o que é exigido pelo Código de Processo Civil para que um credor de uma obrigação plural parciária possa realizar coativamente o seu direito ao pagamento dos montantes em dívida.

Aos bancos participantes de um sindicato bancário interessa acautelar, aquando da celebração do contrato de fi nanciamento, que fi cam munidos de um título executivo válido que dispense uma morosa ação declarativa prévia, permitindo-lhes, em caso de incumprimento da mutuária, recorrer de ime-diato109 à ação executiva. Para isso, e considerando que o contrato de fi nan-ciamento ou qualquer um dos restantes contratos celebrados pelas partes será sempre um título extrajudicial que não se enquadra nas alíneas a), c) ou d) do número 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, resta às partes cumprir a forma prevista na alínea b). Assim, o mais comum na prática jurídica é que o contrato de fi nanciamento seja autenticado, isto é, confi rmado pelas partes perante notário ou outra entidade com competência para tal nos termos pres-critos nas leis notariais (artigo 363.º, n.º 3, do Código Civil), de modo a preen-cher os requisitos do artigo 703.º, n.º 1, alínea b) do Código Processo Civil. Adicionalmente, tratando-se habitualmente de um contrato de abertura de cré-dito, será necessário um documento adicional110, emitido de acordo com o dis-

109 Para ser objeto de execução, uma obrigação deve ser certa, líquida e exigível, conforme decorre do artigo 713.º do CPC. Trata-se de uma condição material da realização coativa da prestação, enquanto o título executivo tem a natureza de condição formal da realização coativa da prestação, nas palavras de Rui Pinto (cfr. Manual da Execução e Despejo, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 226). Assumimos, para este efeito, que existe essa certeza, liquidez e exigibilidade da prestação, até pelo que já foi explanado acima quanto à mora e incumprimento pela mutuária e ao eventual vencimento antecipado das restantes prestações.110 O documento adicional pode tratar-se, de acordo com a jurisprudência, de um extrato de conta corrente – cfr. Acórdão do STJ de 15.05.2001, processo n.º 01A1113, relator Lopes Pinto, disponível em www.dgsi.pt –, de uma nota de débito – cfr. Acórdão do TRL de 05.05.2011, processo n.º 4815/08.3TBOER-A.L1-6, relator Manuel José Aguiar Pereira, disponível em www.dgsi.pt – ou outros documentos contratuais como a Proposta de adesão ao cartão de crédito e extratos da conta associada ao mesmo – cfr. Acórdão do TRP de 18.11.2008, processo n.º 0825818, relator

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posto no contrato de fi nanciamento autenticado ou munido de força executiva própria, de onde resulte que o crédito foi efetivamente prestado à mutuária, conforme previsto no artigo 707.º do Código de Processo Civil111.

Assumindo então que existe título executivo válido, o banco participante do sindicato deverá, munido desse título, iniciar ação executiva para paga-mento de quantia certa. Poderá este credor obter coativamente a sua presta-ção da mutuária agindo isoladamente ou encontramos no processo civil algum obstáculo que exige, designadamente, a participação de mais intervenientes no processo? Torna-se necessário analisar as regras relativas à legitimidade proces-sual112, nomeadamente relativas ao litisconsórcio necessário e voluntário. Dado o carácter residual do litisconsórcio voluntário, em primeiro lugar é essencial aferir se estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, seja ele legal, convencional ou natural, isto é, se a realização coativa do direito à prestação relevante – pagamento da quantia em dívida pela mutuária ao banco que iniciou a ação executiva – só pode ter lugar por todos os credores113. Sendo a prestação uma quantia em dinheiro, é necessariamente divisível e, por isso, não existe neste caso litisconsórcio necessário natural. Olhando para a relação estritamente como foi analisada até agora e, portanto, sem ter em consideração a existên-cia de garantias reais associadas ao crédito, também não é possível identifi car nenhuma norma legal que imponha litisconsórcio necessário legal e, portanto, resta apenas a possibilidade de, por negócio jurídico, as partes terem acordado que apenas em conjunto poderiam exercer judicialmente o seu direito. Como explicitámos acima, os contratos de fi nanciamento sob escrutínio não só não

Anabela Dias da Silva, disponível em www.dgsi.pt. No nosso caso, será de se juntar o pedido de utilização (utilisation request) que é o documento que, em conformidade com o disposto no contrato de fi nanciamento, deverá ser utilizado pela mutuária para solicitar a disponibilização do crédito, talvez acompanhado também do extrato da conta onde seja disponibilizado o crédito. 111 Não vamos aqui reproduzir a discussão em torno do atual artigo 707.º (antigo artigo 50.º do Código de Processo Civil anterior) na redação que tinha ao abrigo do anterior Código de Processo Civil de 1961. Sobre este tema veja-se, por todos, Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 66 e ss.. 112 Como é de conhecimento generalizado, vários são os pressupostos processuais – relativos ao tribunal, às partes e ao objeto – necessários para se iniciar uma ação declarativa ou executiva em tribunal. Referimo-nos à competência do tribunal, à personalidade e capacidade judiciária das partes, à legitimidade e ao patrocínio judiciário que apresentam, nalguns casos, especifi cidades na ação executiva. Contudo, não se tratando este de um artigo de direito processual, apenas nos interessa aqui analisar aquele que está diretamente relacionado com a questão a que pretendemos dar resposta neste texto, que é a legitimidade processual, mais precisamente a legitimidade do banco membro do sindicato bancário para iniciar sozinho uma ação executiva para pagamento da quantia que lhe é devida pela mutuária.113 Cfr. Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, ob. cit., p. 302.

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estabelecem essa regra, como inclusivamente referem o contrário. Contudo, se as partes efetivamente estipularem que só em conjunto poderão exigir a pres-tação em tribunal, teremos um caso de litisconsórcio necessário convencional nos termos do artigo 33.º, n.º 1, do CPC.

