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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber -1- SUMARIO:

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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber

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SUMARIO:

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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber

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CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP

Kyber, Manfred, 1880-1933 K99t Também eles são nossos irmãos? / Manfred Kyber;

(tradução Tatiana Braunwieser). .. São Paulo : ECÉ, 1981.

ISBN 85-85009- 05-5

1. Animais - Lendas e estórias 2. Contos alemães I. Título.

81-1236 CDD-833.91

Indices para catálogo sistemático: 1. Contos : Século 20 : Literatura alemã 833.91 2. Século 20 : Contos : Literatura alemã 833.91

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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber

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Manfred Kyber

TAMBÉM ELES SÃO

NOSSOS IRMÃOS?

eoe editora

SUMARIO:

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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber

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Título Original: GESAMMELTE TIERGESCHICHTEN

Tradução: TATIANA BRAUNWIESER Ilustrações:

SANTINO PARPINELLI

Direitos Autorais gentilmente cedidos por Rowohlt Verlag GmbH, Reinbek hei Hamburg Contos Extraidos de "DAS MANFRED KYBER BUCH". COPYRIGHT: HESSE UND BECKER VERLAG, München.

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SUMARIO:

TAMBÉM ELES SÃO NOSSOS IRMÃOS?.............................................3

O Crocodilo Patenteado .....................................................................8 O C. d. M..........................................................................................16 O Momento Supremo.......................................................................20 Súplicas Silenciosas.........................................................................23 A Entrevista......................................................................................27 Mãe..................................................................................................32 A Mosca Efêmera.............................................................................35 Tratamento Balneário.......................................................................39 Heroísmo .........................................................................................47 Krakelius Krequequeque ..................................................................51 Glória Post Mortem ..........................................................................57 A Terra da Promissâo ......................................................................63

Fim............................................................................................................93

***

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Os bichos possuem seus momentos cômicos e trágicos, como nós. São repletos de semelhanças e relações mútuas. Os homens costumam crer num abismo entre si e os bichos. Não é senão um degrau na roda da vida. Somos todos filhos da mesma mônade. Para conhecer a naturexa, é preciso compreender suas criaturas. Para compreender uma criatura, carece ver nela seu irmão.

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O Crocodilo Patenteado

Havia um deserto, e no deserto havia um rio, e dentro do rio havia um crocodilo. Lamento dizê-lo: os crocodilos não são apreciados, não. Isso acontece não tanto por causa da sua toilette, freqüentemente lamacenta e desmazelada, nem tampouco por causa da expressão indiscutivelmente antipática de sua boca, o que afinal são superficialidades. A impopularidade é causada pelo apetite. No mundo inteiro é assim: quanto maior o apetite, menor a estima. Amor e estima prosperam quando se exclui o apetite, e costuma-se até anuir a uma conversa despretenciosa, sob a condição mínima da gente não ser devorado ou abocanhado. Sem dúvida isto é muito superficial, porém compreensível, pois ninguém há de querer mal tenha trocado algumas palavras amáveis — ficar logo sem mãos e pernas, que afinal lhe pertencem e que lhe poderão ser úteis em outras ocasiões. Por isso não são estimados os que querem engolir os outros. E sendo que o crocodilo tem apetite para tudo, e tudo quer engolir, ninguém gosta dele.

Ele engole missionários, sapos, negros, macacos e até membros da própria família, e tudo por causa do apetite. Também tudo lhe faz bem — louvado seja Deus — e ele digere tudo, mesmo os próprios parentes. O crocodilo, então, estava deitado dentro do rio que havia no deserto, com apetite e zangado. Não estava zangado por sentir apetite, mas porque não tinha nada para saciá-lo, e numa ocasião dessas qualquer um fica zangado, não só um crocodilo, até a mais fina dama. "Como seria bom agora um branco!" — disse o crocodilo, piscando ao sol. — "Os brancos são mais gostosos para o desjejum; pretos são melhores para o almoço, são mais oleosos e nutrem mais. é tal qual a diferença entre uma galinha e um pato. Bem picantes são os vendedores ambulantes de vinhos; têm sabor de caça por causa do álcool que tomam, e, geralmente estão bem conservados." O crocodilo sorriu com melancolia, o que ressaltou ainda mais a expressão antipática da sua boca, sinto muito dizê-lo. "Não se consegue nem mesmo um cardápio indígena," — continuou ele e engoliu em seco — "dar-me-ia por satisfeito até com comida caseira, com um sobrinho ou sobrinha. Porém, uma parte deles eu comi, os outros desceram rio abaixo; hoje em dia não se encontram mais sentimentos de solidariedade entre parentes. Que adianta ter apetite? "

E o crocodilo enterrou seu estômago esfomeado mais para dentro do lodo molhado, cerrou os olhos com resignação e bocejou. Nem se deu ao trabalho de cobrir a boca com a pata, pois a boca de qualquer jeito é grande demais e, além disso, o crocodilo não liga muito para as boas maneiras.

