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A Humanizao na Pedagogia de Paulo Freire

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NELINO JOS AZEVEDO DE MENDONA

A HUMANIZAO NA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Educao.

ORIENTADOR: PROF. DR. FERDINAND RHR

RECIFE 2006

2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

A HUMANIZAO NA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE

COMISSO EXAMINADORA

_______________________________________ Prof. Dr. Ferdinand Rhr 1 Examinador/Presidente _______________________________________ Prof. Dr. Joo Francisco de Souza 2 Examinador _______________________________________ Prof. Dr. Afonso Celso Scocuglia 3 Examinador

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A experincia nos ensina que nem todo bvio to bvio quanto parece. Paulo Freire

4DEDICATRIA

A Seu Antnio, meu pai, que, apesar da distante ausncia, est sempre ao meu lado reforando o sentido de honestidade e respeito ao prximo.

A Dona Lourdes, minha me, pela sua luta em defesa da educao de seus filhos e por seu permanente incentivo, gestos de amor e apoio concretizao deste projeto.

A Natlia Beatriz, minha mulher, que no poupou incentivo e estmulos durante essa caminhada; que com carinho e amorosidade repartiu comigo os desafios que se apresentaram e nunca deixou de acreditar na concretizao desta utopia, na realizao deste sonho.

A Maria Ceclia, minha filha, que atravs da sua alegria e entusiasmo me ensina novas maneiras de olhar a vida e o mundo.

A Pedro Henrique, meu filho, em quem encontro muito mais sentido para a minha existncia ao encontrar, nele, tranqilidade e afeto diante das coisas, e pela sua saudvel disciplina com seus estudos, atitude que me deu mais energia para a realizao deste trabalho.

A Isadora Lusa, minha filha, que no bico da cegonha e no canto dos pssaros vem anunciando novos tempos de redobradas alegrias e esperanas.

5AGRADECIMENTOS

Ao professor Ferdinand Rhr, meu orientador, pelas virtudes humanistas demonstradas na sua relao com os outros; pelos ensinamentos e caminhos apontados durante a feitura desta dissertao; pelas aprendizagens adquiridas durante essa caminhada; pela pacincia pedaggica na orientao deste trabalho.

Aos/s professores/as Artur, Jos Batista, Mrcia Melo, Alfredo, Joo Francisco, Edlson, Geraldo, Ricardo, com os/as quais pude compartilhar ensinamentos e aprendizagens.

Aos/s colegas de curso, com os/as quais reparti conhecimentos, sofrimentos e felicidades.

Aos/s funcionrios/as Joo, Shirley, Morgana e Karla, pelas constantes gentileza e cordialidade.

A Dona Nete, pela torcida e desejos de sucesso nesse percurso.

Aos/s amigos/amigas, pelos gestos fraternos de incentivos.

A Natlia Beatriz, pela valiosa contribuio na reviso deste trabalho.

fora divina, que d f para clarear os que no tm luz; que d luz para animar os que no tm esperana; que d esperana para os que perderam o sentido da vida; que d vida e faz brotar a luta por um mundo mais humano.

6SUMRIO

Dedicatria Agradecimentos Resumo Abstract Introduo ........................................................................................................................... 9 Captulo 1 - As Influncias dos Humanismos no Pensamento Freireano ....................... 15 1.1.O Humanismo Existencialista .................................................. 1.2.O Humanismo Cristo .............................................................. 1.3.O Humanismo Marxista ............................................................ 1.4.O Pensamento da Fenomenologia ............................................ 21 25 29 32

Captulo 2 - O Humanismo de Paulo Freire ................................................................... 36 Captulo 3 - Denunciando a Desumanizao ................................................................. 3.1.Massificao ............................................................................. 3.2.Assistencialismo ....................................................................... 3.3.Invaso Cultural ........................................................................ 3.4.Educao Bancria ................................................................... 54 57 66 72 80

Captulo 4 - Anunciando a Humanizao ........................................................................ 88 4.1.Conscientizao ........................................................................ 4.2.Dilogo ..................................................................................... 4.3.Utopia........................................................................................ 4.4.Multiculturalidade .................................................................... 91 119 132 137

Captulo 5 - Educao como Ao Cultural para a Humanizao .................................. 142 Consideraes Conclusivas ................................................................................................ 156 Bibliografia ......................................................................................................................... 163

7RESUMO

A construo de um mundo mais justo e humanizado exige a contribuio de processos educativos crticos e transformadores. Neste sentido, este trabalho buscou analisar o desenvolvimento do conceito de humanizao no pensamento de Paulo Freire, levando em considerao os elementos centrais que constituem a concepo humanista em sua pedagogia. A humanizao foi tomada como categoria fundante em sua obra e esse sentido humanizador exigiu o entendimento de como os processos educativos se estabelecem enquanto ao cultural e, conseqentemente, instrumento de transformao da realidade. Esta uma pesquisa exclusivamente terica, que requer uma compreenso e interpretao da obra de Paulo Freire de acordo com os objetivos estabelecidos, tendo como referncia e base conceitual as correntes filosficas humanistas e o pensamento de autores que o influenciaram. O procedimento metodolgico se utilizou de tcnicas hermenuticas de interpretao de texto e buscou o entendimento e a dimenso criadora nas suas mltiplas possibilidades de abertura dialgica prpria da hermenutica. O discurso freireano vai constituindo, gradativamente, uma concepo humanista do mundo e da vida social e incorporando vrias concepes polticofilosficas acerca do mundo, da sociedade e do ser humano. Este aspecto faz de Freire um pensador que no se enquadra em nenhuma corrente filosfica, mas absorve aspectos de vrias delas e, assim, vai moldando e sedimentando a sua pedagogia na perspectiva de um pensamento libertador e humanista. Dessa forma, o humanismo de Paulo Freire passa a ser melhor entendido na dimenso da prpria dialtica freireana. Isso porque a sua idia de existncia humana se fundamenta no princpio da unidade dialtica sujeito-mundo, no qual o ser humano est histrica e culturalmente marcado. Portanto, possvel afirmar que esse humanismo concreto, crtico, engajado, transformador, pois se alimenta na ao-reflexo, na prxis cotidiana de homens e mulheres que lutam pela sua libertao.

Palavras-chave: desumanizao, humanizao, Paulo Freire, conscientizao, libertao.

8ABSTRACT

The construction of a just and humane world necessitates the contribution of critical and transforming educational processes. The present work seeks to analyze the development of the concept of humanization in the thinking of Paulo Freire, with special focus on the concept of humanization in his pedagogy. Humanization is considered as a foundation of his work and must be understood as how it functions as an educational process within cultural action and, consequently, as an instrument of the transformation of reality. The present work is theoretical, requiring understanding and interpretation of the work of Paulo Freire within specific objectives and using as a reference and conceptual base the thinking of humanistic philosophy and the ideas of those who have influenced it. The methodological process involved the use of hermeneutical techniques for the interpretation of texts, seeking understanding and a critical perspective in the various possibilities of dialogical openness which is the basis of the hermeneutic process. Freirian discourse is gradually gaining its place as a humanistic conception of the world and of social life, incorporating various politicalphilosophical conceptions of the world, of society and about the human being. Because of this aspect, Freire as a thinker does not fall into any particular philosophical category, but used aspects of a number of them, thus molding and nourishing his pedagogy within a liberatory and humanistic framework. The humanism of Paulo Freire can be best understood, then, within the freirean dialect. His idea of human existence is based on the principle of the subject-world dialectical union, by which the human being is marked historically and culturally. But we can say that this humanism is also concrete, critical, engaged, transforming because it is also nourished by action-reflection in daily praxis by men and women who are struggling for their liberation.

Key words: dehumanization, humanization, Paulo Freire, conscientization, liberation

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INTRODUO

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Os desafios no campo da educao contempornea, tendo em vista as grandes transformaes sociais, as novas dinmicas de relaes polticas e culturais, a internacionalizao das comunicaes, o avano da tecnologia, colocam novas

responsabilidades de reflexo e de interveno social, a partir de novas prticas educativas que vislumbrem a participao e a interveno conscientes de homens e mulheres na realidade, tendo como horizonte sua permanente humanizao.

Nesse sentido, ressalta-se a importncia e a atualidade do pensamento de Paulo Freire como aspectos fundamentais para os processos educativos, principalmente aqueles oferecidos s classes populares da sociedade.

O engajamento do pensamento freireano em intervir e forjar prticas pedaggicas escolares e sociais contribui para um entendimento da educao como instrumento democratizador da sociedade e, principalmente, como ao cultural libertadora de homens/mulheres despossudos/as de bens socioculturais.

Este trabalho se prope verificao do pensamento freireano como um referencial terico-crtico construtor de um processo educativo humanizador, na constituio do que, aqui, chamaremos de uma pedagogia da humanizao. Neste sentido, pretende-se compreender a humanizao como categoria fundante na obra de Paulo Freire. O sentido de uma pedagogia

11humanizadora em sua obra exige o entendimento de como os processos educativos se estabelecem enquanto ao cultural, tanto para humanizao quanto para a opresso, e, conseqentemente, instrumentos de transformao da realidade na perspectiva de uma prxis educativa que contribui para libertao e humanizao das pessoas e, ao mesmo tempo, a compreenso da relao histrica, poltica e cultural dessa ao pedaggica com a dimenso existencial da categoria humanizao.

O pensamento de Paulo Freire, ao se fazer pedaggico e, ao mesmo tempo, poltico, em busca do ser mais, prope um projeto educativo que visualiza o ser humano na sua integralidade, sempre em processo de libertao. Por conseguinte, o que Paulo Freire prope em sua obra, na medida em que se constitui e se reinventa em si mesma sua pedagogia da libertao, a constituio de uma antropologia, que se assenta na categoria fundante e central do seu pensamento, que a humanizao, como se pretende aqui mostrar.

A principal tarefa deste trabalho compreender o desenvolvimento do conceito de humanizao no pensamento de Paulo Freire e a relevncia deste conceito para a sua pedagogia. Objetiva, ainda, identificar em sua obra mudanas, rupturas e continuidades no conceito de humanizao; estabelecer processos de superao em que se caracterizam conceitos diferenciados de humanizao; caracterizar a imagem que Paulo Freire faz da situao de desumanizao (ser menos) e de humanizao (ser mais), como tambm o processo de humanizao que vai se constituindo entre uma situao e outra; e analisar criticamente e de forma comparativa as possveis diferentes conceituaes de humanizao no decorrer de sua obra, bem como sua relevncia para a sua teoria pedaggica.

