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rapsódia 159 Empresas Teatrais e Mercado Cultural no Brasil Entrevistas com Antônio Fagundes, José Roberto Caprarole e Iná Camargo Costa As entrevistas foram concedidas a Ana Portich em novembro de 1995 e editadas em janeiro de 2001 por Ana Portich e Yanet Aguilera. A entrevista com Antônio Fagundes não pôde ser transcrita literalmente por problemas técnicos. Para ilustrar a questão sobre o mercado cultural no Brasil, e especificamente sobre a inserção do teatro na indústria cultural, entrevistamos dois artistas que investiram em companhias teatrais, relatando-nos suas experiências bem ou malsucedidas, tanto do ponto de vista financeiro quanto artístico. São eles Antônio Fagundes, ator e dramaturgo que fundou em 1981 a Companhia Estável de Repertório, desfeita em 1991, e José Roberto Caprarole, proprietário da Escala, empresa que há 28 anos domina o mercado de teatro infantil. Em seguida, Iná Camargo Costa, livre-docente em Teoria Literária pela USP, comenta os dois relatos, salientando a incompatibilidade entre a especulação financeira e a experiência artística.

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Empresas Teatrais e Mercado Cultural no Brasil

rapsódia 159

Empresas Teatraise Mercado Cultural no Brasil

Entrevistas com Antônio Fagundes,José Roberto Caprarole e Iná Camargo Costa

As entrevistas foram concedidas a Ana Portich em novembro de 1995 e editadas em

janeiro de 2001 por Ana Portich e Yanet Aguilera. A entrevista com Antônio Fagundes

não pôde ser transcrita literalmente por problemas técnicos.

Para ilustrar a questão sobre o mercado cultural no Brasil, e especificamente sobre a

inserção do teatro na indústria cultural, entrevistamos dois artistas que investiram

em companhias teatrais, relatando-nos suas experiências bem ou malsucedidas, tanto

do ponto de vista financeiro quanto artístico. São eles Antônio Fagundes, ator e

dramaturgo que fundou em 1981 a Companhia Estável de Repertório, desfeita em

1991, e José Roberto Caprarole, proprietário da Escala, empresa que há 28 anos

domina o mercado de teatro infantil. Em seguida, Iná Camargo Costa, livre-docente

em Teoria Literária pela USP, comenta os dois relatos, salientando a incompatibilidade

entre a especulação financeira e a experiência artística.

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Entrevista com Antônio Fagundes

Quais eram os sócios da CER e suasrespectivas atribuições? Onde era asede da companhia?

Cotizaram-se vários sócios para montara empresa. O mais importante eraLenine Tavares, que fazia a frente ecuidava da produção, gerenciando aempresa. Fagundes se diz muitocentralizador, preferindo dar a últimapalavra sobre a parte artística para tersegurança de um bom trabalho,portanto, responsabilizava-se pelaescolha de repertório. Também sóciosforam Marga Jacoby, que fazia muitobem a administração do teatro e doespetáculo, e José Roberto Simões, quese encarregava da produção executiva.Técnicos de luz, som, camareira, contra-regra etc. eram contratados pelacompanhia, e eram os melhoresprofissionais da área, pagos acima damédia. Os artistas também eramcontratados e ganhavam umaporcentagem sobre o bruto dabilheteria. Durante dez anos todo o

Rapsódia iniciou a reportagem comAntônio Fagundes, indagando arespeito da gênese da CompanhiaEstável de Repertório.

Antônio Fagundes lembrou-se de que noprojeto Cacilda Becker, promovido apartir de 1981 no TBC, realizavam-sevárias peças com um mesmo elenco,apresentadas na mesma temporada.Desta experiência Fagundes percebeuque poderia haver continuidade depúblico nos espetáculos, e este públicocontínuo, que voltava para ver mais deuma peça e que ele denominou donaMaria e seu João, deu-lhe a idéia daCompanhia Estável de Repertório.Esta deveria suprir as falhas do projetoCacilda Becker como, por exemplo,problemas de ordem prática derecepção do público, teatro mallocalizado, bilheteria com atendimentoruim etc.

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elenco foi mantido, o que levou acompanhia a realizar espetáculos cadavez maiores. Se Fagundes quisesse fazeruma peça com duas pessoas, isso nãoseria possível; assim surgiu a idéia dedividir o elenco em várias peças, paraaumentar as opções de repertório. Issonão se realizou porque perceberam quea presença de Fagundes eraimprescindível para atrair o público aosespetáculos, e durante dez anos ele nãoteve folga. “Empresa socialista no lucroe capitalista no prejuízo”, frase de FlávioRangel que melhor definiu a companhia,visto que a porcentagem era paga sobreo bruto da bilheteria, sem contar asdespesas. Os honorários de toda aequipe cobriam 80% da bilheteria e com20% tinham de amortizar a produção,manter a divulgação do espetáculo epagar o teatro. Quanto às instalaçõesque ocupava, a companhia nunca tevesede própria, como tem o grupo Tapa,pois nenhuma entidade nem o governoperceberam a importância do projeto.Tinha, no entanto, um escritório, ondetrabalhavam uma secretária e umdigitador para o cadastro e acorrespondência com o público, e lá seeditava o jornal bimestral enviado atodos os cadastrados.

Perguntamos se a receptividade dopúblico correspondeu a esseesquema montado pela empresa.

Sim, afirmou, pois a média porespetáculo foi de 200 mil espectadores,atingindo a margem de 800 mil emMorte Acidental de Um Anarquista.Além disso, em seu cadastro constavamcentenas de milhares de pessoas, o que,entretanto, não garantia a bilheteria. Empesquisas feitas após os espetáculos,perceberam que o público que assistia auma peça não era necessariamenteaquele que voltava na peça seguinte.Quando a Companhia Estável deRepertório foi desfeita, Fagundes ficoumagoado pois não houve manifestaçãopor parte deste público: nenhuma carta,nenhuma curiosidade em saber o quetinha ocorrido.

Quanto à escolha do repertório dacompanhia, apesar de ter sido chamadade comercial, ela transitava do popularao clássico, passando pelo teatroexperimental, como em Fragmentos deum Discurso Amoroso. Depois de fazeruma comédia que teve sucesso comoMorte Acidental, isto não determinava alinha do próximo espetáculo. Nessesentido a companhia arriscava, porquetodas as produções eram de risco, desdeas mais experimentais até o clássicoCyrano de Bergerac, todas mantinham,entre técnicos e atores, dezenas depessoas. Hoje em dia sua conduta é amesma; quando Fagundes realizou acomédia Vida Privada, sua próximapeça foi Oleanna, de David Mamet, decaráter totalmente diferente, porque umsucesso não o obriga a seguir a mesmafórmula. Certamente quem fosse assistir

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rapsódia 162

à Vida Privada, motivado por uma peça

antiga como Cyrano, ficaria surpreso

pois o repertório havia mudado de tom.

Como a Companhia Estável deRepertório poderia ter resistido àsoscilações do mercado sem perder aautonomia na escolha das peças?

Independentemente da preferência do

público, a companhia manteve sempre a

variedade de repertório. Mesmo assim,

ela poderia ter sobrevivido; o principal

meio de resistir às oscilações de

mercado seria ter a concessão de um

teatro. Uma concessão municipal por um

período de tempo foi requisitada por

Fagundes, mas não foi levada em

consideração. Por outro lado, os donos

de teatro particulares são homens de

negócio que só visam ao lucro; não é à

toa que hoje se vê muito teatro virar

bingo ou igreja evangélica.

Em segundo lugar, um patrocinador

poderia arcar com a divulgação do

espetáculo, uma vez que a divulgação

pode sair mais cara do que o restante da

produção. Outro patrocinador poderia

encarregar-se de outra coisa e assim por

diante. Na verdade, seria bom se

houvesse patrocínio, pois o que há hoje

não é patrocínio, visto que o

patrocinador deduz do imposto uma

quantia X que é transferida para o

espetáculo, ou seja, não dispende nada

e ainda tem o nome divulgado pela

peça. E muitas vezes o patrocínio vai

apenas para o teatro; quando uma

peça se apresenta em determinado

teatro você acaba divulgando gratui-

tamente uma série de patrocinadores

sem ganhar nada, pois quem ganha é

o dono do teatro, e além disso você tem

de pagar o aluguel. Se gente de teatro

fosse proprietária seria muito diferente

porque são pessoas idealistas, têm ideal

artístico. O principal meio de produção

teatral é o local de apresentação, mas se

20 a 30% da bilheteria vão para o teatro,

e alguns cobram inclusive o piso de

R$ 40 mil por mês, o dono do teatro é

o único que ganha dinheiro. Talvez a

Companhia Estável de Repertóriotivesse sobrevivido se conseguisse

um teatro.

O público também poderia ajudar

comprando cotas. Se cada um dos

cadastrados pagasse um real, por

exemplo, ele poderia bancar a produção

de um novo espetáculo. Mas o público

não tem cultura teatral, não acompanha

a continuidade de repertório. Nas

pesquisas feitas pela companhia, havia

pessoas que em dez anos só assistiram a

uma peça.

Qual a diferença entre produzir aspróprias peças e ser contratado poruma rede de TV?

Quando participava da companhia,

Fagundes percebeu que ela estava

centrada basicamente em sua figura,

não havendo necessidade de um

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empreendimento daquele porte para arealização de seu trabalho. Ao mesmotempo, concluiu que o públicocadastrado não garantia sua bilheteria,portanto, não havia necessidade demanter um grupo estável. Contratadopela rede Globo, gravando ou não,Fagundes continua recebendo o salário,o que lhe dá segurança financeira. Esta éa vantagem de trabalhar na TV, mas nemtodos os artistas estão nesse esquema,isso é raro.

Por outro lado, ao produzir aspróprias montagens ele tem liberdadede escolha e garantia de qualidadeartística. Mas como produtor, tem poucoretorno financeiro. Hoje a figura doprodutor praticamente desapareceudevido à conjuntura dos últimos 20anos. Na época da ditadura apareceu umtipo de montagem com interesselibertário e não lucrativo, organizadacomo cooperativa. Como isso era umaforma de protesto, rejeitou-se tambémo esquema de produção tradicional,com verbas para contratos e salários.As pessoas agregavam-se em coopera-tivas, ou seja, todas recebiam cotassobre o bruto da bilheteria. Esse sistemade cotas foi institucionalizado no teatro,a ponto de serem destinados, comono caso da Companhia Estável deRepertório, 80% da bilheteria bruta parao pagamento de cotas, restando 20%para a amortização da produção, paramanter a divulgação, pagar o aluguel doteatro e para o retorno do investimentodo produtor. Conclusão: hoje não existe

mais o produtor independente, massim artistas que se produzem, queproduzem o próprio trabalho, comoMarcos Caruso, Irene Ravache e opróprio Fagundes.

