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Elisa Motta de Souza Siqueira Tecendo redes de aproximações simbólicas uma interpretação do Almanaque do Aluá n.1 Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio. Orientadora: Profa. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho Co-orientador: Prof. Marcello Sorrentino Rio de Janeiro Julho de 2016

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Elisa Motta de Souza Siqueira

Tecendo redes de aproximações simbólicas uma interpretação do Almanaque do Aluá n.1

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio.

Orientadora: Profa. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho Co-orientador: Prof. Marcello Sorrentino

Rio de Janeiro Julho de 2016

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1411871/CA

Elisa Motta de Souza Siqueira

Tecendo redes de aproximações simbólicas uma interpretação do Almanaque do Aluá n.1

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho

Orientadora Departamento de Educação – PUC-Rio

Prof. Marcello Sorrentino Co-orientador

Departamento de Educação – PUC-Rio

Profa. Maria Inês Galvão Flores Marcondes de Souza Departamento de Educação – PUC-Rio

Prof. Osmar Fávero

UFF

Profa. Monah Winograd Coordenadora Setorial do Centro de

Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 22 de julho de 2016

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Todos os direitos reservados. É proibida a

reprodução total ou parcial do trabalho sem

autorização da universidade, da autora e dos

orientadores.

Elisa Motta de Souza Siqueira

Graduou-se em Pedagogia pela Universidade

Federal Fluminense (2009). Integra como

pesquisadora o Núcleo de Estudos e Documentação

em Educação de Jovens e Adultos (NEDEJA),

vinculado ao Programa de Pós Graduação em

Educação da Universidade Federal Fluminense e o

Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Museu,

Cultura e Infância (GEPEMCI), ligado ao

Departamento de Educação da Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem

experiência na área de Educação, com ênfase na

coordenação pedagógica de programas e execução

de projetos de pesquisa que abordam como tema a

educação de jovens e adultos e processos culturais.

Ficha Catalográfica

CDD: 370

Siqueira, Elisa Motta de Souza Tecendo redes de aproximações e apropriações simbólicas : uma interpretação sobre o conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1 / Elisa Motta de Souza Siqueira; orientadora: Cristina Carvalho; co-orientador: Marcello Sorrentino. – Rio de Janeiro PUC, Departamento de Educação, 2016. v., 106 f.; il. color. ; 30 cm

1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação.

Inclui referências bibliográficas.

1. Educação – Teses. 2. Almanaque. 3. Educação popular. 4. Cultura. 5. Saber. 6. Negociação. I. Carvalho, Cristina. II. Sorrentino, Marcello. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. IV. Título.

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Dedico a meu bisavô, Seu Motta (in memorian) e à criança que carrego,

Heitor ou Iara, herdeiros das histórias de almanaque contadas pelo Biso.

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Agradecimentos

À minha mãe Vania, cujo primeiro ensinamento foi amar;

A meu companheiro e amigo Wagner, obrigada pelo apoio e afeto.

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica

do Rio de Janeiro, a todos os professores do departamento e aos funcionários da

secretaria;

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à

PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter

sido realizado.

À professora Cristina Carvalho, muito obrigada pelo acolhimento e carinho. Você

é muito querida!

Ao professor Marcello Sorrentino, grata pelas conversas instigantes. Você se

tornou um amigo estimado.

À professora Alícia Bonamino, obrigada pela gentileza.

Aos integrantes da banca avaliadora, Maria Inês Marcondes e Osmar Fávero, grata

por terem aceitado o convite;

Aos amigos Renato, Dimas, Renata, Diana e Valéria, muito obrigada pelos

momentos de descontração e generosidade da escuta;

Aos amigos do Núcleo de Educação de Adultos da PUC-Rio: Duarte, Ana e Maria

Luisa, obrigada pelo amparo;

Às amigas do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Museu, Cultura e

Infância da PUC-Rio: Rosana, Andrea, Isabel, Priscila, Thamiris, Roberta,

Clarisse, Késsia, Alina, Monique, Isabel Mendes, Taiane, Petro e Kethlin.

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Aos companheiros de mestrado: Angela, Cintia, Roberta, Rômulo, Rosa, Laryssa,

Jéssica, João Paulo, Elio, Érika, Carolyna, Liliane, Calu, Carolina, Carla e Joyci,

grata pelos momentos de crescimento pessoal e intelectual.

A todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho.

Obrigada por tudo!

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Resumo

Elisa Motta de Souza Siqueira; Cristina Carvalho (Orientadora); Marcello

Sorrentino (Co-orientador). Tecendo redes de aproximaçãoes

simbólicas: uma interpretação do conteúdo do Almanaque do Aluá n.

1. Rio de Janeiro, 2016. 106p. Dissertação de Mestrado – Departamento de

Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta dissertação consiste na interpretação textual e pictórica do Almanaque

do Aluá n.1, livro de leitura utilizado como material didático na educação de

jovens e adultos. Elaborado pelo Serviço de Apoio à Pesquisa em Educação

(SAPÉ), em 1998, o Almanaque é um artefato cultural produzido a partir de

práticas educativas que remetem a uma forma específica de atuação desenvolvida

pelos movimentos de cultura e educação popular nos anos de 1960. Tomando

como ponto de partida a definição do conceito de cultura de Clifford Geertz,

enquanto teias ou estruturas de significados socialmente constituídas, a pesquisa

procura estabelecer e compreender redes de aproximações simbólicas entre o

conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1 e as categorias da educação popular –

Cultura, Cultura Popular, Saber, Poder e Negociação. Neste sentido, a referência

conceitual de Geertz – visão de mundo – é compreendida no contexto da educação

popular e, em particular, da ação cultural do SAPÉ. Assim, busco compreender a

relação entre os elementos conceituais do SAPÉ e os aspectos tipográficos do

almanaque, além de responder, principalmente, a seguinte questão: as mensagens

dos textos e imagens sugerem uma dinâmica de negociação nas páginas do

Almanaque? Seguindo os termos de Bardin e Bauer, utilizo como método a

análise documental e a análise de conteúdo. As categorias foram definidas através

da análise documental e a análise de conteúdo permitiu entender como os textos e

imagens evocam a visão de mundo dos movimentos de educação e cultura popular

dos anos de 1960 e a visão de mundo do SAPÉ.

Palavras-chave

Almanaque; educação popular; cultura; cultura popular; saber; poder;

negociação.

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Abstract

Elisa Motta de Souza Siqueira; Cristina Carvalho (Advisor); Marcello

Sorrentino (Co-Advisor). Weaving nets of approximations symbolic: an

interpretation of the Almanac Aluá n. 1 content. Rio de Janeiro, 2016.

106p. MSc. Dissertation – Departamento de Educação, Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This work consists on a textual and pictorial interpretation of Aluá

Almanac n.1’s content, a reading book used as didactic support material in kid and

adult education. Prepared by the Research on Education Supporting Service

(SAPÉ) in 1998, the almanac is a cultural artifact produced from educational

practices that refer to a specific way of education and performance developed by

education movements and popular culture in the 1960s. Starting from Clifford

Geertz’s definition of the culture concept as webs or socially constituted meaning

structures, the research tries to establish and understand networks of approaches

symbolics between the Aluá Almanac n. 1 and the categories of Popular

Education – Culture, Popular Culture, Knowledge, Power and Negotiation. In this

sense, Geertz’s conceptual references – worldview – are understood in the context

of popular education and, in particular, of the cultural SAPE action. Thus, i seek

to understand the relationship between the conceptual elements of SAPE and

typographic aspects of the almanac, and to answer mainly the following question:

Messages of texts and images suggest a dynamic trading in the pages of the

almanac? Following the terms of Bardin and Bauer, use as a method to document

analysis and content analysis. The categories were defined by document analysis

and content analysis enabled us to understand how texts and images evoke the

world view of education movements and popular culture of the 1960s and the

world view of Sape.

Keywords

Almanac; popular education; culture; popular culture; power; knowledge;

negotiation.

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Sumário

1. Introdução 14

2. Almanaque: traços de um objeto 21

2.1. O que é? O que é? 22

2.2. A pedagogia do almanaque e seus temas de estudo no Brasil 28

2.3. SAPÉ: o almanaque do Aluá e a pedagogia da negociação 33

3. Categorias de análise da Educação Popular:

um percurso metodológico 39

3.1. Notas sobre a conjuntura política no Brasil (1958 a 1964) 43

3.2. Antecedentes conceituais: existencialismo cristão e culturalismo 48

3.3. Cultura, cultura popular e conscientização 51

3.4. Saber, poder e democratização 56

4. Interpretação pictórica e textual do Almanaque do Aluá n. 1 63

4.1. Enumeração e análise temática 66

4.2 Aproximações simbólicas entre as categorias e o conteúdo 85

5. Considerações finais 97

6. Referências bibliográficas 101

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Lista de Ilustrações

Gráfico 1 – Frequência das unidades de registro

nos textos e imagens 84

Gráfico 2 – Espaço ocupado no Almanaque 84

Figura 1 – Capa do Almanaque 67

Figura 2 – Ocorrência Receita em destaque 68

Figura 3 – Ocorrência Artes em destaque 68

Figura 4 – Ocorrência Charada em destaque 69

Figura 5 – Ocorrência Biografia em destaque 69

Figura 6 – Ocorrência Divertimento em destaque 70

Figura 7 – Ocorrência Curiosidade em destaque 70

Figura 8 – Ocorrência Literatura em destaque 71

Figura 9 – Ocorrência Provérbio em destaque 71

Figura 10 – Texto de apresentação 72

Figura 11 – Grid tipográfico 74

Figura 12 – Tema Astrologia 76

Figura 13 – Tema Cadendário 77

Figura 14 – Tema Cadendário, linha do tempo 78

Figura 15 – Destaque Globalização 80

Figura 16 – Destaque Trabalho 81

Figura 17 – Tema Globalização 87

Figura 18 – Registro Globalização 87

Figura 19 – Registro Globalização 88

Figura 20 – Registro Trabalho 91

Figura 21 – Registro Trabalho 91

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Lista de Tabelas e Quadros

Quadro 1 – Codificação e categorização dos dados 66

Quadro 2 – Grupo I: Calendário e Astrologia 75

Quadro 3 – Grupo II: Provérbio, Charada, Receita, Literatura,

Charge, Dica, Divertimento, Artes e Curiosidade 79

Quadro 4 – Grupo III: Mitologia, Costumes, Religião, Artigos,

Ciência, Trabalho, Política e Biografia 81

Quadro 5 – Coocorrência de Temas 82

Quadro 6 – Distribuição dos Temas em Grupos 83

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Lista de abreviaturas

ABL Academia Brasileira de Letras

AP Ação Popular

CUT Central Única dos Trabalhadores

CEDI Centro Ecumênico de Documentação e Informação

CEI Centro Evangélico de Informação

CPC Centro Popular de Cultura

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

GREPE Grupo de Estudos e Pesquisa

IBF Instituto Brasileiro de Filosofia

IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros

JUC Juventude Universitária Católica

MEB Movimento de Educação de Base

NEDEJA Núcleo de Estudos e Documentação sobre Educação de Jovens e Adultos

PT Partido dos Trabalhadores

PEJ Programa de Educação Juvenil

PNA Programa Nacional de Alfabetização

SAPÉ Serviço de Apoio à Pesquisa em Educação

UNE União Nacional dos Estudantes

Unicamp Universidade de Campinas

USP Universidade de São Paulo

UFF Universidade Federal Fluminense

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Meu lunário é a memória

De um país que vai passando

Diante dos nosos olhos,

Rindo, mexendo, cantando.

Mestiço, latino, caboclo, nativo.

É velho, é criança, morreu e tá vivo...

Presente, mas até quando?

Meu lunário é conselheiro,

Meu folheto, é meu missal,

Atravessando os milênios,

Cada ponto cardeal.

De norte a sul, de pai para filho,

De lá para cá, meu livrinho andarilho,

Fabuloso romançal.

(Lunário Perpétuo, Antônio Nóbrega).

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1 Introdução

Nos últimos quarenta anos, os estudos sobre os almanaques na Europa,

principalmente na França e em Portugal, buscaram compreender a riqueza dos

registros por eles apresentados sobre a vida cultural e política das sociedades que

os produziram, bem como a sua pedagogia, isto é, como a sua leitura divertia

ensinando, o que ensinava e como o fazia. Essas pesquisas também pretenderam

conhecer as particularidades da leitura dos almanaques e sua tipologia. Há trinta

anos, no Brasil, as pesquisas sobre a temática seguiram os mesmos caminhos.

Vale destacar que as pesquisas sobre almanaques no Brasil concentram-se

no final da década de 1980 e nos anos 1990, período em que foram publicadas

duas teses e em que foi organizado um colóquio internacional Os Almanaques

Populares: da Europa às Américas – Gênero, Circulação e Relação

Interculturais, realizado na Universidade de Campinas (Unicamp) e na Fundação

Memorial da América Latina, na cidade de São Paulo, em 1999. Para acompanhar

o encerramento do colóquio foi elaborada uma exposição de originais, de diversas

coleções particulares, e reproduções de almanaques divulgados desde o século

XVI até os anos 20001.

A alternativa para apresentar o almanaque como tema de pesquisa desta

dissertação foi recuperar, através da memória, quando teria surgido meu interesse

pelos almanaques e as minhas primeiras leituras. Nas minhas lembranças, o

primeiro contato com o livro foi na infância, lendo os almanaques de férias da

turma da Mônica2, no início dos anos de 1990. Na década seguinte, no curso de

Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF), conheci o almanaque

1 Aguns desses exemplares expostos foram publicados em um livro organizado por Meyer (2001). 2Foi idealizado pelo criador das personagens, Maurício de Souza e pela Editora Abril, publicado

em 1986 com o título, Superalmanaque do Maurício e no ano seguinte passou a se chamar

Almanacão de Férias. Foi publicado pela Editora Globo até o ano de 2006. Ainda em 1994 é

lançado o Almanacão Turma da Mônica, que encerrou também em 2006, quando a edição passou a

ser feita pela Editora Panini. São comercializados até hoje com os títulos Grande Almanaque de

Férias e Grande Almanaque Turma da Mônica.

Fonte: http://arquivosturmadamonica.blogspot.com.br/2013/04/hoje-vou-falar-sobre-colecao-

almanacao.html. Acesso em: fev. 2016.

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Bandas d’Além, idealizado na disciplina eletiva de Educação Patrimonial,

ministrada pela professora Lygia Segala. Cursar essa disciplina foi fundamental

para despertar minha atenção para a temática da cultura popular no campo de

estudos da Educação.

Foi no Núcleo de Estudos e Documentação sobre Educação de Jovens e

Adultos (NEDEJA)3 que tive a oportunidade, ainda na graduação de Pedagogia,

de unir ensino à pesquisa, sendo então possível iniciar minha caminhada para

tornar-me pesquisadora. A curiosidade por desvendar, por meio do estudo, o que

as imagens, os textos e o objeto almanaque representam – o que eles têm a dizer

sobre o contexto histórico em que foram elaborados e que lógicas subjazem suas

assimilações e usos simbólicos – passaram a fazer parte do meu cotidiano.

A intenção deste trabalho de pesquisa é analisar e interpretar os elementos

textuais e iconográficos que compõem a trama do Almanaque do Aluá n.14. Para

tanto, busco estabelecer redes de aproximação simbólicas entre seu conteúdo e as

apropriações do conceito de cultura e cultura popular historicamente construídos

no campo da Educação Popular no Brasil e os desdobramentos dessas definições

em outras conceituações assumidas pela equipe de elaboração do livro.

Para atender a este objetivo, encontro na teoria da interpretação da cultura

sistematizada por Geertz (2008) elementos para fundamentar o método de análise.

Para o autor, cultura é definida como teias ou estruturas de significado

socialmente estabelecidas, e a compreensão dessas estruturas dentro de sua base

social e material é a interpretação, entendida como caminho para se decodificar os

possíveis sentidos de um fenômeno, evento, ato ou artefato cultural.

Geertz (2008) afirma que a cultura é um sistema de signos, a partir do

desenvolvimento do conceito de visão de mundo em seus estudos sobre as

dimensões culturais da política, da religião, dos costumes sociais e dos valores de

um povo. Neste sentido, a cultura é definida como um sistema simbólico de

organização social, controle, sentido, ordem etc.

O conceito de visão de mundo é visto pelo autor como os aspectos

cognitivos e existenciais que dão sentidos às ideias que abrangem a ordem social.

3 O NEDEJA é coordenado pelo professor Osmar Fávero. Foi criado em meados de 2000, com o

intuito de organizar o importante acervo documental sobre as campanhas de alfabetização e os

movimentos de cultura e educação popular (a partir da década de 1940). 4 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003417.pdf

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Deste modo, a política, a religião, os costumes e os valores, enquanto categorias

que influiem na estrutura social, conservam ou estabelecem significados gerais,

pelos quais o indivíduo interpreta sua experiência e se conduz na sociedade. Esses

significados se expressam, no entanto, através de símbolos que materializam

comportamentos culturais e criam e recriam elementos de controle social.

Trabalhar com esses conceitos é entender a cultura como teia de

significados e que é pela cultura que se produzem o valor e o significado em uma

sociedade, ocorrendo, dessa forma, a organização da experiência e ação humana

através de meios simbólicos, fornecendo um sentido às ações dos indivíduos.

Assim como o conceito de visão de mundo de Geertz (2008), o texto do

Almanaque do Aluá n. 1 encerra em si perspectivas teóricas e diretrizes para a

ação que versam sobre uma ordem social ideal, aspirações profissionais e de

estilos de vida em geral, ideias de justiça, bem como o protagonismo de certos

atores sociais para a realização dessa visão de mundo em particular.

Nesse sentido, os elementos simbólicos presentes no conteúdo do

Almanaque do Aluá n. 1 se inserem em processos e construções de sentidos

específicos, que são condizentes à visão de mundo das experiências de cultura

popular e educação popular, tradutores da visão de mundo da instituição

idealizadora do livro. Com base nesses aspectos, os dados desta pesquisa, a partir

do conteúdo temático da publicação em análise, são concebidos como formas

simbólicas e situados como intencionais ou não intencionais, estruturais e

contextuais.

O Almanaque do Aluá n.1 (segunda edição, dentre três)5 foi produzido em

1997 e publicado para o ano de 1998, pelo Serviço de Apoio à Pesquisa em

Educação (SAPÉ)6, com o apoio da União Europeia

7. Contou também com a

parceria do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, vinculado ao

Ministério da Cultura para a tiragem de 5.000 exemplares. Os processos de

elaboração e implementação das edições do livro estão descritos em artigos e em

relatórios feitos pela equipe do SAPÉ (SAPÉ, 1994, 1998a; 2006; AGUIAR e

LEITÃO, 2001).

5 Cada edição obteve uma forma distinta de financiamento e distribuição dos originais. 6 Ver p. 33 e 34. 7 Através da intermediação e consultoria do programa internacional vinculado ao Instituto para o

Desenvolvimento da Pesquisa da Universidade de Amsterdam (Indra-UVA).

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Algumas fontes documentais da ação cultural do SAPÉ estão reunidas no

NEDEJA, distribuídos em artigos, relatórios, revistas, almanaques, uma

dissertação e uma entrevista com a professora Aída Bezerra8, fundadora do SAPÉ,

juntamente com Rute Rios9. O histórico do SAPÉ foi elaborado a partir da leitura

da referida documentação. Segundo o relatório organizado pela equipe do SAPÉ

(1998a, p. 2) designada para a concepção e produção do livro, o Almanaque do

Aluá n.1 “corresponde a uma antiga preocupação da instituição em torno da

criação de materiais pedagógicos adequados a processos de autoformação de

educadores e, sobretudo, os destinados à educação de jovens e adultos”.

As partes que compõem a costura do Almanaque do Aluá n. 1 foram

selecionadas pela equipe do SAPÉ a partir do tema “Trabalhos em tempos de

globalização” e, em função dos assuntos específicos indicados pela pauta

temática, juntou-se ao grupo uma rede de colaboradores da América Latina,

África e Europa (SAPÉ, 1998a). A justificativa para estudar essa edição do

Almanaque é a de que os temas “trabalho” e “globalização” são recorrentes,

abordados segundo pontos de vista diferentes e utilizados com fins pedagógicos

distintos na educação de jovens e adultos e, especialmente, de esses temas

traduzirem os aspectos políticos-educativos condizentes com a visão de mundo do

SAPÉ, em especial, a possibilidade de ressignificar o sentido do trabalho humano

no cenário mundial.

Na tentativa de definir o Almanaque do Aluá n.1 como objeto de pesquisa

em uma perspectiva interdisciplinar, fez-se necessário refletir sobre o conteúdo

semântico nos âmbitos dos textos e das imagens, os quais englobam as

apropriações simbólicas de uma dada cultura, considerando-as a partir da visão de

mundo da educação popular apreendidos no Almanaque10

. Neste sentido, que

aspectos políticos, sociais e culturais são encontrados nas orientações discursivas

do Almanaque? Quais dimensões dos conceitos de cultura e cultura popular, tal

como desenvolvido historicamente no contexto da educação popular, estão

inseridos no Almanaque? Como os conceitos de cultura e cultura popular se

apresentam? De que forma podem ser analisados e quais são os sentidos de

apropriação e uso simbólicos? Como articular os conceitos de cultura e cultura

8 Ver p. 33 e 34. 9 Ver p. 33 e 34. 10 A palavra nessa formatação refere-se ao Almanaque do Aluá n. 1.

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popular com as categorias que emergem da reflexão do trabalho educativo do

SAPÉ presente no Almanaque – saber, poder e negociação?

Para o desenvolvimento desta pesquisa, é necessária a compreensão do

contexto político, social e cultural que envolve as apropriações do conceito de

cultura e seus desdobramentos no Almanaque do Aluá n. 1, principalmente por se

tratar de um material de apoio didático utilizado em classes e grupos formados por

professores que atuam na educação de jovens e adultos. Busco contribuir para o

entendimento da tipologia do almanaque, considerando que os Almanaques do

Aluá nunca foram estudados e que, a rigor, o tema também foi pouco investigado,

como se poderá constatar a partir do levantamento bibliográfico realizado.