12Esta uma pesquisa exclusivamente terica, que exige uma compreenso e interpretao da obra de Paulo Freire de acordo com os objetivos estabelecidos, bem como, eventualmente, de autores que o influenciaram. O procedimento metodolgico deste trabalho se utiliza de tcnicas hermenuticas de interpretao de texto, indo, no entanto, alm disso, pois o que se pretende a utilizao da hermenutica enquanto elemento de busca do sentido da historicidade da existncia na perspectiva de uma compreenso humanstica do objeto em anlise (cf. PALMER, 1969, p. 19).

Dessa forma, o sentido interpretativo que se constri nesse processo hermenutico de busca e entendimento o da dimenso criadora da compreenso, nas suas mltiplas possibilidades de entendimento e de abertura dialgica prpria da hermenutica, que reconhece no sentido proposto por Gadamer que atravs do dilogo que se chega s coisas, como ressalta Hermann (HERMANN, 2002, p. 90).

Dessa maneira, a estrutura dialgica hermenutica considera como elemento fundamental do processo explicativo a dimenso relacional entre os horizontes interpretativos da obra, enquanto objeto de anlise, e do pesquisador. Assim, no se trata apenas de uma fuso dos horizontes de compreenso de cada um, mas de um dilogo significativo e re-criador, mediado pelo elemento lingstico, histrico e cultural.

Ao se buscar a compreenso do conceito de humanizao, desvelando-se suas mudanas, rupturas e continuidades, constitui-se, aqui, o sentido de superao como concepo de interpretao significativa e qualitativa, enquanto princpio dialtico hegeliano, pois superar, numa perspectiva dialtica, implica complementaridade e no eliminao de um dado anterior. Nesse sentido, conserva-se o que h de verdadeiro anteriormente, superando-o

13de acordo com as imposies histricas posteriores. Superao, portanto, implica mudanas e permanncias.

A perspectiva de definio de conceito no incorpora a idia de que o conceito por si s j encerra o conhecimento da coisa definida. O sentido que se quer engendra uma dimenso fenomenolgica que extrapola os limites cientificistas do explicar e prope uma atitude comprometida com o desvelamento e compreenso significativa do objeto investigado, preservando o rigor tico do procedimento epistemolgico e o necessrio distanciamento investigativo (REZENDE, 1990, p. 27-37).

Assumir uma postura comprometida significa dizer que no se postula uma atitude de envolvimento, com o texto ou com o autor, que ameace eticamente o sentido crtico do conhecimento cientfico que se busca, mas implica, exatamente, uma atitude investigativa que reconhece a dimenso histrica e social do objeto em questo, considerando as relaes humanas nas suas diversas dimenses enquanto experincia existencial no mundo.

Uma outra questo fundamental deste trabalho apresentar os aspectos e elementos centrais que constituem a concepo humanista de Paulo Freire e que moldam a sua pedagogia enquanto projeto e utopia poltico-educacional de transformao na perspectiva da humanizao de homens e mulheres.

Para tanto, o trabalho est estruturado em cinco momentos. O primeiro captulo trata de apresentar os aspectos principais das concepes filosfico-humanistas que influenciaram Paulo Freire na elaborao de seu pensamento poltico-pedaggico e de sua prpria viso de mundo. Neste captulo, buscam-se as referncias filosficas do existencialismo cristo e das

14vises personalistas, como tambm do pensamento filosfico da fenomenologia. O segundo dedicado a uma anlise e apresentao dos aspectos que indicam na obra freireana o seu humanismo radical, concreto e historicamente situado como elemento fundante e central na constituio de sua pedagogia. O terceiro e o quarto visam ao entendimento revelador/desvelador da relao antagnica e de antinomia entre desumanizao e humanizao. Para isso, faz-se uma anlise dos elementos e aspectos que, segundo Freire, constituem a prpria desumanizao ou humanizao dos seres humanos, sendo que o terceiro captulo trata dos aspectos que caracterizam as situaes de opresso e desumanizao dos seres humanos e o quarto, os aspectos possibilitadores de processos de humanizao. Por fim, o quinto momento apresenta os aspectos pedaggicos e polticos da pedagogia freireana que podem gerar aes culturais libertadoras capazes de contribuir com o processo humanizador que possibilita aos homens e mulheres sarem da sua situao desumanizante para uma condio de humanizao, que a permanente realizao da prpria vocao ontolgica para o ser mais.

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CAPTULO 1 AS INFLUNCIAS DOS HUMANISMOS NO PENSAMENTO FREIREANO

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A pedagogia de Paulo Freire apresenta como uma de suas questes centrais a idia de que os seres humanos so ontologicamente vocacionados para exercerem historicamente a condio de sujeitos para, dessa forma, vivenciarem permanentemente a sua humanidade. Essa dimenso antropolgica que caracteriza o pensamento freireano o que afirma a prxis humana como um compromisso histrico que, ao enderear os sujeitos ao mundo, possibilita, ao mesmo tempo, a transformao da realidade e dos prprios seres humanos. nesse sentido que os seres humanos assumem o papel central na sua pedagogia e essa antropologia comea a se configurar j na primeira frase que inicia o seu livro Educao como Prtica da Liberdade, ao afirmar que No h educao fora das sociedades humanas e no h homem no vazio (2003a, p. 43).

A idia, radicalmente defendida por Freire, de que os seres humanos tm a vocao ontolgica para ser mais, isto , para serem cada vez mais humanos, e isso implica na superao permanente das situaes de desumanizao, o que configura essencialmente a dimenso metafsica1 ontolgica na sua pedagogia, mas, ao mesmo tempo, tambm o que

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A metafsica no pensada, aqui, na sua conceituao clssica. A palavra metafsica foi usada pela primeira vez por Andrnico de Rodes, em torno do ano 50 a.C., para se referir aos escritos filosficos de Aristteles, que tratavam do Ser enquanto Ser, do Ser das coisas, denominados de Filosofia Primeira. Nesse sentido, podese entender por metafsica a investigao dos fundamentos, dos princpios e das causas de todas as coisas, refletindo porque elas existem e por que so o que so. Jacobus Tomasius, filsofo alemo do sculo XVII, por considerar que a filosofia primeira de Aristteles estudava o Ser enquanto Ser, ou seja, buscava aquilo que faz de um ente ou de uma coisa um Ser, deveria ser denominada de ontologia. Desse modo, a metafsica contempornea passou a ser designada de ontologia e trata do conhecimento do ser, dos entes e das coisas, como so de fato em si mesmos. Contudo, a metafsica contempornea ou ontologia se ocupa, principalmente, de investigar as diferentes maneiras como os seres existem, sua essncia e sentido, a relao entre a existncia e a essncia e o modo como aparecem nas conscincias. Dessa maneira, a ontologia incorpora em seu processo investigativo

17articula em seu pensamento as bases conceituais de uma antropologia historicamente apoiada em concepes poltico-sociais. A perspectiva histrica do seu pensamento se infunda na afirmao de que a prpria histria um contnuo inacabado e, dessa forma, os seres humanos, como seres histricos, tambm se constituem humanamente pela sua inconcluso.

Como seres inconclusos vocacionados ontolgica e historicamente para realizarem sua felicidade, os homens e mulheres so chamados a um engajamento poltico e social no mundo, e esse engajamento a concretizao da prxis humana. Para Freire, no possvel a superao das estruturas desumanizantes se os seres humanos no se tornam seres de prxis. Contudo, a prxis humana transformadora s pode se constituir dentro de uma unidade dialtica absolutamente coerente e solidria entre o pensar e o agir.

A nfase que Freire d dimenso histrica dos seres humanos na sua pedagogia, considerando fundamentalmente os aspectos da estrutura econmica, poltica e social e a necessria interveno para a transformao das condies materiais em defesa das classes populares, secundarizou a dimenso metafsica de sua pedagogia. Aspecto que parece ter sido feito intencionalmente por Freire, essencialmente pelo carter concreto de sua perspectiva poltico-pedaggica, mas, possivelmente em virtude, tambm, das crticas a ele feitas de que seu pensamento era idealista.

interessante observar que as primeiras obras de Freire, por no apresentarem conceitos e terminologias marxistas, abriram espaos para que o mesmo fosse criticado de idealista, culturalista, reformista e ingnuo. Alegavam a apoliticidade de sua obra (TORRES, 1987, p, 21-23). Freire, sobre essas crticas, alega a ideologizao dessas afirmaes, que seaspectos como percepo, imaginao, linguagem, intersubjetividade, reflexo, ao, moral e poltica. , ento, nessa perspectiva contempornea, que se considera a dimenso metafsica, ou ontolgica, na pedagogia de Paulo Freire. Ver em: CHAU, Marilena. Convite filosofia. So Paulo, tica, 2005, p. 180-184.

18caracterizam pela anlise antidialtica do pensamento, e diz o seguinte: Em primeiro lugar, creio que os que me fazem estes comentrios no so dialticos, no entendem o que eu digo, ou simplesmente se recusam a ler-me. Venho enfatizando precisamente tudo aquilo que eles me criticam (FREIRE, 1987c, p. 69). No entanto, ocorre um movimento contrrio, na dcada de setenta, quanto s crticas a ele endereadas. Baseados nos aspectos marxistas que muito marcaram, naquele perodo, a sua obra, vrios crticos afirmavam a carncia, e at ausncia, de uma metafsica na concepo humanista de sua obra.

Em dilogo com o professor Admardo de Oliveira, sobre a existncia ou no de uma metafsica em seu pensamento, o professor questiona se Freire, de fato, omitia a discusso em torno dos problemas metafsicos devido a uma grande dificuldade de compreenso para seus leitores a respeito desse assunto ou se considerava irrelevante uma formulao em torno das questes metafsicas por estar preocupado com uma pedagogia da prxis. Como resposta, Freire faz a seguinte afirmao:

Tenho a impresso que voc pode encontrar uma certa metafsica na elaborao do meu pensamento. Mas, como voc muito bem colocou, h uma grande preocupao de minha parte de analisar o concreto como ele est se dando e com um aproche (sic) e viso dialtica que inclusive explica a prpria linguagem que uso, por exemplo, de crculos que vo e que voltam, na medida mesmo em que esta a linguagem que busca apanhar uma realidade que no , porque est sendo, neste sentido, ento, minha preocupao muito real, uma preocupao com o concreto histrico e no com algo que pudesse cair numa forma demasiada abstrata. Eu no aceitaria realmente uma metafsica de cunho inteiramente tomista, e que me levasse, por exemplo, a analisar a essncia do ser dos desejos. Isto realmente algo que no me interessa (OLIVEIRA, 1985, p. 92)2.

O que deve ser considerado que Freire nunca explicitou, substantivamente, a dimenso metafsica de sua pedagogia, apesar de ser possvel extrair vrios elementos que

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Este dilogo foi realizado com o professor filsofo Admardo de Oliveira, em julho de 1979, na Universidade de Michigan, em Ann Arbor, EUA.

