empresas industriais geridas pelos...

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José Barreto * AnáliseSocial,vol. XIII (51), 1977 - 3.º, 681-717 Empresas industriais geridas pelos trabalhadores Após os acontecimentos revolucionários de 1974, surgiram em Portugal algumas centenas de pequenas empresas industriais geridas pelos trabalhadores, provenientes em grande parte de empresas privadas já existentes. Com um peso talvez negligenciável na economia nacional, esse «sector» emprega contudo algumas dezenas de milhares de trabalhadores. Embora os trabalhadores se não tenham movido por quaisquer propósitos «experimentais», interessantes ou não, trata-se de uma experiência com bastante interesse, inclusivamente do ponto de vista sociológico, em especial no caso das empresas anteriormente já existentes, onde a gestão pelos trabalhadores se substituiu à dos proprietários ou seus gestores. Em Portugal é um fenómeno novo e, em rigor, também não é fácil encontrar-lhe paralelo noutros países. A origem pouco canónica da maioria destas novas empresas distingue-as, com efeito, das clássicas cooperativas operárias de produção. O tempo submeterá esta «inovação» a uma série implacável de testes de viabilidade económica e social. Desta dependerá sempre muito o interesse da experiência, mais do que do seu aspecto de novidade. Talvez o escasso tempo de recuo não favoreça ainda a lucidez da observação. Terminou já a vaga das ocupações e «rupturas», mas apenas começou o solucionamento definitivo dos diversos casos, sendo assim praticamente impossível fixar um ponto ou data-limite à observação. No entanto, várias centenas de empresas geridas pelos trabalhadores ultrapassaram já um período crítico inicial de dois anos, com resultados muito desiguais, mas por vezes bastante positivos, sempre elucidativos. Torna-se deste modo pos- sível o exame duma realidade minimamente consistente e signi- ficante. Por outro lado, a sociedade portuguesa vai emergindo do * O sociólogo José Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, colabo- rou no trabalho de campo que precedeu a elaboração deste texto (nomea- damente na condução de entrevistas). 681

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J o s é B a r r e t o * Análise Social, vol. XIII (51), 1977 - 3.º, 681-717

Empresas industriais geridaspelos trabalhadores

Após os acontecimentos revolucionários de 1974, surgiramem Portugal algumas centenas de pequenas empresas industriaisgeridas pelos trabalhadores, provenientes em grande parte deempresas privadas já existentes. Com um peso talvez negligenciávelna economia nacional, esse «sector» emprega contudo algumasdezenas de milhares de trabalhadores. Embora os trabalhadoresse não tenham movido por quaisquer propósitos «experimentais»,interessantes ou não, trata-se de uma experiência com bastanteinteresse, inclusivamente do ponto de vista sociológico, em especialno caso das empresas anteriormente já existentes, onde a gestãopelos trabalhadores se substituiu à dos proprietários ou seusgestores. Em Portugal é um fenómeno novo e, em rigor, tambémnão é fácil encontrar-lhe paralelo noutros países. A origem poucocanónica da maioria destas novas empresas distingue-as, comefeito, das clássicas cooperativas operárias de produção. O temposubmeterá esta «inovação» a uma série implacável de testes deviabilidade económica e social. Desta dependerá sempre muito ointeresse da experiência, mais do que do seu aspecto de novidade.

Talvez o escasso tempo de recuo não favoreça ainda a lucidezda observação. Terminou já a vaga das ocupações e «rupturas»,mas apenas começou o solucionamento definitivo dos diversoscasos, sendo assim praticamente impossível fixar um ponto oudata-limite à observação. No entanto, várias centenas de empresasgeridas pelos trabalhadores ultrapassaram já um período críticoinicial de dois anos, com resultados muito desiguais, mas por vezesbastante positivos, sempre elucidativos. Torna-se deste modo pos-sível o exame duma realidade minimamente consistente e signi-ficante. Por outro lado, a sociedade portuguesa vai emergindo do

* O sociólogo José Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, colabo-rou no trabalho de campo que precedeu a elaboração deste texto (nomea-damente na condução de entrevistas). 681

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estado eufórico-depressivo que a impedia de vislumbrar com nitidezo carácter transitório de muitas das situações surgidas, assimcomo o falho ou nulo alcance de diversas transformações, ditasestruturais, de após o 25 de Abril. Não é, portanto, cedo de maispara começar a pesquisa destes ou doutros «resíduos» da revolução,quando os houver, e para elaborar os primeiros balanços, forçosa-mente incompletos.

1.1 PROVENIÊNCIA E ACTUAL SITUAÇÃO DAS EMPRESAS

A designação que aqui utilizo de empresas (industriais) geridaspelos trabalhadores abrange, a data em que escrevo, quatro tiposde empresas, segundo a sua proveniência e estatuto «legal»:a) as chamadas empresas em autogestão 1

1 na sua maioria creden-ciadas pelo Ministério do Trabalho (ou de Tutela) para a práticados actos normais de gestão, onde se verificou ou o abandonovoluntário, por desinteresse, da entidade patronal (gerência), ouo seu afastamento mais ou menos coercivo da gestão da empresa,vindo esta a ser assumida pela comissão de trabalhadores;6) as cooperativas operárias de produção formadas sobre empresaspreexistentes, após passagem mais ou menos curta pelo «estatuto»de autogestão atrás referido, e nas quais uma direcção eleitaassume a gestão da empresa segundo os preceitos cooperativos;c) algumas empresas intervencionadas cujas comissões administra-tivas foram constituídas exclusivamente por trabalhadores locais;d) cooperativas operárias de produção formadas por via associa-tiva, quer antes de 1974, quer desde então, a partir de desempre-gados e trabalhadores isolados ou por conta de outrem. No total— a)+b)+c)+d)—, havia em Dezembro de 1976 cerca de 700empresas industriais naquelas condições, contando perto de 30 000postos de trabalho2. As mais numerosas, perto de 400, são asempresas que se encontram atrás indicadas em 6). O número médiode postos de trabalho, no total das empresas, ronda os 50. Estenúmero é superior a 80 nas 100 empresas industriais que no fimde 1976 se encontravam em autogestão e é de 35-40 para o conjuntod a s cooperativas operárias i n d i c a d a s e m 6 ) ed).

1.2 O P A S S A D O

As primeiras cooperativas operárias de produção apareceramem Portugal já no século passado. Em 1900 havia no País 17 coope-rativas operárias de produção3, implantadas numa larga gama de

1 Num sentido mais lato, esta expressão também serve para designarvulgarmente todas as empresas geridas pelos trabalhadores provenientes deempresas já existentes, ou seja, as empresas a), b) e c).

2 Estes números serão alterados em virtude das empresas aqui com-preendidas que, no corrente ano, deverão ser devolvidas à posse dos seustitulares. Essa diminuição será provavelmente compensada pela criação, porvia associativa, de novas cooperativas operárias de produção, como tem con-tinuado a verificar-se.

8 Número citado por Sérvulo Correia em O Sector Cooperativo Portu-682 guês, separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1970.

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actividades, todas elas trabalho-iníensivas e requerendo investi-mentos relativamente pouco volumosos. Seguiu-se, nestes trêsquartos de século, uma longa fase de estagnação e declínio docooperativismo de produção, simultaneamente com a lenta indus-trialização do País. O declínio traduz-se claramente no facto de onúmero de cooperativas operárias de produção não ter sequeraumentado, antes diminuiu em 74 anos (em 1929, como em Abrilde 1974, havia apenas 15). Aos clássicos obstáculos —carência decapital, sobretudo — acresceram, sobretudo a partir dos anos 20,a falta de incentivos e a indiferença, quando não hostilidade, aocooperativismo e associativismo operários por parte do regime.Não pode contudo ignorar-se que pouca «luta» foi dada nessecampo ao regime ou à sua inércia. Houve sempre maior esforçoteórico e de propagação da fé cooperativista dio que espíritoempreendedor e pragmatismo. O cooperativismo, e náo apenaso de produção, foi sobretudo um ideal longínquo que resistente-mente (e como forma de resistência ideológica) brilhou na obrapropagandista de um punhado de grandes figuras doutrináriase militantes. Mesmo abstraindo da sua mínima implantação ouextensão, a prática cooperativa também foi pouco coerente comos seus princípios. Ê certo que se verificou por parte do regimecorporativo uma permanente acção de submissão, recuperaçãoe estrito controlo das cooperativas, que muito terá pesado contraa expansão do sector, contra a sua autenticidade e democrati-cidade interna 4. O minúsculo sector cooperativo 5 foi assim cons-tituído predominantemente por sociedades que de cooperativaspouco mais tinham que o nome: número de sócios e capital variáveis,um órgão chamado assembleia geral, assim como algumas van-tagens, fiscais ou outras... Mas as próprias cooperativas operáriasde produção —que em princípio nâo teriam qualquer vocaçãopara servir de simples capa jurídica, tanto mais que se propõem,categoricamente, a abolição do salariato —, até mesmo essas terãoprestado provas pouco convincentes e pouco exemplares, o quenão deixou de desprestigiar a forma cooperativa ou diminuir-lheos aliciantes. Refiro-me à tendência das cooperativas operáriasde produção para se fecharem à adesão de nbvos sócios e admi-tirem apenas assalariados, ou para se transformarem em socie-dades não cooperativas, quando ultrapassam k>m êxito o períodocrítico do arranque e atingem uma certa prosperidadett.

4 No campo da legislação, esta acção do antigo1 regime é exposta porF. F. da Costa em As Cooperativas na Legislação Portuguesa, Liv. Petrony,Lisboa, 1976.

6 Formado essencialmente por cooperativas agrícolas (de transformaçãode produtos agrícolas) e cooperativas de comércio por grosso e a retalho,o sector cooperativo português facturou em 1973 cerca de 6 milhões de con-tos, com um capital social equivalente a 0,45 % do capital social das socie-dades portuguesas.

6 Este problema não pode ser visto com simplismo, dado que as coope-rativas operárias de produção pertencem ao número das cooperativas quenão podem seguir à risca o preceito da «porta aberta». Também não devesubestimar-se a questão social e humana da antiguidade dos sócios. A solu-ção estará nos preceitos moralizadores (como a razão máxima entre sóciose assalariados, ou o prazo máximo para transformação de candidatos a 683

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Agora, que o número de cooperativas de produção se elevourepentinamente ao nível de significância — por razões e segundoprocessos, deve dizer-se, pouco ortodoxos à face do tradicionalassociativismo operário de produção —, é indispensável rememorare ter em devida conta estes e outros ensinamentos da longaexperiência nacional e sobretudo estrangeira. Para que desdeo início se desfaçam também ilusões sobre a facilidade da gestãodemocrática, haverá que meditar no insucesso de muitas coopera-tivas operárias de produção quando, por exemplo, não souberamencontrar «chefes possuindo simultaneamente as competênciastécnicas, administrativas e comerciais requeridas, o espírito coope-rativo, e que aceitassem depender democraticamente dos seussubordinados»7. A exigência de democraticidade, polivalênciatécnica, participação e rotatividade na gestão, etc, também nãoexiste à flor da pele na maioria dos trabalhadores, e este problemapõe-se com redobrado vigor onde se chega, como em Portugal,à cooperativa de produção por transferência de gestão (eventual-mente também de titularidade) em empresas preexistentes, e nãopredominantemente pela via do associativismo.

Como diz Lasserre, «a solução cooperativa é o contrário dumasolução de facilidade». Fácil é, evidentemente, o salariato. Muitostrabalhadores chegam a preferi-lo, e não é difícil que ele se instaleno próprio seio da cooperativa como forma dominante de compor-tamento e de relações sociais. E é inútil apontar como razão prin-cipal deste fenómeno o meio circundante (capitalista).

1.3 PORQUE SURGIRAM

O número de empresas industriais geridas pelos trabalhadoressubiu em flecha a partir dos primeiros meses de 1975, comoresultante, aparentemente não programada por ninguém, daacção conjunta de diversos factores políticos, económicos e sociais.Como atrás referi, é a partir de empresas já existentes que surgeo grosso das empresas industriais actualmente dirigidas pelostrabalhadores. (Apenas no sector da construção civil se verificou,após o 25 de Abril, um grande aumento do número das cooperativasformadas por via associativa, a partir de desempregados, mas areanimação geral da economia e do sector da construção poderácolocar essas cooperativas numa situação desvantajosa perante ainiciativa privada, que suporta elevados custos fixos.) O aumentogeneralizado dos encargos com o pessoal, salariais e extra-salariais,nomeadamente a instituição de novos salários mínimos nacionais,os fortes aumentos de preço das matérias-primas, a recessãonacional e internacional, que atingiu seriamente diversos sectores,

sócios era sócios) propostos nomeadamente por Sérvulo Correia (op. cit.).Sugere igualmente este autor a atribuição, nas cooperativas operárias deprodução, de votos suplementares proporcionais à antiguidade. A legisla-ção portuguesa, nem mesmo após o 25 de Abril se ocupou ainda destasquestões.

684 7 G. Lasserre, La Coopération, P. U. F., Paris, 1967.

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o forte poder de negociação dos trabalhadores, o clima de cõnteâ-tação a todos os níveis, a deterioração das relações de trabalhoe da disciplina, a instabilidade política, etc, representaram, sepa-rada ou conjuntamente, em 1974-75, um rude golpe na maioriadas pequenas e médias empresas8, muitas delas já no passadoa braços com sérios problemas. À medida que iam despontandono horizonte próximo as sombrias perspectivas dos despedimentos,da falência e do encerramento de empresas, começavam a consti-tuir-se por toda a parte as comissões de trabalhadores, reclamandoo direito de controlo da actividade empresarial, avançando pro-postas ou exigências que as administrações refutavam, por asconsiderarem exorbitantes, impraticáveis ou, mais simplesmente,arrogantes. Num ambiente nitidamente desfavorável à negociaçãoe ao compromisso, vai então observar-se em centenas de empresasa ruptura entre trabalhadores e empresários.

