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    Origens e direo do Pragmatismo

    Ecumnico e Responsvel (1974-1979)

    Matias spektor*

    Introduo

    Em 19 de maro de 1974, o presidente Ernesto Geisel, recmindicado, reuniu o novo ministrio para anunciar que as estruturas do

    regime autoritrio iniciado em 1964 seriam exibilizadas sob seu controlepessoal. No mesmo dia, o presidente batizou a poltica externa de seugoverno de Pragmatismo Ecumnico e Responsvel. Durante os cincoanos subseqentes, Geisel dedicou poltica externa e a seu chanceler,

    Antnio Francisco Azeredo da Silveira, mais horas de despacho do quea qualquer outra pasta. Juntos, o presidente e o chanceler buscaramtransormar aspectos importantes do comportamento e da palavra doBrasil no mundo. Trs dcadas aps a sua ormulao inicial, a reerncia

    explcita ao pragmatismo volta a aparecer no vocabulrio normativo dadiplomacia brasileira, moldando os termos do debate sobre os rumosinternacionais do pas.

    Utilizando ontes primrias recentemente disponibilizadas parapesquisa, este artigo aponta as precondies intelectuais e materiais,as tenses de origem e os primeiros mecanismos de implementaodo Pragmatismo Ecumnico e Responsvel. O trabalho desenvolvido

    * Doutorando em Relaes Internacionais na Universidade de Oxord.

    Rev. Bras. Polt. Int. 47 (2): 191-222 [2004]

    Artigo

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    em cinco etapas. Em primeiro lugar, esta introduo passa em revistaa literatura existente, as ontes documentais disponveis, assim como odirecionamento geral e as causas do pragmatismo. Em seguida, apresenta-

    se uma interpretao dos contextos intelectual e material em que a noode pragmatismo ganhou vida. Na seqncia, enoca-se a trajetria e opensamento de Azeredo da Silveria. Em quarto lugar, situa-se a polticaexterna do pragmatismo no marco do projeto poltico do presidenteGeisel. Por fm, trata-se, sinteticamente, da reorma organizacionalque o novo governo promoveu no Ministrio das Relaes Exterioresa partir de 1974.

    Literatura e fontes

    O conhecimento existente sobre a poltica externa do pragmatismotem crescido rapidamente nos ltimos anos. Numerosos trabalhosacadmicos enocam o perodo especfco.1 Outros situam o quinqnio

    1 COSTA, Gino. Brazils oreign policy towards her neighbours during the Geisel years. 1986. Tese(Doutorado) Universidade de Londres, Londres; LIMA, Maria R. S. de. The political economy

    o Brazilian oreign policy: nuclear policy, trade and Itaipu. 1986. Tese (Doutorado) VanderbiltUniversity; PINHEIRO, Letcia. Foreign policy decision-making under the Geisel government:the president, the military and the oreign ministry. 1994. Tese (Doutorado) London School oEconomics and Political Science, Londres; MIYAMOTO, Shiguenoli. Do discurso triunalista aopragmatismo ecumnico (geopoltica e poltica externa no Brasil ps-64). 1995. Tese (Doutorado) Universidade de So Paulo, So Paulo; LIGIERO, Luis F. Polticas semelhantes em momentosdierentes: exame e comparao entre a poltica externa independente (1961-1964) e o pragmatismoresponsvel (1974-1979). 2000. Tese (Doutorado) Universidade de Braslia, Braslia; FERREIRA,L. F.A poltica latino-americana do Governo Geisel. 1993. Tese (Mestrado) PUC, Rio de Janeiro;SARAIVA, Miriam.A opo europia no marco do Pragmatismo Responsvel. 1994. Tese (Mestrado) PUC, Rio de Janeiro; LESSA, Antnio C. Brasil, Estados Unidos e Europa Ocidental no contextodo nacional desenvolvimentismo: estratgias de diversifcao de parcerias, 1974-1979. 1994. Tese(Mestrado) Universidade de Braslia, Braslia; SPEKTOR, Matias. Ruptura e legado: o colapso dacordialidade ofcial e a construo da parceria entre o Brasil e a Argentina (19671979). 2002. Tese(Mestrado) Universidade de Braslia, Braslia; FONSECA, Gelson. Mundos diversos, argumentosafns: aspectos doutrinrios da poltica externa independente e do pragmatismo responsvel. In:FONSECA, Gelson.A legitimidade e outras questes internacionais. So Paulo: Paz e Terra, 1998,p. 293-352; LIMA, Maria Regina Soares de & MOURA, Gerson. A trajetria do pragmatismo:uma anlise da poltica externa brasileira. Dados. 25, 3, 1982, p. 349-363; LESSA, Antnio C. Adiplomacia universalista do Brasil: a construo do sistema contemporneo de relaes bilaterais.Revista Brasileira de Poltica Internacional, Braslia, ano 41, 1998, p. 29-41; LESSA, Antnio C.

    A vertente perturbadora da poltica externa durante o governo Geisel: um estudo das relaesBrasilEstados Unidos. Revista de Inormao Legislativa, 35, 137, 1998.

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    Geisel em perspectiva de longa durao.2 J h, tambm, algumasmemrias e biograias de iguras-chave do perodo.3 Para ins decontextualizao, existe uma recente literatura sobre o fm do regime

    militar. O presidente Geisel e seu governo tm recebido crescenteateno medida em que novas ontes so disponibilizadas ao pblico.4Em relao fgura de Silveira, o comentrio positivo de seus auxiliares

    2 CERVO, Amado L. (org.) O desafo interancional. Braslia: Editora Universidade de Braslia,1994; ALBUQUERQUE, Jos G. (org.). Crescimento, modernizao e poltica externa. Sessentaanos de poltica brasileira: 1930-1990. So Paulo: Cultura, 1996;BANDEIRA, Moniz. Estadonacional e poltica internacional na Amrica Latina: o continente nas relaes ArgentinaBrasil:1930-1992. Braslia: Editora Universidade de Brasilia, 1995; BANDEIRA, Moniz. RelaesBrasilEstados Unidos no contexto da globalizao: a rivalidade emergente. So Paulo: Senac,1999; BANDEIRA, Moniz. O eixo Argentina-Brasil: o processo de integrao da Amrica Latina.Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1987; CAMARGO, Sonia & OCAMPO, Jos.Autoritarismo e democracia na Argentina e no Brasil: uma dcada de poltica exterior. So Paulo:Convvio, 1988; DANESE, Srgio F. Diplomacia presidencial. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999;VIZENTINI, Paulo F.A poltica externa do regime militar brasileiro . Porto Alegre: UFRGS, 1998;CERVO, Amado L. & MAGALHES, Jos. C. de. Depois das caravelas: as relaes entre Portugale Brasil: 1080-2000; SOMBRA SARAIVA, Jos F. O lugar da rica: a dimenso atlntica dapoltica externa brasileira: de 1946 a nossos dias. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1996;HURRELL, Andrew. The quest or autonomy: the evolution o Brazils role in the international

    system: 19641985. 1986. Tese (Doutorado) University o Oxord; MELLO, Leonel I. Brasil,Argentina e a balana de poder regional: equilbrio, preponderncia ou hegemonia? (1969-1986).1991. Tese (Doutorado) Universidade de So Paulo, So Paulo; GONALVES Williams daS. & MIYAMOTO, Shiguenoli. Os militares na poltica externa brasileira: 1964-1984. EstudosHistricos, 6, 12, 1993, p. 211-246; FERREIRA, Oliveiros S. As oras armadas como instrumentode poltica externa. Poltica e Estratgia, 4, 4, 1986.3 CORRA, Pio. O mundo em que vivi. So Paulo: Expresso e Cultura, 1995; CAMPOS,Roberto. Lanterna na popa. So Paulo: Companhia das Letras, 1994; CASTRO, Celso &DARAUJO, Maria C. (orgs.) Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1997;BARBOZA, Mrio Gibson. Na diplomacia, o trao todo da vida. Rio de Janeiro: Record, 1992;CAMILIN, Oscar.Memprias polticas, de Frondizi a Menem: 1956-1990. Buenos Aires: Planeta,1999; GUERREIRO, Saraiva. Lembranas de um empregado do Itamaraty. So Paulo: Siciliano,1992; FALCO, Armando. Geisel: do tenente ao presidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1995; CUNHA, Vasco Leito da. Diplomacia em alto mar. 2. Edio, Rio de Janeiro: FundaoGetlio Vargas, Braslia: Funag, 2003.4 ODonnell et alii. Transies do regime autoritrio: primeiras concluses. So Paulo: Vrtice, 1987;ALVES, Maria H. M. State and opposition in military Brazil. Austin: University o Texas Press,1985; LINZ, Juan J. The uture o an authoritarian situation or the institutionalization o anauthoritarian regime: the case o Brazil. In: STEPAN, Alred (ed.)Authoritarian Brazil. NewHaven: Yale University Press, 1973, p. 233-254; GES, Wlder de. O Brasil do general Geisel.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978; CAMARGO, Aspsia & GES, Wlder de. O drama da

    sucesso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984; e GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. SoPaulo: Companhia das Letras, 2003.

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    contrasta com as acusaes de seus desaetos.5 Lamentavelmente, aindah poucas inormaes sobre sua viso de mundo, j que ele no deixoudirios ou notas sistematizadas.