A investigação do Almanaque do Aluá n. 1, sob o aspecto da sua tipologia,

busca entendê-lo como artefato cultural e especificá-lo como produto da ação

cultural do SAPÉ, no qual, pela inferência de seu conteúdo, como veremos

adiante, é possível constatar que não se trata de um livro de uso didático

comumente elaborado. Vale ressaltar que, assim como outros materiais didáticos

produzidos por instituições que atuam na área da educação popular, o Almanaque

consiste em um material de apoio didático que não é normatizado por políticas,

diretrizes e parâmetros da educação no Brasil. Considerando esse aspecto, sua

circulação é reduzida se comparada a de materiais elaborados ou financiados pelo

Estado.

A pesquisa parte do Almanaque do Aluá n. 1 como objeto de estudo, tendo

como finalidade compreender as características tipográficas e, em particular, os

aspectos que contextualizam o conteúdo do Almanaque como um tipo específico

de publicação, a partir da técnica de análise temática. Conforme destacado

anteriormente, o Almanaque foi elaborado pelo SAPÉ para atender o público da

educação de jovens e adultos. Tradicionalmente, a organização concentrou sua

atuação no campo da educação popular; neste sentido, interessa-me recuperar, por

meio da análise documental, as principais tendências do campo, especialmente as

conceituações de cultura e cultura popular e os desdobramentos desses conceitos

em categorias de análise do objeto de pesquisa. Através da análise de conteúdo, o

Almanaque pôde ser compreendido enquanto artefato cultural de uma concepção

de educação popular como aquela que é produzida pelas classes populares ou para

as classes populares, em função de seus interesses de classe.

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A dissertação é composta por cinco capítulos, incluindo a introdução e as

considerações finais. No segundo capítulo, a partir de um levantamento

bibliográfico, são considerados alguns aspectos que definem, ao longo da história,

o almanaque como um tipo específico de publicação e apresentadas pesquisas

consideradas de referência sobre a temática. Tendo como ponto de partida um

conto de Machado de Assis (2001), o qual indica a relação dos almanaques com a

contagem do tempo, dos dias, meses e anos, representada pelo calendário, busco

relacionar o ensaio literário com a etmologia do termo almanaque e com a

definição de Le Goff (2013), a qual considera que o almanaque seria uma

extensão do calendário. Os apontamentos realizados por Chartier (1995) em seu

estudo sobre os almanaques franceses do período do Antigo Regime ajudam na

compreensão das argumentações contrárias à caracterização do almanaque como

uma leitura popular, em oposição ao letrado. Chartier (1995) reconhece que foi o

público camponês que mais se apropriou desse tipo de leitura.

Ainda no segundo capítulo, são abordadas as categorias de análise de

conteúdo do Almanaque que caracterizam os principais elementos simbólicos da

visão de mundo do SAPÉ, a qual traduz esteticamente uma forma específica de

atuação educativa, formada pelas aspirações, comportamentos e interações sociais

ocorridas no interior de um grupo. Apropriando-me dessa argumentação e

entendendo o Almanaque como um artefato cultural que evoca os símbolos da

educação popular, identifico que os conceitos de saber, poder e negociação,

atribuídos à visão de mundo do SAPÉ, estão subordinados ao conceito de cultura

tal como desenvolvido pelos movimentos de cultura e educação popular.

Neste sentido, no terceiro capítulo é apresentado o levantamento dos

principais conceitos desenvolvidos na educação popular e são definidas as

categorias de análise da pesquisa. Parto das concepções desenvolvidas sobre o

conceito de cultura e cultura popular nos movimentos de educação na década de

1960 no Brasil, influenciados pelo projeto nacional-desenvolvimentista em curso.

A análise dos documentos do período permitui identificar duas matrizes de

pensamento: católica e marxista. Ambas conceituaram a cultura como sendo ao

mesmo tempo a natureza transformada e significada pelo homem e enquanto

transformação cultural e mobilização política. Os elementos teóricos e

metodológicos das argumentações auxiliam na síntese da análise: o Almanaque é

um artefato cultural da educação popular, seu conteúdo recupera as apropriações

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do conceito de cultura da matriz católica de pensamento e reflete a dinâmica de

negociação entre os diversos saberes evidenciando a escolha pela publicação de

tipo almanaque.

Tendo como objetivo verificar as afirmações feitas acima, no quarto

capítulo é aplicado o médoto de análise de conteúdo nos termos de Bardin (2011)

e Bauer (2008). Para a interpretação pictórica e textual do Almanaque foi

elaborado uma regra de contagem que permitiu quantificar a ocupação espacial de

cada temática no livro. A utilização da técnica de análise temática auxiliou na

enumeração do tipo de conteúdo e na ordenação dos temas de acordo com os

enunciados dos textos e imagens.

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2 Almanaque: traços de um objeto

Este capítulo é dedicado à história dos almanaques, sua definição enquanto

um tipo específico de publicação e às principais pesquisas no Brasil sobre a

temática através de um levantamento bibliográfico. É apresentado, também, o

Almanaque do Aluá n. 1 como produto da ação cultural do SAPÉ na área da

educação popular.

No decorrer da história, o almanaque foi utilizado pelas populações de

várias maneiras: na contagem do tempo; para auxiliar na colheita e indicar as

festividades; para divertir, informar e previnir catástofres naturais; como manuais

da vida prática nas cidades, difusor das ideias nacionalistas, veículo de

propaganda de produtos farmacêuticos e de vulgarização de posicionamentos de

literatos e jornalistas.

O almanaque enquanto publicação literária sofreu, ao longo de sua

história, diversas modificações no formato editorial do livro, na qualidade da

impressão e na incorporação de novas temáticas. Na atualidade, o alamanaque é

comumente associado à uma única temática, como uma grande enciclopédia sobre

um determinado assunto e às cartilhas com ensinamentos de conduta, como por

exemplo: almanaque do futebol, de culinária, do samba, do estudante, do homem

do campo, entre outros.

Basta uma rápida leitura do Almanaque do Aluá n.1 para perceber que no

seu conteúdo há gêneros textuais diversificados e abordagens variadas de temas.

Difere, portanto, do tipo de publicação encontrada atualmente. No entanto, é

possível associar a maneira de leitura do Almanaque com a forma de leitura

rápida, de passatempo, encontrada hoje em dia, como a programação das tvs em

transportes públicos, elevadores e salas de espera.

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2.1. O que é? O que é?

Em um conto intitulado “Como se inventaram os almanaques”, divulgado

originalmente no Almanack as Fluminenses, no ano de 1890, publicado

novamente em Meyer (2001, p. 25-28), Machado de Assis discorre sobre a criação

do almanaque como sendo uma história mítica de amor entre o Tempo e a

Esperança, na qual o Tempo, um velho de barbas brancas desde que nasceu, se

apaixona pela jovem Esperança, que o desprezou por ser um ancião. O Tempo, ao

ver a Esperança, sentiu que algo batia do lado esquerdo, a boca estremeceu e o

sangue correu mais depressa, e todo ele era outro. Sentiu que era amor; mas ao

olhar no vasto espelho que é o oceano, achou-se velho. Ficou pensando em como

achar um modo de fazer com que a Esperança visse sua mocidade passar com os

anos. “O tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem

margens, sem nada; tão somente os dias, as semanas, os meses e os anos” (ASSIS,

1890; In: MEYER, 2001, p. 26). Toda a terra viu desabar, no mesmo instante,

uma chuva torrencial de almanaques. O almanaque trazia a língua das cidades e

dos campos em que caía.

O ensaio literário de Machado de Assis ilustra o que a etimologia da

palavra almanaque sugere ao apresentar como sendo originária de um tipo de

organização sempre relacionada ao tempo, ao dia, ao mês, à ordem dos números –

ao calendário. O termo almanaque apresenta matizes próprios, díspares, segundo

as diversas origens apresentadas na citação abaixo:

Etmologicamente, a palavra “almanach” pode ter e aparecer com várias origens.

Do árabe “al”, e “manach”, computar, contar. Ela pode ser a junção do árabe

“ocl-o” e do grego “mnu”, mês. Nas línguas orientais “almanha” significa estreia,

alvíssaras (boas novas). Em saxão, “al-monght” ou “al-monght” ou “al-monac” seria uma contração para “al-mooned” que significa contendo todas as luas.

Originalmente, nossos ancestrais traçaram o curso da lua sobre uma tábua de

madeira à qual chamaram “al-monagt” (para “al-mooneld”). Bollème (1965) define o almanaque etmologicamante como sendo a junção do árabe “al” e do

grego “men”, mês ou ainda “menás”, lua, latim “meusis” e do antigo indiano

“mas”, medir. (PARK, 1999, p. 46)

A hipótese mais difundida sobre a origem da palavra almanaque é a de que

o termo estaria ligado ao calendário lunar pela contagem do tempo, especialmente,

na tentativa de sua organização. “O almanaque pode ter sido no início, como

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ordenação, a extensão de um calendário que já não comportava mais tudo o que se

queria dizer” (PARK, 1999, p. 41). Neste sentido, a partir do entendimento do

calendário enquanto objeto, pode-se atribuir também ao almanaque um caráter

simbólico-imagético, em que o sistema de calendário representa a ligação

estabelecida entre o ser humano e sua organização de espaço e tempo. O tempo do

calendário é inteiramente social, no entanto, está submetido aos ritmos do

universo.

O calendário, objeto científico, é também um objeto cultural. Ligado a crenças,

além de observações astronômicas (as quais dependem mais das primeiras do que

o contrário), e não obstante a laicização de muitas sociedades, ele é, manifestamente, um objeto religioso. Mas, enquanto organizador do quadro

temporal, diretor da vida pública e cotidiana, o calendário é sobretudo um objeto

social. (LE GOFF, 2013, p. 441-442)

De acordo com Le Goff (2013), o calendário como sistema circular de um

tempo que recomeça sempre, o qual institui à data, ao ano, ao mês e ao dia uma

cronologia dos acontecimentos, apresenta também uma característica que,

enquanto objeto social, pode oferecer ao pesquisador uma determinada narrativa

do cotidiano, da cultura material, das celebrações, dos modos de vida etc. Nesta

perspectiva, o almanaque é muitas vezes utilizado como sinônimo de calendário.

O desenvolvimento da tipografia no ocidente se confunde com a história

do almanaque, sendo o último um dos primeiros gêneros a serem publicados. O

primeiro almanaque foi impresso na Alemanha em 1455, e, em 1464, começam a

ser publicados os almanaques das corporações profissionais, sendo o primeiro um

almanaque para barbeiros. Foi a partir dos séculos XVII (período em que a

literatura popular de divulgação acolhe e difunde os almanaques) e XVIII que os

almanaques ganharam popularidade em toda a Europa, apesar de já circularem

pelas aldeias, principalmente na França, durante o século XVI (CHARTIER,

2002; LE GOFF, 2013).

Séculos antes da criação da tipografia, hebreus, egípcios, gregos, romanos,

hindus e chineses produziram seus almanaques seguindo lógicas particulares de

organização e representação do tempo e do espaço, relacionadas, principalmente,

às festividades e à cosmologia. Os fasti romanos – ilustrados sobre pedra e

mármore – continham explicações sobre os festivais de César, e os clogg ingleses

– decorados e entalhados nos quatro lados de blocos de madeira, nos bastões de

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peregrinos, em espadas e ferramentas de agricultura – foram usados desde o

século VII em outras partes da Europa para denotar, principalmente, os dias do

ano, as estações e os ensinamentos do catolicismo. Essas obras constituem alguns

dos almanaques mais antigos. Os almanaques, ao longo da Idade Média, eram

copiados em pergaminhos de origem animal (sempre raros e caros) e passaram a

ser colocados entre as páginas dos livros eclesiásticos para indicar os feriados,

dias de festa e ciclo lunar e solar (STOWELL, 1977 apud GALZENARI, 1998, p.

48).

Ao final do século XV na Europa, os almanaques inserem-se na tradição

da literatura de colportage, caracterizada pela instrumentalidade da leitura. A

partir dos séculos XVI e XVII, foram amplamente difundidos e passam a se voltar

para as artes do calendário, com as medidas e frações do tempo, as festas

religiosas, as observações do céu, da lua, dos movimentos dos astros etc. Ainda

nesse período, continham previsões climáticas, prognósticos de enchentes,

terremotos e catástrofes coletivas, como guerras e epidemias. Entre os séculos

XVIII e XIX, temáticas específicas vão se incorporando aos almanaques, criando

diferentes modelos e formas: são almanaques agrícolas, de saúde, literários,

históricos, enciclopédicos, de família, de recreação, informativo, de cidades,

administrativos, de livraria, com espaço reservado para os calendários, sempre

com os dias santos e horóscopo (CHARTIER, 2002; BOLLÈME, 1965).

Independente da sua tipologia, o almanaque, depois dessa evolução, conservou

uma estrutura de organização temática, uma matriz textual, em que, ao lado do

calendário e das cronologias que o acompanham e do horóscopo, se fazem

presentes os preceitos morais, as biografias, as narrativas de eventos históricos, as ciências, seguidos de curiosidades, ditados, poemas, charadas, jogos, medicina

doméstica. (DUTRA, 2005, p. 17)

Na França, desde o século XVII, os almanaques faziam parte do catálogo

da bibliothèque blue, composta de livros de capa azul, com larga circulação em

outros territórios do continente europeu. Popularizaram-se por toda a Europa

como impressos de uma literatura de colportage, ou literatura de cordel, uma vez

que era considerado como uma leitura de fácil apreensão, de linguagem

simplificada e, sobretudo, por ser um livro barato devido à pouca qualidade da

impressão. Os almanaques eram tipicamente vendidos nas feiras e por vendedores

ambulantes (CHARTIER, 2002; DUTRA, 2005).

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O almanaque era um dos poucos materiais impressos aos quais a

população tinha acesso, especialmente as rurais. Vale ressaltar que a leitura era

uma prática privilegiada dos grupos sociais ligados ao clero ou à nobreza e que,

segundo a abordagem de Chartier (1995; 2002), é pouco provável que os

almanaques se destinassem originalmente ao público camponês.

Segundo Chartier (1995), é possível identificar dois principais modelos

com propostas contrárias de definição, descrição e interpretação da cultura

popular. O primeiro percebe a cultura popular em suas dependências e carências

em relação à cultura dos dominantes, caracterizando o almanaque como uma

leitura popular, em oposição à cultura letrada. O segundo, com o intuito de contra

argumentar toda a forma de etnocentrismo cultural, denuncia a ausência de um

questionamento sobre a ambiguidade do objeto popular na historiografia, pois

concebe a cultura popular como “um sistema simbólico coerente e autônomo, que

funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura

letrada” (CHARTIER, 1995, p. 179).

A abordagem de Chartier (1995; 2002) procura refletir sobre essas

definições de cultura popular apresentadas acima; baseia-se nos estudos realizados

na Europa sobre a literatura e a religião e identifica que a “literatura da elite” ou a

“religião do clero” – que impõem seus repertórios – não são tão radicalmente

diferentes da “literatura popular” e da “religião popular”. Portanto, de acordo com

essa argumentação, seria inútil querer identificar o almanaque como supostamente

um objeto específico da cultura popular, já que, nesse tipo de literatra, houve a

ocorrência simultânea de elementos oriundos de costumes sociais distintos.

A composição de conteúdos do almanaque foi elaborada por diferentes

tradições literárias e sociais, assim como a distribuição e a difusão desse gênero

no meio de públicos bem diferentes.

Saber se pode chamar-se popular ao que é criado pelo povo ou aquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais nada identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se

imbricam diferentes formas culturais.

[...] Estes cruzamentos não devem ser entendidos como relações de exterioridade entre dois conjuntos estabelecidos de antemão e sobrepostos (um letrado, o outro

popular), mas como produtores de ligas culturais ou intelectuais cujos elementos

se encontram tão solidamente incorporados uns nos outros como nas ligas

metálicas. (CHARTIER, 2002, p. 56-57)

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Neste sentido, a “cultura popular” e a “cultura letrada” se tornam híbridos.

No entanto, é necessário ter o cuidado de não definir as práticas culturais como

um sistema neutro de diferenças, como um conjunto de práticas diversas, porém

equivalentes. Tanto os bens simbólicos como as práticas culturais continuam

sendo objeto de lutas sociais onde está em jogo sua classificação, hierarquização e

sua consagração ou desqualificação. Compreender a cultura popular é situar nesse

espaço de enfrentamento as relações que unem os mecanismos da dominação

simbólica às lógicas específicas de funcionamento nos usos e nos modos de

apropriação do que é imposto.

Ainda assim, a partir de noções rudimentares de leitura, foi o público

camponês que mais se apropriou dos almanaques, lendo de forma coletiva e

compartilhada os calendários, jogos, fábulas, poesias, dicas e regras de

comportamento. Desenvolveram práticas que podiam ir da citação à representação

das anedotas e historietas mais ou menos moralizantes (CHARTIER, 2002).

A partir do século XVIII, com a Revolução Francesa e seus ideais de

igualdade, começa na Europa um movimento de expansão da leitura,

proporcionando uma significativa ampliação social da leitura dos almanaques,

atingindo tiragens grandiosas, como por exemplo o Le grand calendrier des

Bergers11

, com 150 a 200 mil exemplares. Ao mesmo tempo em que surge um

movimento de reconhecimento da cultura camponesa, com a coleta das histórias e

fábulas narradas pelos camponeses, a expansão da leitura também atendia ao

projeto de generalização para toda a sociedade, das proibições, censuras e

controles, que valorizassem a maneira distinta de ser dos homens da corte

(CHARTIER, 2002).

Destacam-se as recolhas e registros dessas histórias dos camponeses pelo

francês Charles Perrault12

(1628-1703) e pelos irmãos alemães13

Jacob (1785-

1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859). As narrativas orais desenvolvidas por esse

11 De acordo com Bollème (1965), o almanaque Le grand calendrier compost des bergers foi o

mais importante da França e sua primeira publicação data de 1491. 12 Foi escritor e poeta. Estabeleceu bases para um novo gênero literário, o conto de fadas, além de

ter sido o primeiro a dar acabamento literário a esse tipo de literatura. Fonte:

http://brasilescola.uol.com.br/literatura/historia-dos-contos-fadas.htm. Acesso em: dez. 2015. 13 Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos e folcloristas, são considerados, o primeiro, como

o criador da moderna filologia germânica, e o segundo, como o fundador do folclore moderno.

Fonte: http://www.infoescola.com/biografias/irmaos-grimm/. Acesso em: dez. 2015.

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segmento foram muitas vezes retocadas para ganhar o formato escrito, pois,

segundo a corte, o que prevalecia no universo camponês era a obscenidade, a

violência, a heresia e a bruxaria (AGUIAR e LEITÃO, 2001). Os almanaques –

como vetores que traziam para a escrita os estilos da oralidade, o que atualmente é

chamado de oratura – tem a intenção de se fazer literatura com os ritmos da

oralidade: “repetir seguidas vezes uma mesma palavra significava dar ênfase a

uma narrativa; ao contrário, diminuir a ênfase narrativa e quase sussurrar ideias

era a forma de temas proibidos, como sexualidade, esoterismo e religião” (idem,

p. 113).

Os almanaques foram sendo apropriados pela Igreja em virtude da alta

circulação desse tipo de publicação, de seu caráter muitas vezes doutrinador e,

especialmente, de sua penetração e aceitação nos meios populares. Os almanaques

passaram a ser distribuídos em grande escala, contendo calendários dos dias

santos, provérbios, lições de vida, regras de comportamento e de convivência

humana, mas, ainda assim, não perderam sua característica lúdica, contendo

também jogos, brincadeiras e informações (AGUIAR; LEITÃO, 2001).

Nas últimas décadas do século XIX, os almanaques estavam difundidos

nas cortes e colônias dos países europeus distribuídos pelos continentes. No

Brasil, os primeiros almanaques vieram principalmente da França e de Portugal.

Foi nas primeiras décadas do século XX que os almanaques se popularizaram,

especialmente como veículo de propaganda de indústrias farmacêuticas,

laboratórios, produtos agrícolas e, também, da igreja católica – usualmente com

fins doutrinários, de convencimento, de conversão ao catolicismo. Uma

característica que se destaca desses primeiros almanaques foi a de promover os

dias santos, além de propor para cada dia uma leitura, um ensinamento, um

provérbio de sabedoria. Outra característica dos almanaques europeus é a de

“enciclopédia de vida prática” onde, além de calendários de plantio, havia também

receitas e dicas para a vida no campo ou na cidade (PARK, 1999; CASA NOVA,

1996).

A utilização dos almanaques no Brasil, em meados do século XX,

estendeu-se à educação de jovens e adultos como material de apoio didático,

oriunda de experiências de educação popular ou de programas governamentais.

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Seus principais temas são a educação sanitária e a cultura popular regional, suas

festas, folguedos, costumes, culinária etc.14

Vale ressaltar que, no decorrer da história, as práticas e hábitos de leituras,

assim como a editoração e circulação dos almanaques, sofreram modificações que

contribuíram para ditar os princípios que nortearam – e ainda norteiam – as

representações simbólicas e práticas de dominação hegemônicas, no entanto

serviram para questionar, muitas vezes com humor, as formas de manutenção do

status quo.

O Almanaque do Aluá n. 1, no contexto desta dissertação, se apresenta

como um tipo de publicação com informação geral e de caráter enciclopédico, que

reúne como objeto e como livro de leitura temas que são modulados pelo tempo:

variações culturais traduzidas em pequenos contos, receitas culinárias, tradições

regionais, provérbios, jogos, horóscopo, imagens sobre as sociedades nas quais

foram publicados, entre outras, bem como o principal instrumento da cronologia

histórica, o calendário – temas que retomam o conteúdo dos almanaques que

circulavam na França entre os séculos XVIII e XIX, como foi visto anteriormente.

Essa publicação é também compreendida enquanto objeto de uma cultura inserido

em um tempo determinado que introduz suas práticas sob um modelo histórico e

socialmente estabelecido, onde os conteúdos literários e iconográficos englobam

as apropriações simbólicas de um grupo social, uma comunidade em um contexto

espaço-temporal específico. Neste sentido, tornou-se possível identificar, pela

inferência, os elementos simbólicos contidos nas mensagens tradutoras de uma

visão de mundo em particular.