19podem assegurar, no decorrer de toda a sua obra, a existncia de uma metafsica em seu pensamento. Tal aspecto encontra maior firmeza se se considera que ele incorpora vrias influncias de diversas correntes filosficas. Por outro lado, a maior dificuldade de se elaborar uma anlise dos aspectos filosficos, da qual se poderia apreender a sua metafsica, ocorre pelo fato de que Freire no concentra em nenhuma de suas obras uma elaborao mais consistente sobre tais questes, o que somente pode ser verificado de forma esparsa e bem geral. Este aspecto faz de Freire um pensador que no se enquadra efetivamente em nenhuma corrente filosfica, mas absorve aspectos de vrias delas, e, assim, vai conformando e sedimentando a sua pedagogia na perspectiva de um pensamento libertador e humanista.

O humanismo, numa perspectiva filosfica, toda reflexo em torno do ser humano, reconhecendo, portanto, seus valores, suas buscas, seus limites, suas possibilidades de liberdade, seus interesses e todos os aspectos a ele relacionados. Dessa maneira, h diferentes formas de humanismos. Oliveira, ao comentar sobre as diversas possibilidades de humanismos, cita a seguinte afirmao de Jacques Maritain, para dizer que independentemente da forma que o humanismo possa assumir, ele

tende essencialmente a tornar o homem mais verdadeiramente humano, e manifestar sua original grandeza atravs da sua participao em tudo aquilo que pode enriquec-lo na natureza e na histria... isto requer, antes de tudo, que o homem desenvolva as virtualidades contidas em si mesmo, suas foras criadoras e a vida da razo, e trabalhar no sentido de fazer das foras do mundo fsico, instrumento de sua liberdade. Assim entendido, humanismo inseparvel de civilizao ou de cultura, sendo ambas tomadas como palavras sinnimas (OLIVEIRA, 1985, p. 115).

Assim, o humanismo passou a ser usado para designar diversas expresses de ideologias modernas e contemporneas, o que, de alguma maneira, contribuiu para uma certa vaguidade em seu sentido. Pode-se, ento, verificar fundamentalmente trs sentidos de

20humanismos: o humanismo histrico-literrio, construdo na perspectiva do estudo e da formao da cultura e das formas literrias, relacionado aos autores e cultura clssica, grega e romana; o humanismo de dimenso especulativo-filosfico, que, de modo geral, engloba os aspectos relacionados origem, natureza, destino dos seres humanos e que, mais especificamente, implica em doutrinas que buscam dignificar os seres humanos; e, por fim, o humanismo de carter tico-sociolgico, que reflete acerca dos seres humanos a partir de sua convivncia social, de sua culturalidade e de sua historicidade. (NOGARE, 1994, p.15,16)

Contudo, importante considerar que todas essas expresses e concepes humanistas devem a sua origem ao humanismo antigo, que teve incio a partir do surgimento e evoluo da civilizao e cultura dos gregos. Nogare (1994, p. 25) afirma que No h movimento humanista inclusive o humanismo cristo que de uma forma ou de outra no deite suas razes no pensamento grego. De fato, os pensamentos filosficos e polticos predominantes na idade antiga crist, na Idade Mdia e na Idade Moderna tiveram como base e influncia o pensamento filosfico de Scrates, Plato e Aristteles. Vale observar, ainda, a importncia dos pensadores pr-socrticos na elaborao do pensamento ocidental, principalmente nas posies defendidas e reivindicadas por Nietzsche e Heidegger, de que era preciso retomar o pensamento dos pr-socrticos para que se recuperasse a autenticidade do florescimento da cultura ocidental. H tambm uma influncia do humanismo romano, porm em menor grau de contribuio.

Retomando a perspectiva humanista da pedagogia de Paulo Freire, destacam-se, neste trabalho, como contribuio e fator essencial de influncia, os humanismos modernos e contemporneos, que sero as vertentes humanistas aqui consideradas, tendo em vista o seu iderio, alm da filosofia hegeliana, que fundamenta a relao entre as conscincias opressora

21e oprimida e a dimenso dialtica do seu pensamento. Certamente no inteno deste trabalho desenvolver uma abordagem analtica desses humanismos de forma abragente e nem, tampouco, discuti-los em seus limites. O que se quer, com esta abordagem, destacar nessas correntes filosficas alguns aspectos que contriburam para a elaborao do pensamento freireano. A seguir sero apresentados aspectos conceituais das filosofias humanistas que influenciaram profundamente a sua obra, que so o humanismo existencialista, o humanismo cristo, o humanismo marxista, como tambm o pensamento da fenomenologia.

1.1. O Humanismo Existencialista

A contribuio do humanismo existencialista no pensamento freireano determinante para a elaborao da perspectiva humanista em sua pedagogia. a partir das idias do filsofo Kierkegaard que essa corrente filosfica surge. Buscando uma filosofia que no estivesse desligada do contexto humano, Kierkegaard, orientado por uma vida religiosa intensa, coloca como temas centrais de sua reflexo questes como: o significado da vida humana e o sentido da existncia humana. Dessa forma, o que importa para esse pensamento a prpria existncia daquilo que de fato existe e no as questes de carter abstrato. No entanto, so os filsofos Martin Heidegger e Jean Paul Sartre, principais representantes do existencialismo ateu, Gabriel Marcel, pensador principal do existencialismo cristo, e Karl Jaspers, que desenvolveu na sua filosofia o conceito de transcendncia sem ligao confissional, que, a partir do pensamento de Kierkegaard, elaboram uma filosofia essencialmente existencialista e influenciam,

efetivamente, Paulo Freire.

22Martin Heidegger, no que diz respeito fase inicial de sua filosofia, parte da idia de que a existncia que d sentido essncia. Ele busca entender o ser humano e a realidade que o envolve considerando como aspecto central da existncia o fato de o ser humano estar-nomundo. A idia de estar-no-mundo implica, por conseguinte, estar-no-tempo, e isso, para Heidegger, significa que o ser humano um ser-para-a-morte, pois, de acordo com o seu pensamento, o ser humano foi posto no mundo para morrer. (TORRES, 1997; OLIVEIRA, 1985). Heidegger afirma, ento, que

A morte uma possibilidade ontolgica que a prpria pre-sena sempre tem de assumir. Com a morte, a prpria pre-sena impendente em seu poder-ser mais prprio. Nessa possibilidade, o que est em jogo para a pre-sena pura e simplesmente seu ser-no-mundo. Sua morte a possibilidade de poder no mais estar pre-sente. Se, enquanto essa possibilidade, a pre-sena , para si mesma, impendente, porque depende plenamente de seu poder-ser mais prprio. Sendo impendente para si, nela se desfazem todas as remisses para outra pre-sena. Essa possibilidade mais prpria e irremissvel , ao mesmo tempo, a extrema. Enquanto poder-ser, a pre-sena no capaz de superar a possibilidade da morte. A morte , em ltima instncia, a possibilidade da impossibilidade absoluta da pre-sena. (1997, p. 32)

Freire considera a idia de que o ser humano um ser-no-mundo, que a sua existncia social passa a ser reconhecida a partir do momento em que ele capta pela sua conscincia crtica a prpria realidade. Todavia, ao contrrio da perspectiva angustiante de Heidegger e do niilismo de Sartre, Freire assume uma posio otimista da existencialidade humana. Dessa maneira, os seres humanos, pela sua existncia, so seres-no-mundo e seres-com-o-mundo. Por isso, para ele,

O homem est no mundo e com o mundo. Se apenas estivesse no mundo no haveria transcendncia nem se objetivaria a si mesmo. Mas como pode objetivar-se, pode tambm distinguir entre um eu e um no-eu. Isto o torna um ser capaz de relacionar-se; de sair de si; de projetar-se nos outros; de transcender. Pode distinguir rbitas existenciais distintas de si mesmo. Estas relaes no se do apenas com os outros, mas se do no mundo e pelo mundo. (FREIRE, 1979, p. 30)

23Ao afirmar que os seres humanos no esto apenas no mundo, mas com o mundo, Freire vai buscar, principalmente em Jaspers, a concepo de que o ser-em-si-mesmo no pode ser desassociado do ser-em-comunicao. Portanto, os homens e mulheres, enquanto seres de comunicao, constituem-se como sujeitos de relaes essencialmente dialogais e, dessa forma, o prprio dilogo surge como uma condio existencial. Nessa direo, o dilogo passa a ser o caminho possvel para a realizao da pronncia verdadeira que vai contribuir para que os seres humanos adquiram sua autenticidade e possam realizar a sua vocao ontolgica.

Ao afirmar que a vocao ontolgica do ser humano ser sujeito e no objeto, Freire aborda a questo do ter e do ser, e considera que os homens e as mulheres so seres essencialmente de compromisso histrico e, portanto, de interveno. Porm esse compromisso e essa possibilidade de interveno somente se concretizam na medida em que esses sujeitos, sendo seres situados e temporalizados reflitam criticamente suas prprias condies espao-temporais. Essa concepo freireana marca uma influncia significativa do existencialismo cristo de Gabriel Marcel. Para Marcel, o ter tudo aquilo que objetivvel, a coisificao do ser. O ser anulado na medida em que o ter acentua a si mesmo em detrimento do ser. Para que isso no ocorra, o ser deve orientar o ter, fazendo dele instrumento para o ser, pois o ser, para ele, participao, amor, esperana. Desse modo, para Marcel, o plano do ter o plano da objetividade, da problematicidade, da tcnica e, portanto, o plano da alienao, da angstia, do desespero. neste plano que o homem degradado a simples objeto (1994, p. 129,130), afirma Nogare. Por outro lado, ainda de acordo com Nogare, o plano do ser, pelo contrrio, o plano da subjetividade, da intimidade, daquelas experincias pessoais e indizveis em que o homem se reencontra a si mesmo, vive sua existncia autntica, realiza suas potencialidades (idem, p. 130). seres de relaes, diz: Freire, ao considerar os seres humanos como

24Este ser temporalizado e situado, ontologicamente inacabado sujeito por vocao, objeto por distoro -, descobre que no s est na realidade, mas tambm que est com ela. Realidade que objetiva, independente dele, possvel de ser reconhecida e com a qual se relaciona (1979, p. 62).