As C. T. começam então a denunciar não só as intenções patro-nais de despedir e encerrar, como também irregularidades anterior-mente cometidas, recentes práticas delituosas, má gestão (da qualapresentam, por vezes, provas eloquentes). A partir de Marçode 1975 aparecem também as denúncias de «sabotagem econó-mica», apoiadas em interpretações um tanto livres do Decreto-Lein.° 660/74 (motivos de intervenção estatal). Entre estas últimasacusações tornou-se cada vez mais difícil distinguir as que nãoserviam de mero pretexto para o ataque indiscriminado ao «capi-talismo», dentro duma confusa estratégia de estatização porventuraintegral da economia. Muitos proprietários e gerentes se viramobrigados a deixar as empresas. Outros abandonaram-nas de livrevontade, cépticos, desinteressados ou impotentes para o soluciona-mento dos problemas. Assim se explica que, em mais de cemempresas, a gestão pelos trabalhadores se faça hoje segundoum acordo com os empresários (sendo como tal considerada nãolitigiosa). Em mais de um caso, o abandono da gerência (para oestrangeiro) também serviu para fugir às responsabilidades.Sucederam-se as ocupações de empresas pelos trabalhadores, parao que tinham o aval ou a protecção de organismos governamentaise de certas forças militares. O motivo sistematicamente invocadofoi o de garantir o trabalho, antecipar despedimentos colectivosou o encerramento, após ameaças explícitas da entidade patronalnesse sentido. Compreensivamente, o altíssimo índice de desem-prego, a perspectiva da fome, foi um dos factores que de modomais decisivo contribuíram para o grande surto de empresasgeridas pelos trabalhadores. Mas considerações de outra ordemtambém motivaram directamente ocupações. Por exemplo, deci-dia-se não esperar pela intervenção estatal: temia-se que ela senão desse, ou que viesse demasiado tarde, e entretanto era neces-sário assegurar a subsistência dos trabalhadores e suas famílias.

8 Não foram, naturalmente, as pequenas e médias empresas as únicasatingidas. Tendencialmente, apenas as empresas de gestão mais moderna— e em particular as multinacionais— conseguiram atravessar em Portugalo período crítico 1974-76 sem enormes dificuldades, simultaneamente com omenor índice de conflitos internos. 685

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Por outro lado, a Inspecção das Finanças e do Trabalho, os tri-bunais, etc, verdadeiramente assoberbados de trabalho, mostra-vam-se ultrapassadíssimos pelo ritmo dos acontecimentos9 (situa-ção agravada pelas tendências anarquizanites e pela luta políticaem todo o aparelho de Estado). Nestas condições, fazia-se lei,julgava-se e executava-se um pouco por toda a parte.

Houve certamente diversos casos em que a justiça, mesmo a«revolucionária», permaneceu alheia aos acontecimentos. As prepo-tências reivindicativas, o fomento militante e artificial da «luta declasses», a preferência dada aos factores ideológicos em detri-mento da competência, etc, determinariam vários casos injusti-ficados — e em seguida desastrosos — de «autogestão». Sectoresdo MFA, sindicatos e algumas organizações políticas são tambémresponsabilizáveis por estes desastres, os quais têm apenas servidopara desprestigiar e desacreditar todas as iniciativas dos trabalha-dores neste campo, inclusive as -mais justas e bem sucedidas. Nãocorresponde, por outro lado, à verdade a imagem global que já sepretendeu fazer de bandos vorazes de trabalhadores, embriagadospela cobiça e pela ideologia da «vitória final», espoliando empre-sários indefesos do belo pecúlio amealhado ao longo de anos detrabalho e privações. A autogestão, a que não raro os trabalhadoresforam pura e simplesmente obrigados, aparece também pintadacomo irresponsável «experiência» de «laboratório», como que susci-tada por um punhado de perigosos alquimistas à solta 10. Estaspinturas são exageradas ou falsas, em todo o caso muito lisonjeiraspara uma grande parte daqueles empresários. A mesquinhez, amiopia, a falta de inteligência ou a mais flagrante incompetênciacaracterizaram demasiado a actuação duma considerável faixadesse patronato para que tais versões possam pretender reproduziro real, mesmo grosso modo.

Primeiramente, e como consequência frequente da má gestão,era patente a pouca ou nenhuma viabilidade económica de muitasdas empresas em questão. Nestes casos, só os «salários de fome»e expedientes (e irregularidades) de ordem vária mantinhamaparentemente de pé empresas já condenadas. A súbita fragilidade

9 Em princípios de 1977 havia já acumulados mais de meio milhão(!)de processos, entrados nos tribunais de trabalho, esperando resolução (decla-rações do ministro do Trabalho em Abril deste ano).

10 Eis, por exemplo, tudo o que a principal organização patronal tem adizer em 1977, em jeito de balanço global, sobre as «empresas intervencio-nadas e ocupadas» que examina conjuntamente: «[...] sério problema quefaz parte da herança deixada pelo gonçalvismo [...] Juridicamente, trata-sedum esbulho, agravado, em muitos casos, com o congelamento de bens pes-soais, e que forçou muitos empresários e gestores a irem oferecer a naçõesestranhas as suas capacidades, tão necessárias ao País. Economicamente,trata-se dum sorvedouro em que o património colectivo [...] vai sendo hipo-tecado ou dissipado, através de empréstimos, financiamentos e avales quejá atingem quantias inconcebíveis [...] Socialmente, é um laboratório, emque muitos oportunistas têm feito as suas inconsequentes e irresponsáveisexperiências, à sombra do honesto nome dos trabalhadores, e sem o bene-fício destes. [...] está-se confundindo justiça e eficácia com demagogia ouacademismo ideológico.» (Circular 1/77 da Confederação da Indústria Por-tuguesa: O Ano de 1976 e a Iniciativa Privada, pp. 13 a 15, sublinhados

686 nossos.)

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e inconsistência que muitas péqttènaâ e médias empresas revelarama partir do 25 de Abril deve também relacionar-se com a perdados fáceis mercados coloniais e com o surto de actividades espe-culativas e aventureiristas na economia portuguesa, sobretudo apartir do final dos anos 60. Noutros casos, porém, em empresaseconomicamente viáveis, situadas em sectores mais prósperos,verificava-se por vezes o desinteresse patronal pelo desenvolvi-mento da empresa e pelo destino dos que nela laboravam. A desca-pitalização, o não investimento e a progressiva degradação doequipamento e das condições de trabalho constituíam, nesses casos,uma ameaça crescente ao futuro da empresa e do emprego.

Pode, evidentemente, discordar-se dos que, alegando apenasa gravidade destas situações, achassem já suficientemente legiti-mado o afastamento dos titulares e gerentes das empresas. Do quenão pode duvidar-se é da inevitabilidade dos conflitos e das«rupturas» nas circunstâncias indicadas quando, tal como acon-teceu em Portugal, os interesses efectivamente antagónicos ganhamfinalmente livre expressão e se desmorona uma velha estruturade desequilíbrio agudo dos poderes negociais. Finalmente, é ociosopretender-se que os trabalhadores terão tido motivos para cobiçarempresas endividadas, tecnicamente falidas ou disso muito próxi-mas— as quais constituem o grosso dos casos em que houveabandono ou afastamento de empresários.

Aliada ou não à má gestão, a absoluta falta de tacto tambémcolocou vários empresários em situações sem saída. Fossilizadosna sua própria arrogância, quiseram ver em cada reivindicaçãooperária um atentado aos mais sagrados direitos, uma ingerênciaintolerável em assuntos pessoais, um acto de pura ingratidão, tudomuito vizinho do deboche. Daí as reacções impulsivas, agressivas,a atitude de desafio assumida por muitos empresários, que serviupara atear o fogo a palha. A classe dirigente empresarial portu-guesa não estaria preparada para a travessia duma revoluçãono final dum longo período de comodidade policiada. Mas tambémnão foi propriamente essa a situação que se lhe deparou. Foi-lheposto, sim, o problema de não contribuir para transformar em revo-lução o reinicio da era da negociação e do compromisso. Problemaque muitos não souberam resolver, ou abordaram mal.

1.4 OS PROBLEMAS DO ARRANQUE

Por força da origem, as empresas industriais geridas pelostrabalhadores estão, na sua maioria, a braços com sérios pro-blemas de financiamento, comercialização, abastecimento, dimen-sionamento, instalações, equipamento, tecnologia, etc. (Quanto àscooperativas operárias de origem associativa, formadas por desem-pregados, o seu arranque também não costuma ser fácil, em virtudeda «natural» carência de capitais iniciais.) Muitas empresas seencontravam, à data da «transferência de gestão», com pesadosdéfices acumulados, que chegavam a ultrapassar o activo (háexemplos de empresas em que o passivo se cifrava, naquela data,no dobro e no triplo do activo). Às finanças das empresas foram,assim, o problema que as C. T. tiveram de encarar de imediato. 687

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Na maioria das empresas sob intervenção estatal, as «injecções»de meios de pagamento foram largamente utilizadas (nisso cons-titui essencialmente a intervenção, para além da nomeação denovas administrações), aliás com resultados muito magros ounegativos. Em geral, tal não aconteceu com as empresas geridaspelos trabalhadores, quase sempre abandonadas a si própriaspela banca e pelo Governo. Após fases iniciais de autogestão— estatuto muito precário, sem qualquer regulamentação —, cen-tenas de pequenas empresas se «transformaram» em cooperativasoperárias de produção, criando assim uma pessoa jurídica novae «independente» da antiga empresa. Por sistema, as novas admi-nistrações responsabilizaram-se pelo antigo passivo só até ao mon-tante do activo «herdado», colocando assim os credores externos(fornecedores e banca, principalmente) perante uma situação defacto consumado. Para mais, os colectivos de trabalhadoresincluíram-se quase sempre na lista dos credores n , o que, a serconfirmado, lhes daria prioridade sobre os credores externos emcaso de falência e liquidação do património. Os sucessivos governosprovisórios ou deixaram «correr o marfim», ou de algum mododeram o seu reconhecimento a estas situações12.

O arranque, sob a nova administração, processou-se no meiodas maiores e mais diversas dificuldades. Houve que persuadiros antigos fornecedores, quase sempre «queimados», a manteremo abastecimento. Os que a isso acederam passaram a exigir prontopagamento. Houve que arranjar novos fornecedores, quando osprimeiros se mostraram inconciliáveis ou desconfiantes. Por vezes,as matérias-primas procuradas faltavam no mercado, por motivosrelacionados com a crise. Houve que lutar pela conservação dosfclientes ou pela aquisição de novas encomendas. Perante a descon-fiança frequente dos bancos, houve que fazer esforços sobre--humanos para se amealhar um fundo de maneio — algumas cen-tenas de contos «tirados do estômago» —, destinado à compra demateriais. Foram muitas vezes necessárias as reconversões deactividade; umas temporárias, para obviar a certos aspectos crí-ticos da conjuntura, outras mais definitivas, onde a crise foi maisprofunda ou não datava só de 1974. Em alguns casos, os trabalha-dores tiveram ainda de enfrentar acções de boicote, ameaçasfísicas, actos de sabotagem, etc. Neste capítulo, o pendor parao exagero «pictórico» é particularmente assinalável nas versõesque as C. T. de empresas em autogestão ou as direcções de coopera-tivas operárias apresentam sobre os acontecimentos. Mas houverealmente acções daquele tipo contra diversas empresas no País,desde o cancelamento de encomendas e o não fornecimento demateriais até ao fogo posto, passando por campanhas de descré-

11 Em virtude de salários atrasados, retroactivos, horas extraordináriasnão pagas, indemnizações por despedimento sem justa causa, etc.

12 Para além do reconhecimento oficial das cooperativas operárias e dascredenciais passadas às empresas autogeridas (ambas as situações compouco ou nenhum fundamento legal), as empresas geridas pelos trabalha-dores obtiveram do Governo legislação que as punha a coberto de acçõesjudiciais, por parte da antiga administração e antigos credores, até à defi-

688 nitiva solução do estatuto dessas empresas.

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dito e calúnia. Num ou noutro caso, os factos suplantaram mesmoo poder de fantasia dos trabalhadores.

Em parte justamente por causa dessas acções de boicote, foiimportante e por vezes decisivo para o arranque o auxílio prestadoàs empresas geridas pelos trabalhadores por parte das C. T. deempresas públicas e privadas, alguns sindicatos e outros orga-nismos, como a Federação das Cooperativas de Produção, etc.Esse apoio inicial permitiu, nomeadamente, a aquisição de novasencomendas 13 ou a manutenção de antigos clientes. Os sindicatosprestaram sobretudo auxílio de carácter consultivo, enviando àsempresas que o desejassem contabilistas, juristas e técnicos.Importa salientar aqui o papel desempenhado pela Federação dasCooperativas de Produção (F. C. P.), organismo formado a partirde meia dúzia de cooperativas operárias já existentes antes de1974 14. A F. C. P. seguiu de muito perto, fomentou e procurouorientar e enquadrar a criação de cooperativas operarias após o25 de Abril. Afirmei atrás que a criação de cooperativas de pro-dução a partir de empresas aparentemente não tinha sido progra-mada por ninguém. Ora a F. C. P. «programou» efectivamentequalquer coisa. Em seu comunicado de 1 de Junho de 1974, larga-mente difundido, a F. C. P. procurava já contactar «todos aquelesque estejam interessados em dar início a cooperativas de produçãoou em transformar empresas existentes em cooperativas de pro-dução». A partir do Verão de 1974, a F. C. P. manteve-se em con-tacto com o Ministério do Trabalho, o qual passaria a enviar-lheas delegações e comissões de trabalhadores de pequenas empresasjá em autogestão, encerradas ou sob a ameaça de falência eencerramento. Esses trabalhadores eram então aconselhados pelaF. C. P. a formarem cooperativas e elucidados sobre o modo deelaboração dos estatutos, princípios cooperativos e outras questões.Mas há bons indícios de que a F. C. P. se não limitou a uma acçãoorientadora a posteriori e também incluiu na sua actividade ofomento da criação de cooperativas a partir de empresas 15.