    De orma geral, esse conjunto de obras talvez aa do pragmatismoum dos perodos mais estudados da histria das relaes internacionaisdo Brasil. Paradoxalmente, entretanto, esse tambm um dos perodosmenos mapeados da atuao internacional do Brasil no psSegundaGuerra Mundial: altam estudos historiogrfcos detalhados sobre asprincipais vertentes da atuao externa do pas, sobre as causas dopragmatismo, sobre a sua base terica e conceitual, sobre a posio dopas na sociedade internacional dos anos 70 e sobre os paralelismos

    entre o pragmatismo brasileiro e o comportamento de outros pasesem desenvolvimento de porte mdio que, naquele momento histrico,tambm ensaiaram polticas externas mais assertivas (por exemplo, ricado Sul, ndia, Indonsia, Ir, Mxico e Paquisto).

    medida em que a abertura dos arquivos ofciais evolui, torna-se possvel re-avaliar o perodo desde novas perspectivas. O materialprimrio agora disponvel surpreende por seu volume e qualidade.Silveira doou sua coleo privada de documentos Fundao GetlioVargas, que a abriu para pesquisa no fm da dcada de 1990, juntocom uma srie de entrevistas gravadas entre 1979 e 1982.6 Da mesmamaneira, l encontram-se depositados os papis do presidente Geisel,embora estes no sejam crticos para a compreenso de sua polticaexterna.7 Apesar das recentes mudanas restritivas no marco regulatriode acesso a arquivos ofciais brasileiros, o pesquisador tambm conta com

    5 Ver o contraste, por exemplo, entre Palestras proeridas no Instituto Rio Branco em homenagemao ex-chanceler Azeredo da Silveira. Braslia: 15 maio, 2000. (disponveis em: ) com BANDEIRA, Moniz. Estado nacional..., op. cit., p. 235, CAMPOS, Roberto.Precio. In: BANDEIRA, Moniz. Relaes BrasilEstados Unidos no contexto da globalizao: arivalidade emergente. So Paulo: Senac, 1999, e MELO, Ovdio de A. O reconhecimento daAngola pelo Brasil em 1975. Comunicao & Poltica, maio/ago, 2000, p. 75-133.6 Para uma descrio do acervo ver http://www.gv.br/cpdoc. SILVEIRA, Antnio FranciscoAzeredo da. Depoimento. Rio de Janeiro: CPDOC, 1979/1980/1982, 2000. 22 tapes (20h 55).A seguir, Depoimento.7 Ver PINHEIRO, Letcia. O pragmatismo responsvel no arquivo do presidente Geisel. In:

    CASTRO, Celso & DARAUJO, Maria Celina (orgs.). Dossi Geisel. Rio de Janeiro: FundaoGetlio Vargas, 2002, p. 75-88.

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    o acervo do Arquivo Histrico do Ministrio das Relaes Exteriores,em Braslia. Finalmente, as chancelarias estrangeiras de importantesparceiros do Brasil e, notavelmente, as bibliotecas presidenciais norte-

    americanas, tm liberado materiais relevantes sobre a dcada de 1970 apasso acelerado.8

    Natureza e direo do pragmatismo

    Muito do comentrio sobre a poltica externa do governo Geiselinterpreta o perodo como um movimento de crescente independncia,autonomia e exibilidade em relao aos estreitos limites impostos pela

    estrutura do sistema internacional da Guerra Fria. Livrava-se o Brasil dapecha do alinhamento automtico aos desgnios do poder hegemnicohemisrico, os Estados Unidos. Assim, o pragmatismo seria umaexpresso da tentativa brasileira de ganhar maior espao de manobraem um sistema dominado pelas grandes potncias. Tal movimento teriasido possvel graas a mudanas estruturais no sistema internacionalentre as dcadas de 1960 e 1970 o declnio relativo da capacidademilitar dos Estados Unidos ace Unio Sovitica, a incorporao daChina continental ao equilbrio global de poder, a inusitada ora dospases produtores de petrleo via Organizao dos Pases Exportadoresde Petrleo (Opep), a voracidade do movimento de descolonizao na

    rica e na sia e suas repercusses na composio da ONU, o debatemilitar norte-americana no Vietn, e a emergncia da Europa e do Japocomo novos centros de poder econmico.

    A tnica do pragmatismo e seu elemento mais distintivo oia aproximao da poltica externa ao projeto normativo de tradiesrealistas de poltica internacional. Assim, a diplomacia dos anos Geiselvaleu-se, mais ou menos explicitamente, de conceitos e valores tpicosdo realismo poltico. A lista de exemplos extensa: a noo de queo pas movia-se em um sistema cujas partes esto estrategicamenteinterconectadas (por exemplo, a deciso brasileira de utilizar o programade visitas de Estado de Geisel Europa Ocidental como instrumento de

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    Em particular a Biblioteca Presidencial Gerald Ford, o Nixon Presidential Materialsdo NationalArchive Recordse a Biblioteca Presidencial Jimmy Carter.

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    barganha nas negociaes com os Estados Unidos); a crena, reetidaem atitudes polticas concretas, de que o pas podia, eetivamente,transcender suas circunstncias histricas, melhorar seu posicionamento

    relativo na estrutura internacional de poder e, assim, ganhar maisresponsabilidade e autoridade no cenrio internacional (por exemplo,as decises de Braslia em relao rica Negra); a adoo, ao menosretrica, da tica da prudncia e da autoconteno (por exemplo, adeciso de acrescentar os qualifcativos ecumnico e responsvel noo de pragmatismo); o abandono de posturas absolutas em relao potncia hegemnica (nesse perodo abandona-se, conscientemente, aoposio retrica tpica do Brasil do ps-Segunda Guerra mundial entre

    a completa abdicao e a total rejeio aos desgnios de Washington naspalavras do chanceler, o Brasil e os Estados Unidos passavam a ter umarelao mais madura medida que o Brasil transormava-se em um pasde calas compridas). Entretanto, a explcita utilizao de elementos doprojeto realista conviveu com a tradicional ideologia brasileira de polticaexterna. Como ser evidenciado abaixo, a integrao entre essas duasvertentes enrentou problemas e deixou muitas perguntas sem respostas.Seus resultados so instigantes tanto do ponto de vista terico como daperspectiva da poltica externa comparada.

    Hoje, sabe-se que muito do pensamento estratgico associado poltica externa do governo Geisel precedeu a posse do novo governoem maro de 1974 alguns de seus antecedentes apareceram nosanos da Poltica Externa Independente (19611964) e nos governosdos generais Costa e Silva (19671969) e Mdici (19691974). Hlinhas oriundas do Estado Novo (19371945) e da gesto de JuscelinoKubitschek (19561961). Em perspectiva de longa durao, os anosGeisel situam-se conortavelmente na tendncia geral a maior e maisveloz assero da autonomia nacional ace aos estritos limites impostospelo sistema internacional da Guerra Fria. Visto dessa maneira, opragmatismo coincide com o auge do modelo brasileiro de diversifcaode parcerias.

    Onde reside, ento, o elemento de inovao? A novidade dopragmatismo encontra-se, acima de tudo, no tratamento dos vnculos

    com os principais relacionamentos do pas. possvel detectartransormaes importantes em todas as reas relevantes da agenda

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    externa: no relacionamento com os EUA, com a Bacia do Prata, com ospases andinos, com a Europa, a rica, o Oriente Mdio, a China e o

    Japo. Nos casos de Argentina, Israel e Portugal, as medidas tomadas nos

    anospragmatismo colidiram com prticas de longa tradio no repertrioda diplomacia brasileira. Adotaram-se, tambm, novos posicionamentosna Organizao dos Estados Americanos (OEA) e na Organizaodas Naes Unidas (ONU). Alm disso, o pragmatismo trouxe novoselementos de estilo e de retrica do discurso diplomtico. Este umperodo de redefnies importante e, em certos casos, sistemticas, docomportamento brasileiro no ambiente internacional.

    Causas

    A produo intelectual existente sobre o pragmatismo aponta trsconjuntos de causas, localizadas no nvel as estruturas, das idias e daagncia de indivduos-chave. Em primeiro lugar, como indicado acima,a dcada de 1970 assistiu a modifcaes signifcativas na estruturainternacional de poder que acilitaram a projeo de certos pases emdesenvolvimento. Em segundo lugar, circulavam idias inovadoras sobrea capacidade desses pases emergirem na cena internacional e ganharemautonomia ace s grandes potncias, assim como na habilidade doTerceiro Mundo de introduzir uma agenda global de justia redestributivae reorma do ordenamento econmico internacional. Finalmente, aliteratura entende que a categoria de homem de Estado (ou lideranapoltica) ganha relevo especial ao se tratar do pragmatismo. Assim, o atode Geisel e Silveira haverem comandado a poltica externa teria eito todaa dierena, moldando a natureza e a direo das mudanas ocorridas. Anova documentao disponvel parece reorar a viso de que as origensdo pragmatismo oram multicausais e, mais especifcamente, materiais,intelectuais e de liderana individual.

    Antecedentes: origens do projeto de poder

    Esta seo descreve e analisa a evoluo da ideologia da poltica

    externa brasileira no perodo imediatamente prvio ao pragmatismo.Trata-se de um momento importante porque nessa poca comearam a

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    ganhar contorno os temas centrais da poltica externa da segunda metadeda dcada de 1970. Encontram-se l as primeiras maniestaes de queo sistema internacional cederia lugar a um Brasil ascendente caso o

    pas tivesse a coragem de ousar: As solues medocres e pequenas noconvm nem interessam ao Brasil. Temos de pensar grande e planejarem grande escala, com audcia de planejamento.9 Tal viso encontravaeco no comentrio estrangeiro sobre o Brasil, que descrevia o pas comopotncia emergente, potncia mdia ou potncia regional.10 Por outrolado, em fnais da dcada de 1960 tambm ganhava contorno a vertenteeconmica da assero externa do Brasil. Alm disso, o pas defnia o tipode poder que pretendia adquirir, especifcava a natureza do seu projeto

    revisionista no mundo e, ao az-lo, trazia supercie muitas das tensesque iriam caracterizar os anos do pragmatismo.