Concluímos acima que as obrigações dos bancos participantes no sindicato bancário, quer no lado ativo da relação quer no lado passivo, não são solidárias, mas conjuntas ou parciárias. A natureza das obrigações plurais não é, na ver-dade, determinante para sabermos o número de partes na execução, pois não é o facto de se tratar de uma obrigação solidária ou parciária que obriga a que todos os credores tenham de ser partes na execução114. Contudo, tratando-se de obrigação solidária, um dos credores isoladamente poderá exigir o cum-primento integral da prestação, nos termos do artigo 512.º, n.º 1, do Código Civil e do artigo 32.º, n.º 2, do CPC. Se a obrigação for parciária, como no nosso caso, o credor pode optar entre iniciar a ação sozinho ou acompanhado mas, se deduzir a pretensão isoladamente, só poderá exigir a sua quota-parte na prestação (cfr. artigo 32.º, n.º 1 do CPC), sob pena de haver excesso do pedido e, consequentemente, indeferimento parcial do requerimento executivo (cfr. artigo 726.º, n.º 3, do CPC)115. Nestes casos, como o que aqui analisamos, há litisconsórcio voluntário conveniente116 uma vez que, se o credor se apresentar acompanhado dos restantes credores, poderá exigir a prestação na totalidade. Em suma, não encontramos nenhuma regra processual que impeça um credor de exercer o seu direito isoladamente em tribunal, desde que este se limite a pedir o pagamento da sua quota-parte.

4.6. Posição adotada

Considerando as cláusulas modelo propostas pela LMA – quer na sua antiga quer na sua nova redação – e o ordenamento jurídico português, somos de opi-nião que cada credor tem um direito de crédito separado dos restantes credores e pode isoladamente recorrer a tribunal para obter o cumprimento forçado do seu direito. Contudo, como se foi adiantando ao longo do texto, tal credor pode deparar-se com diversos obstáculos, a começar pelas restrições eventual-mente acordadas para efetuar notifi cações (se pretender converter a mora em incumprimento defi nitivo ou simplesmente notifi car o devedor para cumprir)

114 Cfr. Rui Pinto, Manual da Execução..., ob. cit., p. 306.115 Cfr. Rui Pinto, Manual da Execução..., ob. cit., p. 306.116 Neste sentido veja-se, por exemplo, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. I, Coimbra, Almedina, 2010, p. 423.

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e pela exigência contratual de maiorias na decisão de exigir antecipadamente as restantes prestações. Acresce que é ainda frequente serem estabelecidas maio-rias simples ou qualifi cadas para que as entidades fi nanceiras possam dispensar o cumprimento de algumas obrigações da mutuária, sendo esta decisão vin-culativa mesmo para a minoria de entidades fi nanceiras que não estejam de acordo117. No limite, se, perante um incumprimento da mutuária, uma maioria de credores decidir dispensá-la do cumprimento dessa obrigação, então estará também a colocar em causa o direito individual de um credor exigir o res-petivo cumprimento. Contudo, deve sublinhar-se que estes waivers sujeitos a decisão de uma maioria não se referem normalmente a obrigações de paga-mento da mutuária e sim a outro tipo de obrigações118. Para prorrogar a data de pagamento de algum montante ou reduzir o valor de qualquer pagamento de capital, juros ou comissões, exige-se tipicamente a unanimidade de todos os credores. Esta exigência de unanimidade está conforme com o regime de direitos e obrigações dos membros do sindicato bancário, isto é, com o facto de terem direitos separados e independentes.

Uma vez obtido com sucesso o pagamento da sua quota-parte do mon-tante em dívida, identifi ca-se, porém, novo possível obstáculo: estará o banco que logrou obter pagamento sujeito a partilhar com os restantes membros do sindicato bancário as quantias recebidas, designadamente ao abrigo da sharing clause? Analisando novamente as cláusulas modelo da LMA, parece certo que cada credor poderá agir sozinho em tribunal e, se informar previamente os res-

117 Cfr. neste sentido Gaspar Atienza, Rodrigo Berasategui, Marcos Botella y José Guardo, “La Financiación de…, ob. cit., p. 133.118 Veja-se a cláusula 35 (Amendments and Waivers) do contrato modelo da LMA: “35.1 Required consents(a) Subject to Clause 35.2 (All Lender matters) and Clause 35.3 (Other exceptions) any term of the Finance Documents may be amended or waived only with the consent of the Majority Lenders and the Obligors and any such amendment or waiver will be binding on all Parties. […]3 5.2 All Lender mattersAn amendment or waiver of any term of any Finance Document that has the eff ect of changing or which relates to: […](b) an extension to the date of payment of any amount under the Finance Documents;(c) a reduction in the Margin or a reduction in the amount of any payment of principal, interest, fees or commission payable;(d) an increase in any Commitment, an extension of any Availability Period or any requirement that a cancellation of Commitments reduces the Commitments of the Lenders rateably under the relevant Facility; […](g) Clause 2.2 (Finance Parties’ rights and obligations), Clause 24 (Changes to the Lenders), this Clause 35, Clause 39 (Governing law) or Clause 40.1 ( Jurisdiction); […]shall not be made without the prior consent of all the Lenders.”

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tantes participantes do sindicato do processo judicial, dando-lhes oportunidade de participar nesse processo, não fi cará sujeito a partilhar o montante que rece-ber pelos restantes credores. Isto porque a cláusula de partilha de pagamentos contém exceções, sendo uma delas precisamente o caso em que uma entidade fi nanciadora que recuperou montantes num processo em tribunal notifi cou os restantes membros do sindicato bancário do processo judicial ou arbitral dando--lhes oportunidade de participar nesses processos mas os outros membros não participaram nem iniciaram processos separados119. Assim, se os restantes cre-dores não quiseram participar no processo, o credor que procurou reaver o seu crédito em tribunal não terá de partilhar com os restantes aquilo que recebeu, assumindo que só peticionou e recebeu a parte proporcional que lhe cabia no montante total em dívida120. Esta exceção incluída na sharing clause relativa a um processo judicial iniciado por uma entidade fi nanciadora parece-nos, aliás, mais um indício de que o contrato de fi nanciamento não é redigido com o objetivo de impedir qualquer exercício judicial individual.

Se o credor que fez valer os seus direitos em tribunal não informou os outros credores atempadamente parece-nos que poderá, ainda assim, e depen-dendo sempre da análise casuística, não fi car sujeito à partilha dos valores rece-bidos121 ao abrigo de uma outra exceção prevista na sharing clause. O contrato estabelece que, na medida em que o credor que recuperou o seu crédito não tenha, se fi zer os pagamentos previstos na sharing clause, um crédito válido e passível de execução contra o devedor relevante, então a cláusula de sharing não lhe será aplicável122. De facto, se cada credor tem direitos separados e inde-pendentes, se a parte do empréstimo devido pela mutuária relacionado com a participação de uma entidade fi nanciadora no crédito é uma dívida separada

119 Cláusula 28.5 Exceptions: “[…] (b) A Recovering Finance Party is not obliged to share with any other Finance Party any amount which the Recovering Finance Party has received or recovered as a result of taking legal or arbitration proceedings, if:(i) it notifi ed that other Finance Party of the legal or arbitration proceedings; and(ii) that other Finance Party had an opportunity to participate in those legal or arbitration proceedings but did not do so as soon as reasonably practicable having received notice and did not take separate legal or arbitration proceedings.”120 Uma vez que, conforme explicitado acima, não tendo sido estipulada solidariedade ativa, o credor não tem a faculdade de exigir por si só a prestação integral.121 Neste sentido veja-se Agasha Mugasha, The Law of…, ob. cit., pp. 265: “There cannot be such a duty to share an amount obtained by way of court action, however, where one party claims through court action in respect of its own share of the loan for which it solely bears the full commercial risk”. 122 Cláusula 28.5 Exceptions: “(a) This Clause 28 shall not apply to the extent that the Recovering Finance Party would not, after making any payment pursuant to this Clause, have a valid and enforceable claim against the relevant Obligor.”