2.2 A pedagogia do almanaque e seus temas de estudo no Brasil

Os trabalhos de pesquisa, aqui identificados como referências importantes

para o estudo sobre o tema, apontam para caminhos de investigação distintos:

práticas de leituras de almanaques de farmácia; análise semiótica de progragandas

nos almanaques de farmácia; exaltação da identidade nacional através dos

almanaques literários; identificação de aspectos liberais, positivistas e românticos

14 Existem alguns exemplares desses almanaques no NEDEJA.

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no discurso de almanaques de cidade; apreensão das visões de história e de cidade

de um almanaque comemorativo; associações entre as representações do homem

do campo, veiculadas em um alamaque, e a produção de memória coletiva sobre a

imagética do sertanejo.

No entanto, a abordagem desses estudos indica uma trajetória comum: os

conteúdos dos almanaques analisados evocam o contexto sociohistórico em que

estão inseridos e configuram-se como artefato cultural que reforça as apropriações

simbólicas de um determinado grupo social. Este último aspecto é o que interessa

para esta dissertação, pois um dos objetivos é a verificação dessa afirmação pela

análise do conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1.

Neste sentido, o presente estudo procura argumentar que o Almanaque do

Aluá n.1, como teia de significados, carrega sentidos sobre temas que remetem aos

conceitos de cultura e cultura popular desenvolvidos no campo da educação

popular no Brasil.

Os almanaques são constantemente utilizados por pesquisadores, em sua

maioria historiadores, como fonte e referencial bibliográficos. Contudo, o

almanaque como tema de pesquisa no Brasil, constatado por meio da revisão de

literatura, é abordado em apenas três teses, duas dissertações e um estudo de pós-

doutorado. Aparecem, também, em poucos artigos publicados por pesquisadores

brasileiros, e parte expressiva das publicações são de pesquisadores europeus,

principalmente de universidades francesas e portuguesas. A consulta bibliográfica

das pesquisas no Brasil compreendeu um intervalo temporal de trinta anos. A

maioria das pesquisas se concentra no final da década de 1980 até a primeira

década dos anos 2000.

Os recortes temáticos das pesquisas são variados. No entanto, a forma pela

qual o texto evoca o contexto é o que aproxima as pesquisas; ou seja, prevalece

nas análises, apresentadas a seguir, o foco no almanaque como documento

histórico e cultural. Essas pesquisas revelaram-se produções de conhecimento

capazes de romper com práticas fragmentadas que utilizam o almanaque como um

objeto que reúne dados estatísticos e informações históricas objetivas, comumente

abordadas pelo método historiográfico, segundo aponta Galzenari (1998).

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Os almanaques de indústrias farmacêuticas divulgados no Brasil são o

assunto das teses de Casa Nova (1996) e Park (1999)15

, e da dissertação de

Machado (2011). A pesquisa de Machado (2011) discute sobre relações entre as

representações do homem do campo, veiculadas pelo Almanaque Biotônico

Fontoura, e a produção de uma memória coletiva acerca do sertanejo.

O Almanaque Biotonico Fontoura, em especial as ediçoes que traziam a

historia da personagem Jeca Tatu, foram publicados no Brasil entre os anos de

1920 e 1982. Esse almanaque, com uma linguagem simples, associada

diretamente com as ilustraçoes que acompanharam os textos, tornava-o um

material de leitura de fácil acesso, compreendido tanto por aqueles que estavam

em processo de letramento como pelos não letrados. Assim, atrelar o texto escrito

a imagem visual e vice versa pode ter sido um recurso dos idealizadores do

almanaque para tornar a historia do Jeca Tatu compreensivel para o maior numero

possivel de sujeitos (PARK, 1999; MACHADO, 2011).

Os idealizadores16

do almanaque foram Monteiro Lobato (1822-1948) e

Cândido Fontoura (1885-1974) e esse almanaque não foi apenas um livreto de

divulgação medicamentosa. Distribuido, a principio, apenas em farmácias,

adentrou os muros das escolas, transformando-se em material de leitura de muitos

jovens e crianças, circulando, portanto, nos ambientes escolares como material de

apoio didático (idem). A hipotese inicial é a de que o almanaque, em particular a

história do Jeca Tatu, contribuiu para a implementação de um ideário de educação

que pretendia homogeneizar comportamentos a partir de um ideal de progresso e

desenvolvimento defendidos pela Republica. Outra hipotese é que o uso desse

almanaque na escola, ou em outros lugares, levou o Jeca a tornar-se conhecido em

praticamente todo o Brasil como representante caricatural do caboclo brasileiro. O

autor define o almanaque não apenas como documento, mas também como

monumento, entendido na terminologia de Le Goff (2013) de que monumento é

tudo aquilo que pode evocar o passado e perpetuar a recordação, construindo um

15 Ambas publicadas em forma de livro; utilizo aqui essas versões. 16 Monteiro Lobato é considerado um dos principais ícones da literatura brasileira. Foi editor,

tradutor, escreveu contos, ensaios, romances e muitos livros infantis que o tornaram popular.

Cândido Fontoura fundou o "Instituto Medicamento Fontoura" em 1915 e, posteriormente, as

“Indústrias Farmacêuticas Fontoura-Wyeth” dedicada à produção de penicilina, inseticidas, entre

outros (PARK, 1999; MACHADO, 2011).

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legado à memória coletiva e ao poder de perpetuação das sociedades históricas,

sendo que essa perpetuação pode ser tanto voluntária ou quanto involuntária.

No outro estudo sobre os almanaques de indústrias farmacêuticas, Park

(1999) analisa a leitura e a escrita realizadas no Brasil sob o ponto de vista da

história e da sociologia do livro. A autora investiga o universo social das práticas

de leitura dos almanaques Laboratório Granado, Biotônico Fontoura, Iza e

Renascim Sadol, relacionados de acordo com a cronologia das edições publicados

em um período que corresponde de 1892 a 1997. Fundamentada no campo

disciplinar da história, Park (1999) busca relacionar a memória dos leitores com o

universo social das práticas de leituras dos almanaques e seguindo principalmente

os argumentos de Chartier (2002), procura superar a marginalidade imposta a esse

tipo de literatura: devido a qualificação de produto “popular” dada aos

almanaques, evidencia um sentido de “leitura menor”, sem importância.

Igualmente investigando a temática dos almanaques farmacêuticos, Casa

Nova (1996) elegeu as produções Biotônico Fontoura e A saúde da mulher. Para a

autora, o almanaque é compreendido como texto, no sentido específico atribuído,

principalmente, por Barthes (1983) e Derrida (1973): o lugar e o espaço onde se

realizam a dinâmica da produção de sentidos e sua transformação, onde a leitura

crítica dos sentidos manifestos produz, por meio de outros textos, outros sentidos,

assumindo a intenção de desconstruir tipos de representação e conceitos que a

cultura e a sociedade impuseram como signos, a partir de seus modelos

ideológicos, de caráter positivista, centrados na religião e na ciência. Propõe uma

leitura que revele os sentidos que persistem em um discurso voltado para a

propaganda de remédios. Casa Nova (1996), ao fazer um estudo semiótico dos

almanaques, explora o poder constitutivo das imagens iconográficas em tais

publicações, e nelas, os códigos visuais, interagindo com os verbais, mostram-se a

serviço de um código mais amplo: o moral.

Os almanaques de cidades são estudados nas pesquisas de Galzenari

(1998) e Lopes (2002). Galzerani (1998) localiza, durante o estudo dos

almanaques da cidade de Campinas (São Paulo) das décadas de 1870 e 1880, três

séries discursivas distintas, organizadas por jornalistas de notoriedade na

sociedade campineira. Os almanaques, segundo a autora, são identificados como

veiculadores de concepções liberais, positivistas, românticas, e como

conformadores de identidades sociais e práticas de leituras modernas. Entendendo

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os almanaques como “documentos/monumentos” nos termos de Le Goff (1987),

procurou refletir sobre o avanço da modernidade capitalista no Brasil,

especialmente na segunda metade do século XIX. Para formar imagens modernas

da história de Campinas, a pesquisadora se utiliza de conceitos beijaminianos de

“memoria” e de “experiências vividas” como aportes metodológicos para

recuperar a história local. Segundo Galzenari (1998), a expansão de certo caráter

utilitário dos almanaques, marcado pela divulgação de informações sobre horários

de meios de transporte e dos correios ou sobre uma ampla gama de informações e

dados estatísticos sobre as cidades, pode se vincular ao desenvolvimento

capitalista, inclusive no Brasil em fins do século XIX.

Também na perspectiva de análise dos almanaques de cidade, Lopes

(2002) investigou o Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista, publicado em

1986 pelo poder público local em comemoração ao centenário da cidade de

Patrocínio Paulista, localizado no Estado de São Paulo. Interessou à autora

apreender as visões de história e de cidade que perpassam os textos dos

almanaques, assim como os aspectos pertinentes à sua elaboração e circulação,

buscando compreender a inserção do livro no universo escolar do município. Para

tanto, Lopes (2002) elaborou um questionário dirigido aos docentes, atendo-se às

referências feitas ao almanaque em suas práticas pedagógicas. Por considerar

importante o papel da instituição escolar e do poder público na preservação e

democratização da memória social, assim como na construção de identidades e

cidadania, a autora procurou problematizar as noções de história regional e

história local veiculadas no almanaque histórico.

Vale destacar que os almanaques eram concorridíssimos entre leitores

brasileiros durante o século XX, como por exemplo, o Almanaque Brasileiro

Garnier, publicado pela livraria Garnier nos anos de 1903 a 1914. Dutra (2005)

analisa essas publicações em seu estudo de pós-doutorado e, ao identificar o

projeto pedagógico e temas nele apresentados, afirma que o almanaque contribuiu

para a difusão do hábito de leitura no Brasil nesse período. A publicação era

voltada essencialmente ao público urbano, especialmente do Rio de Janeiro e de

São Paulo, que começava a se industrializar. Entre seus leitores estavam

funcionários públicos, profissionais liberais, comerciantes e estudantes

secundaristas e de escolas normais.

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Essas edições, envolvendo homens de letras, cientistas e políticos,

transformaram-se, segundo Dutra (2005), em um instrumento pedagógico útil e

eficaz, capaz de instruir e divulgar conhecimento, estimulando a curiosidade e o

desejo de saber. A autora aborda o modo como a língua, os costumes, o folclore, a

literatura e a história foram usados nas páginas do Almanaque Brasileiro Garnier

para a definição de uma identidade nacional republicana, destacando, ainda, o

quanto a presença de grande número de intelectuais, muitos deles membros da

Academia Brasileira de Letras (ABL) e do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro (IHGB), na produção desse almanaque, fez dessa obra instrumento

poderoso para a construção da unidade (territorial, cultural e social) do país. A

pesquisadora conclui que seus editores, intelectuais engajados, converteram a

publicação em veículo de difusão e popularização do projeto político e educativo

defendido pelos republicanos, ressaltando o quanto propósito intelectual e político

caminham juntos.

Os almanaques se apresentam, portanto, como artefatos culturais que

contribuem, assim como outros objetos, para a criação imagética de uma nação, de

um “povo”, onde valores, aspirações, hábitos e comportamentos são

compartilhados.

2.3 SAPÉ: o Almanaque do Aluá e a pedagogia da negociação

O SAPÉ foi criado, em 1983, pelas educadoras Aída Bezerra e Rute Rios,

ambas com experiência em educação popular, desde o Movimento de Educação

de Base (MEB), nos anos de 1960. Aída Bezerra também participou

anteriormente, em 1973, do Nova – Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em

Educação, que tinha como principal objetivo aliar a atividade de assessoria a

movimentos de base que realizavam um trabalho educativo à atividade de estudo e

reflexão vinculada ao trabalho de assessoramento. A atuação de Aída Bezzera no

Nova durou cerca de dez anos. Rute Rios, por sua vez, participou da equipe que

formulou e implantou o Programa de Educação Juvenil (PEJ)17

, no final dos anos

17 Atualmente chama-se Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA). Foi criado em 1983,

corresponde a uma das metas do Programa Especial de Educação (PEE) elaborado sob a

coordenação de Darcy Ribeiro, educador e vice-governador no primeiro governo de Leonel

Brizola no estado do Rio de Janeiro (1982-1986). Sua proposta pedagogica iniciava com a

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de 1980, no município do Rio de Janeiro. A essas educadoras reuniram-se,

progressivamente, Cleide Leitão, Alexandre Aguiar, Maria do Socorro Calháu e

Renato Pontes (educadores com experiências diversas em educação popular e

alfabetização de adultos).

A proposta que consolidou a atuação do SAPÉ foi buscar, junto aos

professores, alternativas, especificamente na forma de realização de práticas

educativas na formação de professores que atuavam na educação de jovens e

adultos, partindo fundamentalmente do campo da antropologia como principal

orientadora das questões e reflexões. Essa escolha teórico-metodológica, segundo

Cleide Leitão (2002, p. 11), “permitiu ampliar as discussões para além dos

campos clássicos que informavam as experiências de educação popular”. O SAPÉ

considerava a existência de diferentes sistemas de conhecimento presentes nas

relações entre os agentes18

e grupos das práticas educativas.

Partindo dessa concepção de educação, a equipe do SAPÉ realizou seu

primeiro trabalho: uma pesquisa participante, com enfoque antropológico19

,

intitulada Confronto de Sistemas de Conhecimento na Educação Popular,

realizada em uma classe experimental noturna de alfabetização de adultos, na

Escola Senador Correia, situada no bairro de Laranjeiras, zona sul da cidade do

Rio de Janeiro.

Segundo Leitão (2004), inicialmente essa pesquisa foi planejada para ser

realizada em quatro ações distintas: alfabetização de adultos; educação política;

formas alternativas de produção e ensaios de organização de populações de rua.

No entanto, somente as duas primeiras foram realizadas. A autora sinaliza que o

envolvimento da equipe do SAPÉ com a alfabetização de adultos resultou na

consolidação e delimitação de um campo de trabalho específico na educação de

jovens e adultos, denominado “Formação/Autoformação de Educadores”. Foram

alfabetização, explorando leitura e escrita e ampliando-as para o conteudo especifico do ensino

elementar. Na perspectiva do direito a cidadania, organizava as primeiras quatro séries do Ensino

Fundamental de forma inovadora, embrião dos atuais ciclos de estudos (FÁVERO et al., 2007, p.

77-110). 18 Denominação adotada nos anos 1960 e, atualmente, amplamente utilizada para designar os

grupos de educadores compostos por mediadores, idealizadores e organizadores das atividades

educativas. Entre eles estão: o estudantado secundarista e universitário, intelectuais militantes

cristãos, artistas, dirigentes de agremiações e de partidos políticos. 19 No desenvolvimento da pesquisa, o SAPÉ contou com a assessoria da antropóloga Lygia Segala,

na ocasião vinculada ao Centro de Folclore e Cultura Popular da Fundação Nacional das Artes

(LEITÃO, 2002).

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organizados, ao término da pesquisa, os Coletivos de Autoformação,

desenvolvidos nos seminários realizados com educadores que atuavam no campo

da escolarização de jovens e adultos nos estados de Pernambuco e Rio de Janeiro,

com a finalidade de confrontar e discutir os resultados de algumas experiências de

alfabetização de adultos realizadas nesses estados.

A partir desses seminários, foram idealizados um Boletim informativo

trimestral de circulação ampla entre os educadores participantes; um Grupo de

Estudos e Pesquisa (GREPE), com a função de aprofundar e subsidiar as

discussões ocorridas nos seminários; e a Rede BAM – Banco de Ajuda Mútua, que

tinha o objetivo de incentivar o registro da prática pedagógica e sua

sistematização pelas/os educadoras/es, socializando-as através dos Cadernos BAM

e de um banco de dados informatizado (LEITÃO, 2002).

Também como produto da pesquisa Confronto de Sistemas de

Conhecimento na Educação Popular, além da formação dos coletivos, foi

produzida a edição número zero do Almanaque do Aluá, com a finalidade de fazer

circular os resultados dos trabalhos desenvolvidos a partir da pesquisa. Nessa

investigação,

[...] o SAPÉ identificou a necessidade de investir na formação de educadores e de produzir material didático para seu desempenho, uma vez que a escassez quase

absoluta de material de leitura para jovens e adultos dificultava a formação de

novos leitores. Aida Bezerra afirma: “Ai não foi difícil de chegar ao Almanaque.

Toda pesquisa tinha sido feita numa perspectiva de mão dupla: confronto de saberes e poderes, negociação. A divulgação de seus resultados não poderia ser

diferente. Os alunos tinham direito à devolução da pesquisa. Não iríamos elaborar

artigos, criar mais uma publicação que circularia entre nós mesmos, os de sempre. Depois, queríamos alguma coisa diferente do eterno preto e branco em duas

colunas. Algo mais parecido com a nossa cultura mestiça: maracatu, abacaxi,

pimenta e cocares. Cores e expressão cultural, diversa como nós. Alguém disse na reunião em que discutíamos o destino da devolução: ‘Acho que vocês querem é

um almanaque’. Aí começamos a imaginar o que seria um almanaque com essas

características, que revelasse um pouco do espírito da pesquisa e, ao mesmo

tempo, se oferecesse como material de leitura cativante para responder um pouco à enorme carência de material de leitura na área de educação de jovens e adultos.

Fechamos com essa plataforma”. (VIEIRA, 2016, p. 207-208)

O almanaque, enquanto tipologia é compreendido pelo SAPÉ (1993) como

um material de difusão dos resultados de inúmeros trabalhos, pesquisas e

acontecimentos diversos. A intenção era elaborar um material de leitura

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[…] que refletisse um pouco os múltiplos jeitos de ser e sentir que temos em

nosso país; sejam os já assimilados ou os que ainda nos parecem estranhos – como um esforço de nos fazer mais conhecidos uns dos outros; como uma pedra

na construção e no reforço das nossas identidades. Algo assim, circulante: não

basta o que um diz ou expressa a respeito de um assunto; queremos mais vozes, linguagens diferentes, mais imagens para enriquecer os nossos próprios

pensamentos e os nossos sentidos. E, sobretudo, queremos mais leitores nesse

país (SAPÉ, 1993, p. 7).

A partir do fragmento acima, é possível apreender alguns conceitos

considerados importantes para compor o almanaque: cultura, identidade,

diversidade e nação, relacionados ao contexto brasileiro, sobretudo ao campo da

educação popular. O Almanaque do Aluá n. 1, objeto de pesquisa desta

dissertação, cinco anos após a edição do número zero, em 1998, reafirma a ideia

de que o almanaque é um livro que tem por característica a diversificação de seu

conteúdo, distribuído em várias linguagens e, especialmente, a comunicação entre

os diversos saberes.

A pauta temática do Almanaque do Aluá n. 1 é o trabalho e a globalização,

na qual o livro é um espaço com a possibilidade de “abrir as janelas, conversar

com quem passa, chamar para dentro, conhecer mais de perto e se fazer conhecer.

Grande mundo, mundo pequeno” (SAPÉ, 1998, p. 5). Vale lembrar que o

Almanaque foi idealizado para ser utilizado como material de apoio didático na

educação de jovens e adultos e nos processos de autoformação dos educadores

que atuam nessa modalidade de ensino.

Neste sentido, na perspectiva das idealizadoras do projeto, o confronto

entre os diferentes sistemas de conhecimento poderia imprimir mais qualidade e

um melhor desempenho nas intervenções educativas. As práticas desenvolvidas

nesses termos possibilitariam a valorização dos saberes existentes e a construção

de novos saberes/conhecimentos. Nas palavras de Bezzera e Rios (1995, p. 35):

O confronto é apreendido, então, enquanto um movimento de reconhecimento da

diferença que interroga; e que, em decorrência, deve levar todos os atores envolvidos nesse confronto a uma releitura do seu próprio conhecimento/saber e

de seus valores implícitos. Se era evidente que na nossa intervenção residia uma

potencialidade de confronto nas relações entre diferentes e a escolha não era a do

aniquilamento de uma das partes pela superioridade/autoridade da outra, o caminho coerente era o da negociação: negociação de poderes, negociação de

conhecimentos/saberes, negociação dos interesses em jogo (traduzido do

espanhol).

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Segundo Bezerra e Rios (1995), as práticas de educação popular realizadas

no Brasil nas décadas de 1960 a 1980 eram movidas, entre outras razões, pela

realização de um projeto de mudança estrutural inspirado nos ideais socialistas,

com o objetivo de constituir um coletivo formado pela massa mobilizada. Ainda,

conforme as autoras, as implicações dessa postura foram inúmeras e deixaram, na

maioria das vezes, de levar em conta o fato de que a emergência de um “nós” está

subordinada à construção das identidades pessoais. Esse foi o ponto de partida

para a realização da pesquisa Confronto de Sistemas de Conhecimento na

Educação Popular, citada anteriormente, e permaneceu como princípio norteador

das ações realizadas pelo SAPÉ.

As experiências de cultura popular e educação popular entendiam cultura

nos termos acima, enquanto mobilização política e transformação social. Essa

definição de cultura e o conceito de cultura popular como desdobramento dessa

definição são compreendidos nesta pesquisa como categorias primárias e estão

associados às categorias secundárias de análise: saber, poder e negociação. As

categorias secundárias emergiram da análise documental de textos sobre a ação

cultural do SAPÉ, realizada nesta seção da dissertação. A seguir no Capítulo 3

veremos como as categorias se relacionam com a análise de conteúdo do

Almanaque do Aluá n. 1.

No que se refere aos confrontos, a aposta do SAPÉ estava centrada no

reconhecimento das diferenças existentes entre os atores envolvidos no processo

educativo e nas reflexões que esta circunstância provocava. As educadoras Aída

Bezerra e Rute Rios, nesse primeiro momento do SAPÉ – de criação de uma nova

proposta pedagógica para alfabetizar adultos – estavam empenhadas na construção

do “nós” e, para tanto, colocaram em destaque a explicitação das diferenças, o que

resultava na emergência de outra forma de relação entre os participantes.

(BEZERRA e RIOS, 1995).