De toda a maneira, esses factos não chegam para que se possaatribuir à F. C. P. o papel de «motor» no surto de ocupações erupturas, longe disso. Por outro lado, a F. C. P. tem o mérito de,dispondo de meios muito reduzidos, ter esboçado um sistema deapoio e coordenação das cooperativas de produção e empresas

13 Por exemplo, duas cooperativas operárias do ramo do vestuário, cria-das sobre empresas já existentes, viram assegurada a utilização da sua capa-cidade de laboração, em 1975-76, graças a grandes encomendas de vestuáriode trabalho para lá canalizadas pela C. T. de uma empresa gigante da áreade Lisboa.

14 Segundo um dos primeiros comunicados emitidos pela F. C. P. (1 deJunho de 1974), integraram o seu primeiro executivo permanente quadrosdestacados das Cooperativas Praxis (estúdios técnicos), Compelmada (mon-tagens metálicas), Elcoope (construções eléctricas) e Socopime (indústriasmetálicas) — todas elas da área de Lisboa e já existentes antes de 25 deAbril de 1974.

15 Basta consultar as notas e comunicados emitidos pela F. C. P. em1974-75. Nessa altura, o objectivo declarado da Federação era a criação domaior número possível de cooperativas de produção, quer a partir de empre-sas quer de desempregados. 689

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êm autogestão quê, a ser preenchido e desenvolvido no futuropela acção e iniciativa das empresas industriais geridas pelostrabalhadores, poderá constituir importante factor de viabilizaçãodessas empresas. Voltarei ainda a este assunto.

O período de arranque das empresas sob a nova administraçãoimplicou, da parte dos trabalhadores, esforços e sacrifícios excep-cionais. Os horários mínimos de trabalho, entre 8 e 9 horasdiárias, passaram a ser considerados como meras «referências»,isto é, apenas se não obrigava ninguém a trabalhar para alémdesse horário exigido. Em muitos locais suspendeu-se o descansoao sábado e até aos domingos e feriados. Houve empresas em que,durante meses sucessivos, a maioria trabalhou 12 e mais horasdiárias, de 5 a 7 dias por semana, sem qualquer compensação por«horas extraordinárias». Tratava-se não só de tentar superar osproblemas herdados e de conjuntura, como também de assegurara todo o custo as «conquistas», ou seja, as melhorias salariais eoutras, introduzidas após o abandono ou afastamento da anterioradministração. Os elementos mais activos, por regra motivadospoliticamente, tinham bem a consciência da importância da manu-tenção dessas «conquistas» para a mobilização do esforço e con-fiança dos outros trabalhadores, menos (ou nada) motivadospoliticamente.

Mas em muitas empresas rapidamente se concluiu que nãoera possível concederem-se todas as regalias desejadas — as quaistinham sido objecto de luta e reivindicação «no tempo do patrão»,tendo algumas até originado «rupturas». Umas regalias tiverampois de ser provisoriamente suspensas (caso frequente do mèsde lerias e aos subsídios de íénas e Natal), enquanto outras«conquistas» (como o aumento salarial) eram compensadas peioalongamento nao remunerado do horário de traoaiho. Com odesaparecimento do patrão ou da antiga gerência, dá-se assim amudança um tanto brusca da atitude meramente reivindicativado núcieo dos mais activos para uma atitude pressupondo eexigindo a responsabilização e os sacrifícios de cada um em nomedo interesse colectivo.

Herdeiros, por esta via, do interesse patronal pelo bom funcio-namento da empresa, os líderes (agora já não só dos trabalhadores,mas também da empresa) nem sempre conseguiram evitar aquiloa que chamam «mai-entendidos» decorrentes dessa nova situação.Para mais, entre os líderes avultam sempre trabalhadores que jádetinham posições cimeiras na anterior hierarquia do trabalho,alguns mesmo situados logo após o ex-gerente. A acusação clarada existência de «novos patrões» chegou assim a manifestar-senos locais de trabalho, quer em conversas privadas, quer, porexemplo, em inscrições anónimas nas paredes. Mas essas posiçõesparecem sempre francamente minoritárias. Muito mais vulgar ecaracterístico —são os próprios dirigentes a confessá-lo— é ocomportamento «assalariado» duma boa parte ou da maioria dostrabalhadores, que, por comodidade e limitações de vária ordem,continuaram a desejar um patrão. Do ponto de vista deste compor-

i a tamento «assalariado» é indiferente que o patrão seja ou não o

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proprietário, aquele que embolsa os lucros16. Um patrão, naquelesentido, é alguém que resolve todos os problemas e «arranja amassa» pontualmente, sem se poder desculpar nem ter de darexplicações. Alguém que permita aos trabalhadores viverem maxi-mamente a sua vida privada e não terem de se preocupar commais nada no local de trabalho senão a execução da sua tarefaindividual. Alguém que impõe disciplina e resolve os diferendosquotidianos numa base mínima de incontestabilidade, por vezes«contornando» até as atribuições dos órgãos de decisão eleitos.Alguém que se possa responsabilizar quando há problemas ecarências, mas em quem também se possa depositar inteira con-fiança, por comodidade. (Por aqui se adivinham já certas dificul-dades em utilizar a designação de «empresa gerida pelos traba-lhadores», que, em face das realidades, se revela demasiadosimplista. Adiante abordarei em maior detalhe os problemas dagestão nestas empresas.)

Em muitas empresas, apesar de geralmente se terem elevadoos antigos salários (e de se terem operado reduções por vezesdrásticas do leque salarial), não se conseguiu até à data elevaros salários operários até ao nível que os contratos colectivos fixampara as diversas profissões ou ramos de actividade nas empresasprivadas, públicas ou nacionalizadas. Nas cooperativas de pro-dução não vigoram contratos, porque não há partes contratantes —afirmam os seus dirigentes. Mas estes sentem perfeitamente o«peso» que têm sobre a atitude geral dos trabalhadores as tabelassalariais praticadas fora de portas. Por isso mesmo receiam queoutras motivações não sejam suficientes para impedir a deban-dada dos trabalhadores mais competentes se se verificar a curtotermo uma descompressão no mercado do trabalho, antes que ascooperativas de produção e as empresas em autogestão consigamsuperar as condições em que arrancaram. Não que o espíritocooperativo não «cole» naqueles trabalhadores: a subsistênciadas suas famílias é que se impõe ao resto. Porém, como a grandepressão do desemprego não baixará certamente num futuro pró-ximo, é pouco provável o colapso em série de cooperativas deprodução por esta razão.

Menos numerosos são os casos de empresas geridas pelostrabalhadores onde, sem qualquer apoio financeiro externo, sefizeram já alguns investimentos, enquanto os salários aí rondamou estão um pouco aquém dos geralmente praticados. Finalmente,apenas num número restrito de casos se verificou já considerável

16 Numa das cooperativas directamente contactadas no quadro desteestudo, o presidente da direcção levou a cabo um inquérito interno a todosos trabalhadores, escrito e confidencial. A uma das perguntas — acha quefaz falta um patrão? —, todos os trabalhadores responderam não (à excep-ção de um «sim, para haver mais disciplina e respeito»). Ora, nessa coope-rativa, a exigência de participação na gestão era aparentemente mínima,muito raro se convocavam assembleias, a direcção era composta integral-mente pelos quadros técnicos e chefes do pessoal da antiga empresa, a con-fiança e a delegação de responsabilidade nos dirigentes era geral e absoluta(como o próprio inquérito revelou), muito particularmente em relação aopresidente da direcção. Possivelmente, a pergunta terá sugerido aos inter-rogados a hipótese do regresso dos antigos gerentes. 691

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investimento autof mandado simultâneo dum nível salarial superiorao fixado, no exterior, pelos contratos colectivos. De ambas asmaneiras foi necessário um acréscimo substancial da produção, oque foi conseguido graças em primeiríssimo lugar a um grandeaumento do volume de trabalho e ao bom entendimento entre ostrabalhadores.

Só em casos muito raros e excepcionais se poderá verificar talesforço e colaboração sob as ordens dum patrão, disto não meresta a menor dúvida.

No mínimo, o que em dois anos se conseguiu foi a manutençãoda produção e de, pelo menos, uma parte dos postos de trabalho.No máximo, conseguiu-se a ressurreição e expansão da empresa,o aumento dos postos de trabalho e da produtividade, a elevaçãodos salários a nível mais satisfatório, melhores condições detrabalho e mais regalias, tudo isto de par com o início da demo-cratização da gestão.

1.5 DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA E SECTORIAL

Na impossibilidade de apresentar dados completos que permi-tissem nomeadamente uma apreciação segura da situação econó-mica dos vários tipos de empresas geridas pelos trabalhadores,avanço aqui só os que me pareceram mais actualizados entreos que consegui reunir e que se referem apenas à distribuiçãogeográfica e sectorial das cooperativas operárias de produção17.No quadro n.° 1 estão ordenadas por distrito e ramo de actividadetodas as cooperativas operárias de produção existentes em Portugalem fins de 1976, independentemente do seu modo de formação(com base em empresas já existentes ou na associação de traba-lhadores ou desempregados). Constata-se facilmente a concen-tração das cooperativas operárias nos três distritos mais indus-trializados (Lisboa, Porto e Setúbal, somando 431 das 658cooperativas), assim como a predominância do sector da indústriatransformadora (453 cooperativas). Ê relativamente elevado onúmero de cooperativas de produção na construção civil (110),sobretudo se atendermos a que a sua formação se deve em boaparte à iniciativa de desempregados, contrariamente às coopera-tivas da indústria transformadora, que assentaram principalmenteem empresas já existentes. As 54 cooperativas de pescadoresilustram um surto particularmente feliz do associativismo coopera-tivo pós-25 de Abril. A pesca artesanal é, com efeito, uma daquelasactividades em que a exploração dos trabalhadores nunca foi umafigura de retórica e em que, simultaneamente, as condições sãodas mais propícias à forma cooperativa.

17 Pelo que me foi permitido constatar, ninguém actualmente possui osdados desejáveis, o que não deixa de ser sintomático. Para além do carácteraproximativo dos dados disponíveis, relativos à distribuição geográfica esectorial, não existem quaisquer dados, nem mesmo estimativos, que per-mitam apreciar a evolução do número de postos de trabalho, facturação,salários e eventual investimento das empresas em questão, pelo menos no

692 último ano.

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Cooperativas operárias de produção por distrito e ramo de actividade

[QUADRO N.° 1]

Distrito Total Indústriaextractiva

Indústriatransformadora

Auto-reparação

Constru-ção civil

Pesca

LisboaPortoSetúbalSantarémLeiriaFaroFunchalBejaBragaÉvoraAveiroCoimbraViseuViana do CasteloPortalegreBragançaCastelo BrancoGuardaAngra do HeroísmoHortaPonta DelgadaVila Real

Total

26594723736231817151514147655443211

2168748168491111414102

3421

122331

121

28414187151136

~2332

717

2048

1

~2

658 453 34 110 54

Fonte: Comissão de Apoio às Cooperativas, Dezembro de 1976.

No quadro n.° 2 desdobrei as cooperativas do sector da indústriatransformadora, as mais numerosas, pelos seus principais ramos.De destacar as indústrias do têxtil, vestuário e couro (97 coopera-tivas), metalomecânica ligeira (87) e artes gráficas e papel (84).Outros ramos com um considerável número de cooperativas ope-rárias são a indústria alimentar, a indústria da madeira, cortiçae mobiliário, a auto-reparação e o artesanato.

Quanto às empresas em autogestão, apenas algumas obser-vações podem ser feitas com um mínimo de segurança. Existempelo menos 100 empresas autogeridas na indústria18, % das quaislocalizadas nos distritos do Porto e Lisboa. Os ramos industriaiscom maior número de empresas autogeridas são as indústriastêxtil, do vestuário, do calçado e couro (Porto e Braga), metalo-mecânica ligeira (Porto e Lisboa) e artes gráficas (Lisboa ePorto). Seguem-se as indústrias da madeira, cortiça e mobiliário ea indústria alimentar.

A distribuição por ramos industriais é pois idêntica para ascooperativas e para as empresas autogeridas. Trata-se com a

18 Além da indústria (transformadora), existem empresas em autogestãona hotelaria e turismo, transportes, importação-exportação, serviços dereparação, comércio, edição, publicidade, processamento de dados, etc. 693

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Cooperativas operárias da indústria transformadora (incluindo auto-reparação) por distrito e ramo industrial

[QUADRO N.o 2]

Distrito

AveiroBeiaBragaBragançaCastelo Branco ... ...CoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarémSetúbalViana do CasteloVila RealViseuAngra do Heroísmo ...FunchalHortaPonta Delgada

Total

Indústriaalimentar

2

13

1

1152116

1

1 1

1 1

34

Têxtil,calçado,

vestuário,curtumes

766

~2211

134

202

12

~3

97

Madeiras,cortiça,

mobiliáro

~11•1 1 1 1-

23

855

1 1

1 1

44

Artesgráficas,artigos

de papel

1

11

1

347

24*

4

11

84

Borracha,indústriasquímicas

1

11

13

1

1

10

Porcelana,vidro,

cerâmica

2

~2

15

11

12

Produtosmetálicos,máquinas,materialeléctrico

3

~22

46

146

13

1

87

Reparaçãode veículos

a motor

51 .2

1

11

12

~2331

2

34

Artesanato

11

11

11

-

117141

~5

23

Outras

11

II

I —

1

36

1416

62

Total

14161254

114439

2283

891951

1

419

487

Fonte: Comissão de Apoio às Cooperativas, Dezembro de 1976.

