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Pedra & Cal n.º 16 Outubro . Novembro . Dezembro 2002 TECNOLOGIAS Tema de Capa 13 Ao longo da História da humanidade, a “ponte” tem sido um elemento único na contribuição para o desenvolvimento da civilização e da cultura, fomentando a in- tercomunicação entre os povos, muitas vezes pela possibilidade de transposição de grandes cursos de água ou de outros obstáculos. São obras de arte não no sen- tido restrito do termo mas naquilo em que a arte e o engenho do Homem se projec- tam e completam. No caminho-de-ferro, que abrange prati- camente todos os ramos da engenharia, a posição das pontes ocupa por si só um lu- gar de relevo, pois elas são, de forma sim- bólica, os “fusíveis” do seu próprio todo funcional. São assim uma preocupação permanente, pois o envelhecimento das estruturas, por deterioração do material que as constitui, por efeitos de fadiga de- rivados do tráfego ou mesmo por defi- ciências de concepção na época da sua construção, podem implicar restrições gravosas de exploração quer em termos de carga quer de velocidade. Datando de 1856 o início do nosso CF, há portanto mais de um século, é evidente que a ex- pansão desde então ocorrida, implicou a construção de grande número de estrutu- ras de pontes de maior ou menor porte. O seu total será hoje, em números aproxi- mados (em termos patrimoniais e ex- cluindo pontões – com vãos inferiores a 10 metros): Metálicas: 1020 25 370m Alvenaria: 855 – 8 000m Betão: 160 – 4 500m Mistas: 12 – 1 115m As pontes metálicas são as mais numero- sas, incluindo as de tramos de maior vão. Com o advento da era industrial, o fabri- co destas estruturas teve um grande de- senvolvimento, pois eram as mais indica- das para transpor vãos até então inacessíveis para outros materiais da épo- ca (pedra ou madeira). O material inicial de construção foi o ferro fundido, logo de- pois o ferro pudlado, até aos aços actuais, sucessivamente melhorados. Com os anos e o aumento enorme do trá- fego e das cargas por eixo (a carga por ei- xo para locomotivas no regulamento de 1897 era de 15 toneladas, em via larga, passando hoje para 25 toneladas) e com a exigência implacável de maiores veloci- dades, houve que ir procurando adaptar as estruturas aos programas de explora- ção em cada linha, ainda que estes , como é óbvio, tenham influência de outros sec- tores adstritos, como as características da própria via férrea e do seu traçado. As grandes estruturas com tramos da or- dem de 60 metros de vão máximo, cons- truídas algumas por firmas portuguesas da época ou por empresas estrangeiras (concepção – execução) têm quase na ge- neralidade o mesmo tipo de tabuleiro su- perior ou inferior (com pórticos), com vi- gas com triangulação de barras dispostas em rótula ou com vigas do tipo S. to André. A rede nacional foi entretanto classifica- da segundo normas da UIC (União Inter- nacional dos Caminhos-de-Ferro), em ter- mos de cargas máximas por eixo e de cargas por metro a admitir nas pontes, o que, com uma classificação equivalente da própria via férrea, permite à explora- ção a organização fiável dos seus com- boios de passageiros e de mercadorias. É também a via férrea, pelas suas caracte- rísticas, uma condicionante para a fixação da velocidade das circulações, procuran- do-se a compatibilização das pontes para À esquerda: Ponte de Murça. Em cima: Nova Ponte de Esgueira. As pontes e o caminho-de-ferro

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Pedra & Cal n.º 16 Outubro . Novembro . Dezembro 2002

TECNOLOGIASTema de Capa

13

Ao longo da História da humanidade, a“ponte” tem sido um elemento único nacontribuição para o desenvolvimento dacivilização e da cultura, fomentando a in-tercomunicação entre os povos, muitasvezes pela possibilidade de transposiçãode grandes cursos de água ou de outrosobstáculos. São obras de arte não no sen-tido restrito do termo mas naquilo em quea arte e o engenho do Homem se projec-tam e completam.No caminho-de-ferro, que abrange prati-camente todos os ramos da engenharia, aposição das pontes ocupa por si só um lu-gar de relevo, pois elas são, de forma sim-bólica, os “fusíveis” do seu próprio todofuncional. São assim uma preocupaçãopermanente, pois o envelhecimento dasestruturas, por deterioração do materialque as constitui, por efeitos de fadiga de-rivados do tráfego ou mesmo por defi-ciências de concepção na época da suaconstrução, podem implicar restriçõesgravosas de exploração quer em termosde carga quer de velocidade. Datando de1856 o início do nosso CF, há portantomais de um século, é evidente que a ex-pansão desde então ocorrida, implicou a

construção de grande número de estrutu-ras de pontes de maior ou menor porte. Oseu total será hoje, em números aproxi-mados (em termos patrimoniais e ex-cluindo pontões – com vãos inferiores a10 metros):Metálicas: 1020 – 25 370mAlvenaria: 855 – 8 000mBetão: 160 – 4 500mMistas: 12 – 1 115m