Construir um ambiente de alfabetização, onde os integrantes do curso se

reconhecessem como pertencendo a um determinado grupo formado por herdeiros de uma mesma cultura, ou seja, de um mesmo conjunto de traços

distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma

sociedade foi um desafio ao qual dedicamos uma enorme atenção, como investimento na construção do nós. Isto porque acreditamos que a

apropriação/valorização do patrimônio cultural, pelos grupos de diferentes

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origens (e aí, estamos incluídas) que compõem nossa sociedade, é condição

essencial para a abertura à cultura do outro e que assim as relações poderiam se

dar em termos de contribuição na convivência entre identidades diferentes; e não em termos dos conflitos de supremacia e/ou submissão. (traduzido do espanhol)

(BEZERRA e RIOS, 1995, p. 25)

Neste sentido, o confronto existente na diversidade de olhares e valores

presentes no grupo se estabeleceu como um exercício de democratização do

poder; a intenção de construir conjuntamente os mecanismos de controle do

processo era o de criar um canal de expressão e um espaço do uso de poder de

negociação e avaliação do experimentado.

A investigação busca compreender a relação entre os elementos

conceituais desenvolvidos na prática educativa do SAPÉ e os aspectos

tipográficos do almanaque. Nessa perspectiva, como os aportes teóricos, de

negociação entre os diversos saberes estão inseridos no Almanaque do Aluá n. 1?

Cabe considerar que, com o surgimento na década de 1960 das diversas

iniciativas pedagógicas voltadas para o aprendizado dos adultos analfabetos e de

pouca instrução, sobretudo os que viviam no campo ou nas periferias de cidades,

despontam também, grupos de aliança entre os agentes, responsáveis pela

concretização dos vários tipos de proposta, ainda hoje decorrentes dessas ações.

Nesse período, três esferas institucionais serviram de inspiração para os agentes

de educação nas perspectivas dominantes e nas formas de mediação junto aos

grupos populares: as universidades e o movimento estudantil; os partidos e as

organizações políticas de programas socialistas; e as igrejas, fundamentalmente a

católica.

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3 Categorias de análise da Educação Popular: um percurso metodológico

Neste capítulo, são apresentadas as categorias de análise utilizadas na

dissertação: cultura, cultura popular, saber, poder e negociação. A

contextualização histórica das categorias aborda as principais tendências de

conceituação da educação popular no período de 1960 a 1980.

Primeiramente, é examinada a forma pela qual os movimentos de cultura

popular e educação popular dos anos de 1960 se apropriaram dos termos cultura e

cultura popular. Em um segundo momento são estudadas as reflexões realizadas

nas décadas de 1970 e 1980 sobre as experiências de educação popular da década

de 1960, as avaliações das atividades das décadas posteriores e as formulações de

questões em torno do saber e do poder surgidas a partir dessas análises. A

definição da categoria negociação feita pelo SAPÉ, explicitada no capítulo

anterior, está intimamente relacionada com essas conceituações de saber e poder.

Portanto, a partir dessa trajetória conceitual das categorias de análise, os

conceitos de cultura e cultura popular (categorias primárias) apresentam-se como

superiores aos conceitos de saber, poder e negociação (categorias secundárias),

indicando um desenvolvimento teórico-reflexivo da pedagogia da educação

popular. Essas categorias emergiram da análise documental e expressam

simbolicamente a visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação

popular e do SAPÉ, pois ressurgem com força e frequência no Almanaque.

Nesta perspectiva, o método de análise de conteúdo do Almanaque do Aluá

n. 1 busca, pela interpretação pictórica e textual do livro, relacionar as categorias

de análise ao conteúdo, mais especificamente às mensagens discursivas que

evocam uma narrativa com elementos comuns, possicionamentos regulares e

recorrência de definições e temas, o que poderia ser chamado de uma visão de

mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular e do SAPÉ.

A revisão apresentada a seguir constitui na leitura de documentos diversos

sobre o período destacado: textos elaborados pelos movimentos de cultura popular

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e educação popular, pelas atividades de assessoramento às iniciativas de educação

popular e artigos produzidos a partir de reflexões sobre as práticas dessas

experências.

Essa análise documental permitiu identificar alguns termos recorrentes

utilizados pelos movimentos de cultura popular e educação popular na década de

1960, quando foram criados. O destaque é o aparecimento da definição adotada

por alguns movimentos do conceito de cultura como sendo antropológico, sem

qualquer referência a autores da antropologia. A hipótese levantada nesta

dissertação é que a definição do conceito de cultura da educação popular tenha se

difundido nos seminários realizados pela matriz católica de pensamento da

educação popular, como veremos a seguir.

A partir da análise dos documentos, é possível corroborar a afirmação de

Brandão (2002) que todos os movimentos de cultura popular e educação popular

partiam praticamente do mesmo conceito de cultura, ou seja, entendiam a cultura

como a transformação dialética do mundo natural, previamente dado, em um

mundo humano e historicamente construído. Brandão (2002, 0. 37) afirma que

“em tudo que os movimentos de cultura popular acrescentam novas ideas

destinadas à orientação de seus projetos está a palavra cultura, que tal como a

palavra história, a tudo amarra e dá sentido”. Nesta perspectiva, o conceito de

cultura é definido de acordo com o que se pretendia com a educação popular:

transformações progressistas e mobilização política por meio da conscientização

das massas.

Nesta dissertação, a análise de conteúdo e a análise documental são

compreendidas como métodos distintos, marcados por diferenças conceituais que

as definem e distinguem. A análise documental é entendida por Laurence Bardin

(2011) como uma operação ou um conjunto de operações com o objetivo de

representar o conteúdo do documento sob uma forma diferente da original, tendo

como finalidade facilitar um estado subsequente que apresente de outro modo a

informação contida nos documentos. A análise documental difere da análise de

conteúdo, pois esta última tem como principal recurso metodológico a inferência.

De modo geral, a documentação trabalha com documentos e seu principal objetivo

é a representação sintetizada da informação, enquanto a análise de conteúdo lida

com mensagens – comunicação e, tem como finalidade interpretar o conteúdo e a

expressão desse conteúdo.

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Segundo Bardin (2011), o desenvolvimento histórico da análise de

conteúdo se apoia no desejo de rigor e na necessidade de ir além da superficial

aparência. A técnica foi usada inicialmente nos anos finais do século XIX para

analisar textos de artigos de jornais e revistas, propagandas, discursos políticos,

hinos, estórias folclóricas e enigmas. Foi nos Estados Unidos, nas quatro

primeiras décadas do século XX, que se desenvolveu como método, mas antes

mesmo das técnicas modernas de analisar comunicações terem sido

desenvolvidas, os conteúdos dos textos já eram abordados de diversas formas. A

hermenêutica, por exemplo, arte de interpretar os textos sagrados ou misteriosos, é

uma prática muito antiga.

Atualmente, a análise de conteúdo tem como objetivo ir além da

compreensão imediata e espontânea, e pressupõe a construção de ligações entre os

pressupostos de análise e os elementos que aparecem no conteúdo. Essa atividade

é essencialmente interpretativa, assumindo cada vez mais sua função primordial

de inferência, deixando de ser considerada fundamentalmente descritiva

(OLIVEIRA et al, 2003).

Vale destacar que o Almanaque do Aluá n. 1 é uma publicação que

apresenta em seu conteúdo uma variedade de textos e imagens. Traduzem os

aspectos político-educativos pertencentes à visão de mundo da equipe do SAPÉ

(1998), em especial, a tentativa de ressignificar o sentido do trabalho humano no

cenário global.

Deste modo, o levantamento quantitativo se justifica, na medida em que a

partir da enumeração das temáticas presentes no livro foi possível traçar um

caminho de estudo tendo como base a técnica de análise temática, englobando a

investigação dos temas e suas possíveis correlações. No capítulo 4 serão definidas

e descritas as etapas da técnica utilizada para a análise do Almanaque.

O Almanaque, entendido no contexto deste estudo como artefato cultural

ou símbolo cultural, apresentando em seu conteúdo uma teia de significados nos

âmbitos político e cultural, traços atribuídos a uma determinada sociedade, tem

como caminho de interpretação e análise a seguinte definição:

O conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico.

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a

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sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas

como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 2008, p. 4)

Segundo Geertz (2008), a cultura não é particular, mas sempre pública.

Assim, é possível entender que os elementos que constituem as teias propostas por

Weber (1963), não têm criadores identificáveis. O conceito de cultura, para o

autor, denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado

em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas

por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu

conhecimento e suas atividades em relaçào à vida. Neste sentido, a ênfase está nos

significados, dos quais os símbolos são as representações legíveis de tais

significados. Articulando o conceito ao tipo de texto cultural do Almanaque do

Aluá n. 1 é possível afirmar que o seu conteúdo contém valores, aspirações,

crenças, tramas, ideias de justiça que servem como um manual para a ação dos

atores sociais.

Ainda sobre o posicionamento de Geertz (2008), quando uma codificação

simbólica qualquer permite aos homens interpretar sua situação no mundo, ela se

torna para os indivíduos uma teia interpretativa – ferramenta para compreender o

real, por meio dos símbolos que produzem e que compõem a cultura do grupo.

O símbolo é “qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação

que serve como vinculo a uma concepção” (GEERTZ, 2008, p. 68). Os símbolos

são ferramentas que funcionam para tornar intelectualmente razoável a

representação de um tipo de vida idealmente adaptado aos aspectos morais,

estéticos e valorativos que a visão de mundo descreve e acomoda tal tipo de vida.

Nas palavras do antropólogo:

[…] o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e

disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do

que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre

ordem. (idem, p. 66-67)

O conceito de visão de mundo é utilizado neste trabalho de pesquisa como

orientador da análise do conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1, pois considero que

auxilia na inferência dos dados da pesquisa assim como na interpretação dos seus

resultados, em particular, acerca dos sentidos que expressam a visão de mundo do

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SAPÉ com a intenção de relacioná-los às formas simbólicas, às proposições

inseridas no processo de construções que fazem referência – à visão de mundo das

práticas em educação popular. Não se trata, porém, de uma única visão de mundo,

mas de uma narrativa que possui elementos comuns, temas recorrentes e

posicionamentos regulares. Os temas que melhor exemplificam a evocação desses

conceitos no Almanaque são: Ciência, Política, Biografia, Trabalho e

Globalização, como veremos no Capítulo 4.

Neste sentido, o percurso de aproximação entre as definições de cultura da

educação popular e o conteúdo do Almanaque parte, inicialmente, do histórico do

período, passa pelo debate sobre os conceitos de cultura e cultura popular

presentes nos movimentos de cultura popular e educação popular da década de

1960, para então, chegar às categorias de análise do conteúdo, discutidas nas

décadas posteriores e assumidos pelo SAPÉ: saber, poder e negociação.

3.1 Notas sobre a conjuntura política no Brasil (1958 a 1964)

Para compreender o contexto histórico da educação popular no Brasil, é

necessário recuperar alguns aspectos do período que vai de 1958 a 1964. Utilizo

como marco inicial desse período a realização do II Congresso Nacional de

Educação de Adultos, viabilizado pelo Ministério da Educação e Cultura em 1958,

no Rio de Janeiro. Nesta ocasião do congresso foram revistas ações, que haviam

durado dez anos, da Campanha Nacional de Educação de Adultos, com o objetivo

de reunir órgãos oficiais de ensino, entidades particulares e educadores em geral,

para debater os problemas e desafios “relacionados com as finalidades, formas,

aspectos sociais, organização, administração, métodos e processos de educação de

adultos, visando ao seu aperfeiçoamento” (REIS, 1958, p. 5-6).

Destaca-se o episódio em uma das plenárias do Congresso, onde Paulo

Freire, como representante da Comissão de Pernambuco, apresentou pela primeira

vez a concepção de alfabetização que ficou popularmente conhecida. A partir da

análise da grave situação dos mocambos20

da cidade de Recife, o educador

afirmou que o maior problema brasileiro não era o analfabetismo, mas a maioria

20 Moradias populares em lugares alagados. São conhecidas também como “palafitas”.

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da população marginalizada. A mera alfabetização não seria solução, fazendo-se

necessária uma ação econômica e social integrada, respaldada por uma ação

educativa participativa (ABE, 1958).

Porém, o governo de Juscelino Kubitscheck (JK) tinha outra orientação

para a educação de adultos, proposta no discurso de abertura do Congresso pelo

próprio presidente da república.

Cabe, assim, à educação dos adolescentes e adultos não somente suprir, na

medida do possível, as deficiências da rede de ensino primário, mas, também, e muito principalmente, dar um preparo intensivo, imediato e prático aos que, ao

iniciarem sua vida ativa, se encontrem desarmados dos instrumentos

fundamentais de produção e de vida, ou seja: ler, escrever, uma profissão ou, pelo

menos, uma iniciação profissional, uma conveniente integração social e política, ao lado de compreensão e prática dos valores espirituais da tradição e da cultura

brasileiras. (KUBITSCHECK, 1958, p. 3)

No entanto, nem as recomendações do referido Congresso, nem a nova

concepção de alfabetização trazida por Paulo Freire, foram consideradas no final

dos anos de 1950. No início dos anos 1960, os governos municipais de Recife e

Natal e instituições da sociedade civil (Igreja Católica, União Nacional dos

Estudantes, entre outras) criaram experiências inovadoras, designadas como

movimentos de cultura popular e educação popular. A cronologia dos movimentos

já foi sistematizada por Fávero (2006, p. 50-51):

- Maio 1960: MCP – Movimento de Cultura Popular, criado inicialmente no

Recife, depois estendido a várias outras cidades do interior de Pernambuco, quando Miguel Arraes era respectivamente prefeito da Capital depois governador

do Estado.

- Fev. 1961: Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, criada em Natal, na gestão de Djalma Maranhão na Prefeitura Municipal e Moacyr de Góes

na Secretaria de Educação.

- Mar. 1961: MEB – Movimento de Educação de Base, criado pela CNBB – Conferência Nacional de Bispos do Brasil, com apoio da Presidência da

República.

- Mar. 1961: CPC – Centro Popular de Cultura, criado por Carlos Estevam

Martins, Oduvaldo Viana Filho e Leon Hirzman, na UNE – União Nacional dos Estudantes e difundido por todo o Brasil pela UNE-Volante, em 1962 e 1963.

- Jan. 1962: Primeira experiência de alfabetização e conscientização de adultos,

feita por Paulo Freire no MPC (Centro Dona Olegarinha); logo depois, no início de sua sistematização no Serviço de Extensão Cultural da então Universidade do

Recife.

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- Jan. 1962: CEPLAR – Campanha de Educação Popular da Paraíba, criada por

profissionais recém-formados, oriundos da JUC – Juventude Universitária

Católica, e por estudantes universitários. - Set. 1962: Campanha de Alfabetização da UNE, a partir de experiência iniciada

no então Estado da Guanabara, em out. 1961; depois do Movimento Popular de

alfabetização. - Jan. 1963: Experiência de Alfabetização de Adultos pelo Sistema Paulo Freire,

em Angicos, no Rio Grande do Norte.

- Jul. 1963: Experiência de Brasília, ponto de partida para a adoção do Sistema

Paulo Freire em vários Estados, no bojo das ações de Alfabetização e Cultura Popular patrocinada pelo Ministério de Educação e Cultura.

- Jan. 1964: Criação do Programa Nacional de Alfabetização, com implantação

iniciada na Baixada Fluminense, pertencente ao Estado do Rio de Janeiro.

A data que marca o término do período em destaque é o ano de 1964,

quando foi instaurado o Regime Militar no Brasil e, por esse motivo, as iniciativas

progressistas de educação popular foram interrompidas, permanecendo apenas

algumas propostas que tinham o apoio da Igreja Católica.

É importante destacar que o desenvolvimentismo, iniciado na década de

1930 apostando no processo de industrialização, se prolonga e ganha forças no

governo de JK, o que permitiu a emergência, como acentua Bezerra (1980, p. 17),

“quase acelerada, de um movimento de expressão popular em cujo interior se

inscreveram as mais diversas iniciativas de cunho educativo”.

As iniciativas educativas do início da década de 1960 assumem esse

projeto nacionalista de desenvolvimento econômico e social, buscando superar as

desigualdades culturais. Nessa tensão entre essas forças sociais, o nacional-

desenvolvimentismo surge como modelo hegemônico que serviria ao combate da

fase a ser ultrapassada pela sociedade. O projeto de nação nesses termos são

debatidos e difundidos pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em

particular pela corrente de pensamento culturalista, que mantém sua interpretação

tendo como base “os conceitos de época e de fase, situando a história do país na

história de sua cultura e ressaltando o papel desta na constituição das naçoes”

(PAIVA, 1979, p. 57).21

A proposta de rápida industrialização feita pelo governo de JK “cinquenta

anos em cinco” (com o reforço da entrada de capitais estrangeiros) e o “Programa

21 Destacam-se no período as publicações do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),

órgão vinculado ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), em especial de Álvaro Vieira Pinto e

Roland Corbisier (PAIVA, 1979).

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de Metas” – previa basicamente geração de riquezas, melhorias na infraestrutura e

abundância de oportunidades – era visto como possibilidade para retirar a nação

do estágio de subdesenvolvimento. Com essa bandeira, o projeto nacional-

desenvolvimentista de JK prometia um futuro melhor. O progresso da nação

reforçava, ainda, os aspectos de liberdade e representatividade da democracia

liberal.

Os anos seguintes foram de crises e conflitos marcados por problemas

políticos e sociais cruciais, gerados pelo esgotamento do modelo de

desenvolvimento econômico adotado. O incremento dessa crise determinou a

transferência das tensões para o plano político. No período de 1961 a 1964,

durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart, a crise tornou-se grave,

tanto econômica quanto politicamente. É importante ressaltar que esses dois

níveis, o econômico e o político, influenciam-se reciprocamente, porém, cada um

adquiria significação especial conforme o contexto em que ocorria (BEZERRA,

1980; BRANDÃO, 2002).

Foi o clima de liberdade democrática desde meados dos anos 1950 que

permitiu a emergência do movimento popular no início dos anos de 1960, dando

vazão ao descontentamento do povo, que começa a se organizar para reivindicar

seus direitos. Como consequência, ocorreram ardorosas discussões e surgiram

muitas publicações sobre consciência nacional, cultura e ideologia. Uma geração

de intelectuais e estudantes22

passou a se dedicar a essas temáticas, afim de propor

um projeto que adotasse uma posição independente do modelo político em jogo

para o desenvolvimento nacional (BEZERRA, 1980).

Para os movimentos de cultura popular e educação popular do período foi

se evidenciando que a fase monopolista do capitalismo internacional tinha uma

racionalidade diferente, a qual “não podia ser regida pelos mesmos mecanismos

políticos, financeiros e administrativos que haviam possibilitado sua implantação

no pais” (BEZERRA, 1980, p. 16), ou seja, era necessária uma mobilização de

resistência ao tipo de “transformação que se anunciava como uma perda maior da

22 Muitos estudantes estavam vinculados à Juventude Universitária Católica (JUC) e à Juventude

Estudantill Católica (JEC) reunidos, a partir de 1962, em torno da Ação Popular. Outra parcela

filiava-se ao marxismo e atuava sob coordenação ou influência do Partido Comunista Brasileiro

(PCB). As duas parcelas reuniam-se na União Nacional dos Estudantes (UNE), nos sindicatos

urbanos dos grandes centros, nos sindicatos rurais e nas ligas camponesas, sobretudo no Nordeste

(FÁVERO, 2006).

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autonomia econômica e política do país onde o acordo de classes que mantinha o

poder não serviria como base do contrato social” (idem, p. 20).

Estava presente nesse projeto uma nova postura nacionalista que previa a

valorização do movimento operário/camponês/estudantil como agentes de uma

política de contra-cultura, que se opunha ao capitalismo, especialmente à entrada

das multinacionais no cenário econômico brasileiro. Para esse projeto ter sucesso,

era preciso que se criasse uma identidade nacional de “luta”, “resistente”,

“mobilizada”, de caráter opositor ao tipo de transformação que se anunciava como

perda maior da autonomia econômica do País, quando o acordo de classes que

mantinha o poder já não mais serviria como base do contrato social (BRANDÃO,

2002).

Os aspectos políticos e educativos apresentados acima na contextualização

do período de 1958 a 1964 definiram o perfil de intervenção educativa adotada,

ficando conhecido anos depois como um novo modo de pensar a educação

popular,23

na qual prevaleciam as atividades de alfabetização, educação de base e

cultura popular. Essas atividades estavam fundamentadas por um discurso teórico

que contribuía para significar idealizações sobre as possibilidades da educação

(BEZERRA, 1980).

No pequeno domínio de teorias e trabalhos que pensamos haver inventado entre

1960 e 1964 e a que anos mais tarde demos o nome de educação popular, surgiu e por algum tempo floresceu um tipo relativamente inovador de prática

pedagógica. Ela recriou para sua identidade e uso um sentido novo para um nome

antigo: cultura popular. Envolveu pessoas como Paulo Freire e seus primeiros

companheiros nordestinos de trabalho e difundiu-se entre diferentes categorias de sujeitos sociais: o estudantado secundarista e universitário, intelectuais, militantes

cristãos, artistas eruditos e populares, dirigentes de agremiações e de partidos

políticos. Criou e multiplicou grupos, movimentos e outras agências. (BRANDÃO, 2002, p. 31)

Essas experiências de cultura popular e educação popular foram, cada uma

a seu modo, influenciadas pelo mesmo discurso teórico predominante no período,

especialmente, a conceituação do termo cultura. Derivam desse conceito de

cultura os conceitos de conscientização e cultura popular, este último definido de

forma distinta por duas matrizes: a católica e a marxista.

23 Cada forma de intervenção educativa trazia consigo uma história, uma experiência acumulada,

uma elaboração própria.

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Vale destacar a tentativa de união e integração das diversas experiências de

educação popular reunidas no I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura

Popular, ocorrido em Recife, capital do estado de Pernambuco, no ano de 1963. O

objetivo da iniciativa era o de analisar as experiências de educação popular e

cultura popular, no sentido de poder compartilhar as dificuldades e as perspectivas

de trabalho, que tinham como meta comum a aprendizagem e o desenvolvimento

da consciência crítica do povo (SOARES e FÁVERO, 2009).

Na próxima seção são apresentadas as aproximações feitas por Paiva

(1979) entre tendências filosóficas e o conceito de cultura assumido por Paulo

Freire, cuja pedagogia influenciou tanto o grupo católico quanto o marxista que

assumiram a coordenação do Programa Nacional de Alfabetização (PNA) no

início de 1964.

