elza freire e paulo freire: educaÇÃo, … · amorosa, cuidadora, meiga, ... a florzinha rosa...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X ELZA FREIRE E PAULO FREIRE: EDUCAÇÃO, HUMANIZAÇÃO E CONVIVÊNCIA. 1 Rita de Cássia Fraga Machado Fiz o que queria, o que pensei, porque realmente fiz bem [...] Elza Freire (In: Costa et al., 1980, p. 200) Resumo: Este texto propõe-se a destacar a relevante influência intelectual de Elza Freire na obra e vida do educador Paulo Freire. Em razão do comprometimento e da ação de Elza Freire no campo da educação, Nima Spigolon (2016) assevera que é possível, sim, pesquisar esta personagem histórica. Elza influenciou e contribuiu para a teoria do conhecimento formulada por Paulo Freire. "Assim, para melhor compreender a obra freireana e a própria história da educação no Brasil é necessário se levar em conta as contribuições de Elza" (Spigolon, 2016). O próprio Paulo Freire diz Nima Spigolon, sempre fez questão de registrar em seus trabalhos e escritos, ora na forma de dedicatórias, ora nas citações, as contribuições da esposa, Elza, para o seu pensamento e a sua prática político-pedagógica. Palavras-Chave: Educação. Elza Freire. Paulo Freire. 1. ELZA VIDA E OBRA! “Fiz o que queria, o que pensei, porque realmente fiz bem […].” Elza Freire (COSTA et al., 1980, p. 200) Elza Maia Costa Oliveira nasceu no estado de Pernambuco e casou-se com Paulo Reglus Neves Freire em 1944, aos 23 anos, com quem ficou casada até sua morte, em 1986. Após o casamento, Elza passou assinar Elza Maia Costa Freire. Casados por 42 anos, tiveram os filhos: Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgarde. Figura 1 Elza Freire em 1944 1 Esse texto tem uma versão preliminar intitulada ELZA FREIE: EDUCAÇÃO PARA A HUMANIZAÇÃO que foi escrita em parceria com o professor Carlos Rodrigues Brandão e a professora Amanda Motta Castro.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

ELZA FREIRE E PAULO FREIRE: EDUCAÇÃO, HUMANIZAÇÃO E

CONVIVÊNCIA.1

Rita de Cássia Fraga Machado

Fiz o que queria, o que pensei, porque realmente fiz bem [...]

Elza Freire (In: Costa et al., 1980, p. 200)

Resumo: Este texto propõe-se a destacar a relevante influência intelectual de Elza Freire na obra e

vida do educador Paulo Freire. Em razão do comprometimento e da ação de Elza Freire no campo

da educação, Nima Spigolon (2016) assevera que é possível, sim, pesquisar esta personagem

histórica. Elza influenciou e contribuiu para a teoria do conhecimento formulada por Paulo Freire.

"Assim, para melhor compreender a obra freireana e a própria história da educação no Brasil é

necessário se levar em conta as contribuições de Elza" (Spigolon, 2016). O próprio Paulo Freire diz

Nima Spigolon, sempre fez questão de registrar em seus trabalhos e escritos, ora na forma de

dedicatórias, ora nas citações, as contribuições da esposa, Elza, para o seu pensamento e a sua

prática político-pedagógica.

Palavras-Chave: Educação. Elza Freire. Paulo Freire.

1. ELZA VIDA E OBRA!

“Fiz o que queria, o que pensei, porque realmente fiz bem […].”

Elza Freire (COSTA et al., 1980, p. 200)

Elza Maia Costa Oliveira nasceu no estado de Pernambuco e casou-se com Paulo Reglus

Neves Freire em 1944, aos 23 anos, com quem ficou casada até sua morte, em 1986. Após o

casamento, Elza passou assinar Elza Maia Costa Freire. Casados por 42 anos, tiveram os filhos:

Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgarde.

Figura 1 – Elza Freire em 1944

1 Esse texto tem uma versão preliminar intitulada ELZA FREIE: EDUCAÇÃO PARA A HUMANIZAÇÃO que foi

escrita em parceria com o professor Carlos Rodrigues Brandão e a professora Amanda Motta Castro.

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Fonte: BARRETO, 2008, p. 23.

Elza foi professora, funcionária pública concursada do estado de Pernambuco e pioneira em

arte-educação no Brasil. É provável que ela seja a grande influência para que Paulo Freire viesse

para o campo da educação – abandonando o Direito, sua formação inicial.