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maior frequência de ramos industriais onde abundam as pequenasempresas ditas vulgarmente «de carácter artesanal» (por vezes elassão simplesmente obsoletas, mal apetrechadas ou mal dimensiona-das, o que não me parece que sejam os critérios do artesanato). Nes-sas actividades é comparativamente baixo ou muito baixo o índicemédio facturação/empregado/ano. Baixa produtividade, baixossalários, pouca viabilidade são características de grande númerode empresas portuguesas situadas nesses ramos. Deste modo, asactuais empresas geridas pelos trabalhadores parecem ser o pro-duto duma «selecção natural» que tem muito a ver com a fragilidadeestrutural ou o colapso sofrido especialmente pelas empresasdesses ramos durante a conjuntura crítica de 1974-75 e que poderáter pouco a ver com as condições económicas, técnicas e sociopro-fissionais que geralmente se reconhecem como mais propícias àforma cooperativa (ou «autogestionária»). Esta discrepância virátalvez a reflectir-se negativamente no futuro dalgumas daquelasempresas, tanto nos aspectos de viabilidade económica e funciona-lidade do sistema de gestão, como do ponto de vista da necessáriaadequação do sistema de organização e divisão do trabalho. Não énada evidente, por exemplo, que os princípios cooperativos ouautogestionários possam aplicar-se sem problemas a empresas comuma larga proporção de trabalhadores não qualificados, como éo caso da maioria das empresas do sector têxtil19.

2. VIABILIDADE ECONÓMICA E SOCIAL DAS EMPRESASGERIDAS PELOS TRABALHADORES

2.1 O grande surto de cooperativas de produção verificadonos últimos três anos em Portugal veio também reavivar a velhís-sima discussão sobre a viabilidade das cooperativas e o seu papelna sociedade e na economia em que se integram. Resumidamente,pode dizer-se que as posições em confronto se localizam respectiva-mente no campo reformista e revolucionário. Mas, enquanto aconcepção reformista, a meu ver, se encontra desde sempre intima-mente ligada à essência e à história real do cooperativismo, aconcepção revolucionária da evolução social teve sempre tendênciaa «recuperar» as cooperativas para fins teóricos e práticos estra-nhos a estas últimas. Essa tentativa de recuperação teve provavel-mente a sua origem em Marx e no «socialismo científico», sendojustamente a questão das cooperativas um dos pontos de rupturaem relação ao socialismo reformista. Se, por um lado, Marx seobrigava a reconhecer que «as cooperativas operárias representamno antigo sistema a primeira brecha», isto é, a primeira superação

19 Neste sector, como, por exemplo, na indústria alimentar, um obstá-culo suplementar provém do facto de o trabalho não qualificado ser exe-cutado predominantemente por mulheres, enquanto as funções de chefia etécnicas estão a cargo de homens. Ainda no têxtil, levanta-se o problemada crescente exigência de concentração e dos elevados custos fixos destesector na actualidade, o que também parece contrário à pequena dimensãoe ao carácter «trabalho intensivo» das actividades tidas como mais propí-cias à forma cooperativa. 695

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do antagonismo capital/trabalho, também enunciava, por outrolado, uma condição fundamental para que a produção cooperativanão fosse um «logro» e uma «armadilha»: a generalização daprodução cooperativa, de modo a regular a produção nacionalsegundo um plano comum 20.

Constatar-se-á o viciamento do raciocínio pela expressão militarabrir brechas (nas hostes inimigas). Primeiramente, porque ascooperativas não significam guerra aberta nem guerrilha contrao sistema capitalista, visto ser no próprio corpo do «antigo sistema»que se enraízam, e são toleradas, essas mesmas cooperativas.Seguidamente, porque, mais do que «abrir brechas» (em sentidomuito figurado), as cooperativas e outras formas de gestão demo-crática constróem novos modelos de organização social e econó-mica. A concepção revolucionária apenas fixa no fenómeno coope-rativo o elemento de «negação» do capitalismo. Enfim, e talvezseja este o erro mais grave da concepção revolucionária, o eventualsucesso de uma ou algumas cooperativas não prova que a fórmulacooperativa possa ou tenha de aplicar-se a toda a economia e atoda a sociedade. A ideologia revolucionária é que sempre desejouver nas cooperativas a chegada da «grande transformação dasestruturas económicas e sociais», e não aquilo que elas realmentesempre foram: poderoso meio de defesa de certas camadas emeconomia de mercado, fórmula organizativa viável (ou necessária)apenas em determinados domínios (subsistemas) da vida social.A ideologia revolucionária «denuncia» pois as cooperativas quandose apercebe de que elas se «desviaram» da luta ao sistema capi-talista e condena-as por esse facto à inviabilidade 21.

Ê aliás curioso constatar que, tendo Marx olhado sempre coma maior das desconfianças o apoio do Estado às cooperativas(veja-se a crítica que faz a esse ponto do Programa de Gota), osmarxistas não se cansam de apregoar a necessidade do apoio doEstado às cooperativas, sem o que põem mesmo em dúvida asubsistência destas.

A estes problemas se liga directamente uma atitude que cons-tatei entre dirigentes de cooperativas operárias e empresas emautogestão, embora ela não deva considerar-se característica (há,pelo menos, vários e bons exemplos duma atitude oposta). Algunsdaqueles dirigentes (e trabalhadores) mostraram-se preocupadoscom o facto de não verem no «oceano capitalista» grandes possi-bilidades de sobrevivência e desenvolvimento para aquilo queconsideram as suas «ilhas do socialismo». Manifestaram, por outrolado, o desejo, quase exigência, de serem apoiados pelo Estado.Pretendem assim, não só facilidades na obtenção de empréstimos

20 Detalhadamente sobre este assunto: A Autogestão, de Y. Bourdet eA. Guillerm, Lisboa, Dom Quixote, 1976, cap. «A cooperativa», pp. 33 e segs.

21 «Ou o movimento cooperativo é enquadrado num projecto vasto e sesubordina aos objectivos intermédios e últimos desse projecto, encontrandonele, do mesmo passo, os apoios de que necessita para subsistir e se desen-volver, ou, de outra forma, verá o seu papel limitado, na melhor das hipó-teses, a zonas onde a sua intervenção resulte inócua face ao essencial dosinteresses da burguesia.» (Ivo Pinho, «As cooperativas em questão», in Eco-

696 nomia e Socialismo, n.° 11.)

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destinados à compra cie materiais ou a investimentos, como tambémtratamento preferencial e apoio directo no sentido de lhes seremasseguradas a priori a plena utilização da capacidade de laboração,as matérias-primas de que necessitam (e muitas vezes escasseiamno mercado), o escoamento dos produtos, etc. Compreender-se-á,em parte, esta atitude de quem não se sente culpado ou responsávelpela autogestão a que foram muitas vezes obrigados. Mas tambémé certo, e curioso, que essa atitude corresponde tendencialmentea um comportamento defensivo, demasiado prudente, avesso àsiniciativas arriscadas — no campo comercial. Explicar-se-á igual-mente este facto alegando que, em muitas empresas, a gestão dosaspectos comerciais estava a cargo dos empresários ou quadrosque as viriam a abandonar, vindo depois aquela função a serassumida por técnicos da produção, no melhor dos casos comalguma «sensibilidade» comercial. Seja como for, o que é facto éque muitas cooperativas se encontram hoje em sectores de grandeconcorrência e frequentemente em posição desfavorável no campoda produtividade. Se querem sobreviver e desenvolver-se nessessectores, poderão fazê-lo, como o demonstraram já algumasempresas dirigidas pelos trabalhadores. E, nesse caso, as iniciativasarriscadas (as reconversões da empresa ou actividade, o lança-mento de novos produtos, a utilização de novos recursos, etc.)são indispensáveis, até porque iniciativas sem risco não existem.Confundir os riscos e as dificuldades de tais iniciativas com asondas do «oceano capitalista» não é lícito nem proveitoso 22.

Quando muito, e nos casos em que existe uma margem deescolha, poderão algumas empresas cooperativas e autogeridasoptar por um ramo de produção ou uma especialização em quea exigência de competitividade não seja algo com que dirigentese trabalhadores devam preocupar-se diariamente. Em nenhum casopodem as iniciativas arriscadas e os requisitos de competitividadeser menosprezados ou olhados como vícios capitalistas. Ê tambémpossível minorar algumas consequências da concorrência, combatera incerteza do mercado e preços, evitar certos circuitos de comer-cialização desvantajosos, assim como suplantar problemas ligadosà pequena dimensão, tudo isto, por exemplo, pelo agrupamentoem cooperativas do 2.° grau. Mas, uma vez mais, não deverão ascooperativas de produção esperar que as associações de 2.° grausejam criadas e animadas pelos outros, ou pelo Estado, nem ansiarque elas lhes venham depois resolver os problemas.

As empresas geridas pelos trabalhadores, embora partindoquase sempre de situações muito difíceis, possuem trunfos ime-diatos que podem desde já utilizar (e a maioria está a utilizar)na sua viabilização económica. Um deles, talvez o mais importante,é o maior volume de trabalho e a sua melhor qualidade, queresulta do esforço voluntário dos trabalhadores, permitindo prazos

22 É interessante verificar também como a ideologia anti-reformista erevolucionária assenta bem no comportamento apático e anticomercial dealguns dirigentes de cooperativas. 697

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de entrega mais curtos, trabalho mais consciencioso e melhoria doproduto. Têm-se também aproveitado bem os contactos com C. T.de outras empresas. Para já não referir o facto de o nível salarialnas empresas geridas pelos trabalhadores se poder acomodar(e subordinar) às possibilidades económicas — contrariamente àsempresas que têm de se subordinar aos contratos colectivos, inde-pendentemente da sua situação. Dada a actual (e futura) confi-guração do mercado do trabalho, isso equivale a um cómodo prazode viabilização.

Em resumo, as cooperativas encontram-se perante a possibili-dade — e, se quisermos, a tarefa histórica — de demonstrar quenão é necessário abolir o mercado e a concorrência, nem asfixiara iniciativa privada, nem acorrentar a actividade económica àplanificação estatal, nem amputar a verdade dos preços, etc, parafazer subsistir e desenvolver novas relações de trabalho e deprodução. Centenas de cooperativas podem agora provar a suasuperioridade organizativa sobre as pequenas e médias empresasprivadas; poderão suplantá-las em muitos aspectos, mas para issoterão de enfrentá-las como concorrentes e fazer melhor do que elas.É o exemplo vivo, ou modelo, que souberem criar na prática queagirá no sentido da expansão da produção cooperativa, e nãoos factores ideológicos. Tudo está na orientação por que optaremas cooperativas: brechas que se vão abrindo no território inimigocom vista à sua conquista, ou modelos que se vão construindo novelho terreno e que actuarão sobre ele.

Em relação ao apoio do Estado às cooperativas de produção,duas questões se levantam de imediato: qual a utilidade económicae socml das cooperativas e qual o tipo de apoio estatal que sejustifica atendendo àquela utilidade? A utilidade específica dasempresas geridas pelos trabalhadores vai desde a importância doexemplo (exemplo de responsabilização colectiva, melhores relaçõessociais, melhores condições de trabalho, melhoria da produtividadee qualidade, etc.) até ao aspecto de garantia e criação de postosde trabalho. Abstraí intencionalmente da natureza política doEstado, por me parecer evidente que a utilidade, atrás exposta,das cooperativas será facilmente reconhecível pelo poder dentroduma vasta faixa de tendências e programas políticos, quer amotivação principal do poder seja a introdução de elementos saudá-veis de concorrência, quer o desenvolvimento de formas democrá-ticas e socialmente avançadas. A utilidade económica e social̂ dascooperativas terá tanto mais peso e evidência quanto mais viáveiselas forem social e economicamente. O apoio do Estado ganhará,pois, justificação nessa exacta medida, mas perderá eficácia — edeturpará toda a «experiência» de gestão pelos trabalhadores —se degenerar em «muleta», tutela ou comando, em lugar de perma-necer simples encorajamento de iniciativas viáveis, responsáveise úteis. Nada mais ilusório e errado do que pretender lançar, pelamão do Estado, a semente da chamada autogestão, ou criar, numministério qualquer, uma espécie de estado-maior de empresas«autogeridas» com grandes poderes de intervenção (homologaçãoprévia de estatutos e alteração de estatutos, interferência em

698 certos casos na gestão das empresas, etc.)2S. Há que escolher,

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entre duas possíveis, a atitude adequada do Governo e do Estadoperante a autogestão e as cooperativas. Uma é reconhecê-las,acompanhá-las, encorajá-las quando as julgar viáveis e testadas.Outra é fomentá-las, chocando-as como a galinha o ovo, pondo-asà trela dum Instituto Nacional, apaparicando-as com os maisdiversos regimes preferenciais, dando-lhes uma mesada.

Uma questão concreta que se pode pôr actualmente é, porexemplo, a seguinte: se há que promover, melhor do que até aqui,o associativismo cooperativo clássico através de uma política deisenções fiscais e regimes preferenciais, não haverá porém queconsiderar à parte as cooperativas constituídas a partir de empresasjá existentes, que já pagavam impostos e que podem (e devem)continuar a pagá-los? Quando muito, um organismo estatal (comoo Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais)podia estudar e propor prazos para reconversão ou viabilizaçãodas empresas mal estruturadas e pouco rendíveis —assim «her-dadas» pelos trabalhadores—, durante os quais se acordassemisenções fiscais e outras facilidades (créditos, apoio técnico, apoiocomercial, etc). Evidentemente, não é colocando por via admi-nistrativa as cooperativas em situação privilegiada que se demons-trarão os seus benefícios e a sua superioridade.