A hipótese desta pesquisa é que os atributos que definem cultura para

Paulo Freire são os mesmos do SAPÉ e, por conseguinte, do conteúdo presente no

Almanaque do Aluá n.1, pois as apropriações simbólicas de ambos aproximam-se

esteticamente à matriz de pensamento católica da educação popular, conforme

verificado na análise dos dados, que será apresentada no próximo capítulo.

3.2 Antecedentes conceituais: existencialismo cristão e culturalismo

De acordo com Paiva (1979), as ideias pedagógicas de Paulo Freire

tiveram influência na corrente filosófica do existencialismo, segundo os princípios

do cristianismo que regem a relação com o próximo.

Ainda conforme a autora, estaria presente na pedagogia de Freire uma

síntese dos debates entre os grupos cristãos e os ideólogos do Instituto Superior de

Estudos Brasileiros (ISEB)24

, ao longo dos anos 1950, definida como “existencial-

culturalista”25

. Os debates dessas ideias ganharam destaque e oportunidade de

24 O aspecto filosófico da pedagogia de Paulo Freire é influenciado por Vieira Pinto e as reflexões

sobre cultura sofreram influência de Ronald Corbisier ao longo dos anos de 1950. Esses

pensadores procuraram interpretar a cultura e a vida brasileira (PAIVA, 1979). 25 Vanilda Paiva (idem) utiliza o termo criado por Hélio Jaguaribe para designar a confluência

entre o existencialismo e com o que o autor denomina de culturalismo. No Brasil, o culturalismo

teria sido iniciado nos anos de 1940 por Miguel Reale e a síntese entre existencialismo e

culturalismo ganhou destaque nos ensaios de Vicente Ferreira Pinto. Esses pensadores formam um

grupo denominado de isebianos históricos.

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difusão após a criação, pela reitoria da Universidade de São Paulo (USP), em

1949, do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), responsável pela Revista

Brasileira de Filosofia e a organização de Congressos Nacionais de Filosofia.

A preocupação que prevalecia nos anos de 1950 está relacionada à

superação do subdesenvolvimento pela sociedade e à afirmação das nações do

terceiro mundo. Tal como ocorria com os isebianos históricos26

e com os

intelectuais católicos do período, o existencialismo, segundo Paiva (idem),

aparece nos escritos de Paulo Freire em íntima conexão com o historicismo e o

culturalismo, surgido igualmente ao lado de uma influência mais ou menos difusa

da heglianismo, referido diretamente ao problema da consciência.

Em Educação e realidade brasileira27

, Paulo Freire (1959) buscou

reconhecer a necessidade de pensar a educação dentro da realidade do país

naquele momento, buscando diretrizes e métodos que respondessem à

problemática nacional. Seguindo as pegadas dos isebianos históricos, quando

buscaram explicar historicamente como surgiram as características tradicionais da

sociedade brasileira, bem como a mudança que obrigava à reflexão sobre o

presente, o educador buscou refletir sobre a ausência de participação política do

brasileiro pela tradição política brasileira ao longo de sua história. Conclui que o

paternalismo e o autoritarismo, correspondentes à estrutura social e política,

haviam conduzido o brasileiro a um silenciamento e ao desinteresse pela

participação política (PAIVA, 1979).

Da mesma maneira que os teóricos do nacionalismo-desenvolvimentista,

Freire considerava que, em consequência da industrialização e da democratização,

o Brasil estava se tornando um “ser para si” – o “ser nacional”, que na década de

1950, amadurecia e se tornava “autêntico”, ou seja, consciente. Nas palavras de

Freire (1959, p. 49): “o nacionalismo verdadeiro é exatamente a corporificação da

autenticidade nacional e está intimamente ligado à consciência da realidade que se

assume do pais”.

A conexão com a corrente de pensamento católico está, segundo Paiva

(1979), no tratamento da relação pedagógica e na reflexão sobre democracia e

26 São chamados “isebianos historicos”, os integrantes que estavam bo ISEB desde sua criação. 27 Tese de concurso de Paulo Reglus Neves Freire, para a cadeira de História e Filosofia da

Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco, foi publicada por ele, no Recife, em 1959 e

publicada novamente em 2001 por Cortez Editora e Instituto Paulo Freire.

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sociedades de massas. Combater a massificação significava conduzir, por meio de

um processo eminentemente educativo, os indivíduos pelos caminhos de

evidenciação de suas particularidades, da humanização, fazendo com que cada um

pudesse reconhecer o seu próprio valor como pessoa.

O papel social atribuído à educação nesse cenário expressa uma

preocupação com a democratização da cultura dentro do quadro da

democratização fundamental. Assim sendo, foram experimentados métodos,

técnicas e processos de comunicação com o objetivo de superar procedimentos

que viam a atuação educativa como fórmulas doadoras, impositivas. Tomava-se

por base a convicção de que somente nas bases populares e com elas que

poderiam realizar algo relevante e “autêntico”.

No contexto desta pesquisa, essas atribuições que definem cultura para

Paulo Freire aproximam-se das apropriações do conceito pelas experiências da

cultura popular e educação popular, em especial, as fomentadas pela matriz

católica, destacando as reflexões feitas pelo Pe. Henrique de Lima Vaz28

.

A juventude católica que se ligou a Paulo Freire no início dos anos de

1960 via igualmente a questão da massificação como central e encontra no

método elaborado por Freire e sua equipe um instrumento a favor do

personalismo29

contra a massificação. A pedagogia de Freire, profundamente

ligada ao existencialismo cristão, não pode ser desvinculada à sua interpretação da

realidade e a suas ideias sócio-políticos, elaboradas a partir da contribuição dos

intelectuais do ISEB (PAIVA, 1979).

Retomando a hipótese levantada na introdução deste capítulo de que Paulo

Freire, como integrante de uma geração ligada à matriz de pensamento católica,

muito possivelmente foi atingindo pelas ideias difundidas pelos seminários de Pe.

Vaz sobre o tema da cultura como um conceito da antropologia, no entanto, de

cunho existencialista, nos termos filosóficos e históricos. Uma das temáticas

centrais desses debates é que a “técnica como um instrumento de dominação da

natureza podia ser um fator de ‘domesticação’ do homem, mas poderia também

representar um passo no sentido da humanização” (PAIVA, 1979, p. 96). A

28 Foi sacerdote jesuíta, filósofo e humanista. 29 Destaca-se a perspectiva teórica difundida por Emmanuel Mounier a qual apresentava métodos

de ação para operar as transformações no mundo em um contexto político e social marcado pelo

pessimismo (PAIVA, 1979).

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técnica, nessa abordagem, possui um sentido humano, devendo ser colocada a

serviço da comunicação entre os homens. Sendo esta a própria essência da

humanização e do papel atribuído à educação: nesse contexto, é essencialmente a

comunicação entre as pessoas – diálogo.

A relação dialógica se tornou um princípio almejado na prática educativa

presente nas atividades de educação popular e, para alcançá-la, os movimentos de

cultura popular e educação popular desenvolveram formas particulares de

intervenção pedagógica. Na próxima seção são destacadas as categorias que

emergem do debate sobre o conceito de cultura criado no campo da educação

popular.

3.3 Cultura e cultura popular

Os movimentos de cultura popular e educação popular encontraram na

política populista recursos para obter apoio e uma forma de colocar em ação uma

pedagogia transformadora a partir da conscientização voltada para a população

urbana e rural. As ações pedagógicas fundamentavam-se na consciência histórica,

conceito amplamante debatido pela geração de educadores durante a década de

1960. Por esta conceituação entende-se que a consciência do homem transcende o

mundo e o define como objeto que abrange a compreensão da realidade –

conscientização – e, por conseguinte, motiva a ação. A consciência histórica é,

pois, simultaneamente, reflexão e ação das necessidades num determinado

tempo/espaço, que permitam transformar a realidade.

Este princípio, educar e conscientizar, foi norteador das experiências do

período; indicava se eram “autênticas” ou “inautênticas” – se atentia ou não aos

interesses das camadas populares. Como mostra a citação abaixo da resolução da

Comissão A, elaborada no I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura

Popular:

Uma das dificuldades apresentadas pelos delegados é a atuação de grupos comprometidos com a estrutura vigente, a quem não interessa a conscientização

do povo, uma vez que isso implicaria na queda de seus privilégios. Desta maneira

organizam-se muitas vezes com o objetivo de ou combater diretamente nosso trabalho ou criar grupos concorrentes.

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Certas atitudes de elementos do próprio povo são muitas vezes identificadas com

atitudes burguesas, são na realidade distorções resultantes de imposição de uma

cultura alienada e de valores totalmente estranhos às aspirações reais do povo, imposição esta que é feita através de toda uma rede de divulgação que serve aos

interesses do imperialismo, do latifúndio e demais forças reacionárias.

Dentro desta perpectiva é necessário que se desperte no povo a consciência crítica que permita superar estas distorções culturais e criar formas autênticas de

expressão. (SOARES e FÁVERO, 2009, p. 285-286)

Estava presente nesta concepção política da educação popular, baseada na

disputa da hegemonia política no Brasil, o interesse em ampliar o público eleitor

alfabetizado. No entanto, havia uma diferença significativa de outras campanhas:

para os movimentos de cultura popular e educação popular o voto era

explicitamente um meio de conquista, um instrumento de luta na organização das

classes populares.

A cultura popular estava inserida nesse contexto: a cultura vai ser

repensada na passagem de uma categoria criada pela ciência, sobretudo pela

antropologia, para uma categoria a ser recriada pela prática política radical dos

movimentos de cultura popular e educação popular.

Aparecem no Brasil, ao mesmo tempo, a crescente inserção de agências de

mediação do tipo “governo e povo” e outros tipos de programas de ação direta

junto às camadas populares, que segundo Brandão (2002, p. 36):

[...] denunciam a intenção de controle político dominante que se oculta sob as vestes das propostas “oficiais” de trabalho social com o povo e anunciam uma

alternativa popular de trabalho político através da ação social. Subordinam a ideia

de “desenvolvimento” à de “historia” e pensam a história como o lugar cujo horizonte é a libertação. Substituem “comunidade” por “classe”, “organização”

por “mobilização”, “participação” subalterna no “desenvolvimento” por “direção

popular” do “processo da historia”, “mudanças de atitudes” por

“conscientização”, “educação fundamental” por “educação libertadora”, “desenvolvimento de comunidade” por “educação popular”. Alteram a semântica

da prática.

De fato, a cultura não estava separada do caráter sociológico determinante

que pretendia servir de base a um projeto revolucionário de cultura popular. Ainda

nas palavras de Brandão (2002, p. 39):

Contra teorias funcionalistas que com boa fé ou má consciência separam a cultura

do processo da história ou então estabelecem entre as duas uma relação linear, os

documentos dos anos 60 querem descobrir a raiz do óbvio: a cultura é histórica,

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no sentido de que a atividade humana que cria a história é aquele que faz cultura.

Assim, a própria história humana não é outra coisa senão a trajetória do processo

por meio do qual o trabalho social do homem opera a dialética da transformação da natureza em cultura. Opera a passagem de um mundo dado ao homem para um

mundo construído pelo homem. Portanto, a oposição do homem no mundo não é

de imersão, mas de oposição criadora.

Neste sentido, para os movimentos de cultura popular e educação popular,

a prática educativa devia promover, a partir da alfabetização, a integração social

do homem na cultura letrada (educação) e a compreensão da realidade

(conscientização). Educar e conscientizar eram partes integrantes da ação

pedagógica, ou seja, consciência é uma força permanente de reflexão sobre a

realidade que se apresenta pelo saber que foi conquistado e que está

constantemente sendo adquirido; educação será, nesse contexto, necessariamente

diálogo.

A organização didática de uma ação educativa deve então conscientizar,

motivar atitudes e proporcionar meios de ação. Esses elementos da prática

educativa dos movimentos sinalizam um modo próprio de atuação – visão de

mundo da educação popular. Neste sentido, cultura é compreendida pelos

movimentos enquanto modelo simbólico de resistência à dominação e de

enfrentamento das políticas conservadoras.

Duas matrizes de pensamento abordaram os conceitos de cultura e

formaram os agentes que atuavam nos movimentos de cultura popular e educação

popular. Do lado do grupo das universidades, inspirado pelo marxismo, está o

Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do

lado do grupo católico, as tentativas de definição tiveram origem nos seminários

realizados pelo padre jesuíta Henrique de Lima Vaz, para os militantes da

Juventude Universitária Católica (JUC) e assumidos pela Ação Popular (AP),

criada em 1962, após a crise da JUC com a hierarquia eclesiástica.

Essas duas matrizes conceituaram a cultura popular de forma distinta e

influenciaram as experiências de cultura popular e educação popular, formando

híbridos a partir dessas conceituações e em alguns casos tenderam para uma ou

outra vertente. No entanto, partiram da mesma apropriação do conceito de cultura

como sendo ao mesmo tempo a relação dialética entre o homem e a natureza,

transformação progresista da realidade social e mobilização política como meio da

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ação político-educativa e cultura popular definida enquanto o modo de vida do

povo, seus costumes, saberes, crenças etc.

A matriz de pensamento católica dedicou-se à reflexão dos aspectos da

cultura, enquanto a matriz marxista definiu uma aplicação do princípio da cultura.

Do lado do grupo católico, foi concebida uma definição de cultura subordinando-a

às ideias de: trabalho, modo humano de ação consciente sobre o mundo; história,

campo de realização e produto do trabalho do homem; e dialética, a qualidade

constitutiva das relações entre o homem e a natureza e a dos homens entre si. A

cultura popular era entendida como obra da consciência da realidade social

brasileira e, portanto, um produto de classes sociais antagônicas (FAVERO,

1983).

Do lado do grupo marxista, foi definido o emprego de um princípio da

cultura inserido em um projeto de superação da desigualdade social e

humanização da cultura, a cultura de “todos”, no qual a cultura popular é o

produto da ruptura política da dominação (idem).

No contexto desta dissertação, interessa compreender como esses

conceitos foram definidos pelo grupo católico, já que são as apropriações que

mais se aproximam da forma como o conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1,

pensado para ser um material de apoio didático. Nesta perspectiva, a corrente

católica de pensamento está inserida no contexto que evidencia a visão de mundo

dos movimentos de cultura popular e educação popular, na qual expressa e se

aproxima da visão de mundo do SAPÉ.

Pe. Vaz (1968) utiliza-se das temáticas sobre consciência e ideologia,

relacionadas ao tema cultura, para formular sua reflexão: considera a cultura

enquanto forma concreta da consciência histórica em uma determinada época, não

somente durante a criação dos homens nesse tempo-espaço, mas também

enquanto compreendida, vivida e compartilhada por esses mesmos homens.

Compreende que pela consciência histórica o homem reconhece o mundo

humano; pela cultura o constrói, afirmando-se nele como homem. Do ponto de

vista filosófico-antropológico, a natureza exprime o que é dado ao homem; a

cultura, o que é por ele feito. O mundo da cultura é, assim, o mundo propriamente

humano.

Ainda buscando explicar seu pensamento, Pe. Vaz (1968) considera que a

consciência contém dois planos que se complementam: o primeiro é o da intenção,

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que, voltado para alguma coisa, quando tem sempre algo a enfrentar, está sempre

em luta; e o outro é o da expressão, que se constitui na recriação, é a forma nova

que o homem dá ao objeto do qual ele tem consciência para comunicar aos outros

homens. Em correspondência, a cultura tem dois aspectos: o subjetivo, que

exprime a cultura como desenvolvimento do sujeito que edifica o mundo cultural,

seja o indivíduo, sejam grupos sociais mais amplos, seja a humanidade, que tende

a constituir um sujeito cultural universal; e o objetivo, que exprime a cultura como

processo de desenvolvimento do mundo a ser transformado pelo homem, ou seja,

as obras culturais, que são formas de cultura.

Do mesmo modo que a consciência é sempre intenção/expressão, também

a cultura conjuga dialeticamente dois momentos análogos, em um processo que é

o próprio processo histórico: realização do homem e do mundo humano;

personalização e socialização. O aspecto subjetivo, por sua vez, desdobrar-se-ia

em duas dimensões, cuja origem é a mesma e única, ou seja, o ato de

transformação dialética do mundo: a dimensão de consciência que engloba ideias,

valores, projetos; e a dimensão do agir, que compreende os instrumentos e as

técnicas de transformação do mundo.

Com base nesses elementos, Pe. Vaz (1963) propõe uma definição de

cultura que passa a ser reproduzida e utilizada largamente pela AP e movimentos

por ela influenciados, particularmente pelo MEB, da qual se desdobram suas

propriedades:

Cultura é o processo histórico (e, portanto, de natureza dialética) pelo qual o homem, em relação ativa (conhecimento e ação) com o mundo e com os outros

homens, transforma a natureza e se transforma a si mesmo, constituindo um

mundo qualitativamente novo de significações, valores e obras humanas, e realizando-se como homem neste mundo humano. (AÇÃO POPULAR, 1963. In:

FÁVERO, 1983, p. 16)

A tarefa de criação cultural teria, então, ainda segundo Pe. Vaz (1963),

duas direções: transformação da natureza e comunicação com os outros homens.

A primeira direção sintetiza o aspecto da cultura como luta; é tarefa concreta em

relação à natureza e ao trabalho propriamente dito. A segunda identifica-se com

essa afirmação: toda obra de cultura é uma palavra dirigida ao outro.

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Pe. Vaz (1963) ressalta que a polarização ideológica, característica da

cultura contemporânea, manifesta-se particularmente na oposição entre cultura

popular e cultura de elite. Esta última, entendida como a cultura aristocrática

ideologizada, embora se declare destinada a todos, serve aos interesses de uma

classe, afirmando como universais valores que são apenas dessa classe. Por sua

vez, a significação mais profunda da cultura popular não é a descoberta de valores

culturais “autênticos” no meio do povo, nem a valorização do folclore; é

precisamente entrar em tensão ideológica contra a cultura de uma classe. Só assim

se explica o aparecimento de movimentos de cultura popular no mundo todo, com

diferentes expressões, mas que apenas na esfera política encontram seu sentido

último.

3.4 Saber, poder e negociação

No período de 1970 a 1990, ocorreram transformações sócioeconômicas

no mundo, cujos desdobramentos ainda estão em curso. Em especial, para o

contexto desta dissertação, são destacados os impactos dessas mudanças nas

iniciativas pedagógicas no âmbito da educação popular ocorridas nas décadas de

1970 e 1980, particularmente as reflexões e avaliações das experiências do

período, realizadas pelo Nova – Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em

Educação. Nesta investigação, foi feita uma aproximação simbólica entre essas

reflexões e a forma pela qual o SAPÉ formulou o entendimento sobre as questões

que envolvem as relações de poder estabelecidas na prática educativa, presentes

no Almanaque do Aluá n. 1 sob a forma dinâmica de confronto e negociação entre

os sistemas de saber dominante e popular.

O principal impacto dessas mudanças no domínio da educação popular é a

inserção de instituições internacionais como financiadoras de atividades

pedagógicas apoiadas pelas Igrejas católica e protestantes. Esse é o momento forte

da abertura da Igreja católica à população mais pobre, com as pastorais (dos

índios, dos negros, dos operários, da juventude...) e da rica experiência das

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), alimentadas pela Teologia da Libertação

(KADT, 2007).

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Esse momento da educação popular foi marcado pela definição de novas

formas de trabalho, com os movimentos sociais em geral e com os movimentos

sindicais e políticos, em particular a reorganização das bases sindicais, criação da

Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT), e

por uma abertura das agências e centros para com outros movimentos e

instituições da América Latina, em uma fértil parceria de estudos e troca de

experiências. Foi marcada também por um esforço de reflexão bastante

importante. Como nos diz Aída Bezerra e Rute Rios (1995, p. 11):

O período da ditadura militar, assim como ocorreu em vários países da América Latina, empurrou o que subsistiu dessa época – enquanto uma qualidade nova da

intervenção educativa junto às camadas populares – para a clandestinidade,

semiclandestinidade e para o isolamento. Foi uma fase que se caracterizou pela resistência às forças de repressão e pelo estudo do marxismo como apoio teórico

da ação desenvolvida (traduzido do espanhol).

Pretendia-se com esses estudos refletir sobre a prática de uma atividade. A

reflexão é considerada “condição para uma aproximação sempre maior entre o que

compete à educação popular e o que ela está fazendo de fato. A função da reflexão

é favorecer uma prática de nova qualidade” (COSTA, 1977, p. 4). O Nova

contribuiu para a sistematização desses debates e configurou-se como referência

importante da educação popular.

O Nova foi criado em 1973, período de forte repressão no Brasil e sua

preocupação fundamental consistiu em aliar assessoria a equipes locais que

realizam trabalhos educativos a uma atividade de estudo e reflexão vinculada e a

serviço deste tipo de trabalho. Sua equipe era formada por seis pessoas, dentre

elas a educadora Aída Bezerra, uma das fundadoras do SAPÉ, conforme

destacado anteriormente. Esses estudos foram editados inicalmente pelo Centro

Evangélico de Informação (CEI), depois Centro Ecumênico de Documentação e

Informação (CEDI)30

, e posteriormente pela Editora Vozes, na série Cadernos de

Educação Popular. São referenciais importantes para o entendimento dos

30 O CEDI nasceu da experiência do CEI, criado em 1964/1965 por militantes ligados à

Confederação Evangélica do Brasil, afastados de suas igrejas após o golpe civil-militar de 1964.

Em 1968, com a incorporação de militantes católicos, o CEI passou a denominar-se Centro

Ecumênico de Informação e, em 1974, institucionalizou-se como CEDI. A sede inicial foi no Rio

de Janeiro, mas a ampliação de suas atividades deu origem a uma subsede em São Paulo

(FÁVERO e MOTTA, 2015).

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discursos atribuídos a uma forma peculiar de atuação educativa e, sobretudo, para

uma aproximação simbólica entre os conceitos desenvolvidos na prática de

assessoria do Nova e a ação cultural do SAPÉ.