As pontes metálicas são as mais numero-sas, incluindo as de tramos de maior vão.Com o advento da era industrial, o fabri-co destas estruturas teve um grande de-senvolvimento, pois eram as mais indica-das para transpor vãos até entãoinacessíveis para outros materiais da épo-ca (pedra ou madeira). O material inicialde construção foi o ferro fundido, logo de-pois o ferro pudlado, até aos aços actuais,sucessivamente melhorados.Com os anos e o aumento enorme do trá-fego e das cargas por eixo (a carga por ei-xo para locomotivas no regulamento de1897 era de 15 toneladas, em via larga,passando hoje para 25 toneladas) e com aexigência implacável de maiores veloci-

dades, houve que ir procurando adaptaras estruturas aos programas de explora-ção em cada linha, ainda que estes , comoé óbvio, tenham influência de outros sec-tores adstritos, como as características daprópria via férrea e do seu traçado.As grandes estruturas com tramos da or-dem de 60 metros de vão máximo, cons-truídas algumas por firmas portuguesasda época ou por empresas estrangeiras(concepção – execução) têm quase na ge-neralidade o mesmo tipo de tabuleiro su-perior ou inferior (com pórticos), com vi-gas com triangulação de barras dispostasem rótula ou com vigas do tipo S.to André.A rede nacional foi entretanto classifica-da segundo normas da UIC (União Inter-nacional dos Caminhos-de-Ferro), em ter-mos de cargas máximas por eixo e decargas por metro a admitir nas pontes, oque, com uma classificação equivalenteda própria via férrea, permite à explora-ção a organização fiável dos seus com-boios de passageiros e de mercadorias.É também a via férrea, pelas suas caracte-rísticas, uma condicionante para a fixaçãoda velocidade das circulações, procuran-do-se a compatibilização das pontes para

À esquerda: Ponte de Murça.

Em cima: Nova Ponte de Esgueira.

As pontes e o caminho-de-ferro

TECNOLOGIAS

Pedra & Cal n.º 16 Outubro . Novembro . Dezembro 2002

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obtenção dos valores desejados. Por todoo exposto, verificou-se a necessidade dese ter estabelecido uma metodologia paraa adaptação progressiva das estruturasdas pontes, principalmente das mais anti-gas, às necessidades actuais:– Com programas de reforço

Com o levantamento geométrico prévio eapoio dos elementos de arquivo disponí-veis, com recolha e ensaio de provetes ex-traídos, com detecção de deficiências deconcepção e com verificação por cálculo,conducente a uma análise técnico – eco-nómica do custo do reforço e se este seráparcial ou total (apenas do tabuleiro em1ª fase ou também das vigas principais) –ou seja, conforme se pretenda apenas aobtenção de maior capacidade de tracçãodas locomotivas a utilizar, mais pesadas,ou também permitir a circulação de trans-porte rebocado mais pesado – (mercado-rias), atendendo à classificação desejada enecessária para a linha em causa. E tendoem conta ainda a intensidade do tráfego eo seu eventual incremento, com efeitos so-bre a vida útil (restante) das estruturas. Omaterial de reforço aplicado era então fa-bricado numa oficina metalo-mecânicada CP, junto à estação de Ovar e já des-

mantelada. Procedeu-se igualmente aoreforço de pilares antigos desadequados,com revestimento de mangas de betãonos fustes e cravação de estacas de betãoenvolventes, com maciços de encabeça-mento. Algumas pontes de alvenaria emarco foram também reforçadas no intra-dorso com colocação de armaduras pre-gadas e gunitagem com betão.– Com programas de substituição

Em linhas a reconverter de itineráriosprincipais, em variantes, em linhas de trá-fego especializado (como as linhas da li-gação do Porto de Sines à central termo –eléctrica do Pego – para transporte de car-vão), ou em percursos de circulação in-tensiva, com concorrência possível com arodovia (como as linhas do Norte e da Bei-ra Alta – ligação internacional a Espanha– França). Aqui, é essencial, por um lado,a comodidade e segurança dos passagei-ros e o encurtamento em tempo entregrandes centros populacionais e, por ou-tro, o cumprimento de contratos de trans-porte em comboios–bloco é evidente quea solução normal será substituir as estru-turas antiquadas, por outras de concep-ção actualizada. É de referir que as estru-turas de pontes ferroviárias têm