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e independente devida pela mutuária a essa entidade fi nanciadora123, e se um credor não pode nunca peticionar em tribunal mais do que a sua quota-parte no crédito porque a obrigação em causa não é solidária, então, uma vez obtido o pagamento da sua quota-parte no crédito, esse credor deixa de ter qualquer direito passível de execução contra a mutuária. Não tendo a obrigação sido voluntariamente cumprida, o credor exigiu judicialmente o seu cumprimento conforme permitido de acordo com as regras gerais (artigo 817.º do CC), sendo desta forma satisfeito o seu direito, ainda que de forma forçada. Este credor deixa assim de ter um direito oponível à mutuária.

Neste último caso, contudo, impõem-se algumas ressalvas. Considerando vários indícios que encontramos no contrato, parece-nos que os bancos par-ticipantes de um sindicato bancário estão sujeitos a um dever de lealdade ou de boa-fé acrescida124, como referimos acima125. Os deveres de informação das entidades fi nanciadoras entre si, o facto de a partilha de risco ser simultanea-mente o fundamento e a fi nalidade de um empréstimo sindicado, a sharing clause, o objetivo de tratamento igualitário ou proporcional dos vários credores, a exigência de maiorias para a tomada de inúmeras decisões pelos credores apesar dos seus direitos serem separados e independentes, são todos indícios de uma cooperação forte entre as partes que nos parece traduzir-se numa obriga-ção de boa-fé126 acrescida decorrente do contrato, isto é, mais forte do que a que já decorre do artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil. Não é possível desen-volver neste artigo todas as manifestações desta boa-fé acrescida e, em especial, dos seus deveres acessórios de esclarecimento e lealdade127, contudo, uma das suas implicações será, na nossa perspetiva, a obrigação de informação que recai

123 Cfr. novamente a cláusula 2.2 (b) (Finance Parties’ rights and obligations) acima citada no ponto 4.3., página 621, nota n.º 95.124 Referindo-se também a uma obrigação recíproca de boa-fé acrescida, veja-se Vasconcelos Abreu, “Os sindicatos bancários no direito português”, ob. cit., p. 539. 125 Cfr. ponto 2, página 598 deste trabalho.126 Sobre a boa-fé veja-se, por todos, Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2007 (3.ª reimp.). 127 Sobre os deveres acessórios de conduta, tripartidos entre deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade, cfr. Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, ob. cit., p. 603 e ss. em especial. Nas palavras do autor, “os deveres acessórios de esclarecimento obrigam as partes a, na vigência do contrato que as une, informarem-se mutuamente de todos os aspectos atinentes ao vínculo, de ocorrências que, com ele, tenham certa relação e, ainda, de todos os efeitos que, da execução contratual, possam advir.”, o que nos parece aplicável também à relação entre credores e não apenas à relação devedor-credor e credor-devedor. Por outro lado, os deveres acessórios de lealdade “obrigam as partes a, na pendência contratual, absterem-se de comportamentos que possam falsear o objectivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado.”, sendo que “hão de imputar-se à boa fé e não ao próprio contrato em si quando não resultem apenas da mera

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sobre um credor que pretenda exercer os seus direitos em tribunal em relação aos restantes participantes do sindicato. Melhor seria que as partes incluíssem tal obrigação no contrato, para que dúvidas não existissem. Porém, ainda que não incluída expressamente, tal dever acessório parece impor-se face aos indícios referidos acima.

5. Excurso: a contitularidade de direitos reais de garantia

As situações em que os créditos das entidades fi nanciadoras estejam garanti-dos por direito real de garantia – maxime penhor ou hipoteca – podem colocar alguns problemas adicionais na resposta à nossa questão128. Poderá um credor isolado, cujo crédito se encontre garantido por direito real de garantia com uma pluralidade de benefi ciários – tantos quantas as entidades fi nanciadoras – fazer valer o seu direito em tribunal e obter o pagamento do seu crédito mesmo con-tra a vontade dos restantes credores? Sem pretender dar resposta a esta questão, que nos parece carecer de um estudo bastante mais amplo e aprofundado sobre a acessoriedade e indivisibilidade das garantias reais, e ainda do regime proces-sual, propomo-nos deixar algumas ideias para discussão.

Já fi cou explicitado acima o regime aplicável às obrigações e direitos de crédito das entidades fi nanciadoras emergentes do contrato de fi nanciamento. Contudo, se as partes decidirem garantir a obrigação do mutuário através de direitos reais de garantia, será necessário celebrar também um contrato de garantias129. Deste contrato emergem novas relações e obrigações cuja natureza é diferente das que emergem do contrato de fi nanciamento. Se a mutuária ou um terceiro constituir um penhor ou hipoteca a favor de todas as entidades

interpretação contratual, mas antes das exigências do sistema, face ao contrato considerado.”, o que parece ser o nosso caso.128 Desde logo, quando está em causa um leveraged fi nance (fi nanciamento alavancado) – isto é, um fi nanciamento em que o rácio da dívida da sociedade face ao seu capital é muito elevado e o risco de incumprimento da mutuária é por isso maior – o cumprimento é garantido por garantias reais e é comum as partes acordarem que cada entidade fi nanciadora não tem um direito independente para execução de garantias e que esta será feita pelo agente de garantias, se instruído para tal. Veja-se a cláusula 12.7 (Enforcement through Security Agent only) do LMA Intercreditor Agreement for leveraged acquisition fi nance transactions:“The Secured Parties shall not have any independent power to enforce, or have recourse to, any of the Transaction Security or to exercise any right, power, authority or discretion arising under the Security Documents (other than the Facility Agreements) except through the Security Agent.”.129 Neste campo específi co das garantias é difícil, ou mesmo impossível, recorrer a um contrato modelo cujas cláusulas possamos interpretar porque não existe nenhum contrato modelo da LMA.