2.2 Já atrás referi a dificuldade em utilizar a expressão«empresas geridas pelos trabalhadores», que se revela demasiadosimplista. Seria mais correcto falar de empresas geridas por(alguns) trabalhadores, porque em todos os exemplos que seconhecem houve uma equipa de trabalhadores que se destacounitidamente, constituída em maioria pelos mais competentes, quali-ficados e experientes, que provêm das bandas superiores dahierarquia nas empresas anteriores. Seria talvez excessivo falarde gestão tecnocrática com forte apoio operário, mas não andamlonge disso as «empresas geridas pelos trabalhadores» — indepen-dentemente dos esquemas de rotatividade na direcção eventual-mente postos em prática e do funcionamento de mecanismosdemocráticos de escolha e controlo dos dirigentes. A experiênciade outros países (Jugoslávia, por exemplo) sugere-nos até queesses esquemas de rotatividade e escolha democrática podem tersignificado apenas num período de tempo bem delimitado. Diz-nosAlbert Meister sobre a autogestão nas empresas jugoslavas: «Umavez que a empresa autogerida atingiu um certo desenvolvimento,que os indivíduos mais aptos já foram escolhidos e que eles substi-tuirão os anteriores nos postos de responsabilidade, nesse precisomomento a empresa deixará de necessitar da participação detodos os seus membros.» Para a maioria dos elementos eleitospara a direcção, o mandato que lhes foi conferido constitui maisuma espécie de formação do que uma efectiva participação nagestão do organismo. Assim, «a autogestão desempenhou o papelde maquinismo seleccionador dos mais capazes». A partir daí,

23 À data em que escrevo, esta ideia não parece ainda totalmente afas-tada por entidades governamentais. 699

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«â participação apètiaâ se justifica pó? razoes ideológicas oumorais [...] isto é, por razões de muito pouco peso» 2\ Em algumasempresas portuguesas actualmente geridas pelos trabalhadorespoder-se-á constatar um papel ou motivo suplementar da promoçãode formas de rotatividade e participação: em situações iniciaisextremamente difíceis, os dirigentes escolhidos viram o perigode a responsabilidade cair exclusivamente sobre eles (ver, no«Anexo», o caso da cooperativa N). Sentiram pois a imperiosanecessidade de promover uma responsabilização alargada, se nãocolectiva, a que se opunha, por seu turno, a resistência da maioriados trabalhadores à responsabilização. Durará tanto como asdificuldades a promoção, pelos dirigentes, da responsabilizaçãoalargada?

Também no campo da organização do trabalho se constatam«novidades» nestas empresas. A divisão autoritária do trabalho,a distribuição de tarefas rigorosamente segundo a qualificaçãoprofissional, as «fronteiras» rígidas entre secções e profissões, etc,cederam, em maior ou menor grau, o lugar a um esquema decolaboração, entreajuda, mobilização colectiva, transmissão dosaber e das capacidades. Mas estas inovações aparecem tambémligadas às características do regime (provisório) de trabalho dechoque, com que foi possível arrancar, vencer as dificuldadesiniciais. Além disso, a aquisição de novas capacidades continuoumuito dificultada para a maioria dos trabalhadores. Neste capítulo,as boas vontades mais uma vez provaram não bastar. A «faltade tempo», real ou pretextual, a própria resistência ou desinteressedos trabalhadores, etc, continuam a ter muito peso. Trata-se, deresto, dum campo em que a falta de tempo e até de meios dasempresas deveria ser compensada, até certo ponto, pelo auxíliodo Estado (pequenos estágios ou cursos de formação profissional,financiados pelo Estado).

Duma maneira geral, pode dizer-se que as gerências compostaspor trabalhadores, quando sucederam a anteriores empresários,vêm desempenhando, pelo menos tão bem como estes, o seu papel.O facto de as novas gerências terem de se submeter, nas grandesquestões —pelo menos em teoria—, à vontade da maioria nãoparece até agora ter afectado a funcionalidade dessas empresas.Também não se detectou ainda de modo evidente o fenómeno doigualitarismo, que poderia, a médio termo, repelir das cooperativasde produção os seus melhores técnicos e quadros. Tudo isto con-tribui para encarar com um certo optimismo o futuro da maioriadas empresas geridas por trabalhadores.

Maio de 1977.

24 A. Meister, «Recuos da autogestão», in A Jugoslávia de Tito, «Cader-700 nos Dom Quixote», n.° 46.

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Anexo

INTRODUÇÃO

Os quatro casos adiante descritos podem provavelmente ilus-trar a génese de muitas empresas industriais geridas pelos traba-lhadores, assim como uma boa parte dos seus actuais problemas,sem que, no entanto, se pretenda aqui avançar o conjunto comouma amostra representativa. Não o é, por exemplo, no respeitanteà actual situação económica da generalidade daquelas empresas:das quatro aqui apresentadas, duas estão em franca expansão,uma em ligeira mas segura progressão e uma outra com algumasdificuldades, embora funcionando normalmente. Estas proporçõesnão correspondem muito possivelmente às da realidade, ondehaverá uma proporção bastante menor de empresas em francaexpansão e bastante maior de empresas com dificuldades. Tambémnão é uma amostra representativa geográfica e sectorialmente,porque se localiza na área de Lisboa e não abrange empresasde sectores como o têxtil. Das quatro empresas descritas, apenasnuma delas terá tido papel importante, mas não decisivo, a politi-zação prévia ou o «revolucionarismo» (de um núcleo) dos trabalha-dores no desencadeamento dos acontecimentos. A má gestão, ainsolvabilidade ou a superexploração (por que são responsabili-záveis directa e exclusivamente os ex-gerentes) é que se podemincluir, individual ou conjuntamente, nas causas decisivas destesquatro processos. Porém, na realidade, terá havido uma maiorproporção de casos de mais evidente «revolucionarismo» e emque os gerentes afastados das empresas não podem ser objectodaquelas incriminações.

Cooperativa operária de produção N (Lisboa)

Ex-F.M. (empresa em nome individual).Ramo: metalomecânica ligeira.Número de postos de trabalho: Abril de 1974 = 126; Janeiro

de 1977 = í 03.Facturação anual de 1976: 12 000 contos (superior à média de

1973-74).

1- A firma F. M. existia há perto de 40 anos. O fundador come-çara com meia dúzia de operários numa pequena serralharia, tendoao longo dos anos aumentado progressivamente o pessoal e asinstalações. A actividade da empresa incluía o fabrico de produtosmetálicos e máquinas e a instalação de iluminação pública, tra-balhando exclusivamente por encomenda (isto é, sem fabricopróprio). Tendo envelhecido o fundador, o seu filho assumiu agerência da empresa. À data da morte do fundador, em Agostode 1974, já o herdeiro (adiante: gerente) colocara a empresa 701

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em sérias dificuldades financeiras, com a acumulação de umpesado débito à banca, sem que os trabalhadores estivessem aopar dessa situação. Contudo, a partir do Verão de 1974, o gerentecomeçou a dar parte aos trabalhadores das dificuldades crescentesem conseguir dinheiro para lhes pagar (nomeadamente para pagaro subsídio de Natal de 1974). Em Novembro desse ano, os trabalha-dores tomaram conhecimento duma carta do gerente em que estepedia um auxílio de 4000 contos ao Estado «para acudir à másituação da empresa». Elegeram então, em plenário, uma comissãode trabalhadores e apresentaram ao gerente uma «proposta decooperação» que compreendia a fiscalização pela C. T. da aplicaçãodo referido empréstimo estatal, caso fosse concedido. A razãoprincipal de tal exigência dos trabalhadores era a crescente descon-fiança no gerente, que ameaçava com a falência se o empréstimonão viesse a ser concedido.

Naquela proposta, os trabalhadores reivindicavam ainda quefosse afastado da empresa um indivíduo tido como o «homemde mão» do gerente e que, embora não fizesse parte dos quadrosdo pessoal, «dava ordens a toda a gente e não tinha qualquerrespeito pelos trabalhadores». O gerente, após se ter mostradoreceptivo no início, viria a rejeitar todos os pontos da referidaproposta, alegando, inclusivamente, que o seu «prestígio pessoal»seria afectado pela «prestação de contas» que os trabalhadoreslhe pediam, afirmando também não poder prescindir do seu homemde mão, em virtude das «vigarices» (o termo é do gerente) comque ele sabia resolver certos problemas bancários. Os trabalha-dores pediram a intervenção do Ministério do Trabalho, mas ogerente não compareceu a várias convocações. Tendo-se tornadoevidente que o gerente pretendia protelar indefinidamente a reso-lução dos problemas e tendo os trabalhadores entretanto obtidodados muito comprometedores sobre a actuação do gerente, foidecidido em plenário começar a impedir a entrada do «homem demão» do gerente nas instalações. Perante nova recusa do gerenteem comparecer no Ministério do Trabalho, forças militares doCOPCON acabariam por conduzi-lo ali em 20 de Fevereiro de 1975.Na reunião então havida, com a presença de trabalhadores e dele-gados sindicais e a participação (forçada) do gerente, este mos-trou-se intransigente em relação às duas questões quentes, decla-rando ainda não se encontrar em condições físicas e mentais deexercer a gerência da firma, deixando clara a intenção de aabandonar, pelo menos provisoriamente. Mais tarde, o gerenteafirmaria ter sido impedido por um piquete de entrar na empresa,o que todos os trabalhadores negaram, assegurando que apenasao «homem de mão» foi vedado o acesso às instalações da F. M.Após a reunião de 20 de Fevereiro no Ministério do Trabalho,os trabalhadores decidiram ocupar em permanência as instalações,para «impedirem o desvio de documentos e material». Começaramentão a divulgar uma série de irregularidades cometidas pelogerente, enquanto o M. T. pedia uma sindicância à F. M. Entre asirregularidades denunciadas pelos trabalhadores contava-se o des-vio ilícito de capitais, obtenção ilegal de alvarás, não execução

702 de obras públicas adjudicadas e parcialmente pagas, etc. Além

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disso, o contabilista da empresa pôs os trabalhadores ao correntedo astronómico défice acumulado pelo gerente. Como o gerentenão tivesse pago os salários de Fevereiro, em meados de Marçouma «comissão ad hoc de autogestão» formada por 11 trabalha-dores assumiu a direcção da empresa, não esperando pela sindi-cância, uma vez que a Inspecção de Finanças alegava absolutafalta de quadros para a sua efectivação. A comissão de autogestãoobteve então do M. T. uma credencial pana poder praticar todosos actos normais de gestão, ficando assim habilitada a assinarrecibos e receber pagamentos. Passado algum tempo, e sob agrande insistência dos trabalhadores, a Inspecção de Finançasiniciaria a sindicância, tendo a breve trecho sido detectadasdiversas fraudes. Quanto ao gerente, antes de declarar falênciae se ausentar para o estrangeiro, procurou ainda chegar a umacordo com os trabalhadores através do M. T. Propôs aos trabalha-dores que se constituíssem em cooperativa e passassem a gerir aempresa mediante uma renda mensal ao proprietário, mas quesimultaneamente se responsabilizassem pelo passivo total da F. M.Proposta prontamente recusada pelos trabalhadores, visto que adiferença entre o activo e o passivo, à data do abandono do gerente,ascendia a 11000 contos. Após a declaração de falência pelo gerentee o seu abandono do País, constitui-se em Junho de 1975 a coopera-tiva operária de produção N, com um capital social de 11 contos(110 quotas de 100 escudos).

A cooperativa passou a gerir a empresa F. M., em estado defalência, mediante o pagamento de uma renda à Câmara deFalências.

2. A vida da cooperativa começou com a aprovação por unani-midade dos estatutos e a constituição dos órgãos de gestão demo-crática. Elegeu-se uma direcção composta por cinco elementos,todos ex-membros da comissão de autogestão: o antigo encarre-gado-geral da F. M. (presidente da direcção), o contabilista, umelemento da administração e dois chefes de secção. Os dois últimose o presidente da direcção fazem normalmente trabalho manual.Nas onze secções da empresa mantiveram-se todos os antigoschefes de secção, à excepção de um (considerado «mau para ostrabalhadores» pelos seus subordinados), mas que viria a serrecolocado no seu posto, numa manobra em que o presidente dadirecção usou do seu grande prestígio e influência sobre os traba-lhadores. Tratava-se neste caso de dar a primazia à competência,uma vez que o chefe de secção contestado trabalhava na empresahá 36 anos, mas foi evidente também a preocupação de não criarum precedente «grave» de contestação da hierarquia e de nãoalarmar os outros chefes de secção, todos elementos necessáriosao bom funcionamento da empresa.

O primeiro ano da cooperativa passou-se no meio das maioresdificuldades, exigindo grandes esforços e sacrifícios dos trabalha-dores. A penúria de encomendas e a falta de fundo de maneiomanter-se-iam, mais ou menos, até fins de 1976, só então se tendoiniciado o verdadeiro relançamento. Como resultado, os principaisproblemas internos centraram-se durante longos meses na grande 703

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insegurança dos salários e no subaproveitamento da capacidadede laboração. Para mais, as encomendas conseguidas eram-nogeralmente graças aos curtíssimos prazos de entrega prome-tidos — assim se «apanharam» encomendas urgentes de tabuletasde trânsito, carrinhos de alimentação para uma companhia deaviação, etc Isto acarretou, por um lado, autênticas campanhasde «trabalho de choque» separadas por períodos de semi-inacti-vidade, assim como constantes deslocações dos trabalhadores dasdiversas profissões (serralheiros, torneiros, fresadores, electri-cistas, fundidores, pintores, etc.) em direcção aos sectores e tarefasem que ia havendo maior carga de trabalho. Tal situação emmuito contribuiu para reforçar e criar novos laços entre ostrabalhadores, afrouxando as várias divisões — profissionais,hierárquicas, etárias, etc. — cultivadas naturalmente sob (e pela)administração patronal.