O entendimento da afirmao freireana de que os seres humanos so inacabados uma questo central para que se tenha uma compreenso mais ampla e significativa da dimenso humanista de sua pedagogia. Nesse aspecto, o existencialismo d uma contribuio fundamental ao pensamento do educador pernambucano. O existencialismo afirma que o ser humano est constantemente se projetando para fora de si mesmo, buscando-se, completandose, construindo-se, fazendo-se no mundo, pois o ser humano, no dizer de Sartre, nunca fim, est sempre por se fazer. Freire absorve a contribuio dos pensadores existencialistas de que os seres humanos esto permanentemente se refazendo, mas redimensiona essa concepo de mundo e de ser humano no contexto da sua concepo socioeducativa, enquanto projeto poltico-pedaggico libertador, e escreve:

A concepo e a prtica bancrias, imobilistas, fixistas, terminam por desconhecer os homens como seres histricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do carter histrico e da historicidade dos homens. Por isto mesmo que os reconhece como seres que esto sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histrica tambm, igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que so apenas inacabados, mas no so histricos, os homens se sabem inacabados. Tm a conscincia de sua inconcluso. A se encontram as razes da educao mesma, como manifestao exclusivamente humana. Isto , na inconcluso dos homens e na conscincia que dela tm. Da que seja a educao um quefazer permanente. Permanente, na razo da inconcluso dos homens e do devenir da realidade. (1987a, p. 72,73).

Dessa forma, Freire caminha na mesma direo reflexiva da filosofia existencial ao considerar a condio humana a partir da sua prpria vivncia no mundo. E, nesse sentido, concebe a educao como um instrumento necessrio luta pela superao das condies existenciais desumanizantes. Para ele, o processo educativo deve atuar na direo de fazer com

25que os seres humanos despertem criticamente para o desvelamento da sua realidade e possam transform-la a partir da sua prxis.

1.2. O Humanismo Cristo

A importncia que tem o pensamento teolgico na construo da pedagogia de Paulo Freire fundamental para que se entenda o sentido de sua viso libertadora e humanista em relao aos seres humanos. Muito dessa influncia se deve prpria histria de vida de Freire e de militncia em movimentos ligados igreja catlica e, posteriormente, a sua atuao profissional vinculada Igreja. Contudo, a influncia do catolicismo francs, inspirado pelo maritainismo e pelas idias de Mounier, durante as dcadas de 50 e 60, no Brasil, asseverou a sua convico crist politicamente engajada e socialmente comprometida com as atividades comunitrias em defesa de uma vida de permanente libertao humana. Certamente, toda essa influncia muito se deve as suas leituras e incorporaes do iderio formulado pelo humanismo cristo, principalmente de Jacques Maritain, Georges Bernanos e do personalismo de Emmanuel Mounier e, no Brasil, de Alceu Amoroso Lima, o Tristo de Atade, que absorve as idias de Toms de Aquino, apresentando, portanto, uma viso do neo-tomismo.

De um modo geral, o humanismo cristo sempre apresentou uma viso antropolgica do ser humano e nessa perspectiva Pode ser empregado para designar a viso crist de homem, ou, em outras palavras, a contribuio especfica que trouxe o Cristianismo, a partir

26da Revoluo Bblica, na compreenso do homem, seu lugar na histria e sua dimenso transcendente a ser plenificada na trans-histria (OLIVEIRA. 1985, p. 128).

Essa preocupao antropolgica levou a vertente humanista do cristianismo a rejeitar uma viso dualista e afirmar uma concepo unitria do ser humano (alma e corpo como unidade antropolgica) - tendo de Toms de Aquino as maiores contribuies - reconhecendo, ento, a dimenso histrica e social a qual os seres humanos esto inseridos. nesse sentido que Mounier afirma que A indissolvel unio da alma e do corpo o centro do pensamento cristo (2004, p. 30). Desse modo, essa problemtica passa a ser considerada no mais apenas do ponto de vista metafsico, mas tambm do ponto de vista dos aspectos sociais, polticos e econmicos, pois j no mais possvel superar as contradies que impedem a libertao dos seres humanos, levando-se em conta a perspectiva metafsica, idealista, visto que o ser humano no se localiza no abstrato, mas, ao contrrio, est situado no tempo e no espao.

Freire, reconhecidamente, tem confirmado a importncia das concepes crists na construo de seu pensamento poltico-pedaggico, e isso pode ser verificado em vrias afirmaes expressas em suas obras e pela maneira como a sua narrativa vai sendo construda ao longo de seu trabalho. Nesse sentido, pode-se destacar, por exemplo, a sua idia de vocao ontolgica para o ser mais, que apresenta todo um teor metafsico, alm do histricosocial, na sua conceituao, que pode ser verificado no personalismo de Mounier. A perspectiva que Mounier apresenta a de que a viso individualista e egocntrica que gera a ganncia e o lucro instaura uma condio de violncia ontolgica contra os seres humanos. Observe-se que Freire afirma que a desumanizao no vocao, mas uma possibilidade

27histrica e significa uma distoro da vocao ontolgica para o ser mais, o que implica dizer que uma distoro ontolgica.

Nesse mesmo raciocnio, pode-se apreender o sentido de utopia defendido por Freire como sendo marcadamente influenciado pela viso crist afirmada por Mounier e Maritain. A viso personalista de Mounier aponta para uma perspectiva utpica libertria que possibilite uma construo mais humana e solidria da sociedade. O seu personalismo implica numa recusa ao individualismo egosta e prope a construo de uma sociedade fundada na noo de pessoa. Portanto, significa a valorizao plena da pessoa. Nesse sentido, valoriza a idia de esperana, de afetividade, de amor, de liberdade, da cultura como promoo dos valores humanos, como condio necessria para os seres humanos e para a histria. Todos esses aspectos so freqentemente encontrados no pensamento freireano. Para Mounier, a liberdade uma conquista que se realiza na prpria vivncia humana. Por seu lado, Maritain enfatiza a importncia da superao do lado individualista do ser, e defende a democracia como ideal de vida e, por isso, uma sociedade fundada no bem comum da coletividade.

Freire, ao que se verifica, incorpora alguns desses aspectos para formular o seu sentido de utopia. Ele enfatiza, em toda a sua obra, e em seus ltimos escritos de forma bastante enftica, - veja-se, por exemplo, Pedagogia da Esperana e Pedagogia da Indignao -, a necessidade da utopia em qualquer projeto revolucionrio de transformao social em defesa da humanizao. Isso porque ele entende utopia como o realizvel, aquilo que pode se concretizar. Para ele, utopia implica em denncia da desumanizao e anncio da humanizao, constituindo-se, portanto, em prxis. Uma prxis caracterizada por uma dimenso proftica. Essa idia de utopia no pode ser compreendida sem o sentido da

28esperana, como condio de busca humana, devido a sua condio de inacabamento. Para ele, uma educao sem esperana no educao (1979, p. 30).

O humanismo cristo, dentro da perspectiva abordada pelo personalismo, defende que toda produo humana tem que ter uma funo emancipatria. Nesse sentido, nenhuma prosperidade pode ser libertadora se, de fato, no estiver a favor das exigncias da pessoa humana. Nesse sentido, Mounier afirma que

Produzir uma atividade essencial da pessoa, desde que demos produo essa total perspectiva que faz com que ela arraste as mais humildes tarefas no sopro divino que impele a humanidade. Entregue, primeiramente, satisfao a curto prazo das necessidades elementares, seguidamente desviada por interesses parasitas ou entregue sua prpria embriaguez, a produo deve tornar-se uma atividade libertante e libertadora, desde que modelada a todas as exigncias da pessoa. Ressalvada essa condio, podemos dizer que, onde houver primado do econmico, h j primado do humano. A produo no tem valor seno quando visa o seu mais alto fim: a instaurao de um mundo de pessoas. (2004, p. 39)

Ao mesmo tempo, condena a viso determinista do ser humano, visto que esse entendimento nega a compreenso do ser humano como um ser aberto, um ser de procura, um ser de possibilidades. Esses aspectos, inclusive, apresentam uma consonncia com algumas perspectivas marxistas de ser humano e de mundo, mostrando que no h verdadeiramente uma antinomia entre ambas. Esses aspectos so amplamente defendidos por Freire na elaborao de seu humanismo filosfico e poltico.

A contribuio do humanismo cristo no pensamento freireano tem fortalecido muito mais a radicalidade e o engajamento poltico e social de sua pedagogia humanista. A natureza utpica e proftica, que ele incorpora no seu pensamento como reconhecimento e valorizao da subjetividade humana, encontram como cenrio profcuo de afirmao a realidade de misria e opresso das populaes do terceiro mundo, e mais precisamente da Amrica Latina,

29onde gestada e criada a Teologia da Libertao, para a qual Freire deu uma importante contribuio para o seu surgimento3.

1.3. O Humanismo Marxista

Para analisar essa questo, deve-se considerar como ponto de partida, que o marxismo defende uma concepo antropolgica de histria. Nesse sentido, ao levantar as questes relacionadas aos seres humanos, vistos como seres sociais e histricos, Marx contrape opresso e alienao libertao e conscincia. Com isso, a partir de uma viso dialtica estabelecida nessa antinomia, ele afirma que

Um ser s se considera autnomo, quando o senhor de si mesmo, e s senhor de si, quando deve a si mesmo seu modo de existncia. Um homem que vive graas a outro, se considera a si mesmo um ser dependente. Vivo, no entanto, totalmente por graa de outro, quando lhe devo no s a manuteno de minha vida, como tambm o fato de que alm disso criou minha vida, a fonte de minha vida; e minha vida tem necessariamente o fundamento fora de si mesma, quando no minha prpria criao. (MARX, 1974, p. 20,21)

Marx considera que o ser humano se constitui pelo trabalho, pois a partir dele que se transforma a natureza, que se recria o mundo e a si prprio. S que, ao mesmo tempo, o trabalho representa a essncia do ser social e a misria do prprio ser humano. O trabalho, por ser uma atividade alienada, que divide as pessoas em proprietrias e trabalhadoras, portanto, em opressores e oprimidos, implica na explorao do ser humano pelo ser humano.

3

A respeito da contribuio de Paulo Freire para a o pensamento da Teologia da Libertao, ver as referncias bibliogrficas em: TORRES, Carlos Alberto. Leitura crtica de Paulo Freire. So Paulo, Edies Loyola, 1981, p. 39

30(OLIVEIRA, 1985, p. 125). Portanto, afirma Marx, que atravs da ao transformadora do mundo que os seres humanos humanizam o prprio mundo e se humanizam. Vrias afirmaes que validam essa mesma concepo podem ser verificadas na pedagogia freireana.

Para Marx, o termo alienao tem um significado fundamental. a alienao enquanto realidade histrica que contribui para a escravizao do ser humano, na medida em que esse se torna alheio de si mesmo e de seu produto. Ele, contudo, credita alienao econmica a base principal de todas as outras formas de alienao. Desse modo, para ele, so as condies de produo, as riquezas da natureza, as mquinas e tcnicas de trabalho, as organizaes e divises do trabalho social , ou seja, a infra-estrutura que, preponderantemente, determinam o ser social, quer dizer, as instituies e as ideologias que representam a superestrutura.