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fi nanciadoras para garantir precisamente as obrigações da mutuária, então esta-remos perante um caso de contitularidade ou comunhão de direitos reais e, mais precisamente, de direitos reais de garantia130.

A contitularidade de direitos reais, contudo, está muito pouco estudada na doutrina portuguesa131, à exceção da contitularidade do direito de propriedade, que é expressamente regulada pelo Código Civil nos artigos 1403.º e seguintes, e é designada por compropriedade. Conforme se retira do artigo 1404.º do Código Civil, o regime da compropriedade é diretamente aplicável à comu-nhão de outros direitos, sem sequer se restringir esta aplicação a direitos reais132. Deixando de lado a análise de outros direitos que não os reais, veja-se que um

130 Dependendo da específi ca redação do contrato de garantias, poderemos eventualmente ter, em alternativa, uma situação em que são criados simultaneamente pelo mesmo garante diversos penhores ou diversas hipotecas sobre o mesmo bem, cada um a favor de um dos credores para garantir a sua quota-parte do crédito. Nesta última hipótese, já não teríamos uma situação de comunhão de direitos reais, existindo em vez disso diversos direitos reais, cada um com apenas um titular, mas que, por terem sido criados em simultâneo, benefi ciam do mesmo grau, não havendo prioridade de uns em relação a outros. Uma das grandes diferenças entre a hipótese de existir comunhão de direitos reais de garantia e esta última alternativa é que no primeiro caso teremos uma só garantia que assegura a totalidade do crédito que emerge do contrato de fi nanciamento (e da efetiva prestação do crédito à mutuária pelos bancos participantes do sindicato) e no segundo caso teremos diversas garantias em que cada uma garante um crédito diferente que corresponde à quota-parte desse credor benefi ciário na totalidade do crédito emergente do contrato de fi nanciamento. Sem prejuízo de um estudo mais aprofundado desta segunda alternativa, e das questões jurídicas que possa suscitar, não nos parece que seja esta a situação mais comum nos contratos de garantias celebrados pelas partes para garantir empréstimos sindicados. O mais frequente parece ser a constituição de uma garantia a favor dos diversos credores e não diversas garantias. Com isto não nos pretendemos pronunciar sobre a natureza jurídica da compropriedade, isto é, se há um direito sobre uma quota ideal ou uma parte intelectual, um único direito com vários titulares, ou um concurso de vários direitos reais da mesma natureza sobre a mesma coisa, entre outras. Contudo, faremos breve referência à questão da natureza jurídica da compropriedade ou da comunhão de direitos reais adiante, na página 639. 131 Veja-se, contudo, o recente trabalho de Elsa Vaz Sequeira, Da contitularidade de direitos no direito civil: contributo para a sua análise morfológica, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015, bem como o seu artigo “Contitularidade de direitos: noção e efeitos”, in ROA, Lisboa, A. 75, n.º 3-4 ( jul.-dez. 2015), p.859-893.132 Cfr., entre outros, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 351: “Outro efeito prático da regra estabelecida no artigo 1404.º diz respeito à medida do direito de cada contitular de determinada relação jurídica, seja ela de natureza real ou creditória.” (itálico nosso), José Alberto González, Direitos Reais, 5.ª ed., Lisboa, Quid Juris, 2015, p. 208: “O Código estabelece um regime próprio para os casos de contitularidade de direitos (reais ou não) nos artigos 1403.º a 1413.º (artigo 1404.º) [...]” e José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra, Almedina, 2016, p. 318: “o regime jurídico talhado para a compropriedade é, afi nal, o regime jurídico da comunhão de direitos patrimoniais [em nota de rodapé: “De direitos reais, mas não só.”] e não apenas da comunhão do direito de propriedade.”

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direito real consiste no aproveitamento de uma coisa corpórea, mas o conteúdo desse aproveitamento varia consoante o tipo de direito real em causa. Assim, enquanto os direitos reais de gozo proporcionam o gozo da coisa, os direitos reais de aquisição proporcionam a aquisição de outro direito e os direitos reais de garantia a garantia do cumprimento de uma obrigação133. Estas diferenças relevantes no conteúdo do aproveitamento da coisa característico de cada tipo de direito real fazem com que não seja fácil ou imediata a aplicação de normas pensadas para um determinado tipo de direito real134 a outros. Ora, a maio-ria da doutrina que aborda este tema135 limita-se a clarifi car que o regime da compropriedade é aplicável a outros direitos mas não parte para a análise dessa aplicação, isto é, para a compatibilização do regime da compropriedade com outros direitos136, designadamente direitos reais de garantia ou aquisição. Ainda que este processo de adaptação não seja muito complicado para direitos reais de gozo, uma vez que se assemelham ao direito de propriedade que é o direito real de gozo por excelência, o mesmo não se pode dizer dos direitos reais de garantia, que apresentam características muito específi cas e de difícil compati-bilização com o regime da compropriedade.

133 Cfr. Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. cit., p. 282.134 No sentido de que o regime de contitularidade do Código Civil foi primariamente pensado para a comunhão no direito de propriedade ou, no máximo, para a comunhão em direitos de gozo, veja-se José Alberto González que afi rma, contudo, que o regime “é perfeitamente ampliável à comunhão de outros direitos (reais ou não)” (cfr. Direitos Reais, ob. cit., p. 208). Mais à frente no texto, contudo, o autor apenas afi rma ser possível “inferir-se certas diretrizes gerais relativas a qualquer situação de contitularidade” (cfr. Direitos Reais, ob. cit., p. 213). 135 Cfr. Menezes Leitão, Direitos Reais, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 197, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, Lex, 1979, p. 437 e ss., José de Oliveira Ascensão, Direito civil: Reais, 5ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 266 e ss., Carlos Alberto da Mota Pinto, Direitos Reais, por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Coimbra, Almedina, 2016 (reimp. de 1971), p. 253-254, Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. cit., p. 318, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3.ª ed., Cascais, Principia, 2013, p. 65, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª ed., Lisboa, Quid Juris, 2010, p. 351. 136 José Alberto Vieira identifi ca este problema mas acaba, ele próprio por não desenvolver as especifi cidades de cada direito real passível de comunhão, afi rmando que “nada melhor que apresentar o conteúdo do direito de maior extensão, a propriedade, pois a exposição do conteúdo deste direito, por mais abrangente, acaba por compreender o conteúdo dos direitos reais menores” (cfr. Direitos Reais, ob. cit., p. 322). Não nos parece, contudo, que esta abordagem ajude muito na análise do regime da comunhão de direitos reais de garantia que não incluem poderes de gozo e cujo conteúdo primordial é possibilitar ao benefi ciário obter o pagamento do seu crédito através do produto da venda da coisa sobre a qual incide o direito real de garantia.