    As bases materiais do perfl brasileiro ao longo dos anos 60 e 70apontavam, com nitidez, em direo ascendente. Entre 1961 e 1980,o produto interno bruto brasileiro triplicou-se. Entre 1968 e 1973, aeconomia cresceu, em mdia, 11% ao ano sem inao signifcativa,um logro somente alcanado, desde o fm da Segunda Guerra mundial,pelo Japo. Pela primeira vez, o Brasil assistia criao de um mercadodomstico massifcado e o crescimento econmico, pelo menos nos anos70, no era acompanhado por um aumento da desigualdade de renda.

    A estratgia brasileira de desenvolvimento outorgava ao Estado a principalresponsabilidade pela elevao do produto interno bruto mediante a

    9 CONFERNCIA DE ARAJO CASTRO NO COLGIO INTERAMERICANO DEDEFESA. Washington D.C. 11 dez 1970.10 SCHNEDIER, Ronald. Brazilian oreign policy: a case study in upward mobility. InteramericanEconomic Aairs, 27, 4, spring 1974, p. 3-25; LANDRY, David M. Brazils new regional andglobal roles. World Aairs, 137, summer 1974, p. 23-37; ROETT, Riordan. Brazil ascendant:international relations and geopolitics in the late 20th century.Journal o International Aairs,9, 2, Fall 1975, p. 139-154; PERRY William. Contemporary Brazilian oreign policy: theinternational strategy o an emerging power. Foreign policy papers, 2, 6, Beverly Hills, Caliornia:Sage Publications, 1976; ROETT, Riordan (ed.) Brazil in the seventies. Washington: AmericanEnterprise Institute or Public Policy Research, 1976; GALL, Norman. The Rise o Brazil.Commentary. Jan 1977; SCHNEIDER, Ronald. Brazil: oreign policy o a uture world power.Boulder, Colorado: Westview, 1977; BROOKE, Jim. Dateline Brazil: southern superpower.Foreign Policy. Fall 1981, 167-180; SELCHER, Wayne (ed.). Brazil in the international system:

    the rise o a middle power. Boulder, Colorado: Westview, 1981; YOUNG, Jordan. Brazil: emergingworld power. Malabar, Florida: Robert Krieger, 1982.

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    privando aos pases mais pobres da possibilidade de desenvolver-seplenamente. Era como se o coro brasileiro inclusse as vozes de List eColbert por um lado, e as de Marx e Prebisch por outro. devido a essa

    mistura de duas correntes distintas do pensamento econmico que ocaso da industrializao brasileira no encontra paralelos ceis com astradies estatistas das industrializaes norte-americana, alem, russaou japonesa. Era na interseo entre os poderes redentores do Estado eda desigualdade estrutural entre as naes que o Itamaraty concebia aparticipao brasileira no comrcio internacional como instrumento deassero nacional.12

    Em terceiro lugar, apesar da retrica da potncia emergente, o

    Brasil do perodo mantinha-se fel aos princpios do realismo dos racos:a poltica externa enatizava o pacifsmo, o no-intervencionismo, aautodeterminao e a segurana coletiva. O pas de Mdici, assim comoo aria o de Geisel, continuava abraando o direito internacional como escudocontra as presses das grandes potncias e desconfando da celebrao detratados entre desiguais. Assim, a poltica externa no se queria estacionrianem revolucionria: sua abordagem era moderadamente revisionista.13

    Qual era a lgica do revisionismo brasileiro? Desde meados da dcada

    de 1960, o discurso diplomtico brasileiro argumentava que o status quointernacional uncionava em detrimento do Brasil e, portanto, devia serreestruturado. O problema, dizia-se, residia no ato de que, para as grandespotncias, o equilbrio de poder equivalia ausncia de conrontos nuclearese reduzia-se a ela. Tal postura, afrmavam os brasileiros, era contrria aosinteresses das naes mais racas, para as quais uma estrutura global depaz apenas surgiria da combinao entre segurana e desenvolvimentoeconmico e social.14 Criticava-se, assim, a coexistncia pacfca e a poltica

    12 Para uma viso histrica das teorias do Equilbrio de Comrcio ver HASLAM Jonathan. Novirtue like necessity: realist thought in international relations since Machiavelli. New Haven: YaleUniversity Press, 2002; para a idia de que a poltica externa brasileira pode ser interpretadasobre um dilogo imaginrio entre Maquiavel e Marx ver HURRELL, Andrew. The theoryo Brazilian oreign policy. Mimeo: 1998; para uma explicao das teorias dependentistas verLOVE, Joseph L. Economic ideas and ideologies in Latin America since 1930. In: BETHELL,Leslie (ed.). Ideas and ideologies in twentieth century Latin America. Cambridge University Press,1996, p. 207275.13 Ver CERVO. O desafo... op. cit.14

    CASTRO Arajo. Palestra no Colgio Interamericano de Deesa. Washington D.C.:14 maio 1969.

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    polticainternacional

    de controle de armamentos tpicas da dtentepor dividirem o mundo emeseras de inuncia, congelando a estrutura do sistema internacional eimpossibilitando as naes mais racas de alcanar seus desgnios nacionais.

    Nesse contexto, o propsito declarado da poltica externa brasileira erao de neutralizar todos os elementos do sistema internacional capazes deobstaculizar o potencial brasileiro de poder.15

    Em termos prticos, durante a dcada prvia chegada de Geiselao poder, o Brasil deu os seguintes passos: como membro undador daUnctad, deendeu a noo de segurana econmica coletiva; rejeitouo Tratado de No-Prolierao Nuclear; passou, gradativamente, aapoiar o movimento de descolonizao aro-asitico; argumentou, na

    ONU, a avor da transerncia de 1% dos gastos militares globais para apromoo do desenvolvimento econmico internacional; manteve statusde observador mas nunca associou-se completamente ao MovimentoNo-Alinhado; mobilizou-se para uma reorma da Carta da ONU;somou sua voz demanda terceiro-mundista por uma Nova OrdemEconmica Internacional; abandonou gradualmente seu apoio a Israelpara aproximar-se do mundo rabe, azendo o mesmo com a rica doSul do apartheid vis-a-visa rica Negra; extendeu seu mar territorial

    de trs para duzentas milhas; vinculou noes de proteo ambiental sde desenvolvimento industrial; recusou a possibilidade de ocupar umassento rotativo no Conselho de Segurana da ONU, denunciando aintransigncia das grandes potncias; e, fnalmente, rejeitou as medidasde controle populacional adgovadas pelo FMI, Banco Mundial e

    Assemblia Geral da ONU.16 Ou seja, o Brasil aderiu crescente crticaterceiro-mundista da ordem internacional, mas o ez sem adotar papelprotagnico ou conrontacionista.

    A medida exata do potencial brasileiro de poder permaneciaincgnita. Mas havia indcios de que os instrumentos de que o Brasilpoderia dispr em sua trajetria ascendente no eram os mesmosutilizados por outros pases mdios poca, como a ndia e o Egito. Nocaso brasileiro, deparamos com aquilo que a literatura contempornea

    15 CASTRO Arajo. Conerncia no Colgio Interamericano de Deesa. Washington D.C.:11 dez 1970.16

    Ver BUENO, Clodoaldo. A poltica multilateral brasileira. In: CERVO. O desafo...,op. cit., p. 59-144.

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    chama de sot power. Trata-se de um modelo no qual o poder de um pasno depende, exclusivamente, de suas capacidades materiais (indstria,recursos naturais, dimenses geogrfcas, exrcitos e armamento). O oco

    recai, ao contrrio, sobre a capacidade que o pas tem de angariar apoiosexternos para os valores e posturas que propugna no meio internacional.O poder do pas reside em sua habilidade para manipular o sistemainternacional em seu avor. Para tanto, cabe diplomacia nacionaltirar proveito da interdependncia entre as naes. Eis a lgica por trsdas prioridades brasileiras de diversifcao de mercados, da resistnciaem associar-se incondicionalmente ao Movimento No-Alinhado e dacomplementao ntida no discurso diplomtico do valor da ordem com

    o valor da justia.Da segue que, durante os primeiros anos da dcada de 1970, a

    retrica brasileira passou a ser crescentemente permeada por expressestais como distribuio, igualdade, equidade, proporcionalidade,discriminao, participao e incluso. Essa tendncia, entretanto,continha imprecises. Por vezes, a demanda brasileira por mais justia eraidentifcada com o princpio da igualdade (isto , todas as partes devemreceber prmios e custos idnticos). Em outras ocasies, contudo, a

    justia era compreendida como compensao (isto , as partes mais ortesdevem utilizar seus recursos para indenizar os custos inigidos s maisracas). Muitas vezes as duas noes apareciam undidas. Assim, segundoa proposta da Nova Ordem Econmica Internacional, o desenvolvimentodeveria ser considerado um direito universal e atingido mediante uma sriede regras que levariam a concesses recprocas, mas tambm proporcionais.

    A tenso entre a justia como igualdade e a justia como compensaonunca chegou a ser completamente resolvida no discurso dos pasesperiricos. De tal sorte, nunca fcou completamente claro como quea noo de justia torna-se parte integrante da estabilidade e da ordeminternacional. Isso talvez ajude a compreender por que, apesar daprojeo do Terceiro Mundo durante as dcadas de 1960 e 1970, altarampropostas concretas e precisas sobre como reverter a injustia global.17

    17 Ver MORTIMER, Robert A. The third world coalition in international politics. Boulder, Colo.:

    1984; BHAGWATI, Jagdish N. & RUGGIE, John Gerard. Power, passions, and purpose: prospectsor North-South negotiations. Cambridge: 1984; SAUVANT: Karl P. The group o 77: evolution,

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    Em quarto lugar, apesar da nase na interdependncia, o realismobrasileiro que ganhava orma naquele perodo repetia o carterdeensivo de outrora, modernizando-o. Reafrmava-se a soberania, a

    autodeterminao e a no-interveno contra o que era visto, desdeBraslia, como um conjunto de normas internacionais cada vez maisintrusivas. A crtica da expanso da vertente normativa da comunidadeinternacional recaa no argumento, inusual e ascinante, de que apenasos pases poderosos poderiam abdicar de aspectos de sua soberania semcomprometer a integridade de seus pases. Os racos ainda precisavamdo escudo da soberania para proteger-se e, assim, poder crescer.