Para o pensamento marxista, todavia, o ser humano o construtor de sua prpria libertao. E a luta de classe a possibilidade que tm os seres humanos de superarem a sua condio de opresso e domnio. eliminando as estruturas que geram a dominao que se pode chegar a uma condio de dignidade humana. Para que isso ocorra, necessrio considerar a relao dialtica da histria e a prxis humana como motores que alimentam a revoluo libertadora para a transformao da histria. Esse processo de transformao realizase somente na sociedade, de forma concreta, considerando a humanizao como um fato histrico e no um ideal abstrato de humanidade (NOGARE, 1994, p. 105). Marx alerta que deve-se evitar antes de tudo fixar a sociedade como outra abstrao frente ao indivduo. O indivduo o ser social. A exteriorizao de sua vida (...) pois, uma exteriorizao e confirmao da vida social (1974, p. 16).

31O humanismo marxista caracterizado, principalmente, pela sua constante preocupao com a libertao dos seres humanos e com a eliminao das formas de alienao que coisificam e transformam homens e mulheres em seres inautnticos. Tais preocupaes so tambm bases fundantes na concepo poltico-filosfica da pedagogia de Freire. Da a afirmao de que o humanismo freireano tem uma forte contribuio do pensamento marxista. Dessa forma, Freire recorre muitas vezes a Marx para argumentar aspectos e concepes de seu pensamento. Em conversa com o professor Admardo de Oliveira, Freire diz o seguinte:

Quando me refiro tambm transformao radical da sociedade eu no estou me referindo a uma transformao que tornasse a sociedade num paraso uma vez que a sociedade continuar sendo histria. Desta forma, eu no me refiro a um eldorado de se criar um mundo sem contradies. Mas eu me refiro no sentido de que ela uma transformao radical enquanto os seus objetivos significam a transformao, por exemplo, das relaes sociais de produo. Uma vez mais voc chega a a Marx. Mas no uma transformao que nos leve necessariamente a um capitalismo de Estado. E h hoje toda uma preocupao (inclusive entre marxistas) por um tipo de socialismo mais humanizante, ou menos desumanizante. O importante tocar no ncleo central de estrutura, que o modo de produo. (OLIVEIRA, 1985, p. 94)

A filosofia da prxis fundante para a concepo que engendra a atividade revolucionria marxista. Ela se constitui como um elemento tico na luta pela transformao, pois o sentido da luta a confirmao da autenticidade da pessoa. Freire incorpora a prxis de maneira decisiva para a ao libertadora de sua pedagogia. Afirma que, sem ela, impossvel a superao da contradio opressor-oprimidos (1987a, p. 38). Ao reconhecer a importncia dessa questo, ele chama a ateno para a relao objetividade-subjetividade. Afirma que o processo de transformao da realidade, da histria, tem a ver com essa relao dialtica, e que a dicotomia defendida pelas vises mecanicistas, que reconhecem apenas a objetividade e, dessa forma, vem o mundo sem seres humanos, to malfica e equivocada quanto viso ingnua, que reconhece apenas a subjetividade, como se tivessem apenas seres humanos sem mundo. Freire diz que Em Marx, como em nenhum outro pensador crtico, realista, jamais se

32encontrar essa dicotomia. O que Marx criticou e, cientificamente destruiu, no foi a subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo (1987a, p. 37). De fato, pode-se ler nos Manuscritos Econmico-Filosficos a seguinte afirmao de Marx: O carter social , pois, o carter geral de todo o movimento; assim como a prpria sociedade que produz o homem enquanto homem, assim tambm ela produzida por ele (1974, p. 15).

1.4. O Pensamento da Fenomenologia

O pensamento fenomenolgico considera, fundamentalmente, que h uma permanente relao entre o mundo em que se do as experincias humanas e os prprios seres humanos que vivenciam essas experincias. Dessa forma, para a fenomenologia, no se pode conceber o mundo sem sujeitos, da mesma forma que no possvel sujeito sem mundo. Com isso, surge uma questo central, que o conceito de intencionalidade do pensamento filosfico. Isso porque a conscincia atua intencionalmente voltada para o mundo, tendo em vista que ela no fechada em si mesma. O pensamento fenomenolgico ento uma reflexo sobre o conhecimento e busca, assim, aproximar-se essncia dos fenmenos. Dessa corrente de pensamento, podem ser citados como seus principais formuladores Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Paul Ricoer, Max Scheler. Sendo Husserl, no entanto, o seu precursor e representante de maior importncia, de quem Freire vai sofrer, dentro dessa corrente filosfica, maior influncia.

A fenomenologia afirma que toda conscincia conscincia de alguma coisa. Essa afirmao implica dizer que a conscincia atua sempre no sentido de dentro para fora, posto

33que ela nunca fechada em si mesma, e, por isso, est sempre dirigida na inteno de algo. A conscincia est sempre direcionada ao mundo e dessa forma intenciona entend-lo e, portanto, vai criando e desenvolvendo todo um processo de cultura humana. Torres (1997, p. 181), citando Julio de Santa Ana, diz: (...) Husserl, seguindo Brentano, fala ento da intencionalidade da conscincia: a conscincia tende dessa forma em direo ao mundo, em direo s coisas, em direo criao de novos seres, em direo ao nvel da imaginao. A conscincia, portanto, deve ser entendida, nessa perspectiva, como algo social, mesmo tendo o seu lado individual.

Torres (1997, p. 182,183) explicita o processo de conhecimento perspectivado pela fenomenologia, atravs da conscincia, que pode ser resumido da seguinte forma: esse

processo tem incio na sua primeira possibilidade histrica, que a sua intencionalidade, como j foi explicitado anteriormente; a segunda possibilidade histrica, enquanto movimento da conscincia, se caracteriza pela objetividade, pois esse o momento de compreenso da realidade, que se d, ainda, no nvel do senso comum, carecendo, portanto, de um rigor epistemolgico; o terceiro momento, relacionado aos dois anteriores, a possibilidade histrica da conscincia que se caracteriza pela criticidade. Nesse movimento, a conscincia, pela sua intencionalidade, supera o nvel da objetivao, visto que j no est mais no campo da doxa, no sendo, portanto, uma simples identificao da realidade; por fim, a quarta possibilidade histrica se constitui pela transcendentalidade. A idia de transcendentalidade, aqui, no est relacionada ao sentido do abstrato. Ao contrrio, tem tudo a ver com o mundo material, concreto, com a finitude humana. Essa possibilidade implica na capacidade que tem a conscincia humana de transcender a limitaes da configurao objetiva. Este ltimo movimento, qualitativamente o mais alto, o que possibilita a conscincia atuar sobre o fenmeno para transform-lo.

34O percurso que faz a conscincia, atravs das suas possibilidades histricas, tem incio na sua intencionalidade (direo para o mundo); chega ao segundo momento, que a objetividade (senso comum); atinge o terceiro momento, que a criticidade (saber cientfico) e finalmente alcana a transcendentalidade (ao transformadora). Esse quarto movimento que a conscincia desenvolve, enquanto ao transformadora, pode ser percebido na pedagogia de Freire como a concretizao do indito vivel, com o qual o ser humano supera uma condio de impedimento para a realizao de sua humanizao, estabelecida por uma determinada situao-limite. Verifica-se, ento, na pedagogia freireana, a presena dessas caractersticas da fenomenologia, sendo que ao consider-las na elaborao da sua proposta poltico-pedaggica, Freire incorpora novos conceitos histricos e culturais da estrutura social estabelecida em sua prpria realidade.

Dessa maneira, pode-se perceber a influncia da fenomenologia no pensamento freireano, principalmente no que diz respeito aos conceitos e tipos de conscincia por ele definidos, que so a conscincia semi-intransitiva, que est condicionada pela estruturas sociais, e, por isso, uma conscincia dependente, resultando, da, um estreitamento de seu poder de captao; a conscincia ingnua, que revela uma certa simplicidade na interpretao da realidade, no ultrapassando o nvel do senso comum e, finalmente, a conscincia crtica, que se caracteriza no apenas pela captao da realidade, mas tambm pela profundidade em suas anlises e pela capacidade de dar respostas aos problemas (FREIRE, 2001, p. 33,35; 2003a, p. 67,70; 1979, p. 39,41).

A conscientizao um processo contnuo que exige a superao de uma esfera espontnea de entendimento para uma posio epistemolgica, que vai possibilitar uma atitude crtica diante da realidade. Porm, no apenas isso, pois implica, tambm, o ato de ao-

35reflexo, como atitude transformadora do mundo. No existe conscientizao fora da prxis. Freire vai buscar na fenomenologia uma importante contribuio para explicitar a sua estrutura argumentativa em torno do seu conceito de conscientizao: quanto mais conscientizao, mais se des-vela a realidade, mais se penetra na essncia fenomnica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analis-lo (1980, p.26). Em seguida, afirma, que A conscientizao no est baseada sobre a conscincia, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, no pretende uma separao. Ao contrrio, est baseada na relao conscinciamundo (idem, p. 26,27)

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CAPTULO 2 O HUMANISMO DE PAULO FREIRE

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O pensamento de Paulo Freire tece uma trajetria constitutiva de uma pedagogia libertadora, preocupada com a existncia do ser humano no mundo. Por esse motivo, um dos aspectos centrais na formulao de sua prxis educativa a questo da humanizao. Neste captulo, sero abordados os aspectos que caracterizam em sua obra a dimenso humanista de seu pensamento, a partir das contribuies conceituais das correntes poltico-filosficas e de pensadores que o influenciaram na formulao de sua pedagogia.

Freire assume um humanismo vivo e real que s pode efetivar-se na relao histrica e cultural entre os seres humanos. Afirma radicalmente sua convico e certezas ontolgicas, como ele mesmo diz, social e historicamente fundadas (1993, p.10), na vocao dos seres humanos para ser mais, o que significa dizer que o ser humano se move no tempo e no espao para constituir, permanentemente, a sua humanizao.

A dimenso e a contemporaneidade da pedagogia humanista de Paulo Freire se inserem num contexto de enfrentamento a uma realidade marcada pela desigualdade social, que rouba a vida e o existir, o ter e o ser de milhes de seres humanos, em todo o planeta. Nesse sentido, a pedagogia freireana, pela sua dimenso esperanosa, transformadora e libertadora, cumpre um papel indispensvel enquanto instrumento socioeducacional de luta.

38O humanismo de Paulo Freire afirma um compromisso dos seres humanos com a sua prpria humanidade, apoiado na afirmao da vocao ontolgica para se tornarem cada vez mais humanos. Aqui, o sentido de vocao ontolgica assume uma historicidade intrnseca aos seres humanos, que so chamados a intervir na realidade, objetivando o mundo e a si mesmos.