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Entrevista com José Roberto Caprarole

contratado pelo Sesi, para atuar emMaroquinhas Fru-Fru, de Maria ClaraMachado, e em 1973 montei a minhacompanhia: José Roberto CapraroleProduções Artísticas. Aos sábadose domingos apresentávamos espetáculosem salões paroquiais no Parque São Do-mingos, Pirituba, Freguesia do Ó,Itaberaba, Itaquera, Mogi das Cruzes.Eu conversava com o padre, pagava dezpor cento para arrendar o salão, faziapromoção na cidade durante a semanatoda. A primeira peça que montei assimfoi O Lobinho Careca. Nessa peça, queficou cinco anos em cartaz, euinterpretava o Lobinho, eu tinha escritoe dirigia. Procurei na EAD (Escola deArte Dramática) atores para trabalharcomigo. Deu tão certo aos sábados edomingos, que começamos a apresentardentro das escolas durante a semana, àsquintas e sextas-feiras. Nós íamos àsescolas da periferia, municipais,estaduais, não só escolas de um poderaquisitivo maior, que hoje vêm aos meusespetáculos. Nesses bairros bem

Quando e como teve início suacarreira teatral?

A Nydia Lícia me viu na novela OsIrmãos Corsos e me convidou para fazeruma peça, O Julgamento do LeãoPantaleão. Isso me marcou muitoporque eu queria ir para o teatro econsegui graças à televisão. Depois eufui para o TBC (Teatro Brasileiro deComédia), onde fiz várias peças, OPássaro Azul, Pluft, O Fantasminha, aconvite do grande magnata do teatroinfantil na época, Alessandro Memo.Tudo o que ele produzia dava certo.

Então o seu modelo de organizaçãoempresarial no teatro infantil foio TBC?

Acho que não, porque eu semprepesquisei muito para montar o meumodelo empresarial, não só o TBC. Masali tive a certeza de que o teatro infantilbem-feito dava certo. Em seguida fui

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periféricos íamos com uma Brasília queeu tinha. Com o sucesso nos bairros tivea idéia de entrar para o circuito teatral,que exigia maior preparo e pareciamuito competitivo. No bairro éramos sónós, nos salões de igreja de Pirituba nãotinha rivalidade. Mas como soucapricorniano, muito atrevido, aluguei oteatro Itália com muito medo e monteiO Boné Mágico, com uma produção bemmais requintada, um musical. Fizemos ascoreografias (desde aquela época jácomecei a trabalhar com bailarinos) eO Boné Mágico ganhou todos osprêmios e lotou por um ano o teatroItália. Larguei os salões paroquiais,parei de apresentar dentro das escolasda periferia e comecei a trazer asescolas, as da periferia e as particulares,para dentro do teatro Itália. VeioPalerma, o Superatleta, e assim aminha carreira começou a crescer.Desde minha primeira peça senti quepoderia ter muito sucesso, que estavapredestinado a fazer teatro paracrianças. Dali para frente, disparei amontar uma peça por ano, com sessõesdiárias. Até que conheci o Édson Tomé,que é meu sócio hoje, e nós montamosa Escala Produções Artísticas. Algumaspeças minhas são escritas com o Édson.A Escala se tornou assim uma grandeempresa pela responsabilidade e pelahonestidade – porque o teatro é aminha oração, o meu palco é o meusantuário.

A empresa também realizaproduções cinematográficas?

É um sonho antigo. Vamos aindaproduzir um filme infantil nacional, como nosso dinheiro. Porque, do contrário,seria necessário pedir verba, e eu nãome sinto bem pedindo, detesto serpedinte. Então estamos guardando umareserva para que em um futuro bempróximo façamos o primeiro filmeinfantil da Escala, porque o mercadoé bom e quase não tem competição:Walt Disney, de vez em quando, aMônica, de Maurício de Souza; OsTrapalhões já deram o que tinham quedar, e a Xuxa lançou, parou e nãocontinuou, porque televisão é uma coisae cinema é outra. Queremos um teatrode boa qualidade no cinema, comoA Volta do Capitão Tornado, que é umapeça de teatro adaptada para o cinema,um filme deslumbrante. Para fazer bem-feito, vamos nos preservar um pouco,e quando lançar, lançar de verdade.

Qual foi o montante investidonessas empresas e em suamanutenção?

Em dinheiro não sei dizer agora, mas fizmuito empréstimo em banco, vendi atéos carros que tinha. Sempre investimuito, porque nos cartazes usamos omaterial mais caro, o programa é omelhor que existe, tudo é muito bemproduzido, além disso, gosto de

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trabalhar com atores bailarinos.O teatro para crianças está plantando araiz para a árvore crescer forte, ter umtronco bonito e depois freqüentar oteatro. Então não se pode jogar umpaninho em cena, uma Color 3 e dizer:isso é teatro. Desde que comecei haviatrês, quatro cenários nos meusespetáculos, e várias trocas de figurinos.Sempre tive vontade de ser Broadway,porque a criança não gosta de uma coisaestática, parada, feita de última hora.Desde o começo se gastou muitodinheiro, nunca medi esforços paraproduzir espetáculos. Em Dom Quixote,que foi meu primeiro espetáculo adultoe ficou de fevereiro a setembro de1995 em cartaz, gastamos US$ 250 mil;Peter Pan, US$ 200 mil. Os meusespetáculos são muito caros. A Damae o Vagabundo ficou em US$ 120 mil,porque gravamos no melhor estúdio, em32 canais, com uma banda de 20músicos, com 90 horas de estúdio,chamamos cenógrafos famosos e con-tratamos uma figurinista. A produção doespetáculo Alice no País dasMaravilhas foi orçada em R$ 310 mil,com 35 pessoas trabalhando só naprodução, fora a equipe fixa.

Quais os serviços que a sua empresaoferece?

O leque da Escala é o seguinte: nóstemos as peças infantis, estamosmontando um buffet infantil para

atender essa clientela dos espetáculos,porque quando eles lêem Caprarole ouEscala sabem que é sinônimo dequalidade, e também fazemos animaçõesde festas infantis e telegramasanimados. Nas animações emaniversários, montamos um show deuma hora de duração com aspersonagens que o cliente escolher ecom os próprios atores das minhaspeças. Os telegramas animados sãofeitos para adultos, para festas decasamento, festas de noivado, despe-dida de solteiro, aniversário,convenções de firmas. Nós não que-remos ser mais uma festa de animação,nossa animação tem coreografia,levamos um cenário, equipamentode som.

Quem são seus clientes,considerando tanto o públicoque freqüenta o teatro, quantoas escolas e mesmo as empresaspromotoras?

A Danone está conosco há vários anos,é uma empresa maravilhosa, todos osmeus cartazes são abertos por:Danoninho apresenta. Se assina éporque confia no que ela estáapresentando, porque um produtomundialmente famoso como Danonenão vai assinar qualquer produção deteatro, isso compromete o nome dela.Ela colabora na produção do espetáculo,em todo o material gráfico e nos dá

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assessoria mensal em cada espetáculo.

Ela patrocina uma parte da verba para o

espetáculo, não integralmente, e tem

exclusividade. Quanto à minha clientela,

temos as escolas de São Paulo e do

Brasil, porque sempre tenho três peças

em São Paulo e uma viajando o Brasil.

Então todas as escolas de São Paulo e do

Brasil assistem regularmente aos nossos

espetáculos, e no Brasil elas esperam

aquele mês, naquele teatro, naquela

cidade. Então elas já fazem o cronogra-

ma escolar contando com o espetáculo

da Escala, porque sabem que, quando

nos contratam, recebem com um mês de

antecedência cartazes, programas, uma

fita cassete com as músicas da peça,

de presente, para que a escola ensine as

crianças a cantarem e no dia elas

cantem com os atores; as autorizações,

que a criança leva para os pais

assinarem, quer dizer, é uma

organização muito grande e elas não

têm dor de cabeça. E também já

vendemos o espetáculo com o ônibus.

Quem faz essa frente nas cidades são

funcionários da Escala; três fazem a

frente no Brasil, e oito vendem os

espetáculos para São Paulo, uma equipe

de onze vendedores. Quando uma

escola compra Peter Pan,

automaticamente vai comprar Alice noPaís das Maravilhas ou a que vier,

porque já gostou do trabalho, conheceu

e achou muito luxuoso. O Mágico de Ozestá muitos anos em cartaz. Uma mãe

me disse um dia: “Você é o Caprarole?”

Eu falei: sou. “Muito prazer, eu queria

conhecer você. Mas você inflacionou o

mercado”, disse, brava comigo. “Porque

depois que a gente vê as suas peças, não

dá para ver as outras, elas não têm a

mesma qualidade e beleza, nem vários

cenários, atores bailarinos ou

coreografias lindíssimas. Nas outras, um

passinho pra cá, outro pra lá; um pano,

dizem que é cenário.” Que bom eu ter

inflacionado, porque assim os outros

grupos podem mudar de conduta, e

quando há bons espetáculos, o público

de teatro aumenta cada vez mais para

todos. Os meus têm muito público: faço

duas sessões diárias, lotadas o ano todo,

para colégios, e aos sábados e domingos

com bilheterias ótimas. Ainda quanto à

Danone, em troca da verba para

promoção e manutenção do espetáculo,

fazemos um espetáculo totalmente

gratuito para as escolas de São Paulo,

com uma mensagem da Danone, não

obrigando a criança a tomar

Danoninho, nunca! Elas assistem a uma

história onde se fala das vitaminas do

Danoninho, lipídeo, glicídeo e protídeo.

É um espetáculo com cenário

maravilhoso, musical, com atores

bailarinos, feito de segunda a sexta,

dentro das escolas, gratuitamente, e

ainda na saída as crianças ganham uma

sacola, um kit com um Danoninho, uma

mensagem para os pais e um livrinho

para que as crianças pintem o que

aconteceu na história. Essa é a parceria

que estabelecemos. Esse espetáculo se

chama A Missão.

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Sua empresa pretende satisfazera que tipo de necessidade dopúblico-alvo?

Para o público que nos assiste, tentamospassar cultura, lazer e entretenimento.Pretendemos que a criança tome gostopelo teatro, que descubra e freqüenteteatro. A principal meta da Escala étratar a criança como criança, não comoum boneco que não sabe de nada.A criança hoje já nasce falando,praticamente. Então, nos nossosespetáculos, atrás da brincadeira, domusical, do cenário, dos efeitosespeciais fica um ‘por quê?’ para elapensar em casa. Depois disso, com umamensagem positiva sobre o espetáculo,ela questiona o professor. Acima detudo somos educadores, então temosde nos resguardar e preparar bem essacriançada para não passar uma coisaerrada para ela. A principal meta daEscala é essa: educar para a arte eeducar pela arte.