Historicamente, as mulheres foram destinadas à vida privada. É comum os adjetivos

amorosa, cuidadora, meiga, entre outros, para lembrar de alguma mulher. A florzinha rosa atrás da

cerquinha branca e em frente a uma casinha parece sair dos livros infantis e nada ter a ver com os

dias atuais. Entretanto, ainda hoje, o feminino vive sobre a esfinge do privado seguindo a velha e já

conhecida divisão, infelizmente: homens no público e mulheres no privado.

O feminino como destino a “outro” e não a si mesma se perde na sociedade patriarcal que

inferioriza e silencia o conhecimento das mulheres. Talvez, o casamento seja uma das formas mais

eficazes que o patriarcado encontrou para manter as mulheres altamente produtivas com o cuidado

da casa, dos filhos e filhas, do marido e, de quebra, ajudar o marido (também de forma altamente

produtiva) no seu trabalho sem que este leve seu nome. E a história de Elza não foi diferente da

história das mulheres.

Outras mulheres podem aqui ser lembradas:

Sophia Tolstoi (22 de agosto de 1844-4 de novembro de 1919) foi esposa do célebre escritor

Leon Tolstoi. Uma de suas principais obras, “Ana Karenina”, tem várias versões para o cinema –

sem dúvida, é uma obra fascinante. O que poucos sabem é a importância de Sofia na obra de Leon

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Tolstói. Sofia revisou e, em grande medida, financiou todos os seus livros. Além dos treze filhos

que teve com o escritor, ela foi uma importante “ajudante” de Tolstoi.2

A revolução cubana guarda a imagem dos grandes lutadores: Che, Camilo e Fidel.

Entretanto, não são visibilizadas as inúmeras mulheres que também lutaram pela liberdade de um

povo. Tivemos muitas mulheres na frente da batalha na ilha cubana, uma delas foi casada com Che;

Aleida March nasceu em Cuba, no ano de 1936. Lutou na Revolução Cubana e foi companheira de

Che Guevara de 1959 até sua morte, em 1967. Atualmente, é diretora do Centro de Estudos Che

Guevara. Em seus escritos, existe uma importante contribuição; a história que foi praticamente

esquecida pela Revolução Cubana: as mulheres que combateram na luta armada durante a revolução3.

Anna Madgalena foi casada com o compositor Johann Sebastian Bach. Ela foi uma soprano e casou-

se com Bach em 1721. Segundo o recente documentário, intitulado Written by Mrs. Bach, Anna foi a

principal compositora das obras de Bach4.

Logo, percebemos que Elza não está sozinha; ela compõe um grande leque de mulheres que como

ajudante do marido fizeram história.

2 ELZA E PAULO: INTERLOCUTORES DE UM PENSAMENTO LATINO

AMERICANO!

Imagine uma “aula” que, em vez de opor um professor que “sabe” a uma “turma de

estudantes” que “não sabe” (ou pensa que não sabe), faça interagir uma ativa equipe de pessoas em

que “quem ensina sempre aprende também, e onde quem aprende sempre tem algo a ensinar”. Um

lugar onde ninguém ensina a ninguém, mas todos e todas aprendem com e entre todas e todos. E

ensinam e aprendem na mesma medida em que dialogam e intertrocam os seus saberes, os seus

valores, as suas sensibilidades, os saberes de suas experiências de vida.

Imagine uma educação em que nos seus inícios, em vez de se aprender apenas a “ler-e-

escrever” palavras de uma maneira instrumental e mecânica, aprende-se a dialogar com os outros

“ao vivo e a cores”, e também com os textos escritos. Aprende-se a ouvir e a falar, ao mesmo tempo

em que se aprende a ler e a escrever. Aprende-se a “dizer a sua palavra”, como gostava tanto de

repetir Paulo Freire, e a ouvir a palavra da outra pessoa.

2 Ver: TOLSTÓI, Sofia. Diarios (1862-1919). Espanha: Colección Alba Clásica, 2011. 3 Ver: MARCH, Aleida. Evocación mi vida al lado del Che. Los recuerdos de la compañera de lucha y de

vida de Ernesto Che Guevara. Cuba: Ocean Sur, 2012. 4 Ver documentário "Written by Mrs. Bach", baseado em um estudo realizado em 2011 pelo professor

Martin Jarvis, da Universidade Charles Darwin, na Austrália.