Ao se perceber um ser-no-mundo e um ser-com-outros, o ser humano se diferencia dos outros animais, pois no apenas sabe do mundo, mas sabe o porqu de saber do mundo. Essa capacidade que vai alm daquilo que Teilhard de Chardin denominou de hominizao, pois j no um mero processo natural, coloca o ser humano num permanente processo de humanidade, pois marcado pela integrao histrica e cultural de homens e mulheres no mundo. Essa conscincia do mundo e de si prprio torna o ser humano um ser de prxis, de integrao, de intencionalidade. O mundo humano j no um espao merc das leis naturais ou do transcendente, mas uma cosmognese e antropognese, pois se constitui num constante processo de criao e recriao.

Essa condio de humanidade dos seres humanos num permanente devir, que a sua vocao ontolgica, o que exige dos sujeitos um compromisso/chamamento para interferir no mundo, de forma que essa interferncia seja construtora de humanizao. nesse sentido que se entende o papel transformador a ser desempenhado por homens e mulheres, na inteno da realizao de seus sonhos e desejos.

Para Freire, a humanizao no acontece dentro da conscincia das pessoas, como um ato individual ou contemplativo, porque, assim, no passaria de pura idealizao. A libertao no se d dentro da conscincia dos homens, isolada do mundo, seno na prxis dos homens dentro da histria que, implicando na relao conscincia-mundo, envolve a conscincia crtica

39desta relao (1982, p. 98). A humanizao se constitui na prxis que envolve o processo de historicidade humana. Esse processo permanente e inacabado, tendo em vista a natureza da incompletude humana.

Dessa maneira, humanizao tem a ver com um projeto de transformao histricosocial que caminha na inteno da libertao utpica4 que d sentido realizao transformadora da existencialidade sujeito-mundo e se dirige na perspectiva da vocao ontolgica e histrica para o ser mais, como afirmao da humanidade que se concretiza atravs de uma prxis compartilhada.

Esses aspectos contribuem significativamente para que se supere a viso de que Freire desenvolve a sua concepo de conscientizao numa perspectiva idealista, o que, de modo geral, tambm impregnaria a perspectiva de sua pedagogia.

Nessa direo, a anlise na tico-crtica que Dussel faz do pensamento freireano mostra o entendimento de que Freire parte da condio existencial do oprimido para desenvolver a sua pedagogia. Afirma Dussel que

Em sua obra mxima de 1969, no exlio no Chile, Freire aborda o tema da existncia de uma contradio fundante: opressores-oprimidos. Por que Freire parte do oprimido, do marginal, do analfabeto? Porque o educando como tal, no limite, quem deve ser educado mais que ningum. Freire situa-se na mxima negatividade possvel. (1998, p. 437)

O sentido de utopia, aqui, est sendo empregado na concepo do prprio Paulo Freire: Para mim, o utpico no o irrealizvel; a utopia no o idealismo, a dialetizao dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razo a utopia tambm um compromisso histrico. In: Paulo Freire. Conscientizao: teoria e prtica da libertao: uma introduo ao pensamento de Paulo Freire. So Paulo, Moraes, 1980, p. 27.

4

40A anlise de Dussel, ao afirmar que Freire situa-se na mxima negatividade da condio existencial humana para elaborar a sua perspectiva poltico-pedaggica, toma como referncia principal para tal afirmao a idia de situao-limite5 apresentada em Pedagogia do Oprimido. Para Freire, as situaes-limites so determinantes histricas, esmagadoras, em face das quais no lhes cabe [homens e mulheres] outra alternativa seno adaptar-se (1987a), quer dizer, so impedimentos, barreiras que probem os seres humanos de realizarem a sua humanidade. Dessa forma, o ponto de partida considerado por Freire, segundo o autor, a situao desumanizante das condies materiais, econmicas e polticas em que se encontram os/as oprimido/as. A superao dessa condio exige que homens e mulheres adquiram, processualmente, uma conscientizao capaz de lev-los de um ponto de mxima negatividade at um ponto de positividade, e para que isso se concretize, necessrio todo um processo pedaggico problematizador da prpria condio existencial e da realidade em que os seres humanos esto inseridos.

modo geral, os autores ao analisarem a idia de situao-limite, em Freire, consideram, corretamente, a influncia do filsofo alemo Karl Jaspers e afirmam que Freire d um novo sentido ao termo situao-limite, tirando-lhe o sentido pessimista (para o filsofo, as situaes-limites so absolutamente intransponveis) atribudo por Jaspers, para uma perspectiva de positividade (para o educador, atravs da ao humana, possvel a sua superao). Freire afirma que a eliminao da opresso desumanizante, ou seja, a superao das situaes-limites, atravs da prxis humana, possibilitar a concretizao do indito vivel (que Freire denomina de possibilidade no experimentada, no livro Conscientizao), que a prpria vivncia de situaes de humanizao. Todavia, preciso esclarecer que Freire vai buscar o sentido que atribui para o termo situao-limite, em lvaro Vieira Pinto, que, de fato, quem primeiro utiliza essa expresso no sentido considerado acima, no livro Conscincia e Realidade Nacional. Rio de Janeiro, ISEB, 1960, vol. II, p. 284 (referncia bibliogrfica citada por Freire em Pedagogia do Oprimido). preciso considerar, ainda, que um equvoco, do ponto de vista filosfico, a interpretao de que Jaspers d uma dimenso pessimista ao referido termo, pelo fato de atribuir-lhe o sentido de intransponibilidade. Jaspers considera a situao-limite pelo prisma da liberdade. Para ele, a existncia no se realiza seno pela transcendncia, o que, dessamaneira, eliminaria, tambm, a existncia da liberdade. A sua idia de situao-limite enquanto um obstculo humanamente definitivo, no implica em uma noo de algo esttico, pois alm do limite existe a transcendncia. Situaes-limites so, ento, para ele, as condies primrias existenciais que nenhum ser humano pode escolher ou evitar viv-las, como o poder, o sofrimento, a morte, por exemplo (HERSCH, 1982, p, 21-23; RHR, 2003). Nesse sentido, longe de possuir uma funo puramente negativa, que levaria o ser humano a uma posio de passividade, Hersch afirma que, Ao contrrio: a existncia procura a experincia das situaes-limites, esforando-se por aprofund-la at lhe encontrar um sentido que a reintegre a ela em sua autenticidade (1982, P. 21). Nessa mesma direo, Rhr argumenta que o sentido da situao-limite, em Jaspers, fazer com que o ser humano ultrapasse a sua imanncia, dessa forma as situaeslimites incentivam o ser humano a transcend-las (2003). Para Jaspers, faz diferena viver a vida sem pensar na morte ou viv-la tendo a sua finitude como condio absoluta presente nas prprias decises. 0

41Vale salientar que, de fato, Freire situa-se na mxima negatividade possvel para elaborar a sua perspectiva educativa e de mundo, sendo, contudo, que para isso, ele parte da dimenso filosfica que a base do seu humanismo, e que nesse sentido pode ser entendida como a mxima positividade possvel, que a idia de vocao ontolgica para o ser mais. Nesse sentido, rigorosamente, a condio primeira para Freire no seria a situao das estruturas desumanizantes para formular o seu pensamento enquanto proposio humanista, mas a sua convico radical de que os seres humanos tm um compromisso ontolgico e histrico para realizar permanentemente a sua humanidade. exatamente essa crena que alimenta a dimenso utpica que caracteriza todo o seu pensamento. Freire situa a sua pedagogia enquanto denncia e anncio de uma dada realidade, na qual se d a relao dos seres humanos com eles prprios, com os outros e com o mundo. E para isso, evidentemente, que ele reconhece as estruturas desumanizantes e as condies de desumanizao - mxima negatividade, como diz Dussel - s quais esto submetidas as populaes marginalizadas da sociedade e no as aceita enquanto realidade histrica que se impe sobre homens e mulheres.

Ao afirmar como fundamento e princpio que os seres humanos trazem na sua essncia de serem humanos a condio para serem cada vez mais sujeitos, Freire se ope radicalmente contra a situao de antinomia da humanizao, que a desumanizao das pessoas, condio existencial que ele considera uma distoro da vocao dos seres humanos. Portanto, a sua no aceitao, a sua recusa, o seu posicionamento crtico e a sua luta contra qualquer forma de relao humana que se construa pela dominao, pela opresso, pela negao do outro enquanto sujeito.

Freire, apoiado em Hegel, constri o sentido da relao opressor-oprimido em sua pedagogia tomando como referncia a dialtica de servo e senhor na qual se encontram os

42indivduos. No entanto, a direo de sua proposta de conscientizao busca o caminho da emancipao; dirige-se numa perspectiva da libertao utpica, pois um ato poltico e cultural que se efetiva historicamente no cotidiano. Dessa forma, Freire supera a concepo hegeliana da positividade da negao natural ao discordar de que a negao ou no aceitao de uma dada realidade, por si s, j levaria a uma condio de reconciliao ou superao das contradies (TORRES, 1997, p. 33). Para Hegel, a superao de uma dada condio objetivada se d na prpria conscincia, como autoconscincia, num processo de abstrao indelvel e lgico de sntese, sobre o qual o ser humano no tem possibilidades de interferncia, pois esse movimento se realiza no mbito do transcendente.

Nesse sentido, afirma queA conscincia-de-si em si e para si quando e porque em si e para si uma outra; quer dizer, s como algo reconhecido. O conceito dessa unidade em sua duplicao, [ou] da sua infinitude que se realiza na conscincia-de-si, um entrelaamento multilateral e polissmico. (...) O duplo sentido do diferente reside na [prpria] essncia da conscincia-de-si: [pois tem a essncia] de ser infinita, ou de ser imediatamente o contrrio da determinidade na qual foi posta. O desdobramento do conceito dessa unidade espiritual, em sua duplicao, nos apresenta o movimento do reconhecimento. (...) Mas esse movimento da conscincia-de-si em relao a uma outra conscincia-de-si se representa, desse modo, como o agir de uma delas. Porm esse agir de uma tem o duplo sentido de ser tanto o seu agir como o agir da outra; pois a outra tambm independente, encerrada em si mesma, nada h nela que no seja mediante ela mesma (HEGEL, 1992, p. 126, 127).