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"Vou cochilar'" - pensou, e cochilou.

Em cima da tamareira herborizava atarefado um macaquinho, guinchando baixinho. Era um entemuito alegre, permanentemente feliz por ser macaquinho e, existir, simplesmente. De vez em quando fazia um pouco de ginástica pelo método Meu sistema, ou Como adquirir o mais lindo rabo, os mais longos braços e as pernas mais curtas. Então sentava-se num galho e procurava com a máxima atenção, dentro de seu pêlo, estranhos cacetes, e exterminava-os in-distintamente — machos, fêmeas e mesmo tenros filhotinhos. Era trabalho penoso, porém, grato e lucrativo.

"Posso coçar-me em três lugares ao mesmo tempo," — disse o macaquinho arreganhando os dentes com satisfação - "seguro-me com o rabo e um pé, e o que sobra — coça. Como é sábia a natureza!"

O macaquinho era de um temperamento alegre e modesto. A análise de suas vestimentas foi, porém, bruscamente interrompida pela voz rouca do crocodilo, que o tinha visto, olhando para cima. — "Psiu, você aí!" — chamou — "desça para cá, quero devorá-lo." - Ele disse devorar pois o crocodilo não usa expressões finas.

O macaquinho assustou-se horrivelmente.

— "Não, de jeito nenhum!" — respondeu-lhe choramingando, e seu pêlo eriçou-se de pavor, pondo em debandada os estranhos cacetes.

"Então o senhor não quer," — fungou o crocodilo com malícia, e soprou com raiva pelas narinas. — "Está bem, esperarei até que o apetite o obrigue a descer da árvore, quando aí não houver mais nada. Tudo na vida é o apetite. Eu sei disso."

O macaquinho não disse mais nada, apanhou uma folha de tamareira e nela soluçou com desespero. Onde ficou a sabedoria da natureza? Para que servem os braços compridos e as pernas curtas, adquiridos por meio do Meu Sistema, se eles podem ser devorados?

"Sujeito arrogante," - rosnou o crocodilo, pigarrean- do com ódio. — "Faz-se de importante como se fosse um petisco maravilhoso, entretanto, carne de macaco é bem comum!"

O macaquinho, porém, não era nada arrogante; estava apenas com um medo terrível porque ia ser devorado, e pensava em papai e mamãe e na filha maior

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do macaco vizinho, aquele focinho sorridente que lhe concedeu o primeiro beijo, como recompensa, por ter-lhe limpado, com galanteria e cavalheirismo, seu pêlo macio. E quando se está às voltas com pensamentos desse gênero, é indiferente ser um grande homem, ou uma pequena e trêmula alma de macaco. Aliás, em muitos outros assuntos isso também é indiferente. Mas, existe algo no mundo que se compadece de pobres criaturas assustadas, e condoeu-se também do macaquinho. Justamente no momento em que ele colheu a segunda folha da tamareira para soluçar, sentiu como se um rabo de macaco o cingisse e uma voz lhe sussurrasse um pensamento; podia ser a voz do papai ou da mamãe, ou da filha maior do vizinho. O pensamento foi tão lindo que o macaquinho parou imediatamente de chorar, seu pêlo alisou-se e sua caretinha expressou uma alegria indescritível, aquela alegria que se torna sobremaneira bonita quando ilumina um rosto feio.

— "Psiu," — imitou o macaquinho, jogando caroços de tâmara na cabeça do crocodilo — "o senhor é patenteado? " — Quanta gente é assim! Mal se sente bem, começa a atirar caroços de tâmara. Isto é humano, e os macacos se parecem tanto com os homens!

— "Por que patenteado? " — perguntou-lhe o crocodilo desconfiado — "quero devorá-lo e fá-lo-ei."

O macaquinho cruzou os braços compridos sobre o peito e olhou com superioridade para o crocodilo. - “Atualmente todas as pessoas decentes do deserto se deixam patentear," - disse-lhe ele - "sem isso a gente não é gente bem. Porém, precisa possuir alguma coisa que os outros não têm."

- "Você é que vou possuir logo," - pensou o crocodilo zangado, mas ficou com a pulga atrás da orelha porque gostaria de ser gente bem. Porque o cérebro do crocodilo não é grande (quanto maior a goela, menor é o cérebro), esgotou-se logo sua força refletiva.

— "Onde a gente pode se patentear? " — perguntou ele.

— "Na comissão de patentes do deserto, ê um escritório."

O crocodilo refletiu.

— "Como é que eu chego melhor lá? É preciso que não seja muito longe e que você me espere aqui. Disso quero ter certeza."

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- "Claro," - disse o macaquinho, esfregando as mãos de contente. — "O escritório é, como todos os escritórios, no deserto. Felicidades. Faço votos que tenha sorte!"