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Os direitos reais de garantia caracterizam-se, entre outros elementos, pela acessoriedade137, isto é, estão ligados a um crédito que asseguram – o crédito garantido – e é em função dele que existem. Assim, se o crédito se extinguir porque foi pago, por exemplo, a garantia extingue-se também. A acessoriedade é uma característica de elaboração doutrinal138 que se pode extrair, na nossa perspetiva, dos artigos 730.º, alínea a), 664.º, 677.º, 752.º e 761.º do Código Civil, de onde resulta que a existência da garantia depende da existência do cré-dito garantido. Assim, é natural que as vicissitudes sofridas por este se refl itam naquela139. A acessoriedade refl ete-se em muitos aspetos, entre os quais o titular do direito real de garantia ter de ser o mesmo titular do crédito garantido140, a extinção da obrigação garantida implicar a extinção da garantia e a garantia só poder ser executada se houver incumprimento da obrigação garantida. Este tema da acessoriedade é relevante para a situação em análise porque não é pos-sível analisar simplesmente o direito real de garantia de forma independente do crédito que assegura.

A acessoriedade das garantias traz um problema adicional à aplicação do regime da compropriedade aos direitos reais de garantia conforme resulta do artigo 1404.º do Código Civil pois este não foi construído tendo em conta a dependência do direito real em relação a um direito de crédito. Por regra, as situações de contitularidade caracterizam-se, de acordo com o previsto no artigo 1412.º do CC, pela sua transitoriedade ou provisoriedade141. A lei parece privilegiar as situações em que existe um único titular do mesmo direito real sobre a coisa talvez porque se antecipe que as situações de contitularidade ou comunhão gerem confl itos entre os comunheiros. Assim, ao comunheiro é atribuído o direito potestativo de extinguir a comunhão pedindo a divisão da coisa comum (artigo 1412.º, n.º 1 do CC). Contudo, no que respeita aos

137 Sobre a acessoriedade veja-se, desenvolvidamente, Cláudia Alexandra dos Santos Madaleno, A Acessoriedade nas Garantias das Obrigações, Dissertação orientada pelo Professor Doutor Manuel Januário da Costa Gomes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009 (policopiado). Na doutrina, veja-se ainda com interesse, entre outros, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X – Direito das Obrigações. Garantias, Coimbra, Almedina, 2015, p. 172 e ss., que distingue entre acessoriedade forte, média e fraca, Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida – Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fi ador, ob. cit., p. 56, nota 217 e p. 106 e ss. e Maria Isabel Helbling Menéres Campos, Da Hipoteca – caracterização, constituição e efeitos, Coimbra, Almedina, 2003, p. 86 e ss. especifi camente sobre a acessoriedade da hipoteca. 138 Neste sentido, Menéres Campos, Da Hipoteca, ob. cit., p. 86. 139 Cfr. Alberto González, Direitos Reais, ob. cit., pp. 214-215 e Menéres Campos, Da Hipoteca, ob. cit., p. 87, salientando que o inverso já não se verifi ca.140 Cfr. Menéres Campos, Da Hipoteca, ob. cit., p. 89. 141 Cfr., a título de exemplo, Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. cit., p. 335, Alberto González, Direitos Reais, ob. cit., p. 214 e Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, ob. cit., p. 66.

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direitos reais de garantia, enquanto acessórios de um crédito, não será possível ao comunheiro extinguir a comunhão do direito real de garantia ou pedir a sua divisão independentemente do crédito assegurado, uma vez que a existência e vicissitudes da garantia dependem da existência e vicissitudes do crédito garan-tido. Mais, veja-se que nos direitos reais de garantia o princípio é precisamente o oposto: o da indivisibilidade142, conforme decorre do artigo 696.º no que respeita à hipoteca, aplicável também ao penhor, consignação de rendimentos e privilégios ao abrigo dos artigos 665.º, 678.º e 753.º do Código Civil. Na perspetiva de Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro143, a indivisibilidade pode observar-se em três planos distintos: subsistência da hipoteca sobre todas as coisas oneradas quando o objeto da hipoteca é múltiplo ab initio, subsistência da hipoteca por inteiro sobre cada uma das coisas autonomizadas quando há divi-são do objeto inicial e subsistência da hipoteca por inteiro a favor de cada um dos credores quando se verifi ca a divisão do crédito garantido. Retomaremos adiante o tema da indivisibilidade com implicações diretas na resposta à nossa questão.

Considerando que o direito real de garantia está fortemente ligado e depen-dente do crédito que assegura, não se poderá dizer que segue exatamente o mesmo regime, pelo menos no que respeita ao aspeto concreto sob análise? Referimos acima que do contrato de garantias emergem obrigações com uma natureza diferente do contrato de fi nanciamento, mas será que existe alguma diferença material entre a relação creditícia com credores plurais e a comu-nhão de direitos reais de garantia, ou a primeira constitui afi nal uma situação de comunhão ou contitularidade de direitos de crédito? Não nos parece que estas relações tenham idêntica natureza144 e isso é facilmente percetível com o exemplo da renúncia. Imagine-se, por hipótese, ainda que remota, que uma instituição de crédito decide renunciar à sua posição contratual no fi nancia-mento como um todo, isto é, em todos os contratos. Enquanto na relação creditícia isso irá benefi ciar o devedor, que vê o montante em dívida diminuir

142 Pronunciando-se neste sentido veja-se Alberto González, Direitos Reais, ob. cit., p. 214. Sobre a indivisibilidade da hipoteca, aplicável também às outras garantias reais, veja-se L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2013, p. 212-214, Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 212-213, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, ob. cit., p. 754-756, Menéres Campos, Da Hipoteca, ob. cit., p. 115 e ss. e José de Oliveira Ascensão e António Menezes Cordeiro, “Expurgação de Hipoteca – Parecer”, in CJ, Ano XI, Tomo V, 1986, pp. 35-47.143 Cfr. “Expurgação de Hipoteca – Parecer”, ob. cit., p.41. 144 Também neste sentido veja-se Menéres Campos, Da Hipoteca, ob. cit., p. 95: “Deve, no entanto, distinguir-se entre a relação jurídica obrigacional da relação jurídica real. Ambas estão lado a lado, na titularidade da mesma pessoa, mas o seu regime baseia-se em princípios diversos.”