Qual é o retorno que tem um clientecomo a Danone, ao apoiar suaempresa?

Eles não têm retorno monetário.Não que as pessoas consumam maisDanoninho. A Danone, ou LPC, estápreocupada em investir na cultura e emlevar mais pessoas ao teatro. Eles nãopatrocinam apenas teatro, patrocinamvários tipos de esporte. A Danone não

está só preocupada em venderDanoninho nos mercados, nas padarias,nas mercearias, ela quer mostrar quetambém pode proporcionar esse tipo decultura a qualquer pessoa, não deixandoapenas entre uma pequena camadaprivilegiada.

Qual a receptividade do público emrelação às suas peças?

É fantástica. Até hoje não consegui tirarO Mágico de Oz de cartaz. É sucesso.Quando estreou Peter Pan, o públicoprecisava comprar ingresso comantecedência, de tanto que lotava. Maisde 200 mil pessoas já viram Peter Pan.Minhas peças ficam um ano, um ano emeio em cartaz. Fazemos pesquisas aossábados e domingos e a opiniãounânime (92%) é excelente.

E o retorno quanto às escolas?

Melhor é impossível, tem de continuarcomo está. Algumas escolas viram OMágico de Oz em 92 e voltaram váriosanos seguidos. Isso também se deve àreciclagem da pré-escola, que trazalunos novos. Quem me proporcionouesse grande sucesso de carreira foramas escolas. Tenho 5 mil cadastradas emSão Paulo e 4 mil em outras cidades doBrasil, e essas não assistem a outraspeças, porque os grupos locais, nãomenosprezando, são muito ruins.

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Um total de 9 mil escolas, que é umcadastro trancado no cofre. Façotemporadas em Curitiba, Porto Alegre,Joinville, Blumenau, Florianópolis,Salvador, Maceió. Por dia, no Peter Pan,a média é de 800 crianças; por semana,4 mil crianças; por mês, 16 mil.Multiplicando 16 mil por oito meses: 128mil crianças por ano viram Peter Pan.

Quais os resultados financeirosobtidos por sua empresa?Em números? Em média, o retorno anualchega a US$ 800 mil. Recuperamosrapidamente o investimento inicial, e olucro é de cerca de US$ 800 mil. Desde afundação da companhia, tudo o queentrou investimos na firma, paracrescer. Compramos os carros de que afirma precisava, entramos em sociedadeno teatro Paiol, com o Paulo Goulart.Então o que entra vamos investindo emoutras áreas.

Onde está instalada a Escala e comoela se organiza?

A Escala está localizada em uma grandecasa, a sede central, onde trabalham 32funcionários. Temos o teatro Paiol, emsociedade com a família Goulart, ondeestão nossos espetáculos infantis, ealugamos todos os teatros do Brasil poronde viajamos. Toda a organização e amanutenção ficam na sede da Escala: acentral de computador, o diretor

financeiro, o diretor artístico, o diretorgeral. Os vendedores do Brasil têm umasala, os vendedores de São Paulo têmoutra. Uma sala para as empacotadeiras,porque depois que o espetáculo émarcado os pacotes são feitos, comofalei, com cartazes, programas, fitascassete, autorizações, e vão todos porSedex para a escola, para que não hajaextravio. Aqui também ficam aassessoria de imprensa, as máquinas dexerox, o fax, a central de atendimentoque distribui para o Brasil tudo o que vaiacontecer. Essa casa é própria e aindatemos cinco carros para servir a Escala,entre peruas, carros utilitários e umaBesta.

Quantos empregados trabalham naEscala e quais suas funções?

No escritório trabalham 32 pessoas,entre cozinheiras, faxineiras,empacotadeiras, digitador, telefonista,almoxarife, a direção e os vendedores.Seria a parte administrativa e a direçãogeral. No total, são 100 pessoas, entreatores, técnicos e administradoresnos teatros. Cada teatro tem a sua equi-pe técnica, sua equipe de atores e seuadministrador, que no final de cada diatraz o resultado, com o bordereau eo relatório feito pelo computador, ondeos atores assinam a chegada e a saída,e anotam as coisas de que precisam (umbatom, uma maquiagem). Fornecemostudo. Todos os pedidos são feitos por

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escrito, nada verbalmente. O diretorgeral fica abaixo dos diretores-presidentes, no caso, o diretor finan-ceiro, e o diretor artístico, que sou eu.

Como são remunerados osfuncionários da empresa?

Os atores e técnicos são contratadoscomo todas as companhias de São Paulo,e acho que no Brasil: por percentuais.Eles são cotistas do espetáculo. A rendaé colocada todo dia no bordereau, elestêm uma cópia, multiplicam no final domês pelo percentual a partir do qualeles retêm o salário. Os administrativossão assalariados e registrados. Com osartistas e técnicos é feito um contratopelo Sindicato dos Artistas do Estado deSão Paulo. Os da administração têmdireito a convênio médico, fundo degarantia, férias remuneradas. Os demaissão contratados por uma temporada dedez meses, como prestação de serviços,e no ano seguinte renovamos o contratopara o espetáculo novo. Cabe a cada umpagar os seus direitos, mas pretendemosem breve mudar essas normas, vamosintegrá-los às melhorias que oadministrativo tem.

Você procura nas escolas de teatroos artistas de que sua companhianecessita?

Todo ano faço um teste, sempre emdezembro. Muitos vêm de escolas deteatro, mas a maioria é ainda muitocrua. E quem faz escola de teatro, nãofaz dança; quem faz dança, não fazescola de teatro. Eu gosto de unir asduas coisas. Na medida do possível,tento dar emprego para quem sai deescola de teatro, porque são atores quetiveram acesso a mais e melhoresinformações. Mas a maior escola deteatro, na minha opinião, é o palco. Paramim, é a prática que resolve. Então, sechegar uma pessoa que nunca fez escolamas é muito talentosa, dou prioridadepara ela. Só que eu preciso acreditar, epara que acredite, essa pessoa tem deprovar que é capaz. Exijo registro naDRT (Delegacia Regional do Trabalho)porque é uma norma do sindicato.Tem muita gente boa que não tem DRT,e eu tento dar chance a essas pessoas.Então consulto o sindicato, paraconseguir um registro provisório, e seele conceder, eu contrato.

Os artistas que saem dos seusespetáculos dão continuidade aotrabalho que começaram com vocêou escolhem outros gênerosteatrais?

As pessoas que trabalham comigo nãosaem da minha companhia. Como montouma, duas, três peças por ano, acompanhia torna-se uma família.Conheço os problemas de cada um,

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profissionalmente, é claro: o querendem, o que não rendem, acapacidade, a incapacidade, o limite decada um. Então, depois de um trabalho émuito mais fácil, no próximo, conseguirum resultado melhor. Por exemplo, aGisele Rondelle está comigo desde 1984.Poucas pessoas que trabalharam comi-go saíram da companhia, porque sentemsegurança na minha direção e na doPaulo Peres, e no que a Escala podeproporcionar. Por que trocar o certo pe-lo duvidoso, se sabem que têm salário eum ano de sucesso garantidos? Entrearriscar em uma peça que não sabem sevai durar um mês ou dois, ficam naEscala. Então acho que isso acrescenta,soma, na carreira deles. Muita gente jáfez comercial devido à Escala; váriasprodutoras foram assistir, gostaram echamaram os atores.

Você se dedica exclusivamente aogênero musical infantil?

Só faço espetáculos musicais, desdeO Lobinho Careca. É porque a músicaestá dentro de mim, e um espetáculosem música não tem vida. Música émovimento do corpo, teatro émovimento; a peça só segura umaplatéia com muito movimento. Existemsuas exceções, mas em espetáculosadultos. Para criança, tem de termovimento, mesmo que seja em câmeralenta. E é a música que leva aomovimento. Os balés não têm falas, só

com a dança eles contam uma história evocê fica duas horas olhando um balé,então no teatro o texto também pode seunir com a música; é o casamentoperfeito. Só trabalho com musicais e nãodeixo ninguém montar os meus textos.Trabalhar com o meu nome hoje é fácil,é sinônimo de casa cheia, mas sou muitociumento, tenho medo de que aspessoas não montem o espetá-culocomo eu havia previsto e queimem omeu nome, porque quando escrevojá idealizo o que vai acontecer, comovão ficar os figurinos, a maquiagem,a iluminação.

Você recebe algum tipo depatrocínio estatal?

Nada. Não entro em nenhumaconcorrência. Utilizo muitos teatros daPrefeitura, que são maravilhosos: JoãoCaetano, Paulo Eiró, Artur Azevedo,Martins Pena. Nos teatros da Prefeituraapresento um espetáculo itinerante.É de lotar, de ter briga na porta paracomprar o ingresso. Na rede de teatrosda Prefeitura os teatros são bemequipados, são grandes, recebem muitobom público, têm condições físicas paraa montagem de um espetáculo. E façotambém os estaduais. Todo ano entronesses editais. Não entro em editais deverba, porque detesto me sentirmendigo, pedinte, tanto quetrabalhamos com nosso própriodinheiro, ou com a Danone nos

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ajudando. Se a Danone faz parte dealguma lei de incentivos fiscais, não seiinformar; que eu saiba, o retorno delesé apenas divulgar a cultura. Muitasempresas trabalham com a LeiMendonça, mas é complicado e difícil,porque para dar uma coisa pedemtantas em troca, que as pessoasdesistem e fazem com os própriosmeios, ou conseguem uma empresa queajude e ponto final. Deveria haver maisempresas como a Danone, interessadasem ajudar as companhias de teatro,oferecendo uma verba e em troca acompanhia divulgaria o produto, emrelação direta produtor-empresário, queé o melhor caminho: toma lá, dá cá; vocêresolve, você decide. Quando se passapor essas leis, é uma ‘burrocracia’, não éburocracia. Pedem tantos documentosque até providenciar tudo a peça jápassou.

Últimas considerações

Além desse público maravilhoso, dessacasa lotada aos sábados e domingos edos colégios, quero lembrar que tambématendemos pessoas carentes. Em umano demos 8 mil ingressos grátis para aFEBEM, orfanatos, associações carentes.Eles ligam para a Escala, e todo sábadoou domingo permitimos que levemalgumas crianças em cada sessão.Reservamos uma parte do teatro paraessas crianças e isso nos faz muito bem.Não é só o dinheiro que interessa,

apresentamos também para quem nãopode de maneira nenhuma pagar oespetáculo, nem R$0,50. E na Semana daCriança costumamos fazer umapromoção de brinquedos: quem levasseum brinquedo entraria de graça.As peças lotam e damos todos os brin-quedos para o orfanato da igreja deSanta Cecília, cerca de 600 brinquedos.A peça tem de ter público, porque teatroé uma profissão como qualquer outra, eos atores, os técnicos, os empresáriosvivem disso, mas nunca negamosingressos para crianças carentes.