Freire, ao contrrio, localiza o sentido crtico de conscincia na realidade concreta, existencial, munido de cultura e de historicidade, marcadamente contaminado pelas dimenses dialgica e relacional, to prprias dos seres humanos. Dessa forma, Freire supera o dualismo metafsico ao-contemplao6 e incorpora na sua filosofia poltico-educacional a concepo6

BARDARO, Martha. Paulo Freire e o pensamento existencialista.Boletim Filosfico, n 3, Resistncia, Argentina, 1971. Facultad de humanidades, Universid Nacional del Nordeste. In: TORRES, Carlos Alberto. Leitura crtica de Paulo Freire. So Paulo, Edies Loyola, 1981.

43de unidade dialtica entre conscincia e mundo. Essa concepo de unidade dialtica em Freire o que d sustentao para o sentido indissocivel na sua pedagogia entre ao-reflexo, pensamento-existncia, conscincia-realidade, sujeito-mundo.

Paulo Freire afirma a impossibilidade de dicotomizar o ser humano do mundo, tendo em vista que a existncia de um depende da existncia do outro (1983, p. 28). Nesse sentido, qualquer prtica educativa que rompa com a concepo de unidade dialtica, que negue a relao entre teoria e ao, no passa de um quefazer educativo desinteressado, alienado, domesticado, conseqentemente alienante e domesticador.

Na dimenso dialtica freireana sujeito-mundo, a constituio da conscincia vai se dando, na medida em que a conscincia, tomando sentido de si mesma, num movimento de dialogicidade e de historicidade da prpria conscincia, vai alm de si mesma e se compreende como conscincia do mundo. No prefcio de Pedagogia do Oprimido, o professor Ernani Maria Fiori afirma que na filosofia educacional de Freire,

no a conscincia vazia do mundo que se dinamiza, nem o mundo simples projeo do movimento que a constitui como conscincia humana. A conscincia conscincia do mundo: o mundo e a conscincia, juntos, como conscincia do mundo, constituem-se dialeticamente num mesmo movimento numa mesma histria. Em outros termos: objetivar o mundo historiciz-lo, humaniz-lo. Ento, o mundo da conscincia no criao, mas, sim, elaborao humana. Esse mundo no se constitui na contemplao, mas no trabalho (1987a, p.16,17).

Assim, compreende-se a tarefa humana de interveno no mundo para objetiv-lo. Ao perceber-se no mundo como existncia, capaz de intervir, criar, modificar, num processo de auto-reconhecimento, o ser humano, agora como sujeito histrico que se relaciona com os outros e com o mundo, na sua finitude, se lana num movimento infindo de busca e de realizao de desejos e de necessidades.

44Esse se lanar no e para o mundo, como reconhecimento existencial e histrico, corresponde a uma atitude de comprometimento humano com a sua prpria existncia humana. Conseqentemente, a situao qual se encontra o indivduo abjetivado pelo seu isolamento monolgico, desligado da realidade, cede lugar ao sujeito coletivo, historicizado, desalienado, mediatizado pelo mundo, engajado no seu cotidiano. Essa atitude resultado de um processo de emerso da conscincia, que se realiza, segundo Freire, pelo processo educativo, pela ao cultural. Essa prtica educativa desveladora da realidade, constitutiva de uma conscincia coletiva crtica, que busca o autntico ato de conhecer, a materializao da educao como prtica libertadora. a prtica educativa humanizada. Portanto, humanizadora.

Na medida em que Freire vai afirmativamente corroborando sua crena de que os humanos tm uma vocao ontolgica para o ser mais, ou seja, para constiturem a sua humanidade e historicamente irem se humanizando, vai, ao mesmo tempo, constatando a outra viabilidade, que a desumanizao. A desumanizao, como o contrrio de humanizao, e por isso, no pode ser vocao ontolgica e histrica do ser humano, um fenmeno existencial de opresso e injustia que se efetiva no contexto histrico e dialtico da relao sujeito-mundo. A esse respeito, Paulo Freire categrico ao dizer que

se admitssemos que a desumanizao vocao histrica dos homens, nada mais teramos que fazer, a no ser adotar uma atitude cnica ou de total desespero. A luta pela humanizao, pelo trabalho livre, pela desalienao, pele afirmao dos homens como pessoas, como seres para si, no teria significao. Esta somente possvel porque a desumanizao, mesmo que um fato concreto na histria, no , porm, destino dado, mas resulta de uma ordem injusta que gera a violncia dos opressores e esta, o ser menos (1987a, p. 30).

Ao reconhecer que a humanizao a vocao ontolgica do ser humano para ser mais e que ela se constitui num processo permanente de dialogicidade e de prxis coletiva entre os seres humanos, Freire, por outro lado, reconhece tambm a distoro dessa vocao ontolgica do ser mais (humanizao) para o ser menos (desumanizao) como realidade histrica e,

45portanto, como processo de desumanizao que se estabelece num contexto social opressor e de explorao. Segundo Freire (1987a, p. 30), Humanizao e desumanizao, dentro da histria, num contexto real, concreto, objetivo, so possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconcluso.

A relao antagnica entre humanizao e desumanizao se constitui a partir da ao de homens/mulheres sobre a realidade concreta, sempre no intuito de permanncia ou de transformao. Com isso, a ao humana que perpetua ou modifica uma dada condio social se constitui, na prtica, como uma ao poltico-cultural de opresso ou de libertao. Por isso, a posio de Freire por uma ao educativa radicalmente democrtica e humanizadora.

Uma dada realidade histrica de opresso implica, efetivamente, a existncia de um ser opressor e de um ser oprimido. Essa condio existencial opressor-oprimido envolve a dimenso relacional da conscincia-mundo do opressor, que se caracteriza enquanto ser-nomundo pelo sentido do ter, e do oprimido, enquanto conscincia fragmentada e alienada do sentido do ser.

Freire diz que para os opressores, o que vale ter mais e cada vez mais, custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, ter e ter como classe que tem (1987, p. 46). Assim, Freire recupera em Marx o sentido do ter para ser7. O sentido de posse passa a ser o meio para o opressor manter relao com o mundo. O sentido do ter constitui a forma de afirmao existencial do opressor, que, para se manter, inclusive, enquanto classe, passa a ter a posse da existncia dos oprimidos, suas vidas, suas conscincias. Tanto o que muito tem quanto o que no tem nem a si mesmo, passam a ter uma vida alienada.BARDARO, Martha. Paulo Freire e o pensamento existencialista. Boletim Filosfico, n 3, Resistncia, Argentina, 1971. Facultad de humanidades, Universid Nacional del Nordeste. In: TORRES, Carlos Alberto. Leitura crtica de Paulo Freire. So Paulo, Edies Loyola, 1981.7

46Esse interesse desenfreado de posse, assumido pelo opressor, a expresso viva da negao da humanizao de outros seres humanos, mas tambm a afirmao de sua prpria desumanizao.

A alienao aparece tanto no fato de que meu meio de vida de outro, que meu desejo a posse inacessvel de outro, como no fato de que cada coisa outra que ela mesma, que minha atividade outra coisa, e que, finalmente (e isto vlido tambm para o capitalista), domina em geral o poder desumano (MARX, 1974, p. 28).

Dessa forma, impossvel ao opressor a tarefa da libertao, pois sua ao dominadora, fatalista, no pode resultar num ato de transformao e superao da realidade, pois ela, em si, uma deformao da vocao ontolgica dos seres humanos.

Para Freire, somente os oprimidos, os despossudos de uma conscincia possessiva do mundo e dos seres humanos que podem assumir a tarefa humana de libertao deles mesmos e dos opressores. De acordo com a concepo antropolgica e humanista de Freire, a tarefa de humanizao permanente de todos os seres humanos um compromisso dos prprios seres humanos, mas apenas aos homens e s mulheres das classes oprimidas cabe essa ao transformadora e restauradora da liberdade que possibilita a humanizao de ambos, opressor e oprimido.

Todavia, Freire afirma a impossibilidade de restaurao da humanidade dos opressores e oprimidos, enquanto os oprimidos viverem a dualidade de serem eles e ao mesmo tempo serem os opressores, pois enquanto no assumirem uma conscincia crtica que os permita emergirem da realidade opressora, e no mais serem hospedeiros dos opressores, no podero, portanto, assumirem sua humanizao e libertarem a si mesmos e aos opressores. A superao da condio opressor-oprimido se d num processo de luta, a partir do momento em que a conscincia oprimida se percebe num estado de esmagamento servil.

47E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que uma forma de cri-la, no se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E a est a grande tarefa humanista e histrica dos oprimidos libertar-se a si a e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razo de seu poder, no podem ter, neste poder, a fora de libertao dos oprimidos nem de si mesmos. S o poder que nasa da debilidade dos oprimidos ser suficientemente forte para libertar a ambos (FREIRE, 1987a, p. 30 e 31).

A dimenso humanista pode ser verificada em toda a obra de Paulo Freire, exatamente porque a permanente busca pela humanizao a grande tarefa que a sua pedagogia coloca aos seres humanos. esta afirmao que d sentido a sua crena de que os seres humanos tm a vocao ontolgica para serem cada vez mais humanos. E ao acreditar nisso, defende a subjetividade que envolve a relao sujeito-mundo. Por isso, insiste radicalmente no amor e na esperana como condies necessrias para uma verdadeira transformao social da realidade.

Sero destacadas, a seguir, afirmaes de algumas obras de Freire, levando-se em conta o aspecto cronolgico de elaborao das mesmas, que corroboram as diversas dimenses que ele vai incorporando ao seu entendimento de humanismo e, por conseguinte, vo ampliando o seu conceito de humanizao em sua pedagogia. Em Educao como Prtica da Liberdade, fica explcito sua preocupao em distinguir os animais dos seres humanos pela capacidade destes de estabelecerem relaes, dilogos, interao e por isso no apenas viverem, mas existirem, diferentemente daqueles que apenas vivem, pois, ao contrrio dos humanos, estabelecem apenas contato, isto , so seres de adaptao, ajustamento. Por isso, de acordo com Freire, os contatos expressam o

modo de ser prprio da esfera animal, implicam, ao contrrio das relaes, em respostas singulares, reflexas e no reflexivas e culturalmente inconseqentes. Deles resulta a acomodao, no a integrao. Portanto, enquanto o animal essencialmente um ser de acomodao e do ajustamento, o homem o da integrao. A sua grande luta vem sendo, atravs dos tempos, a de superar os fatores que o fazem acomodado ou ajustado. a luta por sua humanizao, ameaada constantemente pela opresso que o esmaga, quase sempre at sendo feita e isso o mais doloroso em nome de sua prpria libertao (2003a, p. 51).

48Dessa forma, a pedagogia freireana coloca o ser humano no centro de suas questes fundamentais, e isso no significa uma atitude antropocntrica, mas antropolgica. , portanto, o reconhecimento de que as mudanas e as transformaes do mundo e dos homens e mulheres somente sero possveis a partir das relaes dos seres humanos com o mundo e com eles prprios, o que implica numa prxis que se efetiva nos tecidos histricos e culturais.