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E, assim, aprende-se a ler de maneira pessoal, crítica e criativa, também a realidade do

mundo da vida que se vive. Aprende-se a compreender como é este mundo da vida e como ele

poderia ser transformado para ser bem melhor, se as pessoas se unissem para fazer algo nesta

direção.

Imagine um lugar onde a educação esteja dirigida não apenas à mente e à racionalidade das

pessoas, mas ao todo delas. Como isso é possível? Paulo Freire foi um dos principais, ao lado de

Elza Freire, divulgadores da ideia de que não só aprendemos uns com os outros, umas através das

outras, mas aprendemos envolvendo, nisso tudo, o que somos.

Se pudéssemos brincar um momento com a letra “s”, bem poderíamos lembrar que

aprendemos com as nossas sensações (visão, audição, olfato, tato e tudo o mais), com as nossas

sensibilidades (afetos, emoções, sentimentos), com os nossos saberes (tudo o que aprendemos antes

e integramos em nós como “aquilo que sabemos), com os nossos sentidos de vida (os valores, os

princípios, os preceitos que nos diz quem somos como devemos ser e como devemos conviver), os

nossos significados (as ideias que temos sobre o mundo em que vivemos e sobre como ele deveria

ser) e as nossas sociabilidades (a nossa vocação de criarmos juntos o mundo em que vivemos e de o

transformarmos para vivermos nele).

Aprendemos o tempo todo com o todo que somos: corpo e espírito, razão e imaginação,

racionalidade e sentimento, individualidade e partilha com os outros. Imagine tudo isso e você

poderá compreender os princípios das inovações das ideias pedagógicas de Paulo Freire.

Paulo Freire e a sua primeira “equipe nordestina” trabalharam intensamente associados aos

movimentos de cultura popular dos anos 1970. Anos antes do começo desta década, Paulo Freire foi

um relator de um documento da Comissão Regional de Pernambuco a respeito da educação no

Estado. Em “A Educação de Adultos e as Populações Marginais”, escrito antes de amadurecer as

suas ideias mais originais sobre a educação, ele já se revelava como um pensador bastante

progressista.

O que as ideias de Paulo Freire e as práticas – breves e fecundas – dos movimentos de

cultura popular procuram estabelecer em seu tempo e nos deixam como herança pode ser resumido

da seguinte maneira:

1º. Elas partem da busca de uma interação equitativa entre diversos campos de pensamento,

criação e ação social através das ciências, da educação e das artes. Saber de ciência, cinema, teatro,

literatura, música, artes plásticas, educação – vivida como arte e prática – são compreendidas como

diferentes domínios humanos de criação de novas ideias, com uma convergente vocação política

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transformadora. Assim, seria através da partilha de todas e de cada uma dessas vocações, no interior

de projetos de “criação do novo” e de “transformação através da inovação”, que uma nova cultura

deveria ser, passo a passo, criada.

2º. Elas procuram uma convergência de/entre culturas. Em termos concretos, elas buscam

estabelecer novas alianças entre pessoas e grupos de vida e vocação acadêmica ou artística

(eruditos, acadêmicos, etc.), com autores/atores populares individuais ou coletivos. Este complexo

processo de criação de “estradas de mão dupla” na criação e gestão de estilos de arte e sistemas de

educação tomam um rumo bem diverso do que se praticava até então.

Isso porque não são pensados e praticados como outro “serviço cultural” ou educacional

complementar ao povo. Não se trata de estender ao “oprimido” os padrões de gosto e as ideologias

de moda do “opressor”, mas de partir de um diálogo tão igualitário quanto possível, que termine por

criar meios de autotransformação de pessoas, grupos sociais e movimentos populares em

construtores e gestores de sua autonomia, e também em condutores de um processo de ruptura da

hegemonia “burguesa” e de transformação radical da sociedade.

3°. Elas colocam a cultura e a política no centro do próprio acontecer da educação. É nesta

direção que insistimos em lembrar que, para Paulo Freire e o grupo que com ele estava, a educação

é pensada como um campo da cultura, e a cultura como algo cuja dimensão de realização tem a ver

com a gestão de formas de poder simbólico que tanto podem reiterar e reproduzir uma conjuntura

social de desigualdade e de opressão, quanto podem configurar a dimensão simbólica de teor

político da construção de uma nova ordem social.