    Airma-se a necessidade do estabelecimento de alguns rgossupranacionais, destinados a impor restries e limitaes em assuntoscomo os da preservao do meio humano, populao, no-prolierao,etc., argumentando-se que as novas condies do mundo tornam obsoletose superados certos conceitos de soberania e independncia. Ora, ningumduvida de que o progresso das relaes internacionais, para ser eetivo eduradouro, ter de assentar em certas premissas de interdependncia e emcertas bases supranacionais. Isso evidente. O que sustentamos que esseestgio de supranacionalismo e de interdependncia pressupe um estgioprvio de soberania e de total independncia poltica e econmica (...), assim, pereitamente compreensvel que os pases menores se agarrema propsitos e princpios que, ainda que constante e repetidamenteviolados, os ajudam a deender-se de presses polticas e diplomticas(...) Evidentemente, os pases maiores e mais ortes podem dar-se aoluxo de ser muito menos afrmativos em relao a sua soberania e a seunacionalismo.18

    Em retrospectiva, embora os anos prvios ao pragmatismoconstituam um perodo de redirecionamento importante da polticaexterna brasileira tradicional, o leitmotida ideologia nacional o perflde potncia emergente e a aspirao a um statusmais elevado no concerto

    structure, organization. New York: 1981; SINGH, J.S.A new international economic order. NewYork: 1977; REUBEN, Edwin (ed.). The challenge o the new international economic order. Boulder,Colo.: 1981. Ver tambm FOOT, Rosemary; HURRELL, Andrew; GADDIS, John Lewis. Orderand justice in international relations. Oxord: Oxord University Press, 2003.

    18 CASTRO, Arajo. Conerncia no Colgio Interamericano de Deesa. Washington D.C.: 11dez 1970.

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    internacional no levou a uma reviso sistemtica da poltica externa.O carter dbio do Brasil Potncia revela um ideal nacional que eraambicioso mas vago, enraizado no surto do crescimento econmico e

    associado ao carter repressivo do governo. Durante a gesto Mdici, porexemplo, a crtica brasileira do ordenamento internacional manteve-serestrita aos oros multilaterais e de nenhuma maneira conrontou aspreerncias das grandes potncias. Apesar da assero retrica, a ideologiapor trs do desenvolvimento brasileiro permaneceu, em grande parte,voltada para dentro e sem vertente internacional clara.19

    Mas as incoerncias da idia de Brasil Potncia no representavamum problema poltico relevante. O regime conseguia vitrias eleitorais

    impactantes para seu partido.20 Somente a partir de 1973 os undamentosmateriais e ideolgicos desse quadro comearam a mudar. A criseinternacional do petrleo escureceu as perspectivas do modelo econmicoe, meses mais tarde, as urnas instalaram um clima de incerteza sobre aviabilidade do regime autoritrio. Criavam-se as condies para que,em 1974, o novo governo pusesse a poltica externa rente de seuprojeto de poder.

    A formao de Azeredo da Silveira

    Durante os anos do Brasil Potncia, Silveira estava envolvido numadas rentes mais delicadas da poltica externa a embaixada em Buenos

    Aires. Uma panormica das posturas que l tomou introduz os elementosessenciais de seu pensamento realista, suas proposies mais poderosas,e seus problemas e ausncias mais chamativos. Os anos na Argentinatambm dizem muito sobre a natureza e o escopo das inovaes deSilveira em relao poltica externa tradicional como um todo.

    Antes, cabem breves comentrios sobre sua trajetria poltica ecarter. Silveira nasceu em 22 de setembro de 1917, o quinto de sete

    19 Ver HURRELL, Andrew. Brazil as a regional great power: a study in ambivalence. In:NEUMANN, Iver. Regional great powers in international politics. London: St Martins Press,1992, p. 16-49.20 Para uma anlise da coexistncia entre eleies e regime autoritrio ver METTENHEIM,

    Kurt von. The Brazilian voter: mass politics in democratic transition (1974-1986). Pittsburgh:University o Pittsburgh Press,1995.

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    flhos. Esta era uma amlia politizada: seu bisav ora ministro dosAssuntos Estrangeiros na dcada de 1870 e, durante 25 anos, seu avora um poltico inuente que participou vrias vezes da Comisso

    Diplomtica da Cmara. Seu pai era um parlamentar cuja oposio aoregime varguista terminou por lev-lo vrias vezes priso. Isso tevegrande impacto na vida do seu flho, que aos 14 anos deixou a elitistaescola Anglo-Americana para reconciliar os estudos com o trabalhoadministrativo em um banco local. No banco ele cresceu rapidamente,tornando-se chee de Departamento aos 20 anos. Mas sua impacinciacom o estilo de vida estagnante do banco o levou a deixar o Brasil, em1939, para uma permanncia de 4 anos nos Estados Unidos. L trabalhou

    como ofcial administrativo no consulado brasileiro em So Francisco.Em 1943, aos 26 anos, retornou ao Rio de Janeiro para ingressar carreira diplomtica. No curso de sete meses conheceu e casou-se comMay Paranhos. Uma vez na carreira, somou-se aos Novos Turcos, umgrupo de jovens profssionais que estavam em desacordo com a conduodo ministrio e discutiam alternativas doutrinrias. Duas dcadas maistarde, em 1964, Silveira oi elevado ao grau de embaixador, trabalhandocomo diretor da Diviso de Assuntos Administrativos, embaixador emGenebra e, depois, em Buenos Aires. Sua postura pouco convencional emrelao Argentina chamou a ateno do ento presidente da Petrobrs,general Ernesto Geisel. Em 15 de maro de 1974, aos 56 anos, Silveiraatingiu rango ministerial no gabinete do presidente Geisel. Cinco anosmais tarde, fndo o governo, Silveira chefaria as embaixadas nos EstadosUnidos (1979-1983) e em Portugal (1983-1985). Ele morria de cncerem 1990, aos 73 anos.

    Muito do comentrio sobre sua gesto descreve um carter duroe militante. Corajoso, audacioso, persistente, tenaz, vivaz, cordial,charmoso, gnio criativo e respeitoso so alguns dos adjetivos recorrentescom os que ele identifcado. Excntrico, louco, estridente, combativo,vingativo, mordaz e impetuoso tambm. O homem era adicto aotrabalho, expansivo na conversa, orgulhoso de seu prprio conhecimentoem poltica externa e tinha obsesso por detalhe. Tinha ojeriza altade densidade analtica de muitos de seus colegas porque, por ele, tal

    superfcialidade permitia ao burocrata justifcar a sua inao perante osatos. No surpreende, portanto, que os critrios utilizados por Silveira

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    para julgar um interlocutor ossem essencialmente intangveis estilo,perspiccia, carter e vocao para a ironia. O gosto pelo intangvel maistarde seria insumo crtico para o desenvolvimento de uma singularssima

    relao com seu colega norte-americano, Henry Kissinger. Um assuntopessoal era importante. Silveira e sua mulher tiveram quatro flhos. Emcurto perodo, duas das flhas morreram tragicamente ao tempo em queseu pai chegava ao topo da carreira. Anos mais tarde, ele reconheceriaque essa experincia lhe dera renovado vigor e coragem para suportar asvicissitudes do poder. Mais do que isso, ele acreditava que a dor da perdadas flhas o pusera em posio privilegiada para lidar com o introspectivopresidente Geisel, cuja viso de mundo e estilo tambm haviam sido

    aetados pela perda de um flho moo em acidente trgico.

    A batalha formativa

    Em meados da dcada de 1960, as relaes entre Argentina e Brasilazedaram em nveis at aquele momento desconhecidos. No centro dadisputa, o controle das guas internacionais do Rio Paran a partir daelaborao dos planos para a construo da represa brasileiro-paraguaia

    de Itaipu.21 No Brasil, o tema cindiu as opinies em dois camposnitidamente opostos. De um lado, estavam aqueles que deendiam aprtica histrica do Itamaraty era mister acomodar os interesses brasileiross demandas argentinas. Esse pensamento, herdeiro de tradies oriundasda diplomacia brasileira no Prata do sculo XIX, respeitava os moldesdo realismo deensivo: era de interesse brasileiro tolerar o alto perflda diplomacia argentina porque Buenos Aires era a nica capital sul-americana capaz de mobilizar todo o subcontinente contra o Brasil; cabia

    ao Brasil buscar, sistematicamente, novas oportunidades de cooperaocom a Argentina no intuito de desdramatizar a agenda bilateral e diluiraixas de atrito; ganhava o Brasil muito ao incluir a Argentina em suasiniciativas regionais e hemisricas porque, ao az-lo, Buenos Aires sentia-se parte do ordenamento regional e, assim, o legitimava; e, fnalmente,tinha o Brasil um interesse natural em promover bons ocios entre a

    21 Ver, por exemplo, MENDONA, Ariel M. de. A geopoltica e a poltica externa do Brasil: a

    Ata das Cataratas e o equilbrio de oras no Cone Sul. 2004. Tese (Mestrado) Universidade deBraslia, Braslia.