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O teatro hoje no Brasil estásubmetido às determinações demercado?

Esse sobre o qual se fala, está. Porquea gente tende a achar que teatro noBrasil é isso que acontece aqui em SãoPaulo, no Bexiga e nessas casas deespetáculo, mas isso na minha opiniãodeve corresponder a, no máximo, umdécimo do que é teatro no Brasil,porque mesmo em São Paulo você temuma infinidade de grupos com carac-terísticas que vão do relativamenteamador até o totalmente amado-rístico, sem falar em outras atividadesque não são consideradas teatrojustamente por causa do critério demercado. Para mim, até procissão éteatro, desfile de escola de sambaé uma modalidade de teatro, entãovamos nos entender: sobre que teatronós vamos conversar? Porque, se nósformos conversar sobre esse querecebe crítica na imprensa e aspessoas vão, compram bilhete para

assistir, nós já estamos falando domercado teatral. Ou seja, o própriorecorte já nos retém prisioneiros daestrutura de mercado.

Teatro submetido ao mercado é,então, uma faixa muito estreita.

A menor, no Brasil, sem a menor sombrade dúvida, do ponto de vista do meuconceito teatral, é a menor parcela daspráticas teatrais, pensando no Brasilcomo um todo. Existe uma parcelabastante reduzida, bastante restrita, queenvolve um número muito pequeno depessoas e é isto que normalmente sepensa quando se fala em teatro, isto é,peças que são produzidas para umespaço convencional no qual se pagapara ir. Requer providências deprodução, apoios institucionais, porqueàs vezes usam espaços públicos como osteatros da rede da Prefeitura, quetambém é vasta. Então vai desde a peçainfantil no fim-de-semana no teatro

Entrevista com Iná Camargo Costa

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Cacilda Becker, até o hit de bilheteriacomo aquele que está em cartaz hátantos anos, Trair e Coçar É SóComeçar. Somando tudo, eu acho quenão chega a ser 10% da atividade teatral.No meu conceito a maior parte do quese faz como teatro no Brasil não temnada a ver com as determinações demercado, mas até pelas condições dopaís, a tendência normal é pensar queteatro só vai do infantil do CacildaBecker ao Trair e Coçar, este é o teatroque está submetido até o pescoço àsdeterminações do mercado. E veja quenessa perspectiva o próprio conceito deteatro, que é por si só redutor, obriga apensar apenas no teatro determinadopelo mercado.

As subvenções estatais, aorganização de festivais, bem comogrupos patrocinados porinstituições privadas ou públicasrepresentam alternativas aomercado?

Não, isso é mercado, tudo isso faz partedo mercado. Festival tem uma função:para falar em termos econômicos,existem nas empresas, sobretudo nasgrandes firmas, departamentos que sechamam de pesquisa e desenvolvimentode produto; pois bem, eles descobrem,desenvolvem algum produto tomandopor base a prática anterior e eles fazemconvenção de vendas depois que oproduto já está feito, já se organizou o

marketing, a propaganda. O festival deteatro é o equivalente à convenção devendas. Por quê? Os grupos vãoapresentar o seu produto e se o produtotiver receptividade, ele vai fazercarreira. Os festivais de teatro sãocoisas do século XX. Um festival deteatro, como um de cinema, na atividadedo teatro comprometido com as leis demercado, tem exatamente a função daconvenção de vendas no âmbito restritoda produção de mercadorias. Subvençãofaz parte do mesmo processo, não temnada a ver com questão alternativa.Outra coisa diferente é que grupos quejá tenham experiência, de que nuncaninguém ouviu falar, às vezes com 10, 15anos de existência enquanto grupo,pesquisa de linguagem etc., tentamaproveitar essa vitrine, porque vira umavitrine o festival, e muitas vezes pelaqualidade da proposta, às vezes dealtíssimo nível. Especialmente nessefestival de Londrina você vê muito isso.Eu me lembro que há coisa de dez anossurgiu um espetáculo chamado De SaltoAlto, com um grupo de Londrina. Aquiem São Paulo foi um êxtase, todo omundo boquiaberto, mas era só olhar osatores trabalhando para ver a janela queeles tinham, a prática, conhecimentode palco, do qual nunca ninguém tomouconhecimento. Pois bem, até elesentrarem no festival que acaboutrazendo a peça para São Paulo, fizeramparte daquilo que eu estou chamandogrande prática teatral, porque envolvetambém esses grupos, que muitas vezes

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nascem e morrem sem nem se colocar aperspectiva de entrar para o mercado.

Qual a posição do artista dentro daempresa teatral?

Eu acho que o conceito de empresateatral precisava ser entendido melhor,porque aqui no Brasil chama-se empresaa qualquer pessoa física que vai numcartório e se define como pessoa jurídi-ca. Então você tem, no âmbito teatral,empresas de uma única pessoa. É pre-ciso tomar cuidado com o conceito.

Considerando-se, portanto, empresateatral uma organização queparticipa do mercado, qual seria aposição do artista dentro dela?

Vamos à questão, porque é das maisperversas na nossa vida artística muitopobre e de pequeno alcance, embora,segundo estatísticas, a vida teatral emSão Paulo tenha abrangido neste ano(1995) um público da ordem de mais oumenos 200 mil pessoas por mês. Pareceque não é pouca coisa, mas o país temmais de 150 milhões e só a cidade temmais de 15 milhões. O termo empresadefine tanto uma Autolatina quantouma pessoa que tem a sua firma deproduções teatrais. Aqui é que vaivariar. Você tem desde o caso em que oempresário teatral (que seria o maisjusto dizer, porque em uma empresa de

uma pessoa, você tem apenas umempresário), que conseguiu levantar umcapital das maneiras mais variadas,com Lei Sarney, empréstimo em banco,vendendo o carro, vendendo oapartamento. Então ele pode contrataros artistas, que vão ser simplesempregados dele, ou chamar artistasque por alguma razão tenham algumdinheiro na circunstância, e assumam aprodução. Então você vai ter oempresário criando o perfil institucionaldo empreendimento. Você poderá tertodos ou alguns atores do elenco comosócios do produtor, ou você vai ter oprodutor e seus empregados. Não sepode estabelecer uma regra, porquecada caso é um caso. Nós nunca tivemosaqui no Brasil, nunca, uma situação demercado teatral sequer comparável,de longe, com a Broadway. Porque naBroadway há produtores, e a relaçãodos produtores com os artistas, diretor,elenco etc., em alguns casos é de totaldesconhecimento. Os atores, diretoresetc. são arregimentados pelo agente,o produtor nem aparece, eles nem ficamsabendo quem é o dono do espetáculo,e isto envolve também relaçõesimobiliárias, porque você sabe que osdonos dos espaços, dos teatros, nemsempre aparecem, nem sempre a gentesabe quem é o dono deste ou daquele.A posição do artista varia desdeempregado até sócio da produção.

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Como poderiam os artistas deter osmeios de produção?

Sempre na perspectiva ou dacooperativa ou da associação, com umproblema muito específico no Brasil:é muito difícil que uma cooperativa deartistas consiga comprar o espaço, serproprietária, porque é isto, no casoteatral, ser proprietário do meio deprodução: ser proprietário do local;porque o principal meio de produçãoteatral é o espaço – no interior domercado, não nos esqueçamos disso.Então, para um grupo de artistas deteros meios de produção, eles teriam queformar uma associação que pusessecomo objetivo a aquisição do espaço, aísim, eles deteriam. Na história daexperiência teatral brasileira, você temcasos em que isso foi possível, mas ésempre por algum tempo, porquequando você está no mercado, as leis domercado prevalecem sobre a suavontade. Uma história de artistasproprietários dos meios de produção:o Teatro de Arena, de São Paulo, oTeatro Opinião, no Rio de Janeiro, maseles, se não me engano, eles nuncachegaram propriamente a ser donos doespaço, o que eles conseguiram foramcontratos minimamente legais dealuguel, arrendamento de umdeterminado espaço. Que eu saiba, noBrasil, nenhum grupo conseguiu serproprietário do espaço onde trabalhava,o que aconteceu foi, no caso do TBC:o Zampari era dono; ali então ficou

claro. O TBC era uma empresa, o FrancoZampari era o dono da empresa, tinha oelenco contratado, os diretores eramcontratados, assalariados, mas quantotempo durou? Por causa dasdeterminações de mercado, a crise doTBC começou a ficar clara ali por 55, 56;em 1960 o que aconteceu para o TBCcontinuar mantendo a fantasia de queera possível prosseguir? Foi estatizadopelo governo do Estado. Grandesdiscussões na Assembléia; primeirosubsidia e no fim ele foi estatizadoporque senão o Franco Zampari iavender e tinha quem comprasse. Entãono Brasil a classe teatral, incluindodramaturgos, diretores e artistas, nuncachegou a esse estágio de propriedadedos meios de produção.

Hoje os artistas têm o perfilnecessário para arcar com essasconseqüências?

Eu não acredito, e não é um problemade limitação das pessoas, é umproblema das circunstâncias. Então omocinho ou a mocinha que quer serartista, já nos tempos de escola, semcontar com o que está predominando, senós formos realistas, o que estápredominando é o seguinte: amenininha e o menininho fazem carreirarápida de modelo porque têm carabonita, corpinho, e depois vão para atelevisão. Quem faz escola de artedramática também tem esse sonho na

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cabeça, ser contratado pela Globo, quemsabe pelos outros canais que tambémfazem novela, porque, claro, profissão éprofissão, eu pessoalmente não vejodiferença maior entre trabalhar noTeatro Sérgio Cardoso numa produçãoteatral ou trabalhar na Globo. Trabalho étrabalho. O problema é o processocultural muito determinado pelasexigências econômicas, que põe navitrine quem trabalha em televisão.Então o sonho de todo o mundo é ser,veja bem, é ser empregado. Então jácomeça por aí, sem contar com esseoutro lado: de um modo geral as pessoasque têm interesse pela vida artísticavêm de famílias em que a perspectiva deser empregado é a que existe. Tem orecorte sociológico, tem o recorteeconômico da realidade que nósvivemos. E mais, aqueles sonhos comofoi o do Zampari; nos anos 60, Oficina,Arena, e no Rio o Opinião e outros quese constituíram pelo Brasil afora, nadadisso se coloca mais.

Quer dizer que os artistas já tiveramesse perfil. E eles conseguirammantê-lo?