O decréscimo do pessoal dos iniciais 126 para 110 e depois 103(fins de 1976) deveu-se ao abandono de alguns trabalhadoresem virtude da insegurança e baixo nível dos salários, assim comoà expulsão de três elementos e outras razões. Durante longosmeses, os salários foram pagos «aos bochechos» (em duas outrês prestações mensais), enquanto para os 13.° e 14.° mesesde 1976 não houve dinheiro (em 1975 recebeu-se apenas metadedo 13.° mês). Por esta razão, segundo confessam os própriosdirectores, geraram-se atritos entre determinado sector dos traba-lhadores e a direcção. Alguns trabalhadores dirigiam-se à direcçãoa exigir que esta lhes pagasse, «como se nós fôssemos os patrões,como se isto não fosse de todos», exclamavam o presidente e osmembros da direcção. Também por esta razão, tentou o presidentepersuadir os trabalhadores da necessidade de introduzir a rotati-vidade nas funções directivas, partindo do princípio de que oestágio na direcção permitiria uma visão olara das possibilidadeseconómicas. A segunda direcção, eleita ao fim do 1.° semestre(e reconduzida após o 2.° semestre), incluiria dois elementos novos,entre os quais um operário fresador. Quanto ao presidente, afirmouque não aceitaria nova recondução quando finalizasse o seu 3.°mandato consecutivo. No entanto, a maioria dos trabalhadoresnão vêem com bons olhos nem a hipótese da escolha de um novopresidente (já que consideram o actual o único ou o mais capazpara aquela função) nem uma grande rotatividade nas funçõesda direcção. Consideram que 70 % a 80 % dos membros da coopera-tiva não possuem as qualidades e os conhecimentos necessáriospara se fazer parte da direcção. Particularmente em relação àfigura do presidente da direcção, convergem todas as opiniões emque tem de ser, por um lado, alguém com uma capacidade profis-sional que o coloque acima dos outros e, por outro lado, alguémcapaz de tomar e fazer aceitar certas medidas e atitudes duras —«não obstante isto ser uma cooperativa», como disse um elementoda direcção. Deste modo, existe na cooperativa N uma equipa de5 a 10 elementos «que são eternamente a direcção», que numafase de grandes dificuldades se acharam entalados entre, por umlado, o facto de serem reconhecidamente os mais capazes (e, como

704 tal, serem o objecto das expectativas e da responsabilização por

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parte da grande maioria) e, por outro lado, a sua tentativa deconseguirem a responsabilização da maioria no sentido duma par-tilha colectiva das dificuldades da gestão. Um tanto amargurado,um membro da direcção confessaria: «Eles [a maioria] querem étrabalhar para o patrão. Seja ele o antigo, seja a direcção dacooperativa, eles querem é o patrão!»

Uma das primeiras medidas tomadas democraticamente foia redução do leque salarial: de 49 ordenados diferentes passou-separa uma dezena. Posteriormente elevaram-se ainda os saláriosmais baixos e baixaram-se os mais elevados (o que teve comoconsequência o abandono da cooperativa pelo contabilista). Estasúltimas medidas, que foram objecto de discussão e votação secretaem assembleia geral, tinham sido propostas —sob uma formabastante enérgica— pelo próprio presidente da direcção, queauferia, com o contabilista, o maior ordenado. (Uma razão destaatitude terá sido o facto de aparecer nas paredes da empresa umainscrição em que se contrapunham as ideias políticas do presidenteà situação de ele levantar 14 contos mensais — um operário quali-ficado não passava dos 7-8 contos). A votação foi muito cerrada,apenas por escassa maioria «passou» o abaixamento de 20% dos5 salários mais altos, e isso devido claramente à insistência dopresidente. No decurso do ano de 1976, a massa salarial aumentariaainda 20%, apesar das dificuldades.

O abandono do contabilista —que até sair pertenceu sempreà direcção— poderá vir a repercutir-se negativamente no futuroda cooperativa. Homem com experiência de direcção de empresas,era ele que tratava duma boa parte dos assuntos de ordem adminis-trativa e económico-financeira. «Não nos podíamos dar ao luxode ter aqui um contabilista tão qualificado e tão bem pago»,afirmou a direcção após a sua saída. Entre ele e os restantesdirigentes havia ligeiras divergências quanto à orientação dacooperativa (e possivelmente até ideológicas) que acabaram porse confirmar após a decisão de abandono do contabilista. Formal-mente, as diferentes posições políticas e partidárias ficam «à portada rua», mas, informalmente, têm grande peso nas relações entreos elementos da cooperativa.

Desde o começo da cooperativa se pusera grande empenhona melhoria de condições e ambiente de trabalho. Logo nas primei-ras semanas se criou uma cantina e se melhoraram as condições dehigiene. Introduziram-se também duas pausas de 15 minutos, demanhã e à tarde, mas houve logo abusos: enquanto uns não utili-zavam a pausa e continuavam a trabalhar, outros prolongavam-napor mais 15-20 minutos. Em assembleia geral acabou por se apro-var o controlo rigoroso das pausas, assim como a sua «compensa-ção» por mais meia hora de trabalho ao fim do dia. «Não podíamossimplesmente suprimir essa conquista» — afirmou um elementoda direcção, justificando aquelas medidas.

Nos primeiros tempos, a disciplina tornar-se-ia tão folgadaque, por exemplo, uma parte dos trabalhadores chegavam sistema-ticamente atrasados ou largavam mais cedo. Para corrigir estes 705

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e outros abusos (como o absentismo, desvio de materiais, indis-ciplina, etc), a assembleia geral aprovaria um regulamento internobastante severo, especificando uma longa lista de irregularidadese as respectivas sanções. O simples esquecimento de «picar» ocartão no relógio de ponto, por exemplo, é punido com, pelo menos,meio dia de salário. A partir de quatro entradas tarde por mês,os trabalhadores são punidos com uma redução fortemente pro-gressiva dos dias de férias (podem-se perder até 15 dias de fériasnum só mês), isto para além dos descontos nos respectivos salários.Por doença prolongada perde-se o direito às férias. Etc. Por outrolado, a assembleia geral pode decidir a expulsão de um membroda cooperativa em caso de grave irregularidade. Numa interpre-tação «alargada» de irregularidade grave, dois trabalhadores esti-veram para ser expulsos da cooperativa. Um deles, motorista, tinhafeito um «jeito» ao outro, transportando-lhe umas coisas na via-tura da empresa. Pela expulsão do primeiro houve na assembleiageral 4 votos, pela expulsão do segundo 24, em escrutínio secreto.Não bastou para serem expulsos, mas o caso impressionou negati-vamente uma parte dos trabalhadores. «A gente, no meio distotudo, ainda consegue arranjar 24 inimigos! Por acaso foi votosecreto, mas, se fosse a levantar o braço, ele ia mesmo para a rua!Há aí quem levante o braço quando vê certos indivíduos a levan-tar...»— assim comentou o caso um dos operários mais velhos.(A sua última frase é uma referência à influência do presidenteda cooperativa nas votações abertas.)

O «trabalho privado» foi outro ponto que levantou certosatritos. Sob a gerência do patrão já havia alguns operários que,após o horário normal, permaneciam nas oficinas executandopequenos trabalhos por conta própria, com o assentimento dogerente. Após a formação da cooperativa verificou-se um surtodesse trabalho privado, até que, em assembleia geral, a maioriase pronunciou pela sua abolição. Perante o descontentamento pro-vocado por essa decisão em alguns trabalhadores, a direcçãoretrocedeu e voltou a permiti-lo, pondo, no entanto, como condiçãoque o produto desse trabalho se não destinasse à venda, masapenas à utilização pessoal. Os descontentes tranquilizaram-se,conscientes de que o controlo desta cláusula era quase impossível.

O núcleo dos mais activos representam, somados com o grupodos mais mobilizáveis, cerca de 40% dos trabalhadores. Os res-tantes 60% só dificilmente sacrificam um dia de descanso e,provavelmente, abandonariam a cooperativa por um salário mensalsuperior em 1-2 contos. Cerca de Vs dos trabalhadores faltavamaos plenários, quando estes se realizavam aos sábados. A grandemaioria está, no entanto, a favor da actual direcção. Mais demetade dos trabalhadores trabalham para além do horário diárionormal (9 horas), quando tal é necessário. As horas extraordi-nárias não são remuneradas, podendo, no entanto, constituir com-pensação para «faltas absolutamente justificadas».

Uma das inovações introduzidas na empresa pela cooperativafoi a alteração de diversas denominações. Assim, os salários pas-

706 saram a levantamentos, receber passou a levantar, os chefes de

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secção passaram a responsáveis de secção, o lucro passou a fundoassociativo, os empregados administrativos passaram a trabalha-dores da administração, etc. As palavras antigas continuam, noentanto, a ser largamente utilizadas. A direcção tem um empenhoespecial em banir o uso dos termos salário e lucro. Quando daformação da cooperativa, os dirigentes afirmavam que o objectivoda empresa deixara de ser o lucro, pois que os produtos seriamvendidos a um «preço justo» e que o resultado da exploração nãoseria distribuído pelos sócios, mas integralmente investido. A ideiado «preço justo» foi rapidamente esquecida: até agora os preçostêm sido simplesmente impostos pela enorme concorrência e pelanecessidade de «apanhar» boas encomendas. Segundo confessou opresidente da cooperativa, em 1976 fizeram-se cerca de umacentena de orçamentos, pedidos à cooperativa, sem que depois asencomendas fossem conseguidas. Quanto ao lucro, pouco adiantaafirmar que desapareceu, mesmo como objectivo, dado que nãodeixou nem pode deixar de constituir objectivo da direcção eda cooperativa a realização de um excedente, quer este passeautomaticamente a fundo colectivo de investimento, quer sejaparcialmente distribuído pelos trabalhadores em 12 prestaçõesanuais sob a forma de «aumento dos levantamentos»...

A concorrência no sector é bastante grande. Há indícios deque, sob a administração patronal, vários concursos públicos eramganhos por processos fraudulentos. A cooperativa recusou-se desdeo início a recorrer ao suborno (para o que poderia ter utilizadoos «canais» deixados intactos), e a isso atribui a perda de certasobras e encomendas. Porém, se durante longos meses a coopera-tiva N trabalhou abaixo ou muito abaixo da capacidade de labo-ração, isso também se deveria à passividade demonstrada no campocomercial, à falta de iniciativas —forçosamente arriscadas—,à falta de «agressividade» no mercado. Tal é a opinião, sobre estacooperativa, do dirigente de uma outra que contactámos directa-mente. Os dirigentes da cooperativa N, sendo «impecáveis noaspecto técnico da produção», parecem carecer de espírito comer-cial, o que é de certo modo compreensível se atendermos a que agestão comercial no passado estava exclusivamente a cargo doantigo gerente.

Por alegada falta de tempo e de recursos, a direcção da coope-rativa não tem conseguido levar por diante um dos seus grandesobjectivos: a elevação do nível profissional e cultural dos traba-lhadores. Seria, por exemplo, muito importante ensinar uma partedos trabalhadores a ler desenho (na empresa só há dois ou trêselementos que sabem fazer peças a partir do desenho). Os poucosespecialistas de soldadura também podiam ensinar outros. Atéagora pouco se tem avançado nesse capítulo, mas os dirigentesestão dispostos a realizar futuramente estes e outros planos.O contabilista tentou, por outro lado, dar aos trabalhadores algu-mas noções de contabilidade e explicar-lhes melhor a situaçãoeconómica da empresa. Nessa altura, os salários estavam muitoinseguros, eram pagos com atraso e a maioria não percebia porquêA tentativa do contabilista teve pouco êxito e alguns trabalhadoresaté o acusaram de pretender «lançar-lhés poeira nos olhos»... 707

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Cooperativa operária de produção F (Lisboa)

Ex-C (sociedade anónima).Ramo: material eléctrico (produção e montagem de material

de aquecimento e refrigeração).Número de postos de trabalho: Abril de 1974 = 59; Janeiro de

1977 = 63.Facturação anual de 1976: 30 000 contos (média de 1973-74:

18 000 contos; ano de 1972: 28 000 contos).

1. A C, SARL, com instalações fabris nas imediações de Lisboa,era gerida desde a sua formação (relativamente recente) peloaccionista maioritário, engenheiro, filho de um grande industrial.A actividade da C era a produção e montagem de instalações dear condicionado e aquecimento para a construção civil. Em Abrilde 1974 empregava 59 pessoas, entre as quais 15 técnicos.A empresa já antes do 25 de Abril enfrentava dificuldades finan-ceiras, devidas a má gestão (segundo a actual direcção da coopera-tiva, o antigo gerente já na grande empresa do seu pai se haviadistinguido como mau gestor). Com a crise pós-25 de Abril e,em especial, a crise da construção civil, os problemas agudi-zar-se-iam a ponto de tornarem insustentável a situação financeira.Por outro lado, várias irregularidades marcavam a gestão da C:não se realizavam assembleias gerais desde 1971, a empresa nãotinha contas fechadas desde 1973, não pagava à Previdência,oficialmente só possuía sede social, e não instalações fabris, etc.

No início de 1975, quando já faltava a matéria-prima e começavaa haver atrasos no pagamento de salários, formou-se a comissãode trabalhadores. A C. T. rapidamente apurou que, para um activoavaliado em 4000-5000 contos, a empresa acumulara débitos queultrapassavam 30 000 contos (entre os credores contam-se a banca,os fornecedores e o próprio gerente-accionista maioritário, que fezavultados empréstimos à sociedade). Perante a evidente má gestão,os bancos deixaram de ter confiança na administração e comuni-caram-no à C. T. O gerente, após se ter reconhecido incapaz desolucionar os problemas da empresa, abandonou-a de livre vontade,sem deixar o País. Com os 10 000 contos de salários atrasados eindemnizações devidas aos trabalhadores, as dívidas da C ascen-diam então a mais de 40 000 contos.