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    Argentina e os Estados Unidos sempre que esses dois pases entrassem emrota de choque uma dinmica recorrente nas relaes internacionais dohemisrio ao longo do sculo XX.22 Para esse grupo, a estratgia brasileira

    tradicional da cordialidade ofcial em relao Argentina era uma dascausas principais de o Brasil nunca haver testado oras com o vizinhono campo de batalha. Um dos principais propositores dessa poltica, oembaixador Pio Corra, vaticinava: Seria um erro atal (...) pretendero Brasil acantonar-se em uma poltica de isolamento e de omisso ou,pior ainda, de obstruo ante a questo da Bacia do Prata.23

    Do outro lado, e em oposio, emergiam vozes crticas polticatradicional do Brasil para seu vizinho austral. No se tratava de um grupo

    organizado em torno a uma lgica nica, nem contavam essas pessoascom o apoio e valor agregado de dcadas de tradio. Entretanto, oramessas as vises que passaram a ganhar os sucessivos debates internosno Itamaraty. nessas fleiras que Silveira, j nos primeiros meses de1969 como novo embaixador em Buenos Aires, comeou a alcanarnotoriedade. A evoluo do embate interno sobre a estratgia brasileirapara a Argentina ascinante e pode ser agora acompanhada em detalhegraas a novas ontes.24 Por que Silveira se opunha acomodao? Aquio pensamento realista de Silveira comea a ganhar contornos ntidos.

    O consenso tradicional, na chancelaria, sobre a melhor ormade lidar com a Argentina era, em sua essncia, um consenso sobre os

    22 Para uma sntese deste argumento ver SPEKTOR, Matias. O Brasil e a Argentina entre acordialidade ofcial e o projeto de integrao. Revista Brasileira de Poltica Internacional, ano 45,v. 1, 2002, p. 117-145.23 Pio Corra ao Ministrio das Relaes Exteriores (MRE), telegrama confdencial, Buenos Aires,24 jan 1969, n. 349, Acervo Azeredo da Silveira (AAS), 1972 a 73. CPDOC/FGV (FundaoGetlio Vargas).24 Os documentos-chave deste perodo so: Silveira ao MRE, telegrama confdencial, BuenosAires, 21 mar 1970, n. 49, AAS, 1969.01.15. CPDOC/FGV; Silveira ao MRE, ocio-parecer,Buenos Aires, 10 maio 1971, n. 394, Arquivo Histrico do Ministrio das Relaes Exterioresem Braslia (AHMRE), caixa 17; Silveira ao MRE, ocio secreto, Buenos Aires, 23 jun 1971,n. 518, AHMRE, caixa 17; MRE legao em Buenos Aires, telegrama secreto urgentssimo,Braslia, 10 ago 1971, n. 599, AAS, 1969.01.15. CPDOC/FGV; Silveira ao MRE, telegramasecreto, Buenos Aires, 14 de julho de 1971, n. 1133, AAS, 1969.01.15.CPDOC/FGV; MRE legao em Buenos Aires, telegrama secreto, Braslia, 22 jul 1971, n. 535, AAS, 1969.01.15.CPDOC/FGV; Gibson Barboza a Silveira, telegrama particular secreto urgentssimo, Braslia,

    10 ago 1971, AAS, 1969.01.15. CPDOC/FGV; e Silveira a Gibson Barboza, telegrama particularsecreto urgentssimo, Buenos Aires, 10 ago 1971, AAS, 1969.01.15. CPDOC/FGV.

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    constrangimentos que o sistema sul-americano impunha ao Brasil.A postura deensiva em relao ao vizinho devia-se percepo comum,durante boa parte do sculo XIX e mais da metade do sculo XX, de

    que a Argentina tinha capacidade de mobilizao diplomtica contrao Brasil no contexto sul-americano. Em 1969, entretanto, Silveira viamudanas importantes na distribuio regional de poder. A Argentina, eleargumentava, no mais ombreava o Brasil. Para ele, o declnio argentino abriacaminho para um novo arranjo regional no qual o Brasil abandonaria suaposio acuada. Curiosamente, a anlise de Silveira no estava assentadana argumentao clssica de certo pensamento realista segundo o qual opoder mensurvel em termos materiais. Ao contrrio, e de acordo com

    noes brasileiras herdadas da poca do Imprio, Silveira via o podercomo um misto de capacidade fnanceira, pujana cultural e agilidadediplomtica. Para ele, Buenos Aires havia perdido os elementos que outroralhe permitiram atrair e manter estreitas amizades na Amrica do Sul. Comomuitos de seus antecessores, Silveira acreditava que a posio relativa deuma nao dependia mais de seu prestgio na sociedade internacional doque de sua ora militar. O poder era, acima de tudo, um atributo social,sustentado por peso econmico.25

    De que maneira e por que canais as mudanas no poder relativo dasnaes traduziam-se em modifcaes no status quo internacional? Essa uma pergunta importante e atual porque tem recebido pouca atenono pensamento terico do realismo. Aqui, a histria da poltica externapode ajudar a esclarecer esses mecanismos. Na anlise de Silveira, havia umaincongruncia entre a estrutura sul-americana de poder (onde a Argentinano mais tinha meios materiais ou sociais para pressionar o Brasil como ofzera) e o comportamento das unidades (onde o Brasil dos tardios anos 60

    continuava comportando-se como se a Argentina tivesse capacidade depression-lo). O problema, Silveira deixava a entender em seus inmerosdespachos, era de percepes: os constrangimentos do Brasil na cenasul-americana eram auto-impostos. As amarras eram essencialmenteintelectuais, acumuladas progressivamente ao longo das dcadas. O Brasilprecisava, portanto, livrar-se da sombra de sua prpria tradio.

    As propostas alternativas que Silveira apresentava evidenciam ocontedo e substncia de seu realismo, cujas caractersticas principais

    25Depoimento, 19, B, 30 jan 1980.

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    podem ser encontradas, em maior ou menor grau, no passado daprtica internacional do Brasil. Para ele, normas, acordos, tratados econvenes internacionais eram importantes, mas apenas na medida

    em que agregassem valor direo geral do interesse nacional. Assim,Silveira desenvolveu argumentos para convencer o Itamaraty de quea Declarao de Montevidu arcabouo legal assinado por Brasil e

    Argentina em 1933 para regular o uso de guas internacionais da Baciado Prata no mais era instrumental aos interesses brasileiros da dcadade 1970 e deveria, portanto, ser substitudo. Assim, em sua viso demundo as normas internacionais reduzem a incerteza e induzem as naesa convergir, mas no moldam as preerncias nacionais. Elas regulam o

    interesse nacional, no o constitutem. Marcos normativos consolidamo status quo regional e devem, portanto, ser utilizados uma vez que osinteresses nacionais esto plenamente satiseitos, no antes.

    Por outro lado, Silveira entendia que os pases mais ortes da Amricado Sul estavam em posio de impr a lei aos mais racos, mas ganhavammuito se conseguissem omentar o sentimento de incluso entre ossegundos. Muito da estratgia de Silveira para a Argentina era inormadopela compreenso de que Braslia teria como deslocar Buenos Aires

    como o principal elo de Assuno, La Paz e Montevidu. Tal mudanaincluiria a oerta de crdito para a realizao de obras de inra-estrutura ecooperao tecnolgica (como com a Bolvia); a reviso de acordos tidoscomo desequilibrados pelos mais racos (por exemplo, a reviso legaleita no governo Geisel sobre a administrao da Lagoa Mirim com oUruguai); a retifcao de atos considerados como injustias histricaspelos menores (por exemplo, a devoluo ao Paraguai, por Geisel, dostrous de guerra obtidos pelo Brasil ao fm da guerra do sculo XIX); e

    a quebra do equilbrio de poder sul-americano, a avor do Brasil (comoindicado na justifcativa brasileira para a proposta de um Tratado deCooperao Amaznica). Ao tomar tais medidas, Silveira acreditava queo Brasil aumentava seu mdico de poder social na regio.26

    Finalmente, em seus anos de ormao, Silveira tambm explorouo princpio de que as preocupaes econmicas e comerciais tmprecedncia sobre outras consideraes. Apesar de haver recomendadoque (...) daqui por diante, qualquer aspecto de nossa poltica bilateral

    26 Ver documentao citada, para cada episdio, em SPEKTOR. Ruptura e legado.Op. cit.

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    com a Argentina desde o intercmbio comercial at o recurso gua, porexemplo deve ser considerado no apenas em seus aspectos especfcos,mas luz das atuais diretrizes gerais do governo argentino (...)27, o

    comrcio bilateral durante sua gesto como embaixador em Buenos Airese, depois, como chanceler, mais que duplicou.

    No causa surpresa que o primeiro encontro entre o uturo presidenteGeisel e Silveira tenha girado em volta ao tema de uma nova estratgiaregional. A noo de poder nacional articulada por Silveira em seusanos ormativos iriam inormar, ao longo dos anos do pragmatismo, asprincipais opes polticas do governo.

    A virada de Geisel

    Ao chegar ao poder em maro de 1974, Ernesto Geisel e seu grupohaviam decidido iniciar um processo de liberalizao poltica batizadode abertura. Assim como Gorbatchov o aria anos mais tarde, Geiselalava em uma transio do regime autoritrio para uma situao vaga,nunca explicitada. No se alava de uma transio do autoritarismopara a democracia. A noo de que a liberalizao poltica no Brasilculminaria com um governo civil eleito pelo povo no ocorreu at muitomais tarde.

    Por que liberalizar? A literatura especializada tem argumentado quea liberalizao do sistema poltico oi uma estratgia liderada por umaaco do regime que pretendia preencher o vcuo entre o estabelecimentomilitar enquistado no aparelho de Estado e a sociedade brasileira. Aoaz-lo, esse grupo tentava prevenir o distanciamento entre a elite militargovernante e o corpo poltico nacional por um lado e, por outro, pr fms lutas internas entre aces militares rivais, to comuns em regimescentralizados. Essas interpretaes convergem para que a deciso deGeisel pela abertura gradual e controlada oi tomada autonomamentepor ele, e no resultou de demandas da sociedade civil, nem do fm dociclo de crescimento milagroso ou de presses internacionais.