Já, mas sempre por pouco tempo,porque o mercado é implacável. Quandoa gente fala mercado a gente estáfalando sistema capitalista, o sistemacapitalista tem a seguinte natureza, queHobbes, sem saber, descreveu muitobem: o capitalismo, isso que eles

chamam de mercado, as trocas, aliberdade de mercado, Hobbes chamaguerra de todos contra todos. E a gentesabe que o mercado é isso mesmo, omais esperto dá nó no otário. Então,qualquer estrutura econômica tem queter a perspectiva de crescer e ser líderde mercado. Não vamos entrar emquestões econômicas aqui mas dá parademonstrar matematicamente que quemnão cresce, pelo simples fato de nãocrescer, morre, porque fica econo-micamente inviabilizado. Pois bem, paracrescer no sistema capitalista, e se vocêse institucionaliza você precisa mesmo,precisa melhorar a produtividade,ora, melhorar a produtividade querdizer aumentar a lucratividade eexpansão de mercado. Teatro não é umaatividade que permita esse tipo deperspectiva, é por isso que todoempresário teatral tem um pé em cadacanoa e sempre sonha com o subsídiodo Estado porque não vai mesmo, não éda natureza. Uma peça, digamos Trair eCoçar, para pegar um exemplo desucesso absoluto de mercado, para elase viabilizar como referência, comoinstituição, os produtores, osproprietários da peça teriam que irproduzindo a mesma peça no resto dopaís. Isso é uma perspectivacompletamente maluca. Pois bem, émaluca mas aconteceu: nos EstadosUnidos teve uma peça que, por razõespolíticas, foi produzida no país inteiro,de costa a costa. O nome é interessante:Isto Não Pode Acontecer Aqui. Mas na

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verdade, nos anos 30, o que não podiaacontecer era subir ao poder um Hitler,aliás é uma peça política do maiorinteresse. Mas por quê? Porque haviauma organização política e entre outrascoisas eles queriam demonstrar quenão era verdade para o resto do país oque estava acontecendo na Broadway,a crise da produção teatral. Elesestrearam a mesma peça em 22 cidades,sendo que em Nova York, em quatrolugares diferentes. Quer dizer, em teatrodá para fazer esse tipo de loucura, masnão é uma atividade que tenhacondições objetivas de participar paravaler da disputa de mercado. Por isso éque grupos surgem e desaparecem,iniciativas surgem, têm sua vigência edesaparecem, porque é o máximo quedá para acontecer. Uma peça ou mesmoum grupo teatral tem a mesma vida útilde um produto de mercado, é mercado-ria mesmo, só que aí o problema é queenvolve atores, diretores, dramaturgosetc. Surge, tem a sua vigência e sai,porque outros vão fazer a mesmatrajetória, então uma peça teatral, umgrupo teatral têm uma vida comparávela uma linha de produtos, no mesmosentido dos novos produtos que omercado automobilístico produz. Repito,porque a própria natureza da atividadenão permite que alguém se estabeleçae vire uma multinacional do teatro.Ainda hoje, um grupo de loucos podefazer isso.

A empresa de Caprarole, porexemplo, é proprietária do teatroPaiol, arrendatária de outros, temuma equipe de vendedores de suaspeças com escolas do Brasil inteirocadastradas, e está ampliando osnegócios, entrando no ramo dobuffet infantil, telegrama faladoetc.

Caprarole é um caso de experiência quepercebeu que é só na perspectiva daexpansão que se sobrevive, e sobrevivemal e porcamente. O pior é isso. Elecriou uma estrutura de vendas para so-breviver, e ele pode daqui a pouco viraruma espécie de latifundiário do espaçoteatral, porque ele já foi para o Paiol,daqui a pouco ele já arrenda mais um,mais um, mais um, não é impossível.Mas você percebe que ele abandonoua vida artística e está se dedicando àvida econômica?

Não, o diretor financeiro é outro,ele continua atuando, dirige eescreve quase todas as peças emparceria com outros.

Quer dizer, o cara se explora a sipróprio. Ele virou aos poucos umaempresa, mas ninguém agüenta pormuito tempo, ele já criou uma estrutura,e já percebeu que a alma do negócio é aatividade de vendas, então do que é quenós estamos falando?

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O mercado teatral e televisivoabsorve os artistas revelados emexperiências cooperativadas?

Não na totalidade, mas alguns tendem aser absorvidos. Os critérios são muitovariados mas correspondem a umahabilidade que esses artistas desenvol-vem nessa experiência. Digamos queeles acabam, pessoalmente, acumulandocomo experiência uma espécie decapital artístico, e portanto eles têmcacife, eles têm o que oferecer. Entãovamos pegar alguns exemplos notáveis:a Vera Holtz sai de uma novela e já estáprogramada para outra. Por quê?Porque ela tem condições, ela segura umpapel, ela segura um personagem. E nãopor acaso, os da velha guarda, quevieram de experiências semelhantes, etambém de televisão, do tempo quetelevisão não era indústria, linha deprodução: é o caso do Lima Duarte, é ocaso da Aracy Balabanian, é o caso daEva Wilma. É o caso do Paulo Betti,é o caso da Eliane Giardini, que são daminha geração, que fizeram teatro anose anos sem nunca ninguém ter ouvidofalar deles, de repente a cara aparece,no caso da Eliane Giardini ainda porcima uma cara bonita, expressiva,aparece numa novela, inclusive roubaa cena.Estou pensando na novela em que elacontracenava com um outro quetambém vem do Teatro de Arena, o LuísCarlos Arutin, e mesmo que não fosse aintenção, porque existe uma ética entre

atores que têm esse tipo de formação,em que não se coloca a perspectiva deroubar a cena do companheiro, mas derepente, pelo desempenho dela adireção e o dramaturgo vão ampliando opapel. Então, mesmo sem fazer partedos planos, quando você vê, uma atrizque foi contratada para um papel muitosecundário vem para o primeiro plano edepois eles não vão mais querer perder.Aconteceu isso com o Paulo Betti,aconteceu com a Vera Holtz, aconteceucom a Eliane Giardini, para falar dealguns exemplos, gente que veio deexperiência de tipo associativo,cooperativo, enfim, é só você dar umaolhada na história deles. E claro, algunsacabam se estabilizando e permanecemna profissão. Eu não sei se o Paulo Betti,por exemplo, mas eu tenho a impressãode que fazer teatro deixa de ser umaprioridade agora, porque isso éabsolutamente justo e natural, todo omundo pensa na sua estabilidadeeconômica e financeira. Você tem quegarantir isso para poder tocar a suavida, e cada vez menos a gente podeviver de idealismo, “eu vou fazer a obra-prima”. Pode ver, os idealistas todoseram idealistas de barriga cheia, tinhamrenda familiar e tal. Pode ter certezade que os mais radicais tinham garan-tido previamente essa parte econômica.Outra coisa que está posta é queo mercado vai ficando cada vez maisestreito. Os que se destacam, eu não voufalar em termos universais, mas emalguns casos nem sempre o destaque é

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pelas melhores qualidades do ponto devista teatral. De repente o que atrai numdiretor de televisão é o histrionismo deum ator, e a gente sabe que histrionismonão é necessariamente a melhorqualidade a ser explorada; numdeterminado momento pode ser umacoisa muito interessante, mas se ele viraisto, o ator vai ser limitado na suacapacidade de atuação. E outros acabamnão sendo absorvidos, mas a nãoabsorção ou pelo mercado como umtodo ou pela televisão e outros meios detrabalho, em muitos casos também sedeve à posição do ator. Determinadosatores têm uma definição que nestaaltura da nossa vida tem um componen-te também de fantasia, mas de qualquermaneira eles permanecem íntegros nocompromisso que têm com elespróprios. Estou pensando, por exemplo,no Celso Frateschi.

Mas ele faz propaganda.

Isso é um trabalho psicológico enecessário para ele se manter inteiro,“eu me vendo, mas vendo só estemomento, estas horas de trabalho, istome dá um retorno econômico, mas omeu compromisso é com o teatro”.Alguns continuam estritamente volta-dos para a vida teatral, por razõesinclusive ideológicas. “Não vou ficar seismeses enterrado, num estúdio detelevisão, fazendo esse tipo de trabalhoque a televisão oferece”. Então tem

um número razoável assim e tem umnúmero muito maior dos quesimplesmente não são absorvidosporque não. Os motivos pelos quais elesnão são absorvidos também sãovariadíssimos. Fechando, você tem umaporcentagem mínima daqueles que sedestacam por qualidades genuínas,esses são contratados e fazem a carreiranos outros meios; os que resistem a essecanto de sereia porque ainda acreditamnuma espécie de integridade detrabalho. Eu não vou dizer se eu achoque existe isso, mas, enfim, elesacreditam e eu acho que a gente temque dar esse voto de confiança para osque resistem, mas a grande maioriasimplesmente entra e sai do mercadoteatral sem acontecer mais nada na vidadeles. Essa é a verdade.

As dificuldades financeiras relativasao teatro podem levar-nos a umaguinada, a encarar o teatro somentecomo uma atividade lúdica?

No meu conceito, teatro é negócio,é lazer, e muitas outras coisas mais,porque no meu conceito de teatro umafesta como a festa do Divino é teatro, odesfile das escolas de samba é teatro,inclusive o desfile das escolas dosgrupos para os quais você não pagaingresso, é só você ficar sabendo ondeeles vão desfilar, você vai lá e assiste.E aí é totalmente lúdico. As pessoasparticipam, gastam muito dinheiro para

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participar umas horas e é uma grandefarra e é diversão no sentido maisgenuíno da coisa. Isso para mim tambémé teatro. Congada é teatro, todasaquelas festas populares do Nordestesão teatro, com ou sem textoclaramente previsto, porque todas têmum roteiro. Tem-se um roteiro e éapresentado ao vivo, para mim é teatro.

Encarar o teatro somente comoatividade lúdica, a fim de escapardas determinações financeiras,dificulta o problema ao invés deresolvê-lo?

Não tenha dúvida, porque implica logode saída numa restrição ao conceito, etodo conceito que elimina alguma coisa,empobrece, reduz a sua própriacapacidade de pensar esse aspecto. Porexemplo, se você só pensa teatro comoaquilo que passa por bilheteria, enfim, oteatro determinado pelo mercado, sevocê restringe o seu conceito de teatroa isto, você está, no caso do Brasil,jogando fora quase 90% da atividadeteatral. Ou, por outro lado, se você sópensa teatro como uma coisa lúdica,sem compromisso de bilheteria, blá, blá,blá, que também tem muito, você estájogando fora essa atividade comercialque por razões de desenvolvimentohistórico da sociedade brasileira é aindaa atividade que funciona comoreferência. É a referência, quem fala emteatro, quem escreve sobre teatro no

jornal, só pensa nisso. Se você propõeum conceito totalmente alternativo queexclui este, você também está pensandode maneira redutora, você estáexcluindo uma parte da atividade teatralque, embora menor, é a que tem maisprojeção, é a que funciona como padrãode referência para o conjunto dasociedade, porque historicamente nósfomos ensinados a pensar que só isto éteatro. Então nós precisamos entenderpor que houve essa delimitação, isso éum processo histórico. Para ser capaz decriticar, inclusive nos resultados, agente precisa conhecer o processo queresultou nisso. Com uma posturavoluntarista, “não, eu sou contra asdeterminações de mercado, blá, blá, blá,vou aqui no meu cantinho fazer a minhacoisa” – estou perdendo a história dessaexperiência que ajuda a entender até asminhas propostas, porque qualquerproposta que eu faça, vamos dizer queinventei um grupo, vou usar a históriadesse conjunto da experiência teatralno Brasil como referência. Se eu pegarqualquer peça que já foi montada,pronto, é uma referência de que eutenho que ter conhecimento. E tem queser capaz de criticar. O perigo é a genteentrar na mesma linha, a gente praticaro mesmo método, recusa esse e passapara cá; mas é esse o método de quempensa o teatro como apenas odeterminado pelo mercado: “só este éteatro, o resto fica excluído, é outracoisa”.