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na proporção do crédito cujo titular era o renunciante, na relação de garantia real não se vai verifi car uma libertação de parte da coisa objeto de penhor ou hipoteca da garantia a favor do devedor145 (assumindo que foi o devedor que prestou a garantia). A garantia real vai continuar a existir sobre os mesmos bens a favor de uma pluralidade de credores mas cada um destes vai passar a deter uma quota maior desse direito real. É o que resulta do fenómeno do acres-cer: cada quota vai crescer proporcionalmente146 considerando que agora existe menos um titular ou credor. Não é necessário qualquer ato de aceitação dos outros credores titulares do direito real de garantia, nem o podem repudiar, é automático147. Dir-se-á que, em virtude desta situação, pode verifi car-se uma situação de sobregarantia. Se for esse o caso, então deverá o devedor atuar em conformidade e acionar os mecanismos necessários para por termo à situação de sobregarantia. Mas o que seguramente não vai acontecer por mero efeito da renúncia de um credor é que, por exemplo, caso exista um penhor de ações representativas da totalidade do capital social de uma sociedade, algumas dessas ações se vejam desoneradas do penhor, fi cando a garantia a incidir apenas sobre parte das ações. A garantia de cada um dos credores incide sobre a totalidade da coisa e traduz-se, no limite, no direito do credor a vender essa coisa (na sua totalidade) para assim poder ver satisfeito o seu crédito. É materialmente dife-rente da relação creditícia que resulta do contrato de empréstimo sindicado, em que cada credor, na verdade, só tem direito ao reembolso de uma parte do crédito que corresponde proporcionalmente ao crédito que esse credor propor-cionou inicialmente ao devedor (acrescido, naturalmente, de todos os juros e comissões associados).

Regressando à questão inicial, vejamos o que resulta do regime jurídico da compropriedade quanto ao exercício judicial de direitos148. Se, por um lado, o artigo 1405.º, n.º 1, do Código Civil determina que os comproprietários exercem em conjunto todos os direitos que pertencem ao proprietário singu-lar, o seu n.º 2 vem esclarecer que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence

145 Cfr. em sentido semelhante Alberto González, Direitos Reais, ob. cit., p. 216: “a extinção do direito de um dos contitulares não implicar a desoneração do titular do direito onerado, já que sobram os demais consortes”.146 Cfr. a título de exemplo Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. cit., p. 324.147 Cfr. Elsa Vaz Sequeira, “Contitularidade de direitos: noção e efeitos”, ob. cit., pp. 891-892. 148 Embora neste artigo estejamos focados no exercício judicial de direitos, veja-se que, quanto à execução de garantias, é possível, se previamente convencionada pelas partes, a execução extraprocessual do penhor, nos termos do artigo 675.º, n.º 1, do CC.

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por inteiro149. A doutrina tem interpretado estas normas no sentido do exer-cício individual de direitos ser possível quando o comunheiro age em defesa da coisa comum150. Nos restantes casos, será necessário o exercício conjunto. Não nos parece possível afi rmar, contudo, que a execução de uma garantia seja para defesa da coisa ou um puro benefício para todos os comunheiros, pois tal ação irá efetivamente resultar na venda da coisa livre de ónus ou encargos (cfr. artigo 824.º, n.º 2, do CC) e, portanto, na extinção de todos os direitos reais de garantia que recaiam sobre a coisa. Rui Pinto é muito claro quanto à existência de litisconsórcio necessário legal passivo nos litígios reais, por imposição dos artigos 1404.º e 1405.º, n.º 1 do Código Civil, não só quando seja uma execu-ção para entrega de coisa certa151, como também nas execuções para pagamento de quantia certa com garantia real sobre bem em contitularidade152. Contudo, os autores processualistas parecem ser omissos quanto à questão da legitimidade ativa nos casos que aqui analisamos, isto é, na execução para pagamento de quantia certa com garantia real com benefi ciários plurais. Já Elsa Vaz Sequeira defende a existência de litisconsórcio ativo e passivo153, salvo disposição legal em contrário, como a que encontramos nos artigos 1405.º, n.º 2, e 1286.º, n.º 1, do Código Civil. Isabel Menéres Campos, pronunciando-se precisamente sobre o caso de existir um crédito com uma pluralidade de credores garantido por hipoteca, considera que não existe propriamente uma única hipoteca mas uma comunhão ou co-hipoteca, podendo cada uma das hipotecas “ser exercida autónoma e independentemente, sendo os cocredores notifi cados para reclamar os seus créditos”154.

Seguindo o entendimento de Elsa Vaz Sequeira, uma entidade fi nanciadora não poderá isoladamente iniciar ação executiva para pagamento de quantia

149 Por isso, nesta situação entende-se que há litisconsórcio voluntário pois, podendo o pedido ser formulado apenas por um autor, pode ser deduzido por vários autores – cfr. Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do..., ob. cit., p. 158.150 Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. cit., p. 336 ou, nas palavras de Alberto González, referindo-se ao princípio de qualquer decisão ou atuação que possa afetar o conteúdo do direito de cada consorte dever ser tomada ou praticada por todos: “O recurso a este princípio apenas se justifi ca ante atos que possam atingir negativamente o direito de cada consorte. Já não diante daqueles que constituam ou possam constituir um puro benefício”. 151 Neste sentido veja-se também Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do..., ob. cit., p. 158. 152 Cfr. Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, ob. cit., p. 304 e, no mesmo sentido, Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do..., ob. cit., p. 159, nota 7 em especial.153 Cfr. Elsa Vaz Sequeira, “Contitularidade de direitos: noção e efeitos”, ob. cit., p. 892: “A unicidade do direito comum determina que, em matéria processual, na ausência de disposição legal em sentido diverso, vigorará em regra o regime do litisconsórcio necessário. O que equivale a afi rmar que a ação deve ser proposta por ou contra todos os consortes”.154 Cfr. Menéres Campos, Da Hipoteca, ob. cit., p. 134.