    27

    Silveira ao MRE, telegrama secreto urgentssimo, Buenos Aires, 26 jul 1971, n. 1237, AAS,1969.01.15. CPDOC/FGV.

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    Em retrospectiva, a abertura incluiu: o progressivo fm da censura imprensa, a reduo do poder e independncia da comunidade deinormaes, o abandono da prtica das prises polticas, ortalecimento

    da hierarquia militar, a anistia a exilados polticos e a imposio de umanova lei eleitoral enviesada a avor do partido governante. Essa agendacoexistiu com o uso poltico da tortura e do terrorismo de Estado, a censurae a interveno ofcial em sindicatos e no Congresso Nacional. A aberturateve altos e baixos, evoluindo de orma no-linear. A liberalizao era umabriga sem fnal defnido na qual nenhum ator poltico sabia ao certo comoe quando se chegaria a um fm. Assim, o regime militar brasileiro levou dezanos para consolidar-se (1964-1973) e mais quinze para instituir eleies

    presidenciais universais e competitivas (1974-1989).Quais eram as dimenses internacionais da abertura? O ambiente

    externo apenas jogou um papel secundrio, seno irrelevante, na decisopresidencial de abrir o regime em 1974. De ato, a presso internacionalpela democratizao somente chegaria trs anos mais tarde, com aeleio de Jimmy Carter para o governo norte-americano. Tais presses,entretanto, tiveram o impacto oposto ao pretendido, levando vriosatores domsticos a reagir ao processo de reorma,

    Porm, mister notar que abertura e poltica externa se interagiramde orma signifcativa. Ao mudar o oco das indagaes das dimensesinternacionais da liberalizao para, ao contrrio, levantar questionamentossobre a poltica da poltica externa brasileira poca, ento possveldizer coisas relevantes sobre a maneira em que a cena internacional e osdesenvolvimentos domsticos interagiram naquele momento histrico.Quais oram, ento, as dimenses de poltica externa da abertura? Estaainda uma rea incipiente do conhecimento que dever receber atenodetalhada. A ttulo tentativo, e de maneira sinttica, plausvel sugerirque a poltica externa de Geisel oi mais uma das erramentas utilizadaspelo governo para ganhar controle sobre as aces militares rivais eangariar apoios da opinio pblica nacional.

    Assim, a poltica externa oi utilizada de trs maneiras principais. Emprimeiro lugar, Geisel utilizou o processo decisrio da poltica externapara ortalecer seu controle pessoal sobre seus colegas militares. Ele sabia

    que ao ganhar batalhas internas contra a linha dura em temas da agendaexterna, seu projeto poltico estaria sendo ortalecido como um todo.

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    De tal sorte, quando o presidente decidiu reconhecer os movimentosindependentistas marxistas na rica Negra e na China comunista, elelanou oensiva preventiva no Conselho de Segurana Nacional uma

    instituio dominada por militares para cooptar seus membros. Damesma maneira, Geisel reestabeleceu os laos com o mundo socialista.Dois eventos tendem a confrmar essa interpretao. Por um lado, quandoo principal porta-voz da linha dura, ministro do Exrcito Slvio Frota,oi sumariamente demitido por Geisel, seu discurso de renncia erauma crtica explcita conduo da poltica externa. Assim, a atuaointernacional do Brasil era moeda de troca entre as aces do regime. Poroutro lado, hoje sabemos que a deciso presidencial de no reestablecer

    relaes ormais com a Cuba de Fidel Castro apesar das recomendaesde Silveira era motivada pela percepo de que, ao az-lo, o grupo dopresidente poderia perder a briga que tal movimento necessariamentedesencadearia entre os militares.28

    Em segundo lugar, a poltica externa oi a principal protagonistade um dos principais passos da abertura o fm da censura imprensa.Cedo em seu governo, Geisel decidiu que daria depoimentos durantesuas viagens internacionais. Dessa orma, mantinha a mstica em tornoda fgura do chee de Estado e evitava ter que lidar com o impacto desuas declaraes na caserna e na sociedade civil. Repentinamente, asviagens do presidente ao exterior passaram a incluir enviados especiaisdos principais jornais e televises do pas.29 Embora o interesse dosmesmos no osse prioritariamente por assuntos da agenda internacional,o clima das viagens e as inovaes do governo na pauta externa criaramuma situao na qual a diplomacia era a poltica governamental maisdebatida e, conseqentemente, mais questionada. Assim, a partir de1975, encontra-se um nmero expressivo de artigos de jornal, editoriaise comentrios sobre a poltica externa. Poucas vezes na histria umchanceler tinha sido retratado como carnavalesco, perigoso, pouco srio,inconsciente e pueril.30 No surpreende, portanto, que Silveira tenha

    28 Ver PINHEIRO, op., cit., e SPEKTOR, op. cit.29 Especialmente o Jornal do Brasil(Walder de Ges), a Gazeta Mercantil (Mriam Leito),OEstado de So Paulo (Carlos Conde), a Folha de So Paulo (Clvis Rossi), O Globo (Clia

    Sardemberg) e a Rede Globo (Marilena Chiarelli).30 Ver editoriais deJornal do Brasil, O Estado de So Paulo e Folha de So Paulo do dia 1o ev 1979.

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    sido o primeiro chee do Itamaraty a instituir uma diviso para lidarexclusivamente com a imprensa.

    Em terceiro lugar, a poltica externa oi elemento utilizado por

    Geisel para gerar consenso domstico entre as diversas aces da cenapoltica. Por exemplo, ao aumentar o tom terceiro-mundista do discursodiplomtico e ao mostrar vigor nas relaes com os Estados Unidos,ele compensava o conservadorismo e lento ritmo de suas polticasdomsticas. O governo tambm lanou mo da denncia nacionalistade normas e padres internacionais para o meio ambiente e os direitoshumanos, protegendo no apenas os interesses da indstria instaladano Brasil, mas tambm preservando a corporao militar de potenciais

    acusaes pelo aprisionamento poltico e desaparecimento de civis. Aoaz-lo, Geisel conseguiu angariar apoios de todo o espectro ideolgico,inclusive de setores da esquerda nacionalista que se encontravamexcludos do processo poltico ormal.

    Por fm, Geisel chegou ao poder apenas alguns meses aps oprimeiro choque do petrleo. Durante sua gesto, o mercado creditciointernacional para naes em desenvolvimento colapsou. Contrariamente estratgia da Coria do Sul, perante esse cenrio o Brasil aumentou oinvestimento pblico em seu programa de industrializao, acreditandoque o pas atravessava uma ase crtica do desenvolvimento capitalista.O resultado oi amplamente negativo. Em 1974, o Brasil acumulavaum dfcitcomercial de US$ 4 bilhes. Ao fm do governo Geisel, eramUS$14 bilhes, uma tendncia desconhecida em um pas que apresentavasuperavitssucessivos desde a dcada de 1860. Durante seus cinco anos nopoder, o crescimento do produto interno bruto caiu de 11% a 6,8% aoano. A dvida externa passou de US$ 12,5 a US$ 49 bilhes.31 A polticaexterna apenas tinha um papel limitado nesse quadro, mas a situaoeconmica impunha constrangimentos muito concretos quilo que opas podia azer internacionalmente e quilo que o presidente podialegitimar domesticamente.

    31 Ver CARNERIO, Dionsio. Crise e esperana: 1974-1980. In: ABREU, Marcelo de Paiva

    (ed.). A ordem do progresso: cem anos de poltica econmica republicana (1889-1989). Rio deJaneiro: Campus, 1992, p. 295-322.

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    Assim, embora os atores internacionais no sejam centraispara explicar os porqus da abertura poltica de Geisel, a polticaexterna cumpriu unes importantes naquele projeto e oi por ele

    condicionada.

    A chancelaria de Silveira: mecanismos de implementao

    Silveira, aos 57 anos de idade, era um candidato a chanceler poucoprovvel primeira vista. Ao longo de sua carreira, no conseguiraapadrinhamentos signifcativos,32 tampouco era uma fgura publicamenteconhecida cujo prestgio lhe acilitasse a operacionalizao da ousada

    agenda do presidente. O Exrcito e a Marinha oram abertamenteavessos a sua nomeao.33 No ministrio, o anncio ez o embaixadorRoberto Campos, principal desaeto da vida profssional de Silveira,reagir verbalmente os ataques pessoais entre ambos esto patentes nasmemrias de um34 e no depoimento do outro.35 Contudo, a posturaheterodoxa que Silveira adotara na negociao com Buenos Aires ea deciso presidencial de utilizar a poltica externa como vitrine dadescompresso domstica apesar do desconorto da linha dura aziamdele o homem que Geisel procurava.36

    Em um contexto em que um sistema poltico articulado diretamentepelo presidente, os seus assistentes diretos ganham inusitada capacidade

    32 Exceo seja eita para o ex-presidente Costa e Silva, que teria deendido o nome de Silveiradurante a chancelaria de Juracy Magalhes. Costa e Silva e Silveira haviam eito amizade quandoserviram, juntos, na embaixada em Buenos Aires nos anos 40. Depoimento, cassete n. 2, ladoA, 10 maio 1979.33Depoimento, cassete n. 2, lado B, 10 maio 1979.34 De orma geral, pode-se dizer que Campos criticava Silveira por melindrar as relaes comos dois eixos undamentais da poltica externa brasileira (Argentina e Estados Unidos) e porpensar-se acima de sua estatura poltica (o que no deixa de ser irnico, dada a baixa estaturasica do chanceler). CAMPOS. Lanterna... p. 925 e 1013 e CAMPOS, Roberto. Precio. In:BANDEIRA, Moniz. Relaes Brasil-... p. 11-17.35 Silveira via em Campos a sntese do atraso intelectual que deendera o alinhamento automtico potncia hegemnica como sada diplomtica para o Brasil contemporneo. Alm disso, rechaavaos mtodos que Campos utilizara, em vo, para alcanar a chefa do Itamaraty. Note-se que o atode Campos ter sido embaixador em Londres durante a gesto Silveira gerou inmeros atritos entre

    os dois. Depoimento, cassete n. 2, lado A, 10 maio 1979 e cassete n. 17, lado A, 7 jun. 1979.36Depoimento, cassete n. 11, lado B, 1 jun. 1979. Ver tambm CAMPOS. Lanterna... p. 925.