De acordo com Costa (1977), o empenho em aprofundar o pensamento

sobre a educação popular enquanto prática presente na dinâmica social, nela

atuando e por ela sendo condicionada, permitiu avançar nas reflexões sobre essa

temática. Assim sendo, os aspectos que definem uma atividade como educação

popular são: realiza-se com as camadas populares e tem como objetivo contribuir

para a concretização dos interesses sociais destas camadas. Neste sentido, a

atribuição da educação popular no interior do processo social tem como principal

referência os interesses das camadas populares, no que diz respeito à apropriação,

pelas camadas populares, de um saber-instrumento.

Saber-instrumento entendido como meio que serve às camadas populares para que fortaleçam a sua participação na formulação e encaminhamento de propostas

para a modificação de suas condições sociais.

Apropriar-se no sentido de participar da elaboração do saber, incorporando-o à prática como instrumento de compreensão e ação frente aos acontecimentos e

situações sociais. (COSTA, 1977, p. 5)

No contexto da educação popular, não se trata do saber socialmente

estabelecido, dos conhecimentos, valores e atitudes convencionados que

sustentam a hegemonia política e o prestígio social. Trata-se do saber enquanto

conhecimento elaborado a partir da vivência e reflexão dos acontecimentos

sociais, aproximando-se da concepção de cultura dos movimentos de cultura

popular e educação popular equanto transformação social e mobilização política.

A participação das camadas populares na produção de um saber-

instrumento é o aspecto fundamental da educação popular. Para Costa (1977) esse

tipo de educação não se ocupa em distribuir às camadas populares um saber já

existente, um saber que corresponde a experiências e necessidades sociais de

outras camadas da sociedade e que, portanto, dificilmente poderá servir aos

grupos populares como instrumento de compreensão e ação frente à problemática

social. A educação popular ocupa-se em possibilitar às camadas populares a

apropriação de um saber-instrumento elaborado com a sua própria participação.

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Neste sentido, na prática educativa, o saber-instrumento é elaborado a

partir de uma troca entre os grupos populares e os agentes: nasce de dentro do

saber anterior já apropriado por cada um (grupos populares e agentes); ou seja, do

saber que representa um novo saber e corresponde à experiência social que já

viveram e refletiram. Na medida em que vai sendo elaborado com a participação

de ambos, não representa mais apenas o saber dos agentes nem apenas o saber dos

grupos populares; mas o resultado de uma troca entre os saberes de ambos

(COSTA, 1977; GARCIA, 1980).

Assim sendo, esse saber é instrumento de compreensão e ação tanto para

as camadas populares como para os agentes. Ou seja, é um saber que serve a cada

um como instrumento que ajuda a aprofundar a compreensão da realidade social

existente e a encaminhar uma atuação que se identifique sempre mais com os

interesses das camadas populares.

Em confronto com a colocação acima, marcando a diferença entre o ponto

de vista do Nova em relação a outras atividades desenvolvidas na educação

popular, está a perspectiva de que, para ajudar os grupos participantes a

desenvolver uma atuação frente a seus problemas sociais, os agentes devem

transmitir a esses grupos uma explicação já sistematizada a respeito desses

problemas e de sua origem. No fundo, ainda que inadvertidamente, admite o

Nova, esta atitude guarda uma tendência assistencialista – o agente justifica a sua

proposta pelo não acesso dos grupos populares a um conhecimento mais preciso

das coisas –, mas repete os mesmos mecanismos de imposição do saber na qual o

povo absorve mas não elabora.

Outra posição, segundo Costa (1977), reconhece também que existem

elementos superficiais e distorcidos no modo como os grupos populares explicam

e se comportam com relação à realidade social. Reconhece igualmente que esses

grupos geralmente carecem de elementos teóricos já sistematizados que lhes

sirvam de instrumento para a apreensão do processo social e de suas

possibilidades de atuação nesse processo. A autora admite que, no campo da

educação popular é antiga a preocupação com uma pedagogia pela qual os agentes

não imponham seu saber aos grupos populares. Neste sentido, considerando a

ambivalência inerente à prática de atividades na educação popular:

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[…] o povo retraduz as interpretações correntes a partir de sua experiência. Ou seja, a "experiência de vida" dos grupos populares vai produzindo um saber

popular – uma sabedoria sobre a realidade – que pouco se conhece mas que se

distancia razoavelmente do saber dos grupos sociais que não vivem a sua experiência; este saber popular, como já foi dito, contém muita ambiguidade.

Incorpora elementos que correspondem à experiência e interesses de outros

grupos sociais, e que são divulgados por toda a sociedade; o saber do agente não

é o saber popular – uma vez que em geral o agente não pertence às camadas populares; isto é, uma vez que sua experiência social é diferente da experiência

dos grupos com quem trabalha; o saber do agente também é distorcido, também

contém ambiguidades; seus conhecimentos, atitudes, valores também incorporam elementos que se impõem e difundem a todos os grupos sociais. (COSTA, 1977,

p. 17)

Os estudos e reflexões sobre a prática de assessoria do Nova junto a

atividades pedagógicas desenvolvidas na educação popular, concluem que os

grupos populares carecem de oportunidade para explicitar o seu saber, expressar a

sua experiência social, discuti-la, confrontá-la com a experiência de outros grupos

(semelhantes ou diferentes), esclarecê-la com a ajuda de elementos sistematizados

pelas ciências sociais.

Em depoimento, a educadora Aída Bezerra relata que, a partir dessas

reflexões no trabalho de assessoria no Nova, percebeu a necessidade de

aprofundar a análise que envolvia uma prática de alfabetização de adultos, tendo

decidido e desvincular-se do Nova para fundar o SAPÉ e dedicar-se à pesquisa

Confronto de Sistemas de Conhecimento na Educação Popular. A pesquisa,

conforme foi mostrado anteriormente, apresenta-se como uma proposta de troca

entre o saber popular e o saber da equipe; troca na qual os elementos mais

sistematizados que eles podem oferecer se transformem em instrumentos a serem

utilizados por ambos – grupos populares e agentes – na análise da realidade e das

possibilidades de modificá-la. Ou seja, transformarem-se em instrumentos de um

novo saber e de uma nova prática. Saber novo e, ao mesmo tempo, provisório,

uma vez que o saber se modifica e se aprofunda na medida em que se diversifica e

se aprofunda a prática e a vivência dos indivíduos e grupos (BEZERRA e RIOS,

1995).

Nesse momento, torna-se importante recuperar que a edição número zero

do Almanaque do Aluá foi um dos produtos dessa pesquisa, elaborado com o

desejo de avaliar o estudo e retornar aos educandos as reflexões acerca do

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trabalho. Dessa forma, surge a ideia de publicar os resultados em um tipo de livro

que todos pudessem ler e que rompesse com a forma acadêmica de escrever

relatórios e, mais ainda, que seu conteúdo consistisse nas temáticas emergidas da

ação educativa, ocorriam as trocas entre o saber popular e o saber da equipe.

O Almanaque do Aluá n. 1, objeto de estudo desta dissertação, segue o

mesmo caminho de priorizar as trocas entre os saberes, em especial, a negociação

entre os saberes/poderes. Para tal, enfatiza o caráter identitário da educação

popular, seus sinais de resistência e fortalecimento das camadas populares.

Essa concepção de educação popular se desenvolve como prioridade da

ação educativa, amplamente discutita e difundida nas décadas de 1970 a 1990. No

entanto, há outra vertente teórica que definem o que seria na prática e as

atribuições da educação popular, com objetivo de redefini-la teoricamente. A

seguir veremos essas vertentes, tendo como finalidade compreender as diferentes

perspectivas e seus enfoques de análise.

De um lado está a perspectiva de análise da educação popular que se

baseia nas categorias de Antonio Gramsci (1978), as quais permitiriam às classes

subalternas elaborar e divulgar uma concepção de mundo organicamente

vinculada aos seus intereses e não como um instrumento ideológico empregado

pelas classes dominantes para a conquista ou manutenção de sua hegemonia. Uma

abordagem gramsciana da educação popular indica uma linha de reflexão e de

análise que é capaz de centrar sua atenção na educação enquanto processo que se

constrói a partir do embate ideológico-político travado entre essas classes,

permitindo, dessa forma, repensar a educação popular à luz dos intereses próprios

das classes subalternas (MANFREDI, 1980).

Em oposição está o enfoque da educação popular como sendo um

empreendimento do Estado brasileiro, no ámbito das suas várias práticas adotadas

(econômicas, sociais e político-jurídicas) para difundir a ideologia dominante e

garantir a reprodução das relações sociais de produção com objetivo de conduzir a

sociedade para o “desenvolvimento” (idem).

De acordo com Manfredi (1980), a dicotomização entre essas duas

perspectivas de análise pode ser justificada por uma série de razões, quando se

trata de pesquisas científicas em determinados períodos da história da educação

popular. No entanto, para a autora, para se ter uma visão histórico-dialética da

função que a educação popular pode desempenhar no processo de transformação

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social, “seria necessário partir de um estudo que privilegie a otica das classes

subalternas, para, em um momento posterior, reintegrar ambas as perspectivas: a

da classe dominante versus a da classe dominada” (idem, p. 48).

Seguindo o caminho traçado a partir da perspectiva acima, está a

atribuição da educação popular em atender à democratização da cultura, que

igualmente entende por educação popular aquela que é produzida pelas classes

populares/ subalternas ou para as classes populares/ subalternas, em função dos

seus interesses de classe. Conforme Wanderley (1980), o processo de educação

popular democratizante deve considerar dois contextos de atuação: um referido às

grandes massas da nação e outro referido a uma educação de pequenos grupos de

lideranças (sindicatos, partidos, associação de moradores, centros eclesiais etc.).

Ambos os contextos em termos das mediações educativas de instituições da

sociedade política ou da sociedade civil, nos termos de Gramsci (1978).

Por sua vez, as reflexões em torno da questão do saber e da educação

popular realizadas por Garcia (1980; 1988) aproximam-se simbolicamente da

visão de mundo da atuação pedagógica do SAPÉ, conforme apresentado no ítem

2.4 do Capítulo 2, uma vez que refletir sobre o saber, nesta perspectiva, é buscar

atingir a essência da própria prática educativa (relação entre o saber popular e o

saber do agente). Neste sentido, o núcleo da questão é necessariamente político,

pois trata da questão do poder presente em dois níveis que se entrelaçam: “no

interior dela mesma, na relação agente/ grupos populares e na perspecitiva de um

projeto político que diga respeito a toda a sociedade” (GARCIA, 1980, p. 90).

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4 Interpretação pictórica e textual do Almanaque do Aluá n. 1

O Almanaque do Aluá n. 1 possui em sua trama uma variedade de gêneros

de textos e imagens que traduzem os conteúdos que emergem de diferentes formas

de conhecimento. Pensado para ser utilizado como material de apoio didático em

classes de educação de jovens e adultos e de auto formação de educadores que

atuam nesse segmento, o Almanaque, enquanto um tipo específico de publicação

(difundido entre diferentes grupos sociais) é a tentativa de apresentar em seu

conteúdo esses saberes/ poderes de maneira horizontal, sem prevalecer um saber

sobre o outro, num modelo dinâmico de negociação.

Assim sendo, saber, poder e negociação são as categorias secundárias de

análise dos dados nesta pesquisa, pois esses conceitos surgem da ação pedagógica

vivenciada pelo SAPÉ, apresentadas nas seções 2.4 do Capítulo 2 e 3.4 do

Capítulo 3, e são resultantes das reflexões sobre as experiências de cultura popular

e educação popular na década de 1960. Nesse período as práticas educativas

dessas experiências foram idealizadas a partir de conceituações de cultura e

cultura popular, utilizadas nesta pesquisa como categorias primárias. As

categorias de análise, portanto, foram identificadas pela análise documental e são

definidas como portadoras de uma narrativa com posicionamentos regulares,

elementos comuns e recorrentes no conteúdo do Almanaque, como por exemplo,

os temas mais recorrentes: Ciência, Política, Biografia, Trabalho e Globalização.

As áreas temáticas e questões de investigação surgem a partir da

afirmativa que no Almanaque os saberes/ poderes estão em negociação. Neste

sentido, os objetivos da análise de conteúdo são:

identificar os temas e, para tanto, utilizo a técnica de análise temática –

tratamento quantitativo (elaboração de uma regra de contagem dos temas)

e qualitativo (os temas aplicados a discursos diretos) e;

relacionar os temas e os conteúdos dos textos e imagens às categorias

primárias e secundárias, buscando apresentar os sistemas de valores

(qualidades e condutas valorizadas e desvalorizadas), discursos próprios

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que traduzem a visão de mundo da educação popular e a visão de mundo

do SAPÉ.

A análise de conteúdo será compreendida nos termos de Bauer (2008, p.

190) como sendo:

[…] um método de análise de texto desenvolvido nas ciências sociais empíricas. Embora a maior parte das análises clássicas de conteúdo culminem em descrições

numéricas de algumas características do corpus do texto, considerável atenção

está sendo dada aos “tipos”, “qualidades” e “distinçoes” no texto, antes que qualquer quantificação seja feita. Deste modo, a análise de texto faz uma ponte

entre um formalismo estatístico e a análise qualitativa dos materiais. No divisor

quantidade/qualidade das ciências sociais, a análise de conteúdo é uma técnica

híbrida que pode mediar esta improdutiva discussão sobre virtudes e método.

Na análise de conteúdo fez-se inicialmente uma leitura “flutuante” dos

documentos, para conhecer o texto deixando-se invadir por impressões e

orientações e criar um procedimento de preparação das informações, ou seja, a

organização da análise (BARDIN, 2011; GOMES, 2009). Nesta primeira etapa, na

abordagem desta dissertação, a leitura do Almanaque foi pouco a pouco se

adaptando em função da possível aplicação de técnicas de anáise que pudessem

dialogar com temas como objetivos, questões e pressupostos da pesquisa.

Juntamente com o procedimento de organização da análise, estão outros

procedimentos metodológicos da análise de conteúdo utilizados a partir da

perspectiva qualitativa (de forma exclusiva ou não): codificação, categorização,

descrição, inferência e interpretação. Esses procedimentos não ocorrem

necessariamente de forma sequencial. O caminho a ser seguido pelo pesquisador

vai depender dos propósitos da pesquisa, do objeto de estudo, da natureza do

material disponível e da perspectiva teórica por ele adotada (BARDIN, 2011;

GOMES, 2009). Nessa perspectiva, a análise de conteúdo, enquanto método, é

formada em seu conjunto por diversas técnicas, capazes de se adequarem ao

objetivo proposto na pesquisa: análise temática; análise de avaliação; análise da

enunciação; análise proposicional do discurso; análise da expressão; e análise das

relações (BARDIN, 2011).

Segundo Bardin (2011), a codificação é o processo pelo qual os dados

brutos são transformados sistematicamente; por recorte, agregação e enumeração

formam unidades, as quais permitem uma descrição e uma representação das

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características pertinentes do conteúdo. A organização da codificação compreende

as seguintes etapas: recorte (escolha das unidades), enumeração (escolha das

regras de contagem) e classificação (escolha das categorias). Na primeira etapa, os

textos são diferenciados por unidades de registro; devem estar codificadas,

visando à categorização e unidades de contexto; servem para compreender a

significação dos conteúdos, de acordo com as categorias temáticas e para codificar

as unidades de registro. A segunda etapa é o modo de contagem das unidades de

registro; funcionam como um indicador de presença, frequência, intensidade,

distribuição e associação entre as unidades. Por último, a classificação é a divisão

das componentes das mensagens em categorias.

Bardin (2011) define a categorização como uma operação de classificação

de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por

reagrupamento segundo o gênero (analogia), com critérios previamente definidos.

As categorias temáticas reúnem um grupo de elementos (unidades de registro) sob

um título genérico. As categorias temáticas devem ser exaustivas, exclusivas,

concretas e adequadas. As categorizações podem partir de vários critérios:

semânticos, sintáticos, léxicos, expressivos. Uma vez definidos os temas e

identificado o material constituinte de cada um deles, é preciso comunicar o

resultado desse trabalho: a descrição é o primeiro momento dessa comunicação.

Seguindo as definições acima das etapas do método de análise de conteúdo

e através das diversas leituras do Almanaque, pude perceber que as informações

contidas nas mensagens dos textos e imagens precisariam ser reagrupadas para dar

início à análise, tendo por finalidade a interpretação dessas mesmas

comunicações. Neste sentido, os temas, identificados nesta dissertação enquanto

unidades de registro e unidades de contexto, foram sendo compilados

considerando os elementos dos textos e imagens e seguindo o caráter da

diferenciação e analogia. Os temas foram classificados a partir dos gêneros dos

conteúdos (poesia, conto, fábula, receita, provérbio, entrevistas, relatos, charada,

charge, ilustração etc.) e das mensagens presentes nos textos, de alguma frase ou

palavra (política, economia, profissão, trabalho, globalização, desemprego,

cidadania etc.).

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4.1 Enumeração e análise dos temas

Na leitura preliminar do Almanaque (Figura 1) emergiram quarenta e seis

unidades de registros; ao longo de mais leituras, novos agrupamentos foram

definidos pelas unidades de contexto, passando em seguida para quarenta, vinte e

seis, vinte e quatro e, por último, vinte unidades de registro (temas). O objetivo

principal desses reagrupamentos foi trabalhar com o menor número possível de

ocorrência de unidades de registros (Quadro 1).

Quadro 1

Codificação e categorização dos dados

Ocorrência de temas

Unidades de

Registro

Unidades de

Contexto

1. Calendário anual, lunar

2. Astrologia horóscopo, zodíaco, exoterismo

3. Provérbio ditos populares, pensamentos, sentença com poucas palavras

4. Receita culinária, nutrição, medicina popular

5. Literatura trechos de romances, poesias, fábulas, letras de músicas

6. Charada diferenças, semelhanças; textos com o título o que é?

7. Charge imagem que não está como ilustração de texto

8. Dica aconselhamento, economia doméstica, cotidiano, simpatia

9. Divertimento passatempos, brincadeiras, piadas

10. Artes imagem que não está como ilustração de texto e não é charge

11. Curiosidade engraçadas, recordes, científicas; textos com o título você sabia?

12. Mitologia grega, africana, indígena

13. Costumes modos de vida regionais, nacionais, locais, globais

14. Religião católica, matrizes africanas, muçulmana, judaica

15. Artigo excerto de jornais e textos de opinião

16. Ciência biologia, geografia, história, antropologia, arqueologia, etnologia,

iconografia

17. Trabalho desemprego, profissão

18. Globalização sentenças com a palavra globalização

19. Política ideologia, democracia, cidadania

20. Biografia entrevistas, relatos de vida

Fonte: Elaboração própria.

A sequência numérica das unidades de registro corresponde a uma leitura

página à página como, por exemplo, a leitura convencional de um romance; no

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entanto, a continuidade da leitura de um determinado texto foi remetido, algumas

vezes, a outra página. Em outros momentos, a leitura dos textos foi feita de forma

aleatória ou, ainda, em blocos de acordo com os temas, com o objetivo de

apreender os sentidos do conteúdo. Essas leituras serviram para conferir se as

unidades de registro correspondiam às mensagens dos textos e imagens e quando

os conteúdos referenciavam mais de uma unidade. Nesse caso, houve a

necessidade de estabelecer os contextos, ainda assim, houve textos em que

registraram mais de um tema simultaneamente (coocorrência). As Figuras

apresentadas a seguir (2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9) são exemplos de classificação do tema

a partir da mensagem ou gênero dos textos e imagens.

Figura 1: Capa (Fonte: SAPÉ, 1998)

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Figura 2: À esquerda, ocorrência do tema Receita em destaque. À direita, marcação e página da

ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

Figura 3: À esquerda, ocorrência do tema Artes em destaque. À direita, marcação e página da

ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

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Figura 4: À esquerda, ocorrência do tema Curiosidade em destaque. À direita, marcação e página

da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

Figura 5: À esquerda, ocorrência do tema Biografia em destaque. À direita, marcação e página da

ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

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Figura 6: À esquerda, ocorrência do tema Divertimento em destaque. À direita, marcação e página

da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

Figura 7: À esquerda, ocorrência do tema Curiosidade em destaque. À direita, marcação e página

da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

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Figura 8: À esquerda, ocorrência do tema Literatura em destaque. À direita, marcação e página da

ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

Figura 9: À esquerda, ocorrência do tema Provérbio em destaque. À direita, marcação e página da

ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

Foi possível identificar no texto de apresentação (Figura 10) do

Almanaque a estrutura lógica de condução dos temas. Os desafios propostos pelo

cenário global, impostos pelo modo de produção capitalista, é a base da

problematização sobre o tempo presente no almanaque. Podendo-se, a partir dele,

captar a dinâmica da produção de sentidos, na qual a relação vida e morte está

associada à exploração do trabalho humano pelo capital econômico.

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Figura 10: À esquerda, trecho do texto de apresentação em destaque. À direita, marcação e página

da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 5)

A pauta temática – “Trabalho em tempos de globalização” – pensada pelo

SAPÉ para compor os principais textos e imagens do Almanaque segue a base

estrutural sinalizada no discurso de apresentação e evidencia a publicação como

artefato cultural da educação popular produzido para as classes populares em

função dos seus interesses de classe.

Vale considerar que os textos e imagens do Almanaque possuem duas

origens: foram elaborados pela equipe envolvida no projeto especificamente para

o livro e selecionados, também pela equipe, para comporem o almanaque,

conforme a bibliografia (fontes textuais e iconográficas) e relatório de elaboração

do livro (SAPÉ, 1998a). O uso frequente das imagens está associado ao

preenchimento de espaços nas colunas das páginas e à necessidade de

comunicação dos textos com outra linguagem – ilustração.

A análise das comunicações discursivas presentes nas imagens do

Almanaque, enquanto veiculadoras de mensagem através de uma linguagem

visual, portadora de múltiplos sentidos, nesta pesquisa, foi produzida pela minha

própria interpretação, imaginação e entendimento, considerando, segundo Vicente

(2000, p. 148) que,

a interpretação das imagens através das séries conexas permite o

reconhecimento das analogias entre as imagens. Analogias possíveis de serem detectadas devido ao nosso pré-conhecimento ou reconhecimento adquirido do

referente, do processo cultural que as produziu.