Após o abandono da entidade patronal, os trabalhadoresocupam as instalações e entram em autogestão. Em Maio de1975 obtêm do Ministério do Trabalho uma credencial para aprática dos actos normais de gestão. Entretanto, alguns credores(fornecedores) vão adoptando atitudes diversas: uns tentamnegociar com a C. T. (fazendo mostra do seu grande tacto, essesfornecedores fizeram-se representar, nos contactos havidos, pelas

708 C.T. das respectivas empresas...); outros, precipitadamente,

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movem acções no tribunal. Em Agosto de 1975 está constituídaa cooperativa operária de produção F, contando nesse momento42 trabalhadores, com um capital social de 4200$. Foi então eleitauma direcção, cujos cinco membros se mantiveram até hoje. Sãoeles: o responsável da secção de assistência técnica, presidenteda direcção (um bom técnico, que já na anterior C era o chefedos serviços técnicos); dois elementos da parte comercial; o res-ponsável da secção de serralharia e ainda o responsável pelo con-trolo da produção e gestão dos «sfocfcs». Ou seja: os mais compe-tentes, «dominando» com segurança todos os aspectos da gestão.

2. Em 1975, as dificuldades foram enormes, reflectindo-seinclusivamente em problemas de mobilização e mentalização dostrabalhadores. Apesar de todas as carências, a direcção arrancaraimediatamente com uma corajosa reconversão da actividade daempresa. Sem fecharem a secção de ar condicionado, passaramdo equipamento de aquecimento para a construção civil paraaquecedores domésticos (montaram sobre rodas aquecedores deparede ligeiramente modificados!). Iniciaram o fabrico de novosprodutos (electrodomésticos, como torradeiras, aquecedores deinfravermelhos), para os quais o mercado se encontrava em grandeexpansão — ao que também não é alheio o forte aumento de poderde compra da população registado após o 25 de Abril. O bomconhecimento do mercado permitiu-lhes também lançarem, combastante êxito, um produto da sua inteira concepção (um armáriometálico, com iluminação, para uso doméstico). Para o sucessocomercial dos electrodomésticos contribuiu decisivamente a boarelação qualidade/preço (nomeadamente, o preço dos aquecedoresdomésticos é o mais baixo do mercado). O esquema de comerciali-zação também foi alterado: aproveitando o abandono, em 1975,dos vendedores da empresa, acabou-se com a «venda à porta» erecorreu-se aos grossistas.

Em 1976, já com 63 trabalhadores (dos quais 57 «produtoresdirectos»), a cooperativa F atingiu a maior facturação de sempre:30 000 contos. Investiram 3000 contos em equipamento, inteira-mente pagos. Como as instalações fabris se mostram já exíguas,a direcção pensa em novos investimentos, com o intuito tambémde se aumentar consideravelmente a capacidade produtiva. Para1977, a cooperativa F possuía, já em Janeiro, 50 000 contos deencomendas em carteira. O responsável comercial afirma qu€se não fosse a falta de capacidade, a facturação poderia ascende\a 70 000 contos no ano em causa.

Os levantamentos dos trabalhadores rondam actualmente ossalários médios das profissões nas outras empresas, ou são-lhesligeiramente superiores. O leque salarial foi reduzido, auferindoo presidente da direcção o maior ordenado (16 contos). Em 1976pagou-se o 13.° e o 14.° mês, mas, por decisão aprovada em assem-bleia geral, nesse ano ainda só se concederam 15 dias de férias (em1977 será dado 1 mês de férias).

Os resultados obtidos pela cooperativa F ficam-se devendo,em boa parte, ao extraordinário esforço dos trabalhadores. Durante

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longos meses nunca se trabalhou menos de 12 horas diárias.Actualmente estão nas 11 horas diárias, sempre sem qualquercompensação por «horas extraordinárias». É porém evidente que,sem a corajosa direcção técnica e comercial, a maioria dos traba-lhadores não teria tido oportunidade de mostrar o que vale e deressuscitar a empresa. Os resultados, já de si excepcionais, sóserão bem avaliados se se tiver em conta a frequente má imagemque, com ou sem razão, as cooperativas operárias e as empresasem autogestão têm no meio comercial. Nos seus contactos comclientes e fornecedores a P evita, por esse motivo, revelar a suaqualidade de cooperativa, que comprovadamente tem muitas vezesuma acção repulsiva, não inspira confiança1.

A cooperativa F encontra-se associada na Planometal, coopera-tiva do 2.° grau (União de Cooperativas) do sector metalomecânicoligeiro, criada sob os auspícios da F. C. P. (Federação das Coopera-tivas de Produção). Essa associação tem sido utilmente aprovei-tada: por iniciativa da própria F, está agora em preparação amontagem dum circuito comercial Planometal, para a venda dosprodutos das cooperativas e empresas em autogestão nela filiadas,o que dispensará os grossistas privados. Também nesta iniciativaa cooperativa F se distinguiu de outras cooperativas do seu sector,que estão um pouco postadas à espera de benefícios resultantes dafiliação na União.

Para além da ressurreição da empresa e das melhorias salariais,a cooperativa também se preocupou bastante com a melhoria doambiente e condições de trabalho. Introduziram-se duas pausasdiárias de 10 minutos no trabalho. Criaram um refeitório comtodas as condições de higiene. Têm um consultório médico comvisitas semanais. Vão agora fazer um bar. Organizam-se confra-ternizações e festas para criar um melhor espírito colectivo emelhores relações humanas.

A direcção da cooperativa, no interesse de assegurar a rotati-vidade nas funções de gestão, tem tentado incorporar pelo menosum elemento novo cada ano. Enfrenta aí a resistência dos trabalha-dores, que mostram um certo receio das responsabilidades ouafirmam não terem capacidade. Alguns novos elementos que che-garam a ser eleitos para a direcção recusaram-se depois. A direcçãotem agora programadas reuniões mensais com todos os trabalha-dores, fora do tempo de trabalho, para esclarecimento sobre agestão e a situação da empresa. Esperam assim também conseguir«formar» novos elementos para a direcção. Reúnem-se igualmenteas assembleias gerais, em que são discutidos os planos anuais,a organização do trabalho, as responsabilidades. As discussõesgeram-se o mais frequentemente à volta de problemas ligados àestabilidade e à sobrevivência económicas da empresa.

1 É, por esta razão, fantasiosa e absolutamente contraproducente a ideia(que entidades governamentais parecem não ter afastado totalmente) dese criar, paralelamente à já existente cooperativa operária de produção, umnovo tipo de sociedade com a denominação (obrigatória) de sociedade em

710 autogestão.

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mEmpresa B (sociedade por quotas), Lisboa.

Autogerida desde Fevereiro de 1975; sob intervenção estataldesde Novembro de 1975.

Ramo: indústria de lacticínios.Número de postos de trabalho: 1974 = 18; Janeiro de 1977 = 26.Facturação anual de 1976: 11000 contos (média de 1973-74:

3500 contos).

1. A empresa B era gerida há mais de dez anos pelo seu sóciomaioritário. Fábrica de dimensões bastante reduzidas, com umequipamento deficiente e ultrapassado, em instalações que careciamdos elementares requisitos de higiene, a B assegurava, no entanto,um alto rendimento. O gerente possuía uma outra fábrica delacticínios, de dimensão um pouco maior, também altamente ren-dível. (Os produtos das duas fábricas, de características e emba-lagens semelhantes, distinguiam-se apenas pela marca.) A forterendibilidade é característica daquele ramo de actividade espe-cífico, tanto em Portugal como no estrangeiro. Mas, para alémdisso, o gerente da B levava a exploração dos trabalhadores— muito particularmente das mulheres— a um grau raramenteobservável, bastando aqui referir que em 1975 as operárias da Bainda recebiam 1430$ mensais, por jornadas de trabalho de9-10 horas. O gerente dava ainda às operárias 5$ diários de grati-ficação — ou seja 150$ mensais—, mas, como esse bónus erapago «por fora», do bolso do gerente, em qualquer altura o podiaretirar. Este tipo de chantagem era ainda utilizado com outrostrabalhadores (de ambas as fábricas), como, por exemplo, osmotoristas.

Detentor de uma fortuna notável — acumulada, dizem os tra-balhadores, segundo processos mais ou menos desonestos, massobretudo por meio de uma exploração desenfreada —, o proprie-tário-gerante da B encarna bem as mais velhas e estereotipadascaricaturas do capitalista. Viveu em permanente conflito com alegalidade, com os trabalhadores, com os empresários concor-rentes, etc, tendo reconhecido apenas uma lei e uma moral,redutíveis à expressão mais simples do seu interesse pelo lucro.Durante os anos 60, num processo que ficaria célebre, soubeservir-se da legalidade para conseguir o encerramento dumaempresa concorrente acabada de surgir. Todavia, nunca se impediude declarar ao fisco apenas entre 1/10 e 1/20 do rendimentolíquido real ou desviar sistematicamente para a sua conta pessoalas receitas da empresa. Como se não impediu de instalar umafábrica de lacticínios num monumento setecentista, em cujo edi-fício causou danos graves e irreparáveis em toda a impunidade.Como, enfim, se não impediu de continuar, após o 25 de Abril,a pagar autênticos salários de fome, desafiando frontalmente aautoridade dos tribunais e do Governo e os mais elementares .direitos dos trabalhadores. 711

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Instado a aplicar nas suas empresas o salário mínimo nacionale as tabelas dos contratos colectivos, recusou-se sempre aberta-mente, afirmando nomeadamente que do seu bolso dava só a quementendesse e quando entendesse e que na sua casa mandava ele,e não qualquer ministério ou sindicato. Os miseráveis salários de1430$ justificava-os, em 1975, alegando que as operárias tinhammenos de 21 anos, mas era seu hábito, segundo os trabalhadores,despedir as operárias que atingissem aquela idade. Tendo recebido,a partir do Verão de 1974, cerca de duas dezenas de notificaçõespara o pagamento de multas (aplicadas pela Inspecção do Tra-balho), ignorou-as completamente. Perante a insistência dos traba-lhadores, que reclamavam o salário mínimo nacional (na altura3300$) para as operárias e a aplicação das tabelas para as outrasprofissões, o gerente recorreu às ameaças, ao insulto e às manobrasde divisão. Mas os trabalhadores da empresa B não se deixaramintimidar e dividir, voltando sempre à carga. Após as derradeirastentativas de conciliação, apresentaram ao gerente um ultimato,com um prazo de cinco dias (expirava em 12 de Fevereiro de 1975)para a regularização do diferendo. Visivelmente satisfeito por ostrabalhadores se terem permitido tal arrogância, o gerente intei-rou-os então dos seus planos de encerramento da B, afirmandoque não deixaria de aproveitar aquela boa oportunidade. Segundoos trabalhadores, declarou então textualmente: «Para mim e paraa minha família já basta o que tenho, não precisamos de mais.»Desapareceria depois, levando consigo os livros de cheques, oscarimbos da firma, etc. Seguiu-se a ocupação da empresa pelostrabalhadores — que viria a estender-se, dia e noite, por quasedez meses.

Como a empresa não tinha dívidas, a actividade era rendível ea procura do produto se mantinha em expansão, a gestão daempresa pela comissão de trabalhadores não teria enfrentadograndes problemas iniciais, se não fossem as sucessivas acçõesde boicote levadas a cabo pelo ex-gerente a partir do dia daocupação. No dia imediato, o ex-gerente ordenou à empresa abaste-cedora a suspensão do fornecimento de leite para a B. Após váriasdémarches junto da direcção da empresa abastecedora, os traba-lhadores conseguiriam o reatamento do fornecimento. Depois foia vez das embalagens (em vidro): o ex-gerente obteve da empresaprodutora das embalagens que estas passassem a ser enviadaspara outro local. A operação de «desvio» foi porém interceptadapelos trabalhadores, secundados pela G. N. R., e não tornou a haverboicote de embalagens. Faltaram em seguida as cápsulas dasembalagens, que o ex-gerente tinha armazenadas na outra fábrica.Também esse problema foi resolvido, e radicalmente: as cápsulas,até aí importadas, passaram a ser fabricadas por uma empresanacional, que teve aliás de se iniciar nessa técnica. Culminandoesta série de operações, o ex-gerente enviou a todos os clientesda B, dez dias após a ocupação, uma circular referindo «váriasanomalias na gestão» daquela empresa e pedindo que os produtosda B fossem retirados do consumo, uma vez que o gerente se nãopodia responsabilizar pela sua boa qualidade. Em resposta, os

712 trabalhadores requereram um exame da qualidade do produto e

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enviaram o consequente certificado de boa qualidade a todos osclientes. Comissões de trabalhadores de várias empresas, entre asquais uma cadeia de supermercados, também agiram no sentido denão serem cortadas as aquisição dos produtos da B. O ex-gerenteainda tentou outras manobras (retenção na garagem de viaturasde distribuição, boicote de outras matérias-primas, etc.), mas todasseriam neutralizadas.

2. A partir da entrada em autogestão, os salários sofreriamvários aumentos muito consideráveis. De imediato, as operáriassubiriam de 1430$ mensais para 3300$, enquanto os motoristas,ajudantes de distribuição, gerente comercial, chefe de vendas, etc,passaram a receber o estabelecido pelos contratos colectivos,ganhando assim uma diferença de 2-3 contos mensais sobre oantigo salário. Mais tarde, o salário mínimo da empresa subiriapara 5500$, tendo-se verificado novos aumentos para todo opessoal. Além disso, começaram a dar-se subsídios de alimentaçãoaos trabalhadores da distribuição, assim como os subsídios deférias e de Natal e outras regalias a todo o pessoal. Entretanto,a produção de 1975 duplicaria em relação aos três anos anteriores,tendo em 1976 registado novo aumento considerável (60% emrelação a 1975). Quanto ao lucro líquido da exploração, ele foi em1975 trinta e sete vezes superior aos lucros declarados pelo ex-ge-rente nos anos de 1972,1973 e 1974, mas já em 1976 seria cinquentae cinco vezes superior àqueles lucros declarados. Entretanto, comoa produção triplicou, foram admitidos 8 novos trabalhadores.Sob a gestão dos trabalhadores, a B conseguiu assim investir atéao presente 4000 contos, com base em 22 meses de produção,enquanto o ex-gerente nunca se preocupara em desenvolver aempresa e melhorar as condições de trabalho (a sua única aquisiçãode equipamento fora uma pequena máquina de capsular bastanteineficaz). A comissão de trabalhadores adquiriu 4 novas viaturaspara a distribuição, assim como uma sofisticada máquina deenchimento automático, o que permitiu à empresa abandonar aembalagem de vidro e passar para a plástica (mais barata, não háretorno, nem lavagem). Novos investimentos em vista permitirãoaumentar ainda muito mais a produção e, sobretudo, diversf icá-la,alargá-la a outros produtos alimentares. O êxito notável da auto-gestão na B deve-se em grande parte ao total empenho dos traba-lhadores em demonstrarem a justiça das suas reivindicações e3,os sacrifícios aceites na fase de arranque (jornadas de 12 e maishoras de trabalho).