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    de inuncia sobre os rumos da ao. Quando o mandatrio tem interesseem imprimir ora pessoal poltica externa, seu chanceler encontra-seem uma posio singular na histria de uma chancelaria relativamente

    autnoma em relao a vaivm da poltica. Assim, Silveira no enrentoucompetio, para assuntos internacionais, com nenhum outro ministroou assessor direto do presidente.37 Exceo deve ser eita aos ministros daFazenda e das Minas e Energia, que tinham ascendncia sobre Silveira emquestes econmicas e de petrleo. No ltimo caso, a pasta era ocupadapor Shigeaki Ueki, assessor de Geisel desde os anos em que o generalcomandara a Petrobrs, e ele tambm tinha palavra sobre os tecnicismosreerentes a Itaipu.38

    No possvel emitir opinio clara sobre o grau de conscincia queGeisel e Silveira tinham das mudanas que se propunham a realizar napoltica externa brasileira no momento de assumir o governo. Silveira noescrevia suas idias sobre o tema e recusou-se a az-lo quando assim lheoi solicitado pelo presidente eleito. No havia um texto de reerncia oumarco geral para a ao, nem concepes detalhadas sobre qual posturaadotar nas diversas rentes.39

    Em um ambiente internacional exvel, essa caracterstica tendia aazer de Silveira uma onte essencial de escolhas no ministrio, uma vezque as posturas a adotar eram decididas caso a caso sob a direta supervisodo ministro. Isso era reorado pelo ato de que, embora Geisel se interessassepor assuntos internacionais, pois a diplomacia oi a pasta mais benefciadacom sua ateno, no h como atribuir-lhe pensamento organizado sobre

    37 Dierentemente do que reza a doxa, Golbery do Couto e Silva, chee do Gabinete Civile principal consiglieri de Geisel, no se aventurou a lidar com a agenda internacional do pas,concentrando suas energias no processo de liberalizao poltica. Sua nica participao no processode poltica externa entre 1974 e 1979 teria sido na ltima reunio de Gabinete, quando tratou-sesobre o tema de Itaipu, uma vez que seria ele o responsvel por conduzir o assunto durante o processode transio para o novo governo. Depoimento, cassete n. 6, lado A, 18 maio 1979.38 A ojeriza de Silveira em relao ao ministro Ueki permeia todo o Depoimento, com destaquepara os cassetes n. 14, lado B e 15, lado B, ambos de 7 jun. 1979.39Depoimento, cassete n. 1, lado B, 1 maio 1979. Ver tambm discurso de Silveira por ocasiodo Dia do Diplomata em 1974. A diplomacia nem sempre se presta ormulao de programasrgidos. No se pode, assim, azer um elenco de metas ou propor calendrios para alcan-las.

    BRASIL. Ministrio das Relaes Exteriores. Resenha de poltica exterior do Brasil. Braslia: MRE.n.1., mar, abr, maio e jun 1974, p. 30.

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    o tema. As decises eram defnidas por ambos em conversas pessoais emediante um intenso sistema de consulta sistemtica.40

    O mtodo de intercmbio entre Geisel e Silveira peculiar. O

    principal vnculo de comunicao entre ambos as Inormaes aopresidente da Repblica era produzido pelo chanceler para uso exclusivodo presidente. Ele percorria essa documentao cuidadosamente,anotando observaes e dvidas ou emitindo opinies mo, prticaque relembra a presidncia de Vargas.

    possvel identifcar unes-chave para a pea. As Inormaeseram educativas em orma e contedo, esclarecendo os antecedentes dosproblemas e apontando possveis opes ao mandatrio. Os arquivos

    pessoais de Silveira, depositados na Fundao Getlio Vargas, mostramuma verdadeira coleo de memorandos inormativos ao presidente.Dessa orma, Silveira inormava o pensamento internacional de Geisel etemperava-lhe as opinies. Sendo responsvel pela implementao de umaagenda diplomtica inovadora, plausvel acreditar que Silveira tenhalanado mo de detalhados e inmeros relatrios ao presidente sobreestratgia e clculo ttico porque os mesmos serviriam para preservar oprprio chanceler naquele ambiente altamente competitivo. A precauode Silveira chegou a lev-lo a detalhar at mesmo eventuais entendimentostelenicos tidos com o presidente, azendo das Inormaesum relatocompleto a respeito dos motivos e da gnese de cada deciso. Por outrolado, as Inormaeseram um instrumento para consagrar a vontade dochanceler sobre os assuntos externos. Os ministros de Geisel sabiam queseu chee tinha apreo por reexes escritas, assim como sabiam queuma boa justifcativa tinha altas chances de ser aceita pelo Planalto semmodifcaes substanciais.41

    40 Alm da riqueza das inormaes escritas que Silveira encaminhava a Geisel, sabe-se que tantoo Gabinete do chanceler quanto a sua casa contavam com uma linha telenica exclusiva daqual apenas o Presidente tinha o nmero e que no azia parte da rede de teleones do Palciodo Itamaraty. Depoimento, cassete n. 1, lado B, 1 maio 1979. Note-se tambm que o nmero dehoras de despacho dedicadas por Geisel a Silveira supera amplamente as do segundo colocado noministrio, o ministro da Justia, Armando Falco. Geisel despachou aproximadamente 230 horas

    com Silveira ao longo de seu mandato, contra 186 com Falco. Ver FALCO, op. cit., p. 251.41 GES. O Brasil..., p. 30.

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    Dessa maneira, o paradigma geiseliano de relaes externas nooi preconcebido em detalhes pelo presidente e seu chanceler, masdesenvolveu-se paulatinamente medida em que os desaios e as

    oportunidades conjunturais se apresentavam.42 O ato de Geisel haverrestringido a implementao da poltica externa ao gabinete de Silveira,sem reunies gerais ou mesmo consultas inormais a outros diplomatas,era certamente um dos principais instrumentos de poder do chanceler.Nesse contexto, o papel do Conselho de Segurana Nacional43 era deritualizao de decises tomadas previamente pelo chee de Estado.44 Aimportncia desse mecanismo era a de dar orma s decises presidenciais,prover explicaes causais para as mesmas e legitim-las ace ao grande

    nmero de agncias do aparelho de Estado. As decises ganhavam umacamada protetora que as impermeabilizava diante das crticas da linhadura e de setores do Itamaraty, preservando a imagem pessoal de Geiselcontra eventuais ataques da imprensa.

    O respaldo certeiro do Planalto permitiu a Silveira no apenasimplementar a agenda que os dois ambicionavam, gozando de certaautonomia ace ao resto das agncias governamentais, mas tambmassegurou ao ministro o salvo-conduto para encaminhar a reestruturaointerna de sua prpria corporao. Silveira era ctico a respeito dacapacidade criativa dos diplomatas brasileiros.45 A sua crtica era decunho weberiano e nada tinha de inusitada: as agncias burocrticastendem a tornar-se meras reprodutoras de procedimentos ormais,gerando incentivos naturais para solues de compromisso em que todosapiam determinada deciso por menos satisatria que seja e ningum

    42 Para uma contextualizao crtica dessa poltica, ver MELO, Ovdio de. Op. cit.43 O Conselho era um plenrio onde tinham assento todos os ministros de Estado, o vice-presidente da Repblica, o chee do Estado Maior das Foras Armadas e os chees do Estado-Maior do Exrcito, da Marinha e da Aeronutica. Dispunha de uma Secretaria Geral (ocupadapelo ministro da Casa Militar), que realizava estudos, planejamento e coordenao no campoda segurana nacional, com poder de requisitar servios de quaisquer rgos da administraopblica. No tempo de Geisel, contava com aproximadamente 130 uncionrios, dos quais apenas26 eram especialistas em suas reas de atuao. GES. O Brasil p. 33 e 38. Para uma anlisedetalhada do papel do Conselho de Segurana Nacional, em poltica externa, poca de Geisel,ver PINHEIRO. Op. cit.

    44 GES. O Brasil, p. 29.45Depoimento, cassetes n. 3, lado B, 15 maio 1979, e 18, lado A, 29 jan. 1980.

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    se responsabiliza diretamente por suas conseqncias. Operacionalmente,essa vertente est consubstanciada no mecanismo dos sucessivos vistosdepartamentais to comuns nas chancelarias modernas e extensamente

    utilizado no Itamaraty. O outro lado da moeda, nesse caso, que essadiluio da responsabilidade dos setores um dos elementos sobre osquais se assentam as bases do esprito de corpo que az da chancelariauma agncia singular no seio do Estado brasileiro.