Eis o caminho para que métodos e técnicas utilizados originalmente como alternativas de

terapia e de dinâmica de grupos "centrados no cliente" – isto é, na individualidade de cada

participante – sejam repensados como estratégias de novos diálogos centrados nas pessoas

participantes; não em busca de sua "cura pessoal", mas na transformação de mundo social de vidas

coletivas e cotidianas – contudo, sempre pensadas como algo que ocorre no fluxo da história. Pois

não se trata de criar contextos de soluções pessoais de conflitos sociais, mas da busca solidária de

soluções sociais para problemas pessoais. Este seria o momento de uma inversão de uma educação

para o povo em direção a uma educação que o povo cria ao transitar de sujeito econômico a sujeito

político e ao se reapropriar de um modelo de educação para fazê-la ser a educação do seu projeto

histórico. Não esquecer que "sujeito político" tem, em Paulo Freire, a conotação do agente

consciente-e-crítico e, portanto, a pessoa criativamente ativa é corresponsável e participante pela

gestão e transformação de sua polis, o seu lugar de vida e destino.

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4º. Finalmente, sobretudo a partir das propostas de Paulo Freire e de sua equipe pioneira,

o que se procura estabelecer e difundir é uma experiência de educação que anos mais tarde receberá

o qualificador “popular”. Elza, desde os primeiros escritos da "equipe pioneira", não estará restrita a

um método de trabalho, como aquele criado para a alfabetização de adultos, mas como um “sistema

de educação” que tem em seu andar térreo a alfabetização, e à cobertura com a proposta de criação

de uma universidade popular. Isto acontece vários anos antes da reinvenção de propostas de

universidades alternativas, livres ou populares que surgem por todo o mundo.

Dos anos 1970 até hoje, não é mais possível pensar uma educação libertadora e

transformadora sem trazer ao debate as ideias de Paulo Freire. Mais de cinquenta anos depois das

primeiras ideias e experiências com a educação popular, a pessoa, as práticas e as propostas de uma

educação pensada como cultura, e uma cultura pensada como política (no sentido freireano de nossa

responsabilidade com a transformação humanizadora do mundo em que vivemos) permanece tão

viva como nos anos em que ele estava entre nós.

3 PEDAGOGIA DA CONVIVÊNCIA: CATEGORIA ELZANIANA

Para Nima Spigolon (2006, p. 7) autora da dissertação “Elza Freire: uma vida que faz

Educação”,

[…] essa pedagogia tem como referência o pensar, o fazer, o falar e o sentir. Ela parte do

princípio de que a convivência pelo encontro em si é uma relação que, por sua natureza,

requer respeito e coerência. O que nós fizemos foi trazer essa reflexão para o contexto

pedagógico, com critério acadêmico. Ou seja, é através dessa convivência e dos ‘saberes

diferentes’ que o conhecimento é compartilhado, mediante o ensinar-aprender, pautado na

amorosidade, criticidade e principalmente na conscientização.

Para a escrita deste trabalho, encontramos pouquíssima referência teórica dessa interlocução.

Concordamos com Graciela Hierro (2003) sobre nossa invisibilidade: as mulheres estão em segunda

instância na sociedade patriarcal e não é diferente no campo da Educação Popular (FLEURI, 2012).

Nesse sentido, queremos

perspectiva educativa e libertária.

Figura 2 – Elza Freire, meados da década de 1960

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Fonte: SPIGOLON, 2016, p. 3.

A entrada das mulheres na cena pública, incluindo a acadêmica, pela reivindicação de seus

direitos civis e políticos, pela incorporação maciça no mercado de trabalho remunerado fora da casa

e pelo acesso aos diferentes níveis educativos, trouxe ao mesmo tempo uma fratura do espaço

público, tradicionalmente considerado território masculino, com a constituição paralela de um

espaço social predominantemente feminino. Nesse sentido, o trabalho de Elza constitui-se em um

movimento que se torna importantíssimo na vida intelectual de Paulo Freire. Elza, com sua

heterogeneidade, cria espaços/efeitos de consciência, onde se dá a ressignificação da pedagogia de

Paulo Freire a partir de suas leituras e releituras, onde se negociam e renegociam as necessidades

práticas e os interesses estratégicos desse companheirismo. Aqui, nasce Pedagogia da Convivência.

Mazza (2016, p. 7), no prefácio no livro “Pedagogia da Convivência”, destaca que Nima

Spigolon registra, de modo apaixonante e único, a amorosidade5 de Elza pela educação. Elza Freire

– uma vida que faz educação é de três educadores. Segundo o primeiro e mais denso, é o da

educadora Elza Maia Costa Oliveira, depois Freire, ou de modo mais compacto, Elza Freire, cujo

nome compõe o título e suleia a obra.