condicionantes mais exigentes que as deestrada: no valor das cargas, na adapta-ção aos valores limites de traçado e de de-clive de implantação da via, na permissãode passagem de cabos aéreos de energiaou de transmissões e nos efeitos de fadi-ga, previsíveis em estruturas metálicas oude betão pré-esforçado (nos cabos).A consciência do exigível esteve semprepresente, procurando garantir durabili-dade e redução de manutenção, com cons-trução de tabuleiros balastrados, sempreque possível, em soluções de betão ou dotipo misto (tabuleiro de betão e vigas me-tálicas de alma cheia, solidarizadas comconectores apropriados) ou mantendo otipo de estrutura metálica, para grandesvãos, com material soldado e interligadopor parafusos de alta resistência.Estes projectos foram elaborados por ga-binetes privados e nalguns casos de estru-turas metálicas com estudo – execução (aMague, a Sorefame e a Socometal, foramempresas exemplares neste campo), sem-pre com a assistência de técnicos da CP –para cada obra nomeado um engenheiroresponsável e a sua execução acompanha-da com permanência por contramestresqualificados, colhendo-se informação

Em baixo: Substituição da Ponte de Meimoa.

À direita: Ponte de Ulmeiros.

Pedra & Cal n.º 16 Outubro . Novembro . Dezembro 2002

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fundamental a arquivar, para a vigilânciae inspecção futuras das estruturas.De referir ainda as dificuldades de exe-cução dos trabalhos em linhas em fun-cionamento.Os trabalhos de reforço com brigadasespecializadas da CP ou por empreita-da, impondo restrições de velocidadeou transbordos em situações mais críti-cas, sendo decisivos os prazos de execu-ção, para qualidade equivalente daspropostas.Para os trabalhos de substituição, algu-mas soluções adoptadas:• Sempre que possível, ripagens laterais(em que a própria CP era muito experien-te, para pequenos vãos até 20 metros), commontagem de cavaletes de um lado e ou-tro da via e a instalação de caminhos derolamento nas zonas de apoio das estrutu-ras, sobre encontros e pilares. Estas eramripadas com guinchos horizontais ade-quados e em coordenação perfeita. Sai“puxada” a estrutura antiga, acoplada ànova e esta ocupa o seu lugar, assente so-bre calços, até à colocação dos apoios defi-nitivos, permitindo entretanto a passa-gem de circulações a velocidade reduzida.• Para estruturas metálicas, em locais de

fundo inacessível, montagem de pórti-cos junto aos encontros, com guinchosde elevação.Estrutura antiga de tabuleiro superior, so-bre o qual é colocada a estrutura nova, aiçar com os guinchos. É içado em seguidao tabuleiro antigo e encaminhado paraum dos lados. É descido o tramo novo pa-ra o lugar do antigo.• Para pontes de betão com vigas pré-es-forçadas, ripagem lateral, quando possí-vel, ou com vigas metálicas provisóriasde lançamento acopladas aos topos, paraavanço.• Noutros casos, sendo viável em cada ex-tremo a ripagem lateral da via férrea,construindo a ponte no novo alinhamen-to, removendo a estrutura antiga por ina-dequada ou cedendo-a para adaptação arodovia.Em todos os projectos sempre se procedeucom respeito pela Regulamentação Nacio-nal e da UIC (com fichas excelentes depormenor ou de normas de dimensiona-mento – acordadas pelos representantescredenciados das administrações ferro-viárias filiadas) e com base em resultadosdos ensaios do laboratório especializadoexistente em Utrecht, Holanda.

A fase última relativa à vida das estrutu-ras, é a observação e vigilância do seucomportamento em serviço, com inspec-ções periódicas a todo o conjunto, pilarese encontros, tabuleiros, vigas e aparelhosde apoio, de forma a garantir a sua plenadisponibilidade operacional. Dispõe-sede uma grua especial com cesta no extre-mo de braço articulado e que permite aobservação próxima de pilares muito al-tos e de tabuleiros e vigas nas suas facesinferiores. Constitui uma obrigação daempresa concessionária responsável,promover os meios humanos e de equi-pamentos necessários à concretização dasinspecções.Na CP sempre assim se procedeu e os aci-dentes em pontes ferroviárias têm sidosempre resultantes de descarrilamentosocorridos antes das estruturas, com o ma-terial descarrilado ao passar, sobretudonas de constituição metálica de tabuleiroaberto, a provocar estragos mais ou me-nos graves.

J. ANDRADE CORREIA,

Eng. Civil; ex–chefe de Divisão de Pon-

tes da CP; ex – director da Direcção de Ins-

talações Fixas da CP.

Em cima: Reforço da Ponte do Tejo.

À direita: Ponte da Portela ou do Mondego.