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O teatro brasileiro voltado para omercado (já levando em conta a suaresposta que o limita a 10% de nossaprodução teatral) consegueconfigurar-se como indústriacultural ou como artesanato?

Esses 10% vivem permanentemente umacontradição, que começou com omovimento do teatro moderno. Desde oTBC esta contradição está dada, porqueo teatro moderno no Brasil é umaexperiência tardia, já começou com estepreconceito, “porque teatro tem que serempresa, blá, blá, blá”. E osprotagonistas desse processo jogaramno lixo quase cem anos de história doteatro brasileiro, se não mais de cemanos. Bom, e depois tiveram que fazeracertos de contas muito dolorososporque tinham jogado no lixo MartinsPena etc. E jogaram no lixo, esse foi omaior crime, a experiênciaimediatamente anterior, representadapor gente como Jayme Costa, ProcópioFerreira e tantos outros. Então você vêque a instalação das regras em vigor atéhoje na prática teatral brasileirasignificou uma violência cultural,inclusive uma rejeição de um público,porque o público do Procópio Ferreiranão era pouca coisa. Procópio Ferreiraentupia de gente cinema nos confins doBrasil, as pessoas iam ver ProcópioFerreira fazendo Deus lhe Pague. Enfim,era preciso, para dar estatuto de arte,porque aquilo que eles faziam não eraarte; você percebe esses discursos

ideológicos? Muito bem, isso foi a partirdo TBC e todas as empresas que seconstituíram – veja bem o recorte –depois da II Guerra Mundial, emconcomitância com o desenvolvimentoda indústria cultural no Brasil.O surgimento do teatro modernobrasileiro é da mesma idade dainstalação em definitivo da indústriacultural, porque indústria cultural nós játínhamos, cinema, rádio etc. Mas agrande vitrine da indústria cultural é atelevisão. A televisão se instala no Brasilacho que dois anos depois datransformação de TBC em teatroprofissional. Teatro e televisão, teatromoderno e televisão, no Brasil, sempreforam referências um para o outro, e sevocê quer saber a TV Tupi foi umingrediente, não vou dizer central nemessencial, mas um ingredienteimportante para garantir público edignidade artística para a atividadeteatral no TBC. A TV Tupi transmitia aovivo peças às segundas-feiras. Umasegunda-feira havia a TV de Vanguarda,peças sérias; na outra, TV de Comédia.Com lances do arco da velha, peças queestavam em cartaz. Eu assisti a algumascoisas, de muita coisa nem me lembromais, mas eu era encantada, porque erateatro ao vivo, o pessoal fazendo teatroe a televisão transmitindo. Era umaprática possível. Não havia naquelestempos heróicos, quase que pré-históricos, não havia propriamenteincompatibilidade, embora todo omundo soubesse que linguagem teatral é

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uma e a televisiva é outra. A televisãofuncionava como meio de divulgação daproposta teatral, e o público detelevisão percebia que se fosse lá ver aovivo ia gostar mais ainda do que o quetinha visto na televisão. A TV Tupicertamente teve um poder multiplicadorde público para o TBC como nenhumoutro canal de televisão foi capaz defazer. Sem contar que de um modo geralas redes de televisão, conforme iamsendo criadas, iam absorvendo todo ocontingente do pessoal envolvido com oteatro. Basta ver que a carreira daFernanda Montenegro foipermanentemente teatro, televisão,teatro, televisão. Começou no rádio;teatro, televisão, teatro, televisão. Eunão tenho dúvida nenhuma de que atelevisão serviu para assentar o nome,como imagem mesmo, marca, marcaFernanda Montenegro, e ela sempre foimuito boa atriz, eu pessoalmente achoque ela é melhor em televisão do queem teatro. Então, a não ser neste nívelda concorrência pelos melhoresprofissionais, eu não vejoincompatibilidade entre indústriacultural e teatro. Agora, comoconcorrência em termos de colocaçãode produto, como concorrência emtermos de alcance não tem nem o quediscutir, porque como a indústriacultural é ela própria expressão dodesenvolvimento tecnológico, ela estásempre atrás da tecnologia de ponta.Pois bem, a tecnologia serve ao teatro,mas de um outro jeito, porque o teatro,

antes de haver tecnologia, já tinha 2 milanos de idade. E você não joga 2 milanos de idade no lixo só porque surgiuum tipo novo de luz, um refletor, umespelho, um material para fazer figurino,não é assim. Em teatro, cada peça quealguém monte, conscientemente ou não,está dialogando com 2 mil anos dehistória, então tem história para trás,enquanto a indústria cultural temhistória para frente, porque é odesenvolvimento tecnológico que vaideterminar linguagem, que vaideterminar conteúdo ou, o que é pior,vai determinar rebaixamento deconteúdo, normalmente é assim que aindústria cultural funciona, simplifica,apaga, empastela, neutraliza e tal, masnós não podemos fazer nada. Hojequalquer um, qualquer um, criança dedez anos percebe que entre um filme depropaganda e um capítulo de novela nãotem diferença artística, tecnológica etc.Mas a indústria cultural nunca tevedúvidas a respeito do que ela é, o teatroé que começou a ter, quando apareceu ocinema houve uma crise. Na Europa,especialmente na Alemanha, o que sediscutiu! E nos Estados Unidos também,só que nos Estados Unidos era maisclaro que a crise deles também eraimobiliária, que deu na crise de 29.“O cinema vai roubar o público doteatro”, nada disso! Nem televisão nemcoisa nenhuma, os movimentos depúblico são determinados por outrascoisas, e não tenha dúvida, o públicosem fisionomia não hesita entre um

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espetáculo em um pulgueiro em SãoPaulo e passar a tarde ou a noite noPlaycenter, ele vai para o Playcenter eacabou, porque o público quer sedivertir, isso nós sabemos. Pois bem, aquestão então do artesanato a gentenão pode mistificar, não se podetransformar deficiência em virtude.Isso que nós falamos, teatro éartesanal... O teatro brasileiro é pobre!É esta a verdade. Uma oficina de fundode quintal.

Por exemplo, O Rei Da Vela é donode uma fábrica de velas.

É, é pré-capitalista, aliás, isso faz parteda esculhambação do Oswald, porqueele percebia que ia entrar em crise ofornecimento de luz, devidamentemonopolizado pela Light, e que o ble-caute poderia ser prevenido com vela.São coisas do Brasil. Porque ele está deolho justamente na questão doimperialismo, é por isso que o cara é orei da vela, porque junta a especialidadebrasileira, que é a agiotagem, o capitalfinanceiro no Brasil chama-seagiotagem, certo? Sempre foi assim enão vai ser outra coisa, é por isso que osbancos estão aí pedindo penico, porqueacabou a agiotagem e eles não têmcomo continuar. Quer dizer, não é queacabou, mudou de esfera. Pois bem,então um agiota que justamente seapropriou da fábrica de velas de umadas pessoas de quem ele tirou tudo

porque emprestou o dinheiro, este caratem perspectiva de sobreviver à crisegeral do capital porque, havendo crise,vai haver blecaute. O cara é bembrasileiro, mas isso é um conteúdo quetem lá as suas determinações. No planoda configuração teatro e indústriacultural, ora, pelo próprio nome,indústria cultural, você só pode pensarcomo grande estrutura. A gente nãopode se iludir, a Rede Globo não éapenas as instalações da Rede Globo,basta ver que o Roberto Marinhobrigava com o governo, desde o governoSarney, por participação e expansão denegócios. Eles querem quebrar omonopólio estatal dastelecomunicações. Por quê? Porque éum supernegócio. Então, voltando,indústria cultural é, desde a sua origem,negócio. Uma parte, a parte pública, aparte mercado deste negócio chama-seprestação de serviços, porque oprograma que você recebe em casa, nacabeça deles é um serviço que elesprestam, o jornal, notícia, é um serviço,isso na cabeça deles, porque nóssabemos que não é bem isso. Nós, queeu digo, leitores de Adorno e outroscríticos da indústria cultural. Pois bem,o teatro, a partir de um determinadomomento, e este momento, olha, é paratrás do século XVIII – na Inglaterra, jáno tempo de Shakespeare – o teatrotambém é prestação de serviços, é umserviço que o público paga. Atores eespetáculo se exibem, são um serviçopelo qual o público paga. Então, no

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âmbito da inserção econômica, aatividade teatral, aparentemente comoa indústria cultural, é da área daprestação de serviços. Acontece que,por causa dos 2 mil anos de história,é o serviço que vem em primeiro lugar.O teatro é um negócio por determinaçãodesse desenvolvimento histórico queintroduziu a bilheteria como elementopara viabilizar a sobrevivência dos queprestam esse serviço. Essa foi aliberdade que o capitalismo ofereceupara os artistas, porque antes elesdependiam do rei, da corte. Eles ficaramlivres para fazer o que bem quisessem,mas imediatamente se escravizaram àbilheteria. Como o serviço durantemuito tempo teve conotações artísticas,porque eu acho que hoje já não temmais, este serviço, prevalecendo oproduto a ser oferecido ao público, olado negócio não se apresentou comouma coisa que pudesse prosperar comotal. Então quando você encontrar, e nãoduvido que encontre, uma grandeempresa teatral, você vai ver que eladispõe normalmente de infra-estruturaridícula, mínima, que a gente nem podechamar de artesanal, é pobre mesmo.Aí entra o problema ideológico da visãode teatro como produto artesanal: não émais verdade! Há muito tempo, coisa demais de um século, você não pode maisdizer que teatro não é sequer análogo àatividade do artesão. O espetáculoteatral não resulta de atividadeartesanal coisa nenhuma, a não ser quea gente se permita abusar dos termos.