Estas questes ficam evidentes em Educao como Prtica da Liberdade, na afirmao de que A partir das relaes do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criao, recriao e deciso, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo o fazedor. Vai temporalizando os espaos geogrficos. Faz cultura. E ainda o jogo destas relaes do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando e criando, que no permite a imobilidade, a no ser em termos de relativa preponderncia, nem das sociedades nem das culturas (idem).

Em Pedagogia do Oprimido, Freire reconhece que a desumanizao uma possibilidade dos seres humanos, enquanto realidade histrica que se efetiva num contexto real. No entanto, esse processo de desumanizao se efetiva como conseqncia das injustias, da opresso, da violncia que vitima homens e mulheres, e por esta razo uma distoro da verdadeira humanizao. Dessa maneira, a desumanizao, que se d numa dada realidade histrica, jamais pode ser concebida como vocao ontolgica e histrica dos seres humanos, pois se assim o fosse, quantos homens e mulheres no estariam sumariamente fadados/as ao fatalismo?

A pedagogia do oprimido, que busca a restaurao da intersubjetividade, se apresenta como pedagogia do homem. Somente ela, que se anima de generosidade autntica, humanista e no humanitarista, pode alcanar este objetivo. Pelo contrrio, a pedagogia que, partindo dos interesses egostas dos opressores, egosmo camuflado da falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantm e encarna a prpria opresso. instrumento de desumanizao (1987a, p. 41).

49Essa dupla possibilidade da ao educativa o que caracteriza de um lado uma educao opressora, bancria no dizer de Freire, a servio das classes sociais poderosas e dominantes, por isso desumanizante, e, por outro lado, uma prtica educativa libertadora, problematizadora, desveladora e transformadora da realidade, sempre a servio das classes sociais injustiadas, exploradas, coisificadas, por isso humanizadora.

Em Extenso ou Comunicao?, Paulo Freire ao propor a comunicao como processo educativo humanizador nas prticas educativas escolares ou sociais, a partir da sua experincia com tcnicos agrnomos e camponeses, no processo de reforma agrria desenvolvido no Chile, denuncia os gestos puramente humanitrios e os humanismos que se alimentam de vises de um homem ideal, fora do mundo. Para ele, esse um falso humanismo. Ao mesmo tempo, defende a necessidade de um humanismo de carter concreto, com rigor cientfico e no alienado e, segundo ele, sem deixar, por isso, de ser amoroso, esperanoso, pois no h nisso nenhuma antinomia. Para Freire, esse humanismo

um humanismo que, pretendendo verdadeiramente a humanizao dos homens, rejeita toda forma de manipulao, na medida em que esta contradiz sua libertao. Humanismo, que vendo os homens no mundo, no tempo, mergulhados na realidade, s verdadeiro enquanto se d na ao transformadora das estruturas em que eles se encontram coisificados, ou quase coisificados. Humanismo que, recusando tanto o desespero quanto o otimismo ingnuo, , por isto, esperanosamente crtico. E sua esperana crtica repousa numa crena tambm crtica: a crena em que os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo. Crena em que, fazendo e refazendo as coisas e transformando o mundo, os homens podem superar a situao em que esto sendo um quase no ser e passam a ser ou estar sendo em busca do ser mais (1983, p. 74).

No seu livro Conscientizao, Freire anuncia seu humanismo e sua radical crena de que somente os seres humanos, enquanto seres de relao, atravs de seu poder criador, podero fazer sucumbir uma dada situao de violncia e opresso humana, pois esta situao

50 fruto da prpria criao humana, e fazer vingar uma condio de vida e de existncia baseada na justia e na dignidade social entre os seres humanos.

Esse humanismo historicamente contextualizado v na educao e no educador a possibilidade que tm os seres humanos de vivenciarem concretamente a sua vocao histrica, que a condio de se tornarem sujeitos.

Se os homens so estes seres da busca e se sua vocao ontolgica a humanizao, cedo ou tarde podero perceber a contradio na qual a educao escolar procura mant-los e se comprometero ento na luta por sua libertao. Mas o educador humanista revolucionrio no pode esperar que esta possibilidade se apresente. Desde o comeo, seus esforos devem corresponder com os dos alunos para comprometer-se num pensamento crtico e numa procura da mtua humanizao. Seus esforos devem caminhar junto com uma profunda confiana nos homens e em seu poder criador. Para obter este resultado deve colocar-se ao nvel dos alunos em suas relaes com eles (FREIRE, 1980, p. 80).

Em Ao Cultural para a Liberdade, pode-se verificar uma permanente preocupao de Paulo Freire com as vises humanistas que se revestem de uma postura idealista e acreditam na humanizao das pessoas como algo que se efetiva fora da realidade, distante do mundo e da relao histrica dos seres humanos. Freire se ope radicalmente a esse tipo de humanismo, porque s concebe a relao sujeito-mundo dentro da sua unidade dialtica, tendo em vista que cada um deles mundo e sujeito para ser depende do outro, e que, portanto, as condies humanas so criaes da ao dos homens e mulheres, e sua permanncia e vicissitudes dependem efetivamente da prpria ao humana.

Por isso, Paulo Freire alerta que

No pode ser outra a nossa posio em face do tema que agora nos rene tal o da humanizao dos homens e suas implicaes educativas. No momento mesmo em que nos aproximamos, criticamente, a este processo e o reconhecemos como um tema, somos obrigados a aprend-lo, no como um ideal abstrato,

51mas como um desafio histrico, em sua relao contraditria com a de desumanizao que se verifica na realidade objetiva em que estamos. Isto significa que a desumanizao e humanizao no podem ocorrer a no ser na histria mesma dos homens, dentro das estruturas sociais que os homens criam e que se acham condicionados (1982, p. 98).

Logo em seguida, reitera,

Parece-nos importante enfatizar esta obviedade a da relao desumanizao e humanizao, bem como o fato de que ambas demandam a ao dos homens sobre a realidade, ora para mant-la, ora para modific-la, para que evitemos as iluses idealistas, entre elas a que sonha com a humanizao dos homens sem a transformao necessria do mundo em que eles se encontram oprimidos e proibidos de ser (1982, p. 98).

Em Educao e Mudana, ao falar do compromisso do profissional com a sociedade, Freire afirma que a prxis humana a condio essencial para que haja homens e mulheres comprometidos com o mundo, e como no possvel seres humanos sem mundo e mundo sem seres humanos, porque ambos se historicizam atravs de sua dimenso relacional, esse compromisso implica num engajamento dos seres humanos com a realidade concreta na qual esto inseridos, o que, de fato, significa um compromisso com a prpria existncia humana.

No entanto, afirma tambm que da mesma forma que existe a possibilidade histrica que tm os seres humanos de existirem humanamente e dessa forma vivenciarem concretamente a sua vocao ontolgica para o ser mais, possvel tambm a outra viabilidade que se caracteriza pelo aspecto proibitivo, pela condio obstaculizadora que impede os seres humanos de atuar e transformar o mundo e as suas prprias condies de existncia.

No entanto, se so os seres humanos os criadores dessas possibilidades existenciais de humanizao e, ao mesmo tempo, criadores de sua prpria situao-limite, que os impede de viverem a sua humanidade, certo que somente os seres humanos que podem superar essa

52condio proibitiva e, pelo compromisso histrico com a sua prpria humanidade, objetivamente, transformar a sua realidade.

Por isso a sua afirmao de queImpedidos de atuar, de refletir, os homens encontram-se profundamente feridos em si mesmos, como seres do compromisso. Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanizao dos homens, responsabilidade com estes, com a histria. Este compromisso com a humanizao do homem, que implica uma responsabilidade histrica, no pode realizar-se atravs do palavrrio, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos. O compromisso, prprio da existncia humana, s existe no engajamento com a realidade, de cujas guas os homens verdadeiramente comprometidos foram molhados, ensopados. Somente assim o compromisso verdadeiro (FREIRE, 1979, p. 18-19).

Em Pedagogia da Esperana, Paulo Freire reafirma a sua convico de que o processo de mudana necessrio humanizao do mundo e das pessoas passa pela relao dialtica subjetividade-objetividade, por isso, para ele

O sonho pela humanizao, cuja concretizao sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econmica, poltica, social, ideolgica etc., que nos esto condenando desumanizao. O sonho assim uma exigncia ou uma condio que se vem fazendo permanente na histria que fazemos e que nos faz e re-faz (1992, p. 99).

Em Pedagogia da Autonomia, ao expressar sua raiva e indignao diante das posies fatalistas e deterministas da histria e da realidade cotidiana que tm servido de pano de fundo para legitimar a negao dos direitos fundamentais humanidade das pessoas, Freire explicita a seguinte posio:

A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negao do direito de ser mais inscrito na natureza dos seres humanos. No posso, por isso, cruzar os braos fatalistamente diante da misria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cnico e morno, que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade mesmo assim. O discurso da acomodao ou de sua defesa, o discurso da exaltao do silncio imposto do elogio da adaptao tomada como fado ou sina um discurso negador da

53humanizao de cuja responsabilidade no podemos nos eximir. A adaptao a situaes negadoras da humanizao s pode ser aceita como conseqncia da experincia dominadora, ou como exerccio de resistncia, como ttica na luta poltica (FREIRE, 1996, p. 84-85 ).

O discurso freireano vai constituindo gradativamente uma concepo humanista do mundo e da vida social. necessrio o entendimento de que a obra de Paulo Freire no uma construo discursiva de pensamento monoltico, mas uma pedagogia que incorpora vrias concepes acerca do mundo, da sociedade e do ser humano, e que avana no sentido crtico e problematizador na perspectiva da felicidade, do amor, da dignidade, do existir plenamente, da possibilidade que tm os seres humanos de vivenciarem o no-experimentado, ou seja, de poderem superar as situaes adversas e desumanizantes, e concretamente assumirem a sua vocao ontolgica para ser mais.

Dessa forma, o humanismo de Paulo Freire s pode ser efetivamente entendido na dimenso da prpria dialtica freireana. Isso porque a sua idia de existncia humana se fundamenta no princpio da unidade dialtica sujeito-mundo, no qual o ser humano est histrica e culturalmente marcado. Portanto, possvel afirmar que esse humanismo concreto, crtico, engajado, transformador, pois se alimenta na ao-reflexo, na prxis cotidiana de homens e mulheres que lutam pela sua libertao.

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CAPTULO 3 - DENUNCIANDO A DESUMANIZAO

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A desumanizao, enquanto ao que impede a realizao da vocao ontolgica e histrica que as pessoas tm para realizarem a sua humanidade, descaracteriza o ser humano na sua prpria realidade,