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Neste sentido, analisar imagens envolve verificar, no caso particular do

Almanaque, que lógicas são possíveis, segundo a escolha das imagens para

compor o conteúdo do almanaque e quais as prováveis ligações com os textos. A

investigação da relação entre a imagem e sua representação transita nos diversos

sentidos incorporados pelo conceito de semelhança entre a imagem e a percepção

do que ela poderia significar, de uma maneira que forme um quadro em que

nenhum elemento pode ser considerado separadamente como necessário ou

suficiente, mas todos são elos relevantes no sentido de servir potencialmente para

uma aplicação adequada com o propósito de conceber uma representação

figurativa (NEIVA, 1993; VICENTE, 2000).

Considerando a variedade de temas, a quantidade e a ocupação espacial

dos textos e imagens no Almanaque, foi necessário adaptar o levantamento

quantitativo a essa especificidade tipográfica. São dois aspectos para serem

considerados na análise do conteúdo: a recorrência dos temas e o espaço ocupado,

utilizando um método de decupagem espacial elaborado especificamente para a

análise – unidade de contagem, pois uma unidade de registro pode ter um número

pequeno de ocorrências, mas ocupar um espaço total maior do que uma unidade

com mais ocorrências. Como por exemplo, o tema Provérbio que aparece oitenta e

nove vezes e ocupa 4,5% do espaço total do Almanaque.

Foi possível identificar uma estrutura de distribuição dos temas na

diagramação das páginas, seu sistema visual, sob o ponto de vista do design:

O projeto visual distribui unidades visuais que denotam por sua repetição, semelhança e diferenciação uma dada organização do conteúdo ali disposto,

definindo uma área como mais importante que outra, por exemplo. (MATTEONI,

2010, p. 74-75)

O formato do Almanaque é retangular de dimensões 20 cm de altura por

22,6 cm de largura. O livro aberto, portanto, alcança algo em torno de 46 cm. As

margens laterais da página são de 1,5 cm, a margem superior com 1,0 cm e a

margem inferior com 2,0 cm. Para fazer o levantamento quantitativo dos temas e a

maneira pela qual estão quantitativamente distribuídos no espaço de uma página,

procurei identificar o planejamento ortogonal que divide os textos nas páginas,

chamado pela área de design como grid tipográfico.

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Deste modo, busquei definir, a partir das páginas do Almanaque, o grid ali

empregado, para ajudar na compreensão da ordenação espacial dos temas e a

forma de utilização dos textos e imagens. O grid é formado por quatro colunas e

quatro linhas, os cruzamentos de coluna e linha somam dezesseis unidades de

contagem por página (Figura: 11). Cada unidade de contagem possui 5 cm de

largura por 4,5 cm de altura.

Figura 11: Grid tipográfico (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)

Para quantificar o espaço destinado a cada texto e imagem desenhei o grid

em papel vegetal, devido sua transparência, e o sobrepus às páginas do

Almanaque. Assim, foi possível quantificar a área utilizada, considerando as

unidades de contagem de cada unidade de registro no todo do livro, que

corresponde a 93 páginas ou 1.488 unidades de contagem. A ocorrência dos temas

(unidades de registro) em cada texto e imagem também foi realizada e há

conteúdos que apresentam registros de mais de um tema. Essas coocorrências de

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temas e os espaços sem texto somam-se ao total de unidades de contagem. Dessa

forma, ao somar as unidades de contagem dos temas invividualmente, foi possível

chegar ao percentual ocupado por cada tema no Almanaque.

Os temas foram classificados em quatro grupos. Foi verificado, pela

análise temática, que cada grupo possui uma função no Almanaque: Grupo I –

Calendário e Astrologia, são os temas relacionados à origem do termo almanaque;

Grupo II – Provérbio, Receita, Literatura, Charada, Charge, Dica, Divertimento,

Artes e Curiosidade, são as temáticas que identificam o gênero tipográfico; Grupo

III – Ciência, Política, Biografia, Trabalho, Globalização, Costumes, Religião

Mitologia e Artigo e Grupo IV – Coocorrência de temas, ou seja, textos e imagens

em que foram registrados mais de um tema, são os conteúdos que veiculam a

visão de mundo dos movimentos de educação popular e do SAPÉ.

Quadro 2

Grupo I: Calendário e Astrologia

Temas Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)

Calendário 14 14

Astrologia 3 3

TOTAL 17 17

Fonte: Elaboração própria.

As categorias do Grupo I (Quadro 2), Calendário e Astrologia, aparecem

logo nas primeiras páginas, e por serem temas recorrentes nos almanaques,

sinalizam, como características principais, a relação existente entre a definição do

termo almanaque estar associado à contagem do tempo e à observação dos astros

– ao calendário, conforme explicitado no Capítulo 2 sobre a história dos

almanaques.

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Nesse grupo o número de ocorrências e a percentagem da ocupação

espacial dos temas Calendário e Astrologia são iguais porque cada texto

corresponde a uma página inteira do livro (Figuras 12 e 13). Assim como os

elementos do Calendário, o tema Astrologia marca a identidade com o gênero

almanaque; as observações dos ciclos das estações, dos movimentos planetários e

das posições das constelações no céu sempre estiveram presentes na tentativa do

homem se relacionar com o tempo.

Figura 12: Tema Astrologia. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 23)

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Figura 13: Tema Calendário. (Fonte: SAPÉ, 1998, p.8)

O Calendário (Figura 13) aparece desde as primeiras páginas,

correspondendo espacialmente a aproximadamente 14% do total de páginas do

Almanaque, considerando a soma de suas unidades de contagem. Para cada mês

do ano de 1998, ano da publicação do Almanaque, é destinada uma página,

somando, portanto, doze. A sequência dos dias, semanas e fases da Lua ficam

abaixo dos dias destacados, seguido de um provérbio, em uma linha horizontal.

Os destaques são os dias feriados, santos católicos, orixás africanos, festas

religiosas (judaicas, católicas, umbandistas e candomblecistas), profissões, morte

de mártires ou heróis, dias internacionais e mundiais, aniversários dos

acontecimentos da história do Brasil e do mundo ocidental e, ainda, os dias dos

jogos do Brasil na Copa do Mundo de Futebol. Esses destaques vêm sempre com

notas explicativas, alguma curiosidade ou informação sobre diferentes hábitos das

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celebrações e cultos religiosos; fatos históricos e aleatórios; etimologia de

palavras e definições de termos.

A presença do calendário marca a realidade cultural do Almanaque,

identificando-o como um tipo de publicação específica, tendo o calendário como

característica primordial, pois pode-se considerar que a origem da palavra

calendário e almanaque, tendo em vista o percurso de suas histórias, são palavras

praticamente sinônimas. “Contas e cômputo, seriam senas dos dois signos, que

passariam a significantes no tempo e no espaço cultural de cada povo” (CASA

NOVA, 1996, p. 30).

Regulador do tempo, o calendário no Almanaque traz uma qualidade de

tempo recuperável, puro, considerado no seu infindável retorno – tempo circular.

Figura 14: Tema Calendário, linha do tempo. (Fonte: SAPÉ, 1998a, p. 7)

Os eventos históricos listados cronologicamente demostram uma fixação

do tempo, acontecimentos que não devemos esquecer, ou melhor, no contexto

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temático do Almanaque, devem ser lembrados. Blindados no tempo, são

considerados como marcas que mostram a contagem dos anos (Figura 14).

Quadro 3

Grupo II: Provérbio, Curiosidade, Literatura, Charge, Divertimento,

Receita, Charada, Dica e Artes

Temas Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)

Provérbio 89 4,5

Curiosidade 26 6,5

Literatura 25 6,5

Charge 16 3

Divertimento 12 2

Receita 9 1

Charada 9 0,8

Dica 6 1,2

Artes 5 0,5

TOTAL 197 26

Fonte: Elaboração própria.

No Grupo II (Quadro 3), estão as categorias de maior frequência nos textos

e imagens; no entanto, a distribuição espacial dos temas não corresponde ao

percentual mais elevado, segundo à soma das unidades de contagem. Ocupam, em

sua maioria, a linha inferior e as colunas à esquerda e à direita da página do

Almanaque, e estão distribuídos por todo o livro. Esse arranjo espacial permite

colocar em destaque os textos que abordam em seu conteúdo as principais

temáticas do livro: Trabalho e Globalização (Figura 15 e 16).

As unidades de registro desse grupo representam diferentes gêneros

textuais: Provérbio, Curiosidade, Literatura, Charge, Divertimento, Receita,

Charada e Dica. O tema Artes encontra-se nesse grupo porque, assim como os

outros temas do Grupo II, é explorado com a finalidade de destacar na página o

conteúdo principal. Com suas múltiplas linguagens, os temas do Grupo II marcam

o momento do riso, da diversão, da utilidade, da imaginação, proporcionando uma

leitura que ensina brincando, por meio da informação de fatos curiosos; dos usos

medicinais de plantas; de conselhos sobre a alimentação, com algumas receitas;

dos jogos de passa-tempo; das piadas e anedotas; de fragmentos de romances,

poemas e fábulas; e dos provérbios, presentes em quase todas as páginas do

Almanaque, sempre com um preceito moral.

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Figura 15: Dica, Charge, Literatura e Charada nas colunas laterais e Globalização ao centro em

destaque. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 28)

A lógica da organização estrutural do Almanaque propõe uma leitura

particular do tempo, pensado como um instrumento que envolve e evidencia a

relação entre seus temas centrais – Trabalho e Globalização – e os temas

recorrentes nos almanaques desde os séculos XVII e XVIII, como foi mostrado no

Capítulo 2, agrupados em: calendários, festas religiosas, literatura, conselhos e

dicas, receitas, fatos estranhos e curiosos, religião, provérbios, monumentos

históricos (BOLLÈME, 1965).

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Figura 16: Curiosidade, Divertimento e Receita nas linhas abaixo do destaque Trabalho. (Fonte:

SAPÉ, 1998, p. 51)

Quadro 4

Grupo III: Ciência, Política, Biografia, Trabalho, Globalização, Costumes,

Religião, Mitologia e Artigo

Temas Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)

Ciência 20 12

Política 14 10

Biografia 12 8,5

Trabalho 11 5,5

Globalização 10 5

Costumes 8 2,8

Religião 5 1,8

Mitologia 5 1,4

Artigo 3 1

TOTAL 88 48

Fonte: Elaboração própria.

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Os temas do Grupo III (Quadro 4), Ciência, Política, Biografia, Trabalho,

Globalização, Costumes, Religião, Mitologia e Artigo, juntos ocupam

percentualmente o maior espaço no total no Almanaque, aproximadamnete 48%.

Essa concentração sinaliza uma maior ênfase desses conteúdos no Almanaque e

seus conteúdos são aproximados simbolicamente à visão de mundo dos

movimentos de educação popular e cultura popular, particularmente, à definição

de cultura enquanto mobilização política e transformação social, evidenciando a

visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular, conforme

a análise documental feita no Capítulo 3.

Quadro 5

Grupo IV: Coocorrência de temas

Temas Co-corrências (unid.) Ocupação espacial (%)

Trabalho e Globalização 5 2,2

Mitologia e Religião 3 2

Religião e Ciência 1 0,4

Astrologia, Receita e Dica 1 0,5

Costumes e Ciência 1 1,5

Astrologia, Mitologia e

Ciência

1 0,4

TOTAL 12 7

Fonte: Elaboração própria.

O Grupo IV (Quadro 5) é o grupo cujas frequências de temas estão em

menor número no Almanaque, aproximadamente 7%. Representam a visão de

mundo do SAPÉ, pois as mensagens dos textos e imagens evidenciam os diversos

saberes em um relação dinâmica de negociação. As presenças simultâneas de dois

ou mais temas na mesma mensagem – coocorrência – são analisadas com o

objetivo de aproximar a significação da mensagem e dos seus registros com as

categorias utilizadas, identificadas pela análise documental, conforme abordagem

do Capítulo 3 desta pesquisa.

Os conteúdos dos temas dos Grupos III e IV traduzem a visão de mundo

dos movimentos de cultura popular e educação popular e cultura popular e

evidenciam a visão de mundo do SAPÉ. As proposições, enunciados, sequências

de frases ou somente a palavra contidos nos textos, são produtos de um discurso

que elabora sentidos e que operam ações. Deste modo, o método de análise de

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conteúdo no contexto deste estudo busca estabelecer redes de aproximações

simbólicas e não uma transposição mais evidente das opiniões, das atitudes e das

representações dos discursos dos movimentos de cultura popular e educação

popular e do SAPÉ atribuídos ao Almanaque.

A porcentagem equivalente à soma da frequência de registro dos temas e o

percentual em relação ao espaço utilizado no Almanaque (Gráficos 1, 2 e Quadro

6) seguiram os arranjos em grupos de temas e as finalidades de cada grupo no

livro: presença de elementos que se relacionam com a origem atribuída ao termo

almanaque, temáticas que identificam o gênero tipográfico e conteúdos que

veiculam a visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação

popular e a visão de mundo do SAPÉ. Os espaços sem texto foram somados ao

total das unidades de contagem, para chegar aos 100% de ocupação espacial do

Almanaque.

Quadro 6

Distribuição dos temas em grupos

Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)

Grupo I 17 17

Grupo II 197 26

Grupo III 21 7

Grupo IV 67 41

Coocorrências 12 7

Sem texto - 2

TOTAL 314 100

Fonte: Elaboração própria.

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Gráfico 1: Frequência das unidades de registro nos textos e imagens do

Almanaque (Fonte: Elaboração própria)

Gráfico 2: Espaço ocupado no Almanaque (Fonte: Elaboração própria)

A análise dos dados aponta para dois sentidos atribuídos ao Almanaque

enquanto um artefato cultural da educação popular que evidencia a visão de

mundo do SAPÉ: intencionalidade da escolha tipográfica e a elaboração de um

manual para a ação. Os dados do Gráfico 2 permitem inferir, por um lado, que

apesar da soma da quantidade de textos dos Grupos I e II (Gráfico 1) ser maior em

relação aos outros grupos, a ocupação espacial desses grupos somados equivalem

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a menos da metade do livro, embora ocupem uma parte considerável (43%). Por

um lado, as temáticas recorrentes nos Grupos I e II confirmam e reafirmam a

identidade com o gênero tipográfico e, de outro, que o objetivo de servir como um

manual de ação de transformação social a favor das classes populares estão

presentes nas mensagens dos textos e imagens dos Grupos III e IV, conforme

veremos a seguir.

4.2 Aproximações simbólicas entre as categorias de análise e o conteúdo

No corpo do livro, o espaço para as seções de história (compreendendo

textos e imagens) é um dos maiores, evidenciando a preocupação com a temática

e o fato do Almanaque ser um livro que privilegia o conhecimento científico. Há

ainda conteúdos de astronomia, eletrônica, computação, medicina, arqueologia,

neurociência, sociologia, agronomia, antropologia, iconografia, biologia e

etnomatemática. Os textos e imagens do registro Ciência equivalem,

aproximadamente, a 12% do todo do livro. A analogia foi o critério utilizado para

reagrupar todas as frequências em um único tema, pois apesar de fazerem parte de

áreas de conhecimento distintas, correspondem a um mesmo gênero, o

conhecimento científico.

São privilegiados os eventos históricos ocorridos no Brasil que tiveram

como característica a resistência ao poder instituído. São fatos pouco divulgados

nos livros didáticos tradicionais, como por exemplo a Revolta dos Malês31

e a

história do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto32

, demonstrando a valorização da

cultura dos povos indígenas e a contribuição histórica do trabalho dos negros

africanos escravizados, em particular, os saberes que desenvolveram na lida com a

terra.

31 Movimento que ocorreu na cidade de Salvador (província da Bahia) entre os dias 25 e 26 de

janeiro de 1835. Os principais personagens dessa revolta foram os negros islâmicos que exerciam

atividades livres, conhecidos como negros de ganho (alfaiates, pequenos comerciantes, artesãos e

carpinteiros). Apesar de livres, sofriam muita discriminação por serem negros e seguidores do

islamismo (SAPÉ, 1998). 32 Comunidade religiosa, localizada no município de Crato, no cariri cearense. Liderada pelo beato

José Lourenço, descendente de negros alforriados e discípulo de Padre Cícero, ousou desafiar o

poder dos latifundiários e foi brutalmente massacrada (SAPÉ, 1998).

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No Almanaque nos registros de Biografia, a própria pessoa ou outrem

relata nos textos o dia a dia no trabalho, sua profissão, dificuldades e soluções

geradas pelo desemprego, como personagens que narram diferentes modos de

vida. No pano de fundo das narrativas estão as condições de trabalho e

desemprego, seus variados ofícios e profissões, tais como: professores,

agricultora, vendedora de mercadorias à beira da estrada, compositor, escritor,

camelô, médica, artista autodidata, desempregado, ator e taxista. São doze textos

de Biografia, suas unidades de contagem equivalem aproximadamente a 8,5% do

total de páginas do Almanaque.

Por sua vez, a enumeração do tema Trabalho equivale à aproximadamente

5,5% das páginas do livro, distribuída em onze textos/imagens. Os saberes que

envolvem processos de trabalho, suas etapas e técnicas empregadas; a reflexão

sobre o sentido do trabalho humano ao longo da história; exemplos de iniciativas

coletivas voltadas para o desenvolvimento local e valorização da cultura popular;

desemprego; trabalho informal; trabalho infantil e migração são subtemas

propostos na trama do Almanaque.

Com uma proporção equivalente à soma das unidades de contagem

Trabalho, o registro Globalização representa cerca de 5% do todo do Almanaque:

são dez textos/imagem que trazem, como destaque do seu conjunto, os aspectos da

globalização no dia a dia das pessoas, em particular, da classe trabalhadora; e as

transformações econômicas, desde as rotas comerciais do século XVI ao

neoliberalismo na década de 1990 do século XX, enfatizando o avanço

tecnológico provocado pelo desenvolvimento global da economia (Figuras 17, 18

e 19).

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Figura 17: Globalização. (Fonte: SAPÉ, 1998, p.63)

Figura 18: À esquerda registro Globalização. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:

SAPÉ, 1998, p. 64)

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Figura 19: À esquerda registro Globalização. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:

SAPÉ, 1998, p. 66)

A unidade de registro Política corresponde à compilação por analogia de

outros subtemas presentes nas mensagens dos textos, tais como: democracia,

cidadania, economia, educação e relatos de experiências. São quatorze textos e

imagens e equivalem aproximadamente a 10% do total das páginas do

Almanaque.

Em destaque estão as iniciativas pedagógicas de organizações não

governamentais, entidades populares e governos, em particular municipais, de

partidos políticos comprometidos, segundo os textos, com o povo. Essas ações

relatadas, tomadas em seu conjunto, se referem às formas coletivas de estratégias

educativas que preconizam a inserção cidadã das populações marginalizadas com

o objetivo de construir uma sociedade na qual todos têm responsabilidades no

exercício democrático da governalibidade.

Neste sentido, o voto do cidadão ganha grande importância, entendido,

conforme os textos, como um instrumento eficaz para assegurar a participação no

controle do poder público. O entendimento do sistema político brasileiro, por

exemplo, se torna essencial para os cidadãos decidirem em quem confiar para

gerenciar a sociedade brasileira, principalmente durante o período eleitoral.

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Destacam-se, ainda, as iniciativas políticas criadas por organizações da

ONU, não governamentais e setores da sociedade civil, com o objetivo de

combater o jogo de forças políticas envolvido no mecanismo eleitoral; ocasião em

que os setores dominantes da sociedade, inclusive os que estão no poder, se

utilizam de múltiplas formas de pressão, violentas ou dissimuladas, para conduzir

a episódios que beneficiem seus interesses (CHAPONAY, 1998).

A Assembleia Geral das Nações Unidas (...) declarou que 1998 seria o Ano

Internacional dos Oceanos, como homenagem a essa fonte de vida e civilização, e para lembrar, também que todos os cidadãos do mundo, da necessidade de

salvaguardar os direitos das futuras gerações e de assegurar a defesa da Terra.

(SAPÉ, 1998, p. 37)

As pessoas, quando respeitadas no seu ofício, produzem sentido e valor. Com ou

sem as coisas. Mas as coisas sem as pessoas são letra morta. Preferir coisas a pessoas não é realismo. É apenas conformismo. (SAPÉ, 1998, p. 48)

Nos últimos anos têm-se multiplicado as iniciativas de organizações populares empenhadas na criação de atividades econômicas como formas de luta pela vida.

(SAPÉ, 1998, p. 51)

Apesar de todos os limites dos processos eleitorais, não se pode relativizar a

profunda significação das eleições, pois o voto é o único recurso a que se tem acesso para assegurar a participação no controle do poder público. (SAPÉ, 1998,

p. 81)

As populações, atualmente, aceitam alfabetizar-se porque sentiram que esse é um

meio de ter acesso ao desenvolvimento. (SAPÉ, 1998, p. 87)

Devemos construir sistemas de formação fundados na ajuda mútua, onde todos

têm interesse no enriquecimento intelectual e moral de todos. (...) Se todos os cidadãos aceitam partilhar seus saberes, eles se tornam necessários e, ao mesmo

tempo, responsáveis pelas mudanças sociais. (SAPÉ, 1998, p. 56)

Os enunciados acima e a seguir (registro Política) traduzem a visão de

mundo da educação popular sob a forma da definição de cultura como um produto

da mobilização política e transformação social. A visão de mundo presente nos

elementos simbólicos dos textos aproxima-se, em particular, do pensamento da

matriz católica da educação popular, na qual a consciência da realidade social

recria dialeticamente classes sociais antagônicas. Partindo desse entendimento, a

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educação deverá conscientizar, promover atitudes e criar meios de ação que visem

a transformação da realidade social.

Um país com 32 milhões de pessoas na indigência não é uma Nação, é uma

tragédia. A democracia não pode existir só para alguns: ou é para todos ou simplesmente é uma mentira que não resistirá ao tempo. (SAPÉ, 1998 p. 48)

Investir em construções não deve ser prioridade para nossos governos estaduais e

municipais. O conúbio de prefeito e empreiteira seria hoje um conluio. (SAPÉ,

1998 p. 48)

Um diretor de favela não pode ter ação repressiva como tem o governo, não é?