Dizer que teatro tem características deartesanato é não querer dizer nadasobre o teatro. Uma das coisas que aFernanda Montenegro disse em umaentrevista sobre crise do teatro, nosanos 60: a economia do teatro brasileirosempre foi parca e porca. Eu acho queela tinha razão e continua tendo razãoporque, se você for pensar o que é osubmundo do teatro, a verdade da vidadas pessoas que fazem teatro, só teatro,é uma coisa inacreditável. Aquelesabsurdos, dos quais a Dercy Gonçalvesnão se esquece com toda a razão,porque não se devem esquecer, dostempos em que atriz tinha que tercarteira de prostituta e fazer exame nadelegacia de polícia anualmente pararenovar a carteira, aqueles tempos nãoestão muito longe, a única diferença éque não tem mais a carteirinha. Entãovocê tem o submundo da exploraçãoemocional, das pessoas umas pelasoutras, que é uma coisa inacreditável,e isto vale para qualquer organizaçãoteatral, desde o melhor espetáculo, omais bem produzido, até o grupinho queconsegue por um tempo um espaço deum teatro municipal, da rede, porque oTeatro Municipal, nem pensar, é outrahistória. Então não se trata deartesanato, trata-se de uma atividadeque nunca conseguiu no Brasil virarcoisa séria, coisa profissional, a não serno curto período que vai do TBC àprimeira fase do Teatro Oficina, o quenão significa que no submundo delesnão tivesse também todo tipo de

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exploração e relações altamentediscutíveis.

O marketing cultural e os incentivoslegais poderiam vencer aslimitações econômicas queenvolvem o teatro?

Para mim o principal problema é aestruturação geral da sociedade brasilei-ra e um “desenvolvimento cultural” quedestinou no Brasil este lugar tão fora, éfora do lugar, para a cultura. Então acultura no Brasil, e quando eu digo cul-tura eu estou falando de educaçãotambém, nunca, ao longo de suahistória, foi tomada como uma questãoséria. O teatro e as pessoas, voltadaspara o aspecto institucional do teatro,pagam com sangue, suor e lágrimas pelaopção por isso, assim como umprofessor paga com pobreza a opçãopela educação. Neste país é assim,sempre foi assim. Se você pegarqualquer história, biografias de atores,pega o João Caetano, tem o trabalho doDécio de Almeida Prado sobre o JoãoCaetano, veja lá como ele sofria e o queera o teatro no tempo do João Caetano,e aquilo foi adaptado e continua atéhoje. Em determinadas circunstâncias,uma certa composição de interesses,jornais, mídia, transformam a figura nododói, é o grande bobo da corte que ficaem cartaz, badalado, mas daí a poucoele vai para o esquecimento atéaparecer outro. Esta é a situação em que

artistas funcionam ocasionalmentecomo a gracinha, o sorriso da sociedade,para falar como os conservadoresfranceses do século XIX, a arte comosorriso da sociedade. É assim aqui noBrasil, sem critério, você nunca vaientender muito bem por que este, e nãoaquele outro que é contemporâneo,virou a tetéia. Em alguns momentosvários são, não por acaso vários quandoo momento é de uma certa folgaeconômica, e portanto nessesmomentos, curiosamente em momentosde crise da economia propriamente dita,da produção, você tem ascenso. Essa éuma discussão que eu conheço, pelosmeus estudos de história do teatro,desde que D. João VI veio para o Brasil.Sônia Salomão Khéde tem um livrochamado Censores de Pincenê eGravata. Qual é a primeira sacada queeu tirei do livro dela? No Brasil acensura foi criada antes de haver teatro.Não tínhamos prática teatral ainda, e játínhamos censura ao teatro. Esse é oassunto dela, é um dado cultural damaior relevância, antes de podermos terum espaço, o prédio para fazer teatro, jáhavia a divisão de censura do ministérioresponsável. Por quê? Porque no Brasilteatro sempre foi pensado como umramo das diversões públicas, e como sesabe, aqui no Brasil diversão pública ebandalheira são sinônimos na cabeça dequem está no poder, desde D. João VI.Já havia censura antes de ser autorizadaa criação do teatro que atualmente é napraça Tiradentes, chama-se João

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Caetano. Nessa história a gente percebeque as artes no Brasil, para a classedominante, sempre foram perigosas,que tem que manter sob controle, sejada polícia, da censura, seja sob controleeconômico. Pessoalmente acho a maiorbobagem esse negócio de Lei Sarney,incentivo etc. porque nunca o artistabrasileiro vai convencer a classedominante no Brasil de que cultura éuma coisa séria. Isto é bobagem. Sempretemos um Mindlin no Brasil, masenquanto nós temos um Mindlin,quantos têm a mesma grana e o mesmoâmbito de atividade econômica eempresarial da Metal Leve e pensamcomo o Mindlin? Então o Mindlin é queé um homem pouco brasileiro, aliás vejao sobrenome. Para a sorte de muitagente, ele patrocina publicação delivros, para espetáculos é bem provávelque dê dinheiro também. Ou então, poroutras razões este ou aquele bancoresolve dar dinheiro. Mas não se iluda,mas não se iluda mesmo, a classedominante brasileira, que tem odinheiro, os empresários do Brasil nãoapostam um níquel na importância daeducação, da cultura e áreas afins. É porisso que só os grandes negócios é que sedesenvolvem. Televisão, sim, elesinvestem na televisão. Como investemna televisão? Veiculando propaganda.Sem veiculação de propaganda nenhumaemissora de televisão sobrevive, então,toma lá, dá cá, porque por outro lado aveiculação de propaganda na televisãogarante a vida lucrativa de um

determinado produto, certo? Entãoestamos em casa. Agora, veiculaçãoinstitucional oferecida pela temporadade um espetáculo teatral? Ora, faça-meo favor, achar que isto é uma coisa quepode se generalizar é das maisdelirantes ilusões dos artistas no Brasil.Esse estado de coisas vem da própriahistória do Brasil, o outro lado disso épedir subvenção para o Estado. Agoraveja se faz sentido pedir subvenção paraum Estado como esse que nós temos,que mata professor de fome? Porque seesse Estado, desde D. João VI, dessevalor para a arte, cultura, literatura, eleinvestiria em educação.

Dado esse estado de coisas, qual arelação entre o tipo de produçãoteatral e a escolha de repertório?

A relação é direta. Se você é umempresário ou um ator, porque isso temacontecido muito, ator que em umespetáculo ganhou bastante dinheiro,juntou uma grana e vai produzir, elenecessariamente vai produzir para omercado, isto é, pela grana que ele estáinvestindo ele precisa do retorno, masno teatro a bilheteria é uma caixa desurpresas. Os desastres que acontecemsão absolutamente impressionantes.Vamos lembrar, aqui no Brasil, um dosmais chocantes, Chorus Line. Foi umarraso nos Estados Unidos, acho que láainda está em cartaz. Virou filme, todo omundo falava, então um louco aqui

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rapsódia 188

resolveu produzir Chorus Line. Ele deveestar com dívida até hoje porquelevantar a produção de um espetáculomusical, a arregimentação, você tem quepagar salário, mesmo que espere aestréia para começar a pagar, enfim,você vai assumindo dívida, dívida,dívida, contando com a bilheteria, e aívocê tem um fracasso absoluto.

A Companhia Estável de Repertório,de Antônio Fagundes, também faliu.

Mas você se lembra? Porque era umaempresa de repertório, o que eleprecisava fazer? Oferecer um espetáculocom retorno garantido de bilheteria edepois tentar timidamente umaexperiência que não podia ser muitoradical porque se fosse radical, burrosn’água. E eu me lembro de que o cavalode batalha dele foi o Xandu Quaresma,que era uma peça muito interessante,com raízes do teatro popularnordestino, uma proposta de tipobrechtiano e tudo, mas carregada nopopular brasileiro. Então, depois deCirano de Bergerac, Xandu Quaresma;entre um e outro espetáculo, acompanhia sempre apelava para XanduQuaresma. Morte Acidental de umAnarquista foi um dos grandes achadosdo Fagundes, mas de qualquer maneiraera uma experiência legítima, de gentegenuinamente interessada em dotar opaís de uma perspectiva teatralminimamente séria. Porque o Fagundes

tinha essa qualidade, tinha um nível emrelação ao qual ele não fazia nenhumaconcessão, com desigualdade deproduções, mas ele não baixava o nível,o que é um negócio legal, se fosse viáveleconomicamente, mas no longo prazo,mesmo que ele acertasse todas, eledançaria. Por quê? Porque ele não eradono do local onde ele se apresentava,um dia a especulação imobiliáriaderruba, e se não for a imobiliária é afinanceira, enfim, porque é umaatividade que não tem, realmente nãotem estatura para jogar o jogo pesadoda economia tal como ele é e como temsido no Brasil nos últimos 15, 20 anos.

Qual é o cliente das empresasteatrais: o público, empresaspromotoras ou outros?

Pelo que eu tenho lido, porque por tudoque eu já falei, você há de convir quenão é bem disso que eu gosto, mas,enfim, pelo que eu tenho lido, a minhaimpressão é que está surgindo um tipointeressante de clientes, que comprametade da sala e vai arregimentarpúblico. Em muitos casos as pessoasvêm do interior de ônibus. Ora, são osnovos clientes, e claro que essaspessoas que compram os ingressos e aviagem estão sendo atravessadas. Entreo espetáculo, o produtor e este públicoque aflui, tem um cliente, é este o novocliente do grande teatro, desse teatro

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rapsódia 189

que dá certo e que tem longevidadecomo espetáculo.

E as empresas promotoras, que noteatro fazem propaganda do seunome?

Não, eu não acredito nisso, nãoacredito. Eu não vejo qual o sentido dopatrocínio que o Bamerindus dava paraum espetáculo teatral, a não ser aqueleda Marília Pêra, isto é, o dono doBamerindus apoiava o Collor e ficoucom a Marília Pêra de refém nacampanha. Então, fora esse tipo desituação muito específica... Porque vocêacha, você acredita? Vamos serhonestos, uma coisa é o que a genteconversa lá com o marketing doBamerindus e outra aqui entre nós.Você acredita que o público, porque foiao espetáculo patrocinado peloBamerindus, abriria conta no Bamerin-dus? Você acha que essa é a questão?Eventualmente no caso brasileiro pesamais que o varejo da publicidade achamada propaganda institucional, istoé, nós temos um banco de origensaltamente questionáveis que precisaaparecer para o Brasil com altoscompromissos com a cultura, com anação, é só isso. Ou então pagama despesa que você tem para imprimir oprograma, não totalmente, uma parte.É ridículo, é absolutamente ridículo, e atroco deste troquinho, das moedas queeles dão eles conseguem um tipo

preciosíssimo de propaganda que échamada institucional, isto é, aparecerpara o país como uma instituiçãoprivada comprometida com a cultura.Agora, compara o compromisso doBamerindus com o dos Rockefeller,porque nos Estados Unidos a históriaé outra.

Que tipo de produto a empresateatral oferece?