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certa se o seu crédito se encontrar garantido por direito real de garantia com uma pluralidade de benefi ciários. Poderá sempre, parece-nos, iniciar tal ação sem pretender fazer valer, na execução, o direito real de garantia155 (cfr. artigo 54.º, n.º 2, do CPC) ou, pretendendo fazer-se valer da garantia, suscitar a inter-venção principal dos restantes titulares do direito, nos termos dos artigos 261.º e 316.º, n.º 1, do CPC156. Contudo, no limite, os restantes credores poderão não intervir. Comparando esta solução com a que acima explanámos para as situa-ções em que não foram constituídas garantias reais, não parece fazer sentido que quando o credor se encontra mais tutelado – porque titular de um crédito garantido por garantia real – esteja impedido de exercer o seu direito sem existir cláusula contratual expressa nesse sentido.

Alternativamente, poderá defender-se que quaisquer credores com garan-tia real sobre a coisa serão chamados ao processo no âmbito do incidente de reclamação de créditos [cfr. artigos 786.º, n.º 1, alínea b) e 788.º, n.º 1, do CPC]. Assim, ainda que uma entidade fi nanciadora inicie sozinha a execução, os restantes membros do sindicato também titulares dos mesmos direitos reais de garantia, serão chamados a intervir. Contudo, saliente-se que o estatuto pro-cessual de um reclamante é diferente do estatuto processual do exequente, pois o primeiro intervém para uma execução limitada ao seu direito de garantia157 e o segundo para uma execução geral sobre todo o património158, benefi ciando ainda de uma preferência no pagamento sobre qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, nos termos do artigo 822.º, n.º 1, do CC. Con-forme referido, esta é a posição sufragada por Isabel Menéres Campos, que também considera aplicável o regime da compropriedade ao direito real de garantia hipoteca com uma pluralidade de titulares159 mas não explica muito

155 Cfr. Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do..., ob. cit., pp. 146-147 e nota 10 em especial, referindo-se à situação de um crédito que benefi cie de garantia sobre bens de um terceiro distinto do devedor: “Se o credor não se quiser prevalecer do direito real de garantia, poderá propor a ação só contra o devedor, sem que este lhe possa opor a subsistência da garantia a que o credor não haja renunciado.” 156 Ainda que a situação seja distinta, veja-se que a jurisprudência tem vindo a admitir que o exequente suscite a intervenção principal provocada de terceiro que tenha constituído garantia real a seu favor: Ac. do TRG de 12 de novembro de 2013, processo n.º 750/10.3TBFLG-B.G1, relatora Ana Cristina Duarte e Ac. do TRL de 29 de outubro de 2013, processo n.º 404/12.6YYLSB-B.L1-7, relatora Cristina Coelho – Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Executivo, Coimbra, Almedina, 2016, p. 168. 157 Neste sentido veja-se também Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, Lex, 1998, p. 351: “não assume a qualidade de exequente, […] só pode ser pago pelos bens sobre que tiver garantia […]”. 158 Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, ob. cit., p. 848.159 Cfr. Menéres Campos, Da Hipoteca, ob. cit., p. 134, nota 404 em especial.

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claramente como se compatibiliza este regime – e o artigo 1405.º, n.º 1, do CC em especial – com a propositura de uma ação judicial apenas por um desses titulares. Parece retirar esta sua posição do artigo 696.º do CC e da caracterís-tica da indivisibilidade da hipoteca na sua vertente de indivisibilidade quanto ao crédito, isto é, do facto da divisão do crédito por vários credores não interferir na indivisibilidade da hipoteca, continuando esta a incidir sobre toda a coisa, mesmo que um dos cocredores seja satisfeito pelo devedor. Antunes Varela parece ter posição semelhante160 ao afi rmar que se o crédito garantido for fra-cionado por cessão parcial, por exemplo, qualquer um “dos credores goza do poder de executar o seu crédito, por inteiro, sobre o imóvel” onerado161. A verdade é que os restantes cotitulares não fi cam sem tutela, pois serão sempre chamados ao processo, pelo que esta solução não nos parece de rejeitar.

Por último, poderá ainda ser equacionado se a opção doutrinal por deter-minada teoria acerca da natureza jurídica da compropriedade ou contitulari-dade de direitos reais não terá também uma implicação na conclusão a que chegámos. Na verdade, se em vez de um penhor constituído a favor de uma pluralidade de benefi ciários tivéssemos diversos penhores constituídos cada um a favor apenas de um titular mas em simultâneo, não haveria dúvidas que um desses credores garantidos por penhor poderia iniciar sozinho ação executiva para pagamento de quantia certa fazendo-se valer da garantia da qual é benefi -ciário. Esse credor benefi ciaria de uma garantia que foi constituída apenas a seu favor e em relação a um crédito do qual seria o titular, dando-se apenas o caso de o indivíduo titular da coisa sobre a qual incide o direito real ter concedido outras garantias sobre o mesmo bem e em simultâneo. Os restantes credores gozariam de garantia do mesmo grau e seriam chamados ao processo no âmbito da reclamação de créditos. Pensando agora na alternativa mais frequente da constituição de uma só garantia, através de um único contrato, a favor de uma pluralidade de benefi ciários, e transpondo as teorias acerca da natureza jurídica da compropriedade para a natureza jurídica da comunhão de direitos reais em geral, será que se pode concluir que os autores que defendem a existência, na compropriedade, de uma pluralidade de direitos da mesma espécie sobre a mesma coisa – por oposição a um direito único com pluralidade de titulares – não terão difi culdade em aceitar o exercício isolado desse direito em tribunal por um dos comunheiros?

160 Também Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro parecem seguir esta opinião ao referirem que “Por força da indivisibilidade, havendo créditos hipotecários divididos qualquer dos credores pode executar a hipoteca por inteiro” (cfr. “Expurgação de Hipoteca – Parecer”, ob. cit., p. 45).161 Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, ob. cit., p. 556.

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6. Conclusão

Como fi cou explanado, na nossa perspetiva as obrigações dos membros de um sindicato bancário não são solidárias, sendo antes conjuntas ou parciárias, quer no lado passivo quer no lado ativo da relação. O facto de a mutuária estar obrigada a entregar todos os montantes em dívida a apenas um indivíduo – o banco agente – não implica a solidariedade das obrigações, signifi cando antes que o agente, enquanto representante dos diversos credores, tem legitimidade para receber a prestação na totalidade. A sharing clause, apesar de se aproximar do direito de regresso previsto no artigo 533.º do CC para as obrigações solidá-rias, não implica que cada um dos credores possa exigir do devedor a prestação integral. Assim, apesar de alguns traços do regime contratual dos emprésti-mos sindicados serem semelhantes ao regime legal das obrigações solidárias, parece-nos que estamos perante obrigações parciárias, pois não se encontra consagrada a solidariedade das obrigações dos membros do sindicato bancário. O pagamento pela mutuária ao banco agente é liberatório e extingue a obri-gação. Se acaso a mutuária efetuar o pagamento a outro credor, é possível que esse pagamento venha a ser considerado liberatório cumpridos os requisitos previstos no artigo 770.º do CC.