Nascida em uma família de classe média, no Recife, na segunda década do século XX,

“professora normalista” aos 19 anos, Elza tinha preferência pelo trabalho educacional com

crianças, e a alfabetização foi um dos aspectos em que se especializou, tendo sido também

uma das pioneiras em envolver a Arte no trabalho de educação.

Segundo sua biografia, escrita pela colega Nima Spigolon (2006, p. 10):

5 Para Paulo Freire, a “educação é um ato de amor”, sentimento em que homens e mulheres veem-se como seres

inacabados e, portanto, receptivos para aprender, sendo que “não há diálogo [...] se não há um profundo amor ao

mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que

o funda [...]. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (FREIRE, 1987, p. 79-80).

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No começo da década de 1940, Elza já lecionava no Instituto Pedagógico do Recife,

atuando na formação continuada de docente. E, de meados da década de 1940 até 1964 –

ano da partida para o exílio, no Chile –, atuou como professora e diretora de várias

instituições da rede pública do estado de Pernambuco. Em 1944, casou-se com o também

recifense Paulo Freire, para quem Elza representou uma apresentação/aproximação às

questões educacionais, despertando seu envolvimento crítico-reflexivo com o pensamento

pedagógico. Talvez seja Elza uma das grandes inspiradoras para que Paulo abandonasse a

advocacia e abraçasse a Educação.

Continuando:

(...) esse encontro/casamento consolida a parceria em cujo contexto se desenvolve

– segundo a leitura e a denominação criada por Nima– a Pedagogia da

Convivência, por meio da qual ela influenciou e contribuiu para a construção das

teorias e práticas freireanas, ao ser partícipe desse processo histórico. (MAZZA,

2016, p. 7)

Nas palavras do prefácio, é nesse processo de constituição de uma Pedagogia da

Convivência que teria sido, segundo D’Angelis (2016), uma pedagogia que teria como principal

interlocutor a obra de Paulo Freire.

Figura 3 – Elza e Paulo na Unicamp

Fonte: Jornal UNICAMP6

Nesse sentido:

Elza aprofundou estudos; ampliou atividades; compôs equipes técnicas; fundou

instituições; socializou conhecimentos; aliou teoria e técnica; discutiu questões

político-pedagógicas sem se isolar do contexto da vida. O compromisso dela com a

Educação, sua instrução e formação compreende questões sobre a discussão do

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ensino público no Brasil, dentro de uma perspectiva crítica e politizada, reflexiva e

científica. (Spigolon 2006, p. 22):

A parceria intelectual de Elza e Freire podem ser constatada nos relatos de seus filhos sobre

a presença da mãe na vida do pai (Madalena). Uma relação que não foi marcada somente pelo seu

casamento com Freire, mais também através de sua influência em suas decisões

teóricas/epistemológicas.

4 DO DIA A DIA NASCE A CONVIVÊNCIA

Em 2008, Ivone Gebara escreveu o texto “As epistemologias teológicas e suas

consequências”. Nesse texto, Gebara (2008) nos apresenta o conceito de epistemologia da vida

ordinária, que busca, a partir do cotidiano da vida das pessoas comuns, mostrar outras formas de

conhecimento tecidas no cotidiano.

No dicionário, a palavra “ordinário” significa:

1. Vulgar; 2. de baixa condição; 3. grosseira; 4. mal-educada; 5. reles. Em substantivo

feminino, encontramos a palavra ordinário como sendo: 1. de todos os dias; 2. frequente; 3.

orações ditas pelos sacerdotes em todas as missas; 4. passo de marcha; 5. (música)

composição destinada à marcha regular das tropas; 6. mulher malcriada. (dicionário

brasileiro Aurélio)

De acordo com essas definições, podemos verificar que Gebara busca uma palavra que não

tem glamour algum. Ela busca algo do dia a dia; palavra que, às vezes, é grosseira, vulgar ou de

baixa condição. Sua intenção é criar o conceito da epistemologia da vida ordinária. Logo, podemos

perceber que Elza foi uma mulher que criou na ordinária tanto na esfera privada como na esfera

pública. Conciliando família e trabalho, podemos dizer que ela esteve à frente do seu tempo,

embora ainda distante dos anais da história. Em 2005, em Homenagem à Memória de Paulo Freire,

o filho caçula de Elza e Paulo, Lutgardes Costa Freire expressa o que foi Elza para a Educação

Popular e a teoria desenvolvida pelo pai e mãe:

Fui convidado para uma homenagem a meu pai, mãe eu gostaria de falar um pouco a

respeito da minha mãe. Elza Freire, porque muitas vezes os grandes homens aparecem no

mundo, na mídia e as esposas ficam na penumbra. (SPIGOLON, 2010, n. p.)