A empresa teatral hoje oferecemercadorias de fácil consumo. Se vocêquiser procurar o equivalente domercado, do produto, da mercadoriaque o teatro tem oferecido hoje, eu sóconsigo imaginar o teatro francês doSegundo Império. Estou falando deAlexandre Dumas, Filho; estou falandode coisa séria, estou falando de A Damadas Camélias, de Alexandre Dumas,Filho e toda a sua produção, estoufalando de Émile Augier, estou falandode Sardou, os dramaturgos da Comédie.É desses que estou falando, eles eramtodos altamente prestigiados peloEstado francês. Na França, o quesignificava ser prestigiado pelo Estadofrancês? Ter suas peças montadas pelaComédie Française. Por quê? Porque aComédie Française era uma iniciativado Estado, os funcionários eram pagospelo Estado, funcionários públicos.Como você sabe, a Comédie foi criadapelo rei para o Molière, era a casa doMolière, foi o prêmio que o Molière

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rapsódia 190

recebeu do rei. A Comédie Françaiseaté hoje é o cartão de visitas do teatrofrancês. Então o que é teatro oficial naFrança? E na França isto é coisa séria:Comédie Française. É por isso quecontinuam montando Racine, Molière eoutras coisas. Pois bem, costumolembrar em aula, quando falo desseassunto, o seguinte: não se esqueçam deque quando nós estamos falando doteatro francês no Segundo Império nóstemos um teatro 100% censurado e umdos mais importantes funcionários dacensura era o Émile Augier, isto é, de diaele censurava e de noite as peças deleeram montadas na Comédie Française.É bom saber do duplo emprego dedeterminadas tetéias do teatro.Muito bem. Esses dramaturgos tinhamclara consciência do produto que opúblico queria consumir, um público queia ao teatro para fazer a digestão, umpúblico que não queria peça para serobrigado a pensar, porque “já chega dosproblemas que eu tenho durante o dia”,um público que queria teatro para sedistrair, um público, como disse umhistoriador desse período, que pagavapara ser rebaixado na sua sensibilidade,na sua inteligência, e na suacompreensão da vida. Era este o públicodo teatro oficial do Segundo Império.Pois bem, o teatro que a empresa teatralhoje, com todas essas determinações,patrocínio, aluguel, tendo que negociarcom o prefeito de plantão ou com ogovernador, porque as melhores casasforam estatizadas, não são capazes de

oferecer coisa melhor do que aquilo quese oferecia na França do SegundoImpério. Então tem que necessariamen-te ser uma peça medíocre para o grandepúblico entender, porque você sabeque esse tipo de produtores subestimaa inteligência, a informação do público,e o público até pode se sentir ligeira-mente subestimado, mas ele ficacontente de ser tratado assim, o públicotambém é medíocre. O que nós pode-mos fazer? É assim que funciona omercado, o mercado precisa descobrirqual é a média para fazer temporada.A Broadway não é outra coisa.

A que necessidade a empresa teatralprocura atender?

É preciso separar, porque eu acho que opessoal que faz teatro infantil, não 100%,mas uma parte significativa... Queroacreditar que a maioria dos que fazemteatro infantil faz com objetivos os maislegítimos para a arte, sabem que criançatem que ser respeitada, sabem quecriança é inteligente, sabem que temque fazer bom espetáculo, os atores têmque estar muito bem e os textos têm queser muito bons, não se pode subestimara inteligência e a vivacidade da criança.Pelo pouco que eu vejo ultimamente,normalmente teatro infantil é melhor doque o grande teatro. Mas nós sabemosque já se instalou a perversidade noâmbito do teatro infantil também, domesmo jeito que a perversidade na

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rapsódia 191

indústria de livros infantis também se

instalou. Então, para uma coisa bem-

feita, bem pensada, você tem um quilo e

meio de porcaria para explorar os pais

das crianças. Mas quero, um pouco

talvez idealisticamente, achar que no

teatro infantil você ainda vê muita coisa

que é para ser aplaudida de pé como

esforço e como compromisso também

com o teatro, porque isso é

compromisso com o teatro, com o

desenvolvimento de repertório, com

o tratamento de questões relevantes

e que estão postas pela conjuntura,

dialogando com o público, porque

pressupõe que o público é inteligente,

tem sensibilidade. Então teatro infantil é

uma coisa. O teatrão, esse teatro

totalmente submetido às regras do

mercado, não acredito que funcione

mais como ostentação de cultura para

quem assiste. Isso podia ser dito até

mais ou menos os anos 60, porque, veja

uma das perversidades da sociedade

brasileira, até o teatro de esquerda no

Brasil em algum nível serviu como

ostentação de cultura, o de vanguarda

você não tenha dúvida nenhuma, ele

sempre foi isso, ostentação de cultura,

isto é, “eu, público do teatro de

vanguarda, estou acima desses

medíocres aí”. Então, muito do discurso

em defesa, apologia do teatro de

vanguarda, depende desta postura de

tipo aristocratizante, porque sempre

tem quem queira se sentir parte da

aristocracia do espírito, já que não dá

para ser da aristocracia de verdade.

Então acho que isso hoje, para teatro,

não vale mais, acho que hoje teatro é

entretenimento e ponto final. Do que

tenho visto, e às vezes me tomo de

ímpeto e lá vou eu ver uma peça dessas

de grande sucesso, você vê que o

público que está lá podia estar no

Playcenter, sem fazer diferença, porque

você sai de lá leve, disposto a jantar

como você estaria se tivesse ido ao

Playcenter, ou se tivesse ficado em casa

assistindo a um filme pela televisão.

Hoje teatro virou uma opção como outra

qualquer, e para este público que vem

do interior inclui essa vantagem

adicional de você sair daquele

ramerrão, pegar um pouco de estrada

e se divertir. Não passa de diversão.

O empresário teatral obtém o lucroesperado?

Não necessariamente, a não ser que ele

seja capaz de desenvolver uma empresa

como essa de que nós estávamos

falando, que cuida direitinho da parte

de vendas, cultiva a clientela, estuda

meios de ampliar a clientela, mas

mesmo essa perspectiva é muito

desgastante e eu não sei se o retorno

que ele tem compensa tanto inves-

timento, pela natureza da atividade,

de novo. Porque não dá, você vai querer

comparar o retorno de um empresário

teatral, digamos, com uma rede de

lojas? No capitalismo, você pode ter

uma certa lucratividade, mas há uma

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rapsódia 192

regra do capitalismo que infelizmentefoi demonstrada por Marx: a quedatangencial da taxa de lucro, que,pensando em um investimento qualquer,se ele é totalmente original você tem umperíodo, por ser pioneiro, em que vocêganha. Mas imediatamente seuempreendimento mostra para outrosque o caminho é bom e surge aconcorrência. É a concorrênciaproliferando que reduz a lucratividadedestes, e os que vêm depois sempre têmmenos, pelo simples fato de terem vindodepois. O processo de desenvolvimentotecnológico faz um deles saltar. O saltode um normalmente significa a morte deoutro. Ora, isto em um mesmo ramo.Acontece que esta questão tem que servista de um ramo para outro. Pois bem,existe uma determinada situação emque o próprio retorno que a suaatividade dá, mesmo que não tenhaequivalente no seu ramo, ela éinviabilizada pelo desenvolvimento emoutros ramos. Só para dar um exemplobem disparatado: o aumento dalucratividade do Bill Gates, da Micro-soft, pode indiretamente resultar emperdas para o teatro. Por quê? PorqueBill Gates definiu um outro patamarde lucratividade e só são candidatos acontinuar existindo os que foremcapazes de entrar nesse patamar. Entãohoje o desenvolvimento do capitalismoleva a essa situação, as pessoas quecriticam costumam dizer “a concentra-ção de renda”. A concentração de rendaé isso. E o problema é que os que não

são candidatos a continuar nessaloucura são candidatos aodesaparecimento. Você pensa que odesemprego é um resultado inesperado?Não, é um resultado programado emnome da reengenharia, em nome daprodutividade. Voltando para o teatro,que nesse sentido é uma sobrevivênciateimosa, resultado de pessoas queinsistem em fazer isso pelas maisvariadas razões, o mais variado tipo deidealismo: o sistema capitalista temmostrado que determinadas atividades,ou pré-capitalistas, como no caso doteatro, que num determinado momentoconviveram bem com a atividade demercado, quando o patamar virou este,elas continuam sobrevivendo, mas emsituação cada vez pior, comparativa-mente a momentos anteriores de suaprópria história. E de novo volto àminha questão original: é por isso quese a gente quiser ainda continuarpensando em teatro como experiênciarelevante no âmbito da nossa vida, agente precisa abandonar, não de todo,mas precisa reconsiderar essaconcepção de teatro vinculada amercado. Por quê? Continua, sobrevive,um não dá certo, outro dá certo e tal,tal, mas o futuro do teatro não estádelineado por esse caminho, de maneiranenhuma. Por quê? Aí dá para cair aténa mitologia, porque a necessidade deteatro que a humanidade objetivou e,pelo que nós sabemos, seja no Ocidente,seja no Oriente, todas as sociedadesdesenvolvem alguma modalidade de

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rapsódia 193

teatro, é uma necessidade cada vezmais incompatível com o rumo dosistema capitalista e portanto do merca-do. Então a gente tem que ampliar apossibilidade de pensar a coisa.

Quais são as condições de trabalhode quem faz teatro?

São as piores possíveis. Imagina, nempensar. Primeiro porque a própriaideologia do empresário já autoriza a seapresentar não como uma empresadevidamente constituída, mesmo queseja. Ele contrata por empreitada, entãoa situação do artista, técnico etc. éexatamente a mesma do trabalhador daconstrução civil, o cara é contratadopara fazer este prédio, acabou o prédio,se eu tiver outro serviço eu te contrato,se não, você está na rua. Ora, estetipo de contrato específico porempreitada não prevê nenhum direito.Em muitos casos não garante nemsalário, você sabe de gente, olha, é deperder a conta, de gente que participado processo todo e no final não levanem um tostão para casa, pelocontrário, tirou o dinheiro do bolso paraajudar na produção, para ir ao trabalho,e vai alegre. É a regra, é a regra. Não ternem sequer o retorno salarial, o quedizer de direitos trabalhistas, imagina. Eno caso dessa empresa que nós temosaqui como referência [Caprarole], quemtem minimamente algum retornogarantido é o próprio dono – que não

está ele próprio isento das condições deexploração que ele é obrigado a exer-cer, porque ele se explora a si próprio,ele se mata de trabalhar, se mata –e os funcionários mais imediatos ligadosa ele, que viabilizam a infra-estruturadele. Ele e esses ainda têm algumagarantia, os outros, só Deus sabe. E olha,não há sindicato que resolva isso,porque essa estruturação já está mais doque demonstrada como incompatívelcom as regras econômicas vigentes hoje.