    Isso no signiica que Silveira osse um advogado do riscocomo elemento perene da diplomacia. Ao contrrio, pensava que, sepor um lado, os diplomatas tendiam a arriscar-se menos do que osoutsiders, por outro tambm cometiam menos erros em seus clculos,46

    o que compensava de certa orma a lentido e a alta de espao paraa criatividade individual em um processo decisrio estruturado sobreconsensos consecutivos. Contudo, o ministro estava seguro de quepouqussimos membros da carreira estavam capacitados para pensareetivamente as relaes internacionais do Brasil. Em sua opinio, aslimitaes da maioria do pessoal do ministrio haviam levado o Brasil aperder oportunidades e insistir em posies obsoletas.47 Era essa alta deousadia que lhe perturbava, e contra ela trabalhou por meio de quatromecanismos identifcados ao longo deste estudo. H indcios de quealguns deles oram concebidos antes mesmo da posse, enquanto outrosoram sendo implementados medida que sua gesto avanava.

    Em primeiro lugar, procurou associar-se a personalidadesreconhecidamente inovadoras do prprio ministrio, ganhando comisso lego para enrentar a legio de especialistas que denunciariam oexcesso de riscos aos quais a diplomacia incorreria. Embora no pertencessea nenhuma vertente intelectual particular dentro do Itamaraty, ou mesmoa um grupo especfco, Silveira associou-se a Arajo Castro48 e talo

    46Depoimento, cassete n.3, lado B, 15 maio 1979.47Depoimento, cassete n. 1, lado B, 15 maio 1979.48 Joo Augusto de Arajo Castro oi ministro interino das Relaes Exteriores em 1963,embaixador em Atenas (1964-1966), embaixador em Lima (1966-1967), chee da Misso juntos Naes Unidas (1968-1971) e embaixador em Washington (1971-1975). Destacou-se por sercrtico ao princpio do alinhamento automtico aos Estados Unidos na dcada de 1960 e pordesenvolver a tese do congelamento do poder mundial, segundo a qual o programa sovitico-

    estadunidense de controle internacional de armamentos era deletrio s naes de porte mdiopor estender indefnidamente uma situao de desigualdade entre as naes. Durante o golpe

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    Zappa,49 duas vozes destoantes da doxa corporativa no incio da dcadade 1970, que advogavam pela renovao do perfl da ao do Itamaratyem direo a maiores graus de autonomia ace a Washington.

    Em segundo lugar, transormou seu gabinete no centro de comandode todo o ministrio, tomando decises sem necessariamente atravessartodas as etapas de consulta tradicionais de uma chancelaria complexa erelativizando a importncia da Secretaria-Geral na defnio de vetoresresultantes. possvel que essa ttica tenha sido utilizada para aumentara dependncia de todos os setores em relao s decises do prprioministro, para assegurar que os trmites burocrticos no atrapalhassemo ritmo de implementao da agenda, ou ainda para evitar que a viso

    de Silveira sobre casos especfcos osse inuenciada.Em terceiro lugar, o chanceler ez uma clara opo por rejuvenescer

    os postos-chave do ministrio. Alm de promover os mais moos paradiversas chefas e cadeiras de confana no gabinete, procurou expandiressa orientao para os comandos de embaixadas em vrios pases.50Curiosamente, essa ltima iniciativa oi o principal ponto de discordnciaentre o ministro e o presidente, uma vez que Geisel suspeitava de que oenvio de embaixadores jovens para postos de alta importncia poderiagerar desconorto, especialmente em Buenos Aires e Washington.51 Masa renovao de postos atingiu em cheio seu gabinete e as estruturas quedependiam diretamente do contato cotidiano com o chanceler. Silveira

    militar de 1964, oi acusado de praticar aes comunistas e, com a mediao de Silveira, oienviado para a embaixada em Atenas. Depoimento, cassete n. 5, lado A, 18 maio 1979. Sobre ele,ver AMADO, R.Arajo Castro. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1982.49 talo Zappa oi chee do Departamento da rica, sia e Oceania do Itamaraty durante aprimeira metade da gesto Silveira e, em seguida, embaixador em Maputo (1977-1981). Esteveno centro da estratgia de redefnio da poltica aricana do Brasil, consubstanciada nos apoiosoerecidos s independncias aricanas em Angola e Guin-Bissau (1974) e o reconhecimentoda independncia de Moambique (1975) a despeito da orientao marxista desses movimentos.Ver Pinheiro, op. cit., p. 275. Ver, dele, ZAPPA, talo. Nova ordem mundial: aspectos polticos.Revista Brasileira de Poltica Internacional, a. 18, n. 69/72, p. 83-88, 1975.50 Durante o qinqnio em que comandou o Itamaraty, Silveira renovou dois teros dospostos. Em 1979, ao fnalizar a sua gesto, havia ministros que tinham entre 28 e 45 anos eembaixadores de 50 anos, enmeno inusitado na vida da corporao. Depoimento, cassete n.3, lado B, 15 maio 1979.

    51Depoimento, cassete n. 2, lado B, 10 maio 1979. Ver, tambm, Presidente inui nas promoes.O Estado de S. Paulo, 11 maio 1977, s/p.

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    trouxe ou vinculou ao gabinete jovens profssionais que consideravabrilhantes e que podiam seguir seu ritmo: Eu precisava ter olhos emos que uncionassem para mim, que pudessem ter dilogo conceitual

    comigo.52 Esses jovens eram responsveis no somente por selecionare responder a correspondncia, cuidar da agenda e uncionar comomemria institucional do gabinete, mas tambm por azer estudosencomendados diretamente por Silveira, os quais serviriam de baseintelectual para a defnio de riscos e oportunidades.53 Eles oram logobatizados de Silveiras Boys, e mantiveram-se inuentes no ministrio pormais de trs dcadas.54

    O ministro promoveu ainda um quarto mecanismo a fm de impedir

    a estagnao da capacidade inovadora da chancelaria. Tratava-se deum sistema piloto de intercmbio de reexes entre as embaixadas e oministro, relegando a um segundo plano as tradicionais correspondnciasde carter meramente inormativo. O mesmo uncionaria em orma decorrespondncias secretas e devia ser no rotineiro, moderno e criador(...) que possa gerar elementos para o planejamento global de mdioprazo da poltica externa e retirar o enciclopedismo inelizmentecomum na execuo das tareas de inormao por parte das MissesDiplomticas.55 Sabe-se que esse sistema oi eetivamente implantadopara a embaixada em Buenos Aires e outras duas que no oramidentifcadas na anlise documental.

    Concluso

    Este artigo apontou os antecedentes intelectuais e materiais,as tenses de origem e os primeiros mecanismos institucionais deimplementao do Pragmatismo Ecumnico e Responsvel(19741979).

    52Depoimento, cassete n. 5, lado A.53Depoimento, cassete n. 2, lado A, 10 maio 1979.54 Faziam parte do grupo: Luiz Felipe Lampreia, Paulo Roberto Bertel Rosa, Jos Nogueira Filho,Gilberto Velloso, Marcos Csar Naslausky, Alcides da Costa Guimares, Rene Agnauer, CelinaAssuno, Jorge Carlos Ribeiro, Srgio Duarte, Guy Brando e Ronaldo Sardemberg.55

    MRE legao em Buenos Aires, ocio secreto, Braslia, 20 dez 1976, n. 1702, AHMRE,caixa 42.

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    Em primeiro lugar, situou-se a emergncia da noo brasileira depragmatismo no campo do pensamento poltico realista. Procurou-se,ainda, evidenciar de que maneira as tradies do realismo poltico e da

    poltica externa nacional articularam-se ao longo da dcada prvia aogoverno Geisel.

    Na seqncia, o trabalho oereceu uma interpretao sobre atrajetria e o pensamento realista de Azeredo da Silveira mediante arecuperao das tticas por ele utilizadas para lidar com a Argentinadurante sua gesto como embaixador em Buenos Aires (1969-1974).

    O trabalho tambm buscou contextualizar a poltica externa dopragmatismo no marco do projeto poltico do presidente Geisel de

    liberalizao do regime autoritrio. Desde suas origens, o pragmatismoteve que ser legitimado perante uma platia domstica variada: a linhadura e as linhas moderadas do regime militar, uma opinio pblicacada vez mais livre para discordar da conduta governamental e gruposde interesse com capacidade de vocalizao de demandas. De tal sorte,o esoro empreendido pelo governo para legitimar as suas opesde poltica externa incluram um conjunto de tticas discursivas,estratgias de imprensa e medidas administrativas. Finalmente,tratou-se de evidenciar os primeiros eeitos organizacionais dopragmatismo na estrutura e mtodos de trabalho do Ministrio dasRelaes Exteriores.

    Novembro de 2004

    Resumo

    Ao longo de seu governo, o presidente Geisel e seu chanceler, Azeredo daSilveira, promoveram mudanas sistemticas na poltica externa do pas

    sob a gide do pgmm ecumnc rnvl (1974-1979). O

    programa buscava projetar o Brasil na hierarquia internacional de poder,

    tirando vantagens de um sistema internacional singularmente flexvel. Sua

    lgica articulou aspectos tradicionais da poltica externa brasileira com

    elementos tpicos do realismo poltico. Este artigo utiliza fontes recentemente

    disponibilizadas para interpretar os antecedentes, origens e tenses iniciais da

    noo de pragmatismo.

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    Abstract

    In the mid-1970s the Brazilian government introduced systematic changes in

    Brazilian foreign policy on the basis of an Ecumenical, Responsible Pragmatism.Their main thrust was to facilitate and foster the emergence of Brazil as a

    middle power in what was seen as a uniquely malleable international system.

    Brazilian officials made a conscious attempt to reconcile their own foreign

    policy traditions with notions typical of political realism. This article draws on

    recently declassified documents to account for the preconditions, origins and

    initial tensions of pragmatism.

    Palavras-chave: Poltica externa do Brasil, Potncia emergente, Regime

    militar, Pragmatismo, Realismo, Ernesto Geisel, Antnio Francisco Azeredoda Silveira.

    Key-words: Brazilian foreign policy; emerging power; authoritarian rule;

    pragmatism; realism; Ernesto Geisel; Antnio Francisco Azeredo da Silveira.