Reprime, chega a polícia, acaba, a justiça condena. Então, é preciso ter muito cuidado com isso, porque a associação de moradores deve ser o sacerdote dos

favelados, interceder junto às autoridades, substituindo os políticos, quero dizer, o

político profissional. (SAPÉ, 1998 p. 83)

Os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos fazem parte da

Constituição da maioria dos países (...) servem como referência para o exercício da cidadania. Mesmo assim, muitos direitos continuam sendo violados em todo o

mundo. (...) persistem as práticas de violência policial, a atuação de grupos de

extermínio, além de outras práticas que violam os direitos universais. (SAPÉ, 1998 p. 90)

O principal conteúdo político a ser aprendido no Almanaque seria

compreender a relação entre o poder democrático e o exercício cidadão como

meios de ação, através da conscientização da realidade social, para a realização de

um projeto educativo no âmbito da educação popular, ou seja, a favor dos

interesses das classes populares. Elementos comuns de uma narrativa condizente

com a visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular,

que versam sobre diretrizes e perspectivas teóricas de uma ordem social ideal,

protagonizada pelas classes populares.

De uma maneira geral, o conteúdo das mensagens dos temas Trabalho e

Globalização expressam que as transformações ocorridas na relação entre o lucro

e a produção estão fundadas no papel do dinheiro e da ganância. Este se torna o

centro do mundo, sendo recriado pela ideologia dominante, incentivado pelo

consumo, pelo avanço tecnológico e pela globalização dos processos de produção

do modelo econômico neoliberal (COMAROFF e COMAROFF, 2000). No

entanto, os significados presentes nos enunciados mostram formas de adaptação e

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ajustamento a esse modelo através do entendimento da dinâmica social e da

realidade econômica, em particular, fundamenta-se na necessidade de

ressignificação do sentido do trabalho humano e na maneira pela qual as camadas

populares tomam parte nesta conjuntura: participam da atividade econômica e, ao

mesmo tempo, são atingidas pelas conseqüências da organização e do dinamismo

dessa atividade.

Os conteúdos do Almanaque, ao recuperarem, em particular, eventos

históricos ocorridos no Brasil pouco divulgados ou silenciados na narrativa da

memória social da Nação, apontam a valorização dessas identidades ofuscadas.

Como representantes dos grupos subalternizadas, por exemplo as mensagens

abaixo (Figuras 20 e 21):

As fotografias de Frond ressaltam na rotina do trabalho o poder disciplinador (...)

Numa sociedade em que viver de renda era sinônimo de liberdade, essas

fotografias dão o que pensar. (...) dividindo o chão e libertando os braços, consagram uma nova ética do trabalho, com espírito do povo, escrita na história

[...] A beleza das composições e dos acabamentos porém ultrapassa o sentido

documental. Valoriza e humaniza o escravo negro nas roças, nos engenhos e nos

serviços,, distinguindo-se das figuras comuns desenhadas nos álbuns de época onde é apreciado como “coisa” exotica, curiosa dos tropicos. (SAPÉ, 1998, p. 40)

Figura 20: À esquerda registro Trabalho. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:

SAPÉ, 1998, p. 41)

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Figura 21: À esquerda registro Trabalho. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:

SAPÉ, 1998, p. 41)

Destaco abaixo alguns enunciados de registro Trabalho que remetem à

resistência ao modo de imposição de uma lógica hierárquica do capitalismo

evidenciando uma crítica à desvalorização do trabalho humano. A semântica da

mensagem aproxima-se da apropriação simbólica da ideia de cultura – natureza

transformada e significada pelo homem, trabalho como produto da ação humana

consciente sobre o mundo e constitutiva das relações entre os homens – tal como

concebida pela matriz de pensamento católica dos movimentos de cultura popular

e educação popular.

A comermos um delicioso chocolate amargo com frutas, ou batido no leite,

geralmente não nos damos conta das condições de seu plantio e dos trabalhadores

que foram envolvidos nas diversas operações para que ele chegue às nossas mãos. A sequência que vai do cacau ao chocolate começa pelo plantio. (SAPÉ, 1998, p.

32)

Vivendo hoje nesse tempo aberto, quase redondo, somos mais ricos de

possibilidades. Mas a questão que se derrama nessa mesma amplitude é: como

usamos essa riqueza? Quem a ela tem acesso? Como trabalhamos a nossa grande

aproximação simultânea e universal? (SAPÉ, 1998, p. 6)

Os enunciados destacados a seguir (registro Globalização) abordam o

impacto do modelo econômico atual nas relações entre os indivíduos em uma

sociedade. Reforçam a ideia da necessidade da conscientização dos aspectos que

envolvem as relações de dominação econômica presentes na realidade social,

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como uma atribuição da cultura, nos termos dos movimentos de cultura popular e

educação popular.

Num piscar de olhos a circulação do capital financeiro traz o mundo na mão. (...)

a globalização atinge a todos, tenham ou não consciência do fenômeno. (...) A

globalização não é apenas econômica. É também cultural, o que inclui desde a informação globalizada até o predomínio inglês idioma desse novo tempo.

(SAPÉ, 1998, p. 27)

Acostumamos com o dia-a-dia das coisas e dos jeitos, nem atinamos para a sua

trança de história, jogo antigo de trocas entre gentes. (SAPÉ, 1998, p. 29)

Há um Brasil onde a vida transita em camadas do tempo, como mergulho num

álbum de fotografia. Um mundo povoado por andarilhos do trabalho. Gente em constante vai-e-vem, mas invisível numa modernidade em que o manual e

artesanal deixaram de ser passaporte para o mercado e a cidadania. Gente que

sobra. (...) Rostos, mãos, braços, relevos ásperos e rugosos destoam da emergente

textura digital. (SAPÉ, 1998, p. 66)

Com a televisão e o correio eletrônico, as pessoas do mundo todo podem estar

diariamente em contato com as outras. (...) com esses mesmos meios de

comunicação, os executivos dos bancos e das grandes empresas internacionais, podem comprar produtos nos Estados Unidos, contratar trabalhadores no Brasil e

negociar ações na bolsa de Tóquio. (SAPÉ, 1998, p. 71)

Nosso país é fantástico na diversidade de ritmos que traduzem diferentes formas

de estar no mundo, e a cultura das camadas populares é profundamente marcada pela linguagem musical. O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa

quase alijou essa cultura, isolando-a em suas próprias localidades. Saí em campo

à procura dos criadores dessa linguagem. (...) Esses trabalhadores mostram sua

maneira de o mundo, de conhecer a felicidade e progresso, muito diferente das

visões que lhes são impostas. (SAPÉ, 1998, p. 59)

As mensagens do registro Biografia seguintes procuram valorizar do

sentido do trabalho e da vida das pessoas das classes populares. As situações de

desemprego e baixa renda reveladas evocam características de uma pobreza

estrutural globalizada, considerando que as personagens das biografias são de

nacionalidades distintas e de diferentes regiões do Brasil.

Professor, Milton Santos (...). Intelectual negro, de formação cosmopolita, ele

critica o enconomicismo dos que só enxergam o país com o olhar embaraçado

pelas leis da economia globalizada. (SAPÉ, 1998, p. 30)

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Meu nome é Rosilda (...). Passei uns dois ou três anos desempregada, fazendo

biscate: faxina, limpeza de terreno. (...) Então voltei para a agricultura e não gosto da agricultura. Pego na enxada e ela nuca amadurece. Quebra uma, compro outra.

Agora, não quero estudar mais não. Mas o que posso oferecer ao meu filho é o

estudo, para amanha ou depois ele ter um trabalho que melhore a vida dele, que não seja na agricultura. (SAPÉ, 1998, p. 38)

Thérèse (...) é vendedora de peixe seco e frutas a beira de uma estrada, na África. A angústia de chegar atrasada no trabalho, ela desconhece. Mas conhece bem a

inquietação quando a renda da jornada foi muito curta, sobretudo se Désiré fica

doente porque os remédios custam caro. (SAPÉ, 1998, p. 42)

Sou compositor (...). Embora não tenha nenhum benefício trabalhista, nem mesmo salário fixo, tenho a situação de ser querido pelas pessoas e sei que meu

papel na sociedade e muito importante. (SAPÉ, 1998, p. 52)

Antes, eu ganhava bem mais como camelô, sem comparação. Mas esse

desemprego todo no Brasil, hoje, esta abalando a venda da gente à beça. (...) Se

eu pudesse falar com o presidente, ia dizer: o Plano Real só foi bom no começo. Hoje em dia a gente passa mais dificuldades do que antes. (SAPÉ, 1998, p. 64)

Sou José Geraldo, (...) Sou casado e tenho três filhas. Meu objetivo é tentar dar alimentação para que elas estudem. Eu mesmo, só estudei até à segunda série.

Tentei estudar em escola de governo, até dormi na fila, e nada de vaga. E escola

está igual à saúde: se não tiver dinheiro, a gente morre. (SAPÉ, 1998, p. 75)

Sou Ramon (...) Considero nata do ser humano a capacidade de transformação pelo trabalho. Se não há empregos, criaremos a necessidade deles por meio do

nosso trabalho digno e da nossa atividade político-cidadã. (SAPÉ, 1998, p. 78)

Aqui nesse ponto, todo mundo é ‘ex’ alguma coisa. A maior parte tem um certo

grau de instrução, diferente de outras pessoas que eu via por ai na praça, vindas

de ambiente inculto. Aqui é uma associação que escolhe seus membros, funcionando num sistema de cooperativa, com taxas quinzenais, levando a luta

por um sistema de radiofonia. (SAPÉ, 1998, p. 85)

Os argumentos de Santos (2010) auxiliam no entendimento do processo

pelo qual o desemprego é gerado. Segundo o autor, ao mesmo tempo em que o

poder público se ausenta das ações de proteção social, é legítimo supor que a atual

divisão “administrativa” do trabalho e a omissão do Estado, de sua missão social

de regulação, estejam contribuindo para uma produção científica, globalizada e

voluntária da pobreza. Nas palavras do autor:

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A pobreza atual resulta da convergência de causas que se dão em diversos

níveis, existindo como vasos comunicantes e como algo racional, um resultado necessário do presente processo, um fenômeno inevitável, considerado até mesmo um fato natural.

A divisão do trabalho era, até recentemente, algo mais ou menos espontâneo. Agora não. Hoje, ela obedece a cânones científicos – por isso a consideramos

uma divisão do trabalho administrada – e é movida por um mecanismo que traz

consigo a produção das dívidas sociais e a disseminação da pobreza numa

escala global. Saímos de uma pobreza para entrar em outra. Deixa-se de ser pobre em um lugar para ser pobre em outro. Nas condições atuais, é uma

pobreza quase sem remédio, trazida não apenas pela expansão do desemprego,

como, também, pela redução do valor do trabalho. (SANTOS, 2010, p. 36)

A ênfase na história de vida de pessoas pertencentes a grupos sociais

distintos, mas igualmente subalternizados, onde a vida econômica e a vida cultural

sofrem influência direta ou indireta do processo de globalização, segundo as

enunciações destacadas, indicam que os indivíduos são atingidos de modo

semelhante por esses fenômenos.

Os textos dos Grupos III e IV, de uma maneira geral, evocam a visão de

mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular, podendo ser

aproximados à matriz católica de pensamento, na qual, igualmente para o SAPÉ,

há a preocupação de se ter consciência da realidade ecômica e social e como essa

realidade influencia no dia a dia das pessoas, sobretudo as das classes populares.

O pressuposto de que as camadas populares têm uma maneira particular de

pensar sua inserção na sociedade a partir de suas experiências de vida (trabalho,

vivência afetiva, religiosidade etc.) justifica a denominação de um saber popular.

É a partir desse saber que o grupo se identifica como tal, troca informações entre

si, interpreta a realidade em que vive. Como são várias as situações de vida, são

vários os saberes. O denominador comum desses saberes, é ser dominado. A

consciência dessa dominação é meio de ação para a mobilização política e

transformação social, conforme a análise das mensagens dos conteúdos do

Almanaque realizada.

Numa sociedade de classes os saberes dominante e dominado (ou popular) são faces de uma mesma moeda e se relacionam entre side forma dinâmica. Como,

enfim, classes sociais antagônicas numa mesma sociedade; o saber sendo uma das

expressões deste confronto. (GARCIA, 1980, p. 98)

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Seguindo a argumentação em torno da definição do saber no âmbito da

educação popular, enquanto

modos de vida, ideias, formas de saber e de pensar não refletem apenas o efeito

de posições e relações de classe ou categorias sociais nos arranjos da sociedade.

A força do sentido que há neles torna-os, a seu modo, um modo de poder. Algo que não existe apenas nos “aparelhos oficiais” de inculcação de conhecimentos,

valores e hábitos, contra os quais nos reconhecemos sempre em luta, mesmo

quando algunas vezes nos achamos do lado de dentro deles. Mas alguma coisa que desigualmente se distribui em todo lugar de relações sociais onde se dá o

exercício cotidiano de producir e lidar com símbolos e significados, e lhe atribuí

tanto o poder daquilo que representa, quanto o poder daquilo que é. (BRANDÃO, 2002, p. 104-105)

De acordo com essa definição e aproximando-a à visão de mundo do

SAPÉ encontrada nos elementos semânticos dos conteúdos e da maneira pela qual

os temas estão distribuídos no Almanaque, foi possível verificar que as temáticas

presentes no livro, ao remeterem simbolicamente os diversos saberes, crenças,

modos de vida, aspirações profissionais etc. estão em uma situação de negociação

nas páginas do Almanaque.

A tentativa de produzir um material de apoio didático que refletisse a

prática educativa realizada pelo SAPÉ no domínio da educação popular –

circularidade entre os saberes/poderes e dinâmica de negociação entre os diversos

saberes/poderes – seguiu os termos definidos pelos movimentos de cultura

popular e educação popular durante a década de 1960 e refletidos nos anos

posteriores pelas agências de assessorias às atividades de educação popular. Foi

então verificado pela análise dos dados que o Almanaque é um artefato cultural da

educação popular elaborado pelo SAPÉ para servir como um manual para a ação,

contendo valores, crenças, ideias de justiça, aspirações profissionais e de estilo de

vida em geral.

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5 Considerações finais

A presente investigação contou com uma abordagem interdisciplinar para

reunir elementos teóricos e metodológicos que permitissem a análise do objeto de

pesquisa – Almanaque do Aluá n. 1, seguindo o objetivo proposto de relacionar o

conteúdo do Almanaque aos conceitos de cultura e cultura popular elaborados no

campo da Educação Popular no Brasil e às conceituações assumidas pelo SAPÉ:

saber, poder e negociação. Para atender a este objetivo foram formuladas algumas

questões que nortearam o trabalho de pesquisa, a saber: que aspectos políticos,

sociais e culturais são encontrados nas mensagens do Almanaque? Quais

apropriações simbólicas dos conceitos de cultura e cultura popular, tal como

elaborado no contexto histórico da Educação Popular, são retomadas no

Almanaque? Como os conceitos de cultura e cultura popular se apresentam?

Como articular os conceitos de cultura e cultura popular com as categorias que

emergem da reflexão do trabalho educativo do SAPÉ presente no Almanaque –

saber, poder e negociação?

Partindo dessas indagações foi possível iniciar a trilha de investigação

buscando compreender, por meio de revisão bibliográfica, o Almanaque enquanto

um tipo específico de publicação literária, cuja origem estaria ligada ao calendário

lunar e representaria a relação entre o ser humano e sua organização de espaço e

tempo. Ao longo de sua trajetória, o Almanaque se configurou como um livro que

se caracteriza por trabalhar na fronteira entre a oralidade e a textualidade, bem

como pela diversidade textual que provoca múltiplas leituras. Pelo

desenvolvimento da tipografia, tornou-se amplamente difundido, contendo a

língua, os costumes e os manuais da vida prática de uma determinada sociedade.

O Almanaque é, portanto, um objeto que traduz um sistema simbólico de

organização social, controle, sentido, ordem etc. e traduz os aspectos cognitivos e

existenciais que dão sentido às ideias que abrangem a ordem social – símbolo

cultural ou artefato cultural que evoca uma visão de mundo particular.

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Nesta perspectiva, o Almanaque do Aluá n. 1 é um artefato cultural que

remete à visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular

através do SAPÉ, pois a ação educativa e o conteúdo do livro corporificam muito

bem, em cada época, a explicação que os seus idealizadores tinham da sociedade e

do papel que atribuíam à educação popular nessa mesma sociedade, como aquela

que é produzida pelas ou para as camadas populares, em função de seus interesses

de classe.

Não se trata, porém, de uma única corrente de visão de mundo, mas de

uma narrativa que possui elementos comuns, temas recorrentes e posicionamentos

regulares que traduzem o que poderia ser chamado de uma visão de mundo do

Almanaque. Nesse caso, significam a projeção de um ponto de vista determinado,

já que elas não eram isoladas da justificativa que respaldava a sua concretização.

As categorias de análise desta pesquisa emergiram da análise documental

de textos elaborados sobre os movimentos de cultura popular e educação popular

ou produzidos pelos próprios movimentos. No âmbito dos movimentos de cultura

popular e educação popular a visão de mundo está associada simbolicamente aos

conceitos de cultura e cultura popular e na perspectiva da ação cultural do SAPÉ

a visão de mundo é definida a partir das apropriações dos conceitos saber, poder e

negociação.

Identificou-se duas matrizes de pensamento dos movimentos de cultura

popular e educação popular dos anos de 1960 que definiram os termos cultura e

cultura popular. Ambas compreendiam ao mesmo tempo a cultura enquanto

natureza transformada e significada pelo ser humano e como transformação

progressista e mobilização política; e cultura popular para as duas perspectivas são

os costumes, saberes, crenças, modo de vida do povo etc. No entanto, a aplicação

conceitual desses termos difere-se na reflexão e execução sobre o entendimento

do trabalho educativo.

De um lado, a corrente católica preocupava-se em definir os aspectos

pertencentes à cultura (trabalho, história e dialética). A conscientização das

camadas populares por meio da educação era a maneira de compreender a

realidade brasileira e entender a cultura popular como um produto de classes

sociais antagônicas.

De outro lado, a perspectiva marxista, ligada às experiências de

universidades e partidos políticos, buscava refletir sobre o princípio da cultura

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como sendo a superação da desigualdade estrutural, baseado em um projeto de

humanização da cultura. A atividade educativa deveria voltar-se para a ruptura

política da dominação, definindo a cultura popular a partir desse aspecto e

enquanto uma estrutura universal “de todos”.

Esta pesquisa compreende as definições expostas acima como elementos

pertencentes de uma prática educativa particular da educação popular;

configuram-se como aportes para compreender os desdobramentos conceituais

assumidos nas décadas de 1970 a 1990 no campo da educação popular - período

em que são formuladas as principais conceituações assumidas pelo trabalho

educativo do SAPÉ.

Os principais conceitos definidos a partir da reflexão sobre as atividades

educativas do SAPÉ são: saber popular e saber dominante (conhecimentos e

experiências vivenciadas e experimentadas), poder (esses conhecimentos em

confronto) e negociação (a potencialidade do confronto nas relações entre os

diferentes saberes).

Neste sentido, busquei compreender a relação entre os elementos

conceituais do SAPÉ e os aspectos tipográficos do almanaque, partindo da

seguinte questão: as temáticas das mensagens dos textos e imagens sugerem uma

dinâmica de negociação nas páginas do Almanaque?

A técnica de análise de conteúdo utilizada foi a análise temática, com o

objetivo de quantificar a frequência, recorrência e elaborar uma regra de contagem

da distribuição espacial dos temas no Almanaque. Outro objetivo foi a

interpretação pictórica e textual do Almanaque, aliado à intenção de estabelecer

redes de aproximações simbólicas entre o conteúdo e as categorias de análise:

cultura, cultura popular, saber, poder e negociação.

Os principais conteúdos a aprender no Almanaque são a conscientização

das condições sociais existentes. O que parece influir de forma mais imediata nas

necessidades e possibilidades dos grupos populares é o lugar que cada grupo

ocupa no processo de produção e a necessidade de ressignificação do sentido do

trabalho humano nesse contexto. Esses conteúdos são evidenciados nas

mensagens discurssivas dos temas Ciência, Política, Biografia, Trabalho,

Globalização e Artigo.

A análise pictórica e textual do Almanaque permitiu constatar que essas

principais lições contidas no livro fazem parte de uma maneira específica de se

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pensar a educação. Aproximam-se simbolicamente das apropriações dos

movimentos de cultura popular e educação popular, particularmente, da matriz

católica de pensamento, pois evidenciam os aspectos contidos na definição de

cultura, enquanto relação dialética de comunicação entre os homens, tendo por

objetivo a conscientização da realidade social e a elaboração de um instrumento

para a transformação cultural, por meio da mobilização política e execução de

meios de ação que atendam a essa finalidade.

Além da verificação que os conteúdos do Almanaque evocam a visão de

mundo dos movimentos de cultura popular por meio do SAPÉ, constatou-se,

também, que o Almanaque é um artefato cultural apropriado para evidenciar a

ação educativa do SAPÉ no âmbito da educação popular, pois as temáticas

representam os diversos saberes/poderes existentes e que a sua distribuição no

livro segue uma dinâmica de negociação.

Essa evidência aparece na conjugação da análise da quantidade dos

registros e a ocupação espacial dos registros, ou seja, os temas que representam a

identificação tipográfica do livro: Calendário, Astrologia, Provérbio, Receita,

Literatura, Charada, Charge, Dica, Divertimento, Artes e Curiosidade somam 214

textos e imagens e ocupam espacialmente aproximadamente 43% do Almanaque.

Apesar de, juntos, terem maior quantidade de textos e imagens ocupam

proporcionalmente o mesmo espaço das temáticas destacadas como as principais

tradutoras da visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação

popular. Assim sendo, foi possível verificar dois aspectos do Almanaque: a

intenção da escolha tipográfica e a tentativa de elaborar um manual de ação.

Ambos os aspectos versam sobre uma ordem social ideal, aspirações profissionais,

ideais de justiça e de estilo de vida em geral, bem como o protagonismo de certos

atores sociais para a realização dessa visão de mundo particular.

O Almanaque do Aluá n. 1 não se configura como um material de apoio

ditático comum: a maneira informal e lúdica como os conteúdos podem sem

visitados trazem para a educação de jovens e adultos uma originalidade no ensinar

e no aprender. Pode-se considerá-lo como um livro que auxilia no trabalho de

conscientização das camadas populares, além de suprir a carência de ditádicos

para esse seguimento de ensino.

.

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