Nos termos do contrato modelo da LMA que analisamos, cada entidade fi nanciadora pode, separadamente, exercer os seus direitos e exigir judicial-mente o seu cumprimento sem depender dos restantes credores. Contudo, como vimos, esta afi rmação tem um alcance limitado na medida em que há diversas atuações dos credores que dependem da concordância de uma maioria de membros do sindicato bancário para serem levadas a cabo. Assim, perante o não pagamento de uma prestação pela mutuária, será necessária uma maioria de 2/3 dos credores para declarar o vencimento antecipado das restantes presta-ções. Contudo, ainda que não seja exigido o cumprimento antecipado das res-tantes prestações, um credor poderá, isoladamente, procurar obter o pagamento da sua quota-parte no crédito já vencido e não pago. O desejo de conversão da mora em incumprimento defi nitivo implicará a necessidade de interpelação admonitória da mutuária, o que também poderá ser um obstáculo ao exercício isolado de direitos por um credor se o contrato de fi nanciamento determinar que cabe ao banco agente efetuar quaisquer comunicações à mutuária. Se for declarado o vencimento antecipado das restantes prestações a pedido da maioria necessária de credores mas não for iniciado um processo judicial com vista a obter o pagamento dos montantes em dívida, um credor isolado poderá propor tal ação pedindo a sua quota-parte na totalidade do crédito e já não apenas na prestação inicialmente não cumprida.

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Poderá questionar-se a razão pela qual analisámos, neste contexto, uma decisão judicial de outra jurisdição que não tem qualquer efeito vinculativo para um juiz português e que contradiz o entendimento mais comum no mer-cado internacional em relação a empréstimos sindicados. Contudo, não pode-ríamos deixar de comentar o Caso Charmway, que marcou indelevelmente o tema que se discute neste artigo, tendo colocado questões fundamentais sobre a natureza do empréstimo sindicado e a execução individual por um credor162 e provocando inclusivamente uma alteração nos contratos modelo difundidos internacionalmente.

Por outro lado, a breve análise do exercício individual de direitos pelo obrigacionista permitiu-nos descobrir que o assunto aqui em discussão tam-bém não é pacífi co quando estamos perante o fi nanciamento de uma sociedade através de emissão de obrigações. Os autores que se pronunciam contra a legi-timidade individual de um obrigacionista para propor ações judiciais justifi cam a sua posição com base na existência de um representante comum para esse efeito e no princípio de igualdade de tratamento dos titulares que decorre de algumas disposições legais e impera nesta matéria163. Contudo, tais argumentos não impressionam aqueles que propugnam visão diferente alegando que a lei não impõe uma pluralidade de partes, isto é, o litisconsórcio164. Também no nosso caso nem a lei nem o contrato impõem tal pluralidade e se fosse esse o desejo das partes melhor seria que o deixassem claramente expresso. Foi, no entanto, necessário examinar brevemente as normas processuais relevantes para chegar a tal conclusão.

Após a abordagem – necessariamente sumária – de todos estes aspetos, foi possível concluir pela possibilidade de um credor recorrer isoladamente a tri-bunal para fazer valer os seus direitos. Tal entendimento é, porém, inevitavel-mente limitado por algumas regras contratuais que já salientámos acima. Ainda que seja admissível a um credor recorrer a tribunal para recuperar montantes em dívida pela mutuária sem se fazer acompanhar dos demais membros do sindicato bancário, parece-nos que deverá informá-los de que o vai fazer. Este entendimento justifi ca-se não só devido à exceção expressamente prevista na sharing clause para estes casos – deixando assim o credor de estar sujeito à partilha dos montantes recuperados sempre que notifi que os outros credores do pro-cesso e lhes dê oportunidade para participar – que, se não obriga, pelo menos aconselha à partilha desta informação, como também considerando a obrigação recíproca de boa-fé acrescida entre os credores que decorre do contrato.

162 Cfr. Richard Hooley, “Enforcing syndicated credit agreements …”, ob. cit., p. 75.163 Cfr. Lobo Xavier, “Nota ao Acórdão de 11 de Maio de 1995”, ob. cit., pp. 376-377.164 Cfr. Nuno Barbosa, Competência das Assembleias Obrigacionistas, ob. cit., p. 145.

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Por fi m, atrevemo-nos a introduzir um novo elemento à nossa pergunta: se os membros do sindicato bancário benefi ciarem de garantia real sobre o seu crédito, a resposta quanto ao exercício judicial individual dos direitos mantém--se? Conforme tivemos oportunidade de referir, parece-nos que a introdução de garantias reais nesta equação traz inúmeros temas à discussão que não podem ser resolvidos no âmbito limitado deste artigo. Assim, verifi cámos que apesar de existir um regime legal para a contitularidade de direitos reais, este está pensado para direitos reais de gozo e a sua adaptação a outros tipos de direitos, como os direitos reais de garantia, não é fácil. Aliás, perante a incompatibilidade de alguns aspetos dos dois regimes – veja-se o direito potestativo de extinguir a comunhão consagrado no artigo 1412.º do CC confrontado com o princípio de indivisibilidade das garantias reais – pergunta-se se o regime da comproprie-dade será adequado para regular a comunhão de direitos reais de garantia e que consequências úteis decorrem da sua aplicação.

Analisada a perspetiva material e processual da questão, vimos que parece decorrer do n.º 1 do artigo 1405.º do CC que só em conjunto podem os comunheiros iniciar ação judicial relativa ao seu direito, salvo tratando-se de uma ação de defesa da coisa comum. Existem neste tema duas posições alter-nativas: ou se considera existir litisconsórcio necessário ativo ou então defen-de-se que os restantes benefi ciários do direito real de garantia serão chamados ao processo no âmbito do incidente da reclamação de créditos. Adotando-se a primeira opção, um credor isolado apenas poderá iniciar ação executiva se não quiser fazer-se valer do seu direito real de garantia ou então, se quiser, poderá chamar os restantes credores suscitando a sua intervenção principal provocada. Seguindo o segundo entendimento, um credor isolado pode iniciar ação exe-cutiva nos mesmos termos que defendemos acima para as situações em que não foram constituídas garantias reais mas, neste caso, os outros membros do sin-dicato bancário serão chamados ao processo para reclamarem os seus créditos, uma vez que gozam de garantia real sobre o bem.

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