Após dez meses de autogestão, os trabalhadores da B conse-guiram em Novembro de 1975 a intervenção estatal na empresa,que se traduziu pela nomeação de uma comissão administrativaconstituída por três trabalhadores locais (o gerente comercial edois motoristas) e um elemento externo proposto pela C. T. O objec-tivo dos trabalhadores é a constituição duma cooperativa operáriade produção com o capital adquirido em dois anos de gestão (seisvezes superior ao valor de inventário da antiga empresa). Em 1977,os trabalhadores obtiveram do Governo garantias de que a suapretensão será «aceite. Os trabalhadores aguardam o processo de 7/3

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legalização da cooperativa e a resolução definitiva da situaçãopara avançarem decididamente com os seus planos, entre os quaisfigura a imediata mudança de instalações.

Na prática, a gestão da empresa é assegurada pelo gerentecomercial — líder incontestado dos trabalhadores e altamentecompetente também no aspecto técnico da produção. (Mineiro naadolescência, o gerente comercial trabalhara anteriormente na Bcomo motorista.) Múltiplas tarefas de gestão são, no entanto, con-fiadas aos restantes membros da C. T., os motoristas, que estão,duma maneira geral, a par de todas as questões da produção edistribuição. Na produção trabalham actualmente cerca de dezmulheres, que não têm (nem necessitam) qualificação especial.

No aspecto económico, a futura cooperativa arrancará pois emcircunstâncias francamente favoráveis, o que constitui de certomodo uma excepção e aumenta o aliciante de toda a experiência.

IV

Cooperativa operária de produção U (Lisboa)

Ex-S (sociedade por quotas).Ramo: embalagens, artigos de papel e artes gráficas.Número de postos de trabalho: Abril de 1974 = 86; Janeiro de

1977=90.Facturação anual de 1976: 15 000 contos (média de 1973-74:

10 000 contos).

1. A empresa S contava perto de trinta anos de existência.O proprietário inicial era «um homem muito autoritário e duro»,mas que havia conseguido uma certa estabilidade económica e a ex-pansão da produção ao longo do tempo. Alguns anos antes do 25 deAbril, a empresa fora trespassada a uma sociedade constituída pordois autodenominados «técnicos financeiros» e um terceiro sócio,por elevada quantia (da qual, aliás, a nova sociedade apenas pagouuma entrada de 5 %). Os novos gerentes (os dois «técnicos finan-ceiros») evidenciaram-se rapidamente pela má gestão. Por umlado, foram somando as despesas supérfluas: adquiriram automó-veis desnecessários, de modelos caros; instalaram-se em grandese luxuosos escritórios, perfeitamente inapropriados e distantes dasinstalações fabris; deslocavam-se frequentemente ao estrangeiro,para «recolherem informações» ou «em negócio». Dadas as peque-nas dimensões da empresa, esta actuação de businessmen «grandeestilo» raiava o ridículo, para além de não produzir resultados pal-páveis. Tudo isto contrastava, de resto, com a austera sensatez doproprietário inicial. Por outro lado, os novos gerentes votaram osseus técnicos e quadros à maior das indiferenças e descuraram cer-tos aspectos urgentes da produção. Foram simplesmente despreza-das as opiniões dos «técnicos da casa», tais como um engenheiro(adjunto da direcção), um outro técnico hoje conhecido como o«inventor das máquinas», o encarregado geral da fábrica, etc. Con-tra o parecer destes, a gerência decidiu, por exemplo, a aquisiçãono estrangeiro de duas máquinas, extremamente caras, cuja utili-

714 zação racional e rendível era impossível, em virtude da grande dife-

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rença de rendimento em relação ao outro equipamento já existente,por onde deveria aliás ter começado a renovação. As «potencialida-des internas» também passaram despercebidas aos novos gerentes.Para se avaliar até que ponto isso lhes foi fatal, basta referir quevárias das mais importantes máquinas da empresa haviam sidoconstruídas localmente e que o técnico conhecido por «inventor dasmáquinas» era um homem disputado por outras empresas. Não sepreocuparam também os novos gerentes com as condições de tra-balho dos operários. Embora tenham cedido a uma ou outra reivin-dicação (perante a insistência do engenheiro adjunto da direcção),não se importaram com as péssimas condições de higiene da fábricae mantiveram na empresa —mesmo após o 25 de Abril— umempregado que tinha por missão vigiar todos os movimentos dostrabalhadores e fazer as respectivas denúncias à gerência.

Em resumo, pode dizer-se que a mudança de gerência operadana firma S no início da década de 70 equivaleu à passagem dumregime bastante autoritário e austero (mas minimamente sensato,se bem que rotineiro, no aspecto da gestão) para o aventureirismoe a ostentação, agravados pelo desprezo votado à competência eexperiência dos técnicos e à situação dos trabalhadores. A deterio-ração da situação económica e financeira da S, resultante da mágestão e aprofundada durante a crise pós-25 de Abril, conduziu aque em Fevereiro de 1975 os gerentes se mostrassem dispostos adesfazerem-se da empresa ou a encerrá-la. Os trabalhadores sen-tiam avizinhar-se a falência, enquanto os gerentes declaravamdiante de alguns deles que «até pagariam um almoço a quem qui-sesse ficar com aquilo». Dado o momento político que o País entãovivia, considerando também que o pagamento do trespasse aindanão havia sido satisfeito e que o saldo negativo da empresa ascen-dia nesse momento a 7000 contos, poderá talvez adivinhar-senaquela frase dos gerentes uma provocação com fins evidentes.Apercebendo-se ou não das possíveis intenções dos gerentes, ostrabalhadores decidiram então ocupar as instalações e entrar emautogestão, tanto mais que os ordenados devidos, assim como ashoras extraordinárias, o 13.° mês, etc, não vinham já sendo pagos.Nas negociações havidas posteriormente no Ministério do Traba-lho com a entidade patronal, esta última retiraria a sua «oferta»da empresa (com um almoço como brinde), uma vez que os tra-balhadores não se responsabilizavam pelas dívidas... A actuaçãodos gerentes pode classificar-se de inteligente: por um lado afir-mavam não ter abandonado a empresa, mas, por outro, sentiam-seperfeitamente bem na situação de «esbulhados», em virtude dasdívidas por si contraídas (que ultrapassavam largamente o activo)e das más perspectivas de relançamento do negócio. Objectiva-mente, o seu interesse coincidia com a gestão da empresa pelostrabalhadores, pretexto suficiente para a não liquidação das dívi-das (boa parte das quais à banca). Não podiam, no entanto, che-gar a qualquer acordo nessa matéria com os trabalhadores, umavez que apenas a autogestão litigiosa (isto é, sem o acordo expressoda entidade patronal) oferecia as garantias necessárias.

2. Nas circunstâncias indicadas, os trabalhadores da empresaavançaram com a constituição da cooperativa, verificada em Abril 715

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de 1975, ao mesmo tempo que se propunham o relançamento eco-nómico na base da colaboração e esforço colectivos. A direcção ini-cialmente eleita da cooperativa U contava nove membros, mas, por-que isso «dificultava o trabalho de gestão», reduziu-se o númeropara cinco (actualmente quatro, provisoriamente). São eles: oengenheiro, antigo adjunto da gerência, agora presidente da direc-ção da cooperativa; o técnico «inventor das máquinas»; o contabi-lista da empresa; e ainda o encarregado geral da fábrica. Ou seja:os quadros da antiga empresa, os mais competentes. A direcçãomantêm-se há dois anos, contando com o apoio geral — muito espe-cialmente a pessoa do presidente.

As grandes dificuldades iniciais situaram-se no campo da aqui-sição de matérias-primas e das relações com os fornecedores.Houve, por outro lado, que lutar por manter os clientes e conquis-tar outros. O pagamento a pronto foi a nova condição imposta pelosfornecedores, tendo mesmo alguns destes, em situação monopolís-tica, exigido pagamento antecipado de 1-2 meses em relação à datade entrega dos materiais encomendados. Por seu turno, os paga-mentos dos clientes demoravam muitas vezes até três meses após aentrega. Além disso, a secção de artes gráficas entrava na quaseinactividade por falta de papel no mercado interno. O fabrico deembalagens e cartonagens, base do relançamento possível, era, porseu turno, afectado pelo estado da maioria do equipamento, fran-camente obsoleto (algumas das máquinas contam mais de umséculo!). Era, enfim, bastante cerrada a concorrência das outrasempresas do sector — maiores, melhor equipadas, mais produti-vas —, embora a produção nacional desse sector não satisfaça aprocura interna. Perante a concorrência, a cooperativa U valeu-sedos seus curtos prazos de entrega, conseguidos em regime de tra-balho de choque (chegou a trabalhar-se 14-16 horas por dia!). Foitambém conseguido um aumento da capacidade produtiva pelaconstrução local de máquinas. Improvisou-se, por exemplo, umamáquina de estampagem de folha plástica a partir de uma ve-lhíssima máquina de imprimir papel-mortalha, (Esta espantosamáquina conta entre as suas «peças» vários aquecedores caseiros,um secador de cabelos, uma ventoinha de mesa, etc.). Em 1976, ostécnicos da cooperativa U terminariam a construção de umamáquina de cartão canelado, cujos elementos constituintes provie-ram parcialmente do ferro-velho. O custo desta máquina ficouassim por cerca de 400 contos, enquanto as importadas de França(com características e rendimento muito semelhantes) custamentre 2000 e 5000 contos. A produtividade (de uma parte) desteequipamento «improvisado» será inferior à do equipamento que sepode comprar (no estrangeiro) por altos preços, mas, segundo asse-guram os técnicos da cooperativa, a qualidade do produto é rigo-rosamente a mesma. Numa fase quase heróica da luta pelasobrevivência e consolidação da empresa, é também evidente aimportância daqueles «improvisamentos».

Em 1976, ultrapassada já a fase mais dura, a cooperativa Uduplicou a sua facturação mensal em relação à média da antigaempresa (o que também reflecte aumentos da matéria-prima e, con-

716 sequentemente, dos preços). No primeiro trimestre de 1977, a f ac-

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turação média mensal eleva-se já ao triplo da antiga, prevendo adirecção que a facturação anual de 1977 atinja os 30 000 contos.Quanto aos levantamentos (salários), eles eram em 1976 aindabastante baixos, sempre inferiores aos salários praticados em con-formidade com os contratos colectivos. Não desceram, mas tam-bém não subiram em relação aos salários sob a administraçãopatronal. Em 1976, os trabalhadores tiveram 1 mês de férias, assimcomo o subsídio de férias e metade do subsídio de Natal. Entre-tanto, no começo de 1977 procedeu-se a um aumento dos salários(30 % de aumento para os mais baixos e 20 % para os outros).O aumento da produção faz prever a admissão de 10 novos trabalha-dores ainda em 1977, assim como a criação de um turno nocturno.O horário normal de trabalho é actualmente de 12 horas (1 horapara almoço). Dada a insuficiência das actuais instalações fabris,a direcção da cooperativa deseja a construção de novas, para o quenecessitaria de um terreno, que vem pedindo ao Estado e à CâmaraMunicipal. A direcção afirma não necessitar de qualquer outroauxílio para esse fim. As perspectivas são favoráveis à viabiliza-ção da empresa, podendo a cooperativa U transformar-se em breveespaço de tempo numa das boas empresas do sector e francamenterendível.

Durante os dois anos de vida da cooperativa, as condições detrabalho melhoraram consideravelmente. Distribuíram-se, pela pri-meira vez, batas de trabalho, reconstruíram-se totalmente a can-tina e as instalações sanitárias, higienizou-se e pintou-se todo ointerior da fábrica, melhorou-se o ar, instalou-se um depósito deágua fresca (no Verão, a temperatura no interior da fábrica ultra-passa os 40°), construiu-se e equipou-se uma cozinha (onde se pre-param refeições gratuitas quando o trabalho se prolonga até ànoite), etc. A direcção tem procurado, através da confraterniza-ção e festas, incrementar o espírito colectivo.

Na cooperativa U (onde metade dos trabalhadores são mulhe-res e o trabalho é predominantemente repetitivo e pouco qualifi-cado) é visível a pequena exigência de participação na gestão, apar da grande confiança depositada nos dirigentes, como vimos,os mais qualificados e experientes. As assembleias gerais não sãoconvocadas periodicamente, mas apenas quando tal é estritamentenecessário, isto é, raramente. (Reuniu-se, por exemplo, a assem-bleia geral quando da decisão de expulsar um trabalhador por indis-ciplina e falta de assiduidade.) No início de 1977, o presidente dadirecção realizou um inquérito (pessoal, secreto, escrito e obriga-tório) entre todos os trabalhadores. A intenção era sondar as opi-niões sobre a actuação da direcção, a situação da empresa, o even-tual regresso dos patrões, etc. Nas respostas encontraram-setambém algumas críticas e sugestões. O presidente confessou-semuito satisfeito com a generalidade das respostas.

A cooperativa U mantém bons contactos com algumas outras(nomeadamente a cooperativa F, uma das directamente contacta-das neste estudo). Pagam uma quotização à Federação das Coope-rativas de Produção, mas «ainda não lhe viram a utilidade». O apoiodo Estado, que ainda não tiveram, é considerado muito neces-sário, inclusivamente no campo da formação de novos quadros. 7/7