Portanto, Elza e Paulo Freire (e não apenas Paulo Freire) foram pioneiros como pensadores

da Educação na aludida temática da pesquisa. Levaram de Recife para o Brasil e o mundo estas

descobertas e experiências, que partiram de situações concretas e se realizaram através do diálogo

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entre homens/mulheres criadores de cultura, pois assim era possível superar sua compreensão

ingênua do mundo e desenvolver postura crítica diante da realidade.

A participação de Elza na vida intelectual de Freire como sendo um avanço permanente é

incontestável. Ora como professora dando ênfase aos aspectos pedagógicos, ora como ser humano

no contexto político:

Ela foi professora, depois diretora de grupo, mas teve aí um gesto lindo que foi, depois do

golpe, a solidariedade absoluta que ela teve comigo. Elza ia me visitar na cadeia e nunca

disse: ‘Você está vendo, Paulo, se você tivesse pensado mais...’ Nunca! Quer dizer, ela foi

solidária, absolutamente solidária (FREIRE, 2005, p. 288).

Assim, vamos reafirmando a presença visível das mulheres nas elaborações intelectuais e na

produção de conhecimento no campo da Educação, mais ainda no campo da Educação popular. Que

este trabalho, assim como os demais, possam contribuir para pesquisas que possam nascer sobre e

de mulheres e educação popular.

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Referências

BARRETO, Vera. Paulo Freire para educadores. 4. ed. São Paulo: Ed. Arte e Ciência,

2008.

BRANDÃO, Carlos R. (Org.). O Educador: vida e morte. Rio de Janeiro: Edições Graal

Ltda, 1983.

COSTA FREIRE, Lutgardes; MACEDO, Donaldo. Alfabetização leitura do mundo leitura

da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

COSTA FREIRE, Lutgardes. Homenagem à Memória de Paulo Freire (mimeo). São

Paulo: Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (ALSP), 2005.

COSTA, Albertina de O. Obra Coletiva. Memórias das Mulheres do Exílio. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1980.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. São Paulo: UNESP, 2005.

______. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

MARCH, Aleida. Evocación mi vida al lado del Che. Los recuerdos de la compañera de

lucha y de vida de Ernesto Che Guevara. Cuba: Ocean Sur, 2012.

MAZZA, Debóra; Pefácio. In: Pedagogia da convivência: Elza Freire – uma vida que faz

educação. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. P. 5-15.

ROSAS, Paulo. Papéis Avulsos Sobre Paulo Freire, 1. Recife: Centro Paulo Freire –

Estudos e Pesquisas: Editora Universitária da UFPE, 2003.

SPIGOLON, Nima I.. Elza Freire e a memória do Exílio Brasileiro. In: REUNIÃO

ANUAL DA ANPED, 35., 2012, Porto de Galinhas/PE. Anais - Educação, Cultura,

Pesquisa e Projetos de Desenvolvimento: o Brasil do século XXI. Rio de Janeiro/RJ:

Armazém das Letras Gráfica e Editora Ltda, 2012. p. 323-323.

______. Pedagogia da convivência: Elza Freire – uma vida que faz educação. Jundiaí: Paco

Editorial, 2016.

TOLSTÓI, Sofia. Diarios (1862-1919). Espanha: Colección Alba Clásica, 2011.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Elza Freire and Paulo Freire: education, humanization and coexistence

Abstract: This text proposes to highlight the important intellectual influence of Elza Freire in the

work and life of the educator Paulo Freire. Due to the commitment and action of Elza Freire in the

field of education, Nima Spigolon (2016) asserts that it is possible to research this historical

character. Elza influenced and contributed to the theory of knowledge formulated by Paulo Freire.

"Thus, to better understand Freire's work and the history of education in Brazil, it is necessary to

take into account Elza's contributions" (Spigolon, 2016). Paulo Freire says that Nima Spigolon,

always made a point of recording in his works and writings, sometimes in the form of dedications,

or in the quotations, the contributions of his wife, Elza, to his thinking and his political-pedagogical

practice.

Keywords: Education. Elza Freire. Paulo Freire.