O crocodilo arrastou-se para a margem e rumou devagarinho para o deserto. Logo passou em frente de uma choupana e então pensou: "logo vi!" Quantos já não pensaram "logo vi!", porém, sem existir coisa alguma. Desta vez, entretanto, estava certo mesmo, porque na choupana via-se escrito com letras grandes: Comissão de Patentes do Deserto. No mesmo instante saiu dali o rinoceronte, acenando amavelmente com a cabeça. O crocodilo entrou e viu-se em frente da Comissão.

Formavam a Comissão o camelo, o marabu e uma pantera. O camelo tinha de redigir as atas e executar todos os outros trabalhos de escritório. Sua expressão subalterna sublinhava-se ainda mais pelo lábio inferior caído, e, no pescoço, usava o distintivo honorário do deserto: um pequeno moinho com as cores do país. O marabu era careca e conselheiro-jurídico, e a pantera, como representante das autoridades, sentada a uma mesa, fazia as unhas.

O crocodilo, vendo que a Comissão inteira era comestível, rangeu com as mandíbulas, de apetite.

- "Pare de ranger," - gritou-lhe a pantera irritada - "isso dá nos nervos."

O crocodilo ficou com raiva, mas como ansiava por uma patente, colocou devagar e com modéstia uma queixada sobre a outra.

- "Que é que o senhor deseja? " - perguntou- lhe o camelo, empurrando o beiço subalterno para cima. — "Quero ser patenteado."

— "Em quê? "

— "Isto me é indiferente. Meu apetite, por exemplo."

— "Ridículo," — resmungou a pantera — "isso todos têm."

— "Então minha grande fuça," — disse-lhe o crocodilo timidamente, e escancarou a goela, recomendando-a.

— "Sua venerável fuça é bem grande, como podemos verificar m loco," — expressou-se o marabu, como conselheiro-jurídico — "porém neste ponto o

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senhor não está só. A maioria dos homens possui uma bem maior."

O crocodilo derramou uma das conhecidas lágrimas de crocodilo, e esbugalhou os olhos com desamparo e tristeza para a Comissão comestível. Por fim ficou bravo e bateu com o rabo escamado para todos os lados.

— "Mas eu quero ser patenteado!" — gritou sufocado de raiva.

— "Silêncio, se não quer ser posto fora," — vociferou a pantera, batendo com a pata na mesa.

— "Pois é, silêncio" — blaterou o camelo, e deixou cair com devoção o lábio subalterno, serviçal, espiando de soslaio a pantera. - “Se me permite dar-lhe um conselho," - cacarejou o marabu com gentileza e desejo de apaziguar - "acon- selhar-lhe-ia patentear sua dentadura. Conforme consegui constatar na hora em que abriu sua estimada fuça, a dentadura é de dimensões respeitáveis, e, sem dúvida, única no gênero. Poderíamos registrá-la como máquina de cortar carne."

- "Então vamos," - disse a pantera ao camelo, passando a pata no focinho - "leia o registro!"

O camelo leu com voz monótona, blaterando, pois era de opinião que não fica bem para um funcionário salientar por conta própria uma palavra: "Patente n° 1: à naja, por um desenho de óculos na cabeça. Seção - artigos de ótica. Patente n° 2: ao canguru, por uma bolsa sobre o estômago. Seção — artigos de moda. Patente n° 3: ao rinoceronte, pelo chifre sobre o nariz. Seção — artigos de bijuterias."

- “Agora o senhor pode escolher entre uma patente inglesa e uma alemã," - disse o marabu ao crocodilo. — "Sobre a inglesa está escrito Made in Germany e sobre a alemã, Façon de Paris.”

— "Qual é a melhor? " — perguntou-lhe o crocodilo desconfiado.

— "Isto depende exclusivamente de gosto," — disse- lhe o marabu. — “O canguru, por exemplo, escolheu a patente inglesa, considerando a situação política da Austrália, enquanto o rinoceronte, que só dá valor à elegância, escolheu sem hesitar, a Façon de Paris"

— "Eu quero as duas," — disse-lhe o crocodilo.

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— "Isso não é possível," - respondeu-lhe o outro, encolhendo penalizado as asas. - "Eu, porém, aconselharia a patente inglesa, desde que se trata de máquina para moer carne..."

— "Chega!" — vociferou a pantera — "escreva: patente n° 4: ao crocodilo, pela máquina de moer carne na goela. Hum... Seção — artigos para cozinha. Até logo."

Dizendo isso a pantera levantou-se, colocoü o rabo sobre as patas como manda o regulamento, e abandonou o local rosnando; o expediente estava encerrado.

O camelo aprontou o diploma; o marabu entregou-o ao crocodilo com algumas palavras explicativas.

— "Tenha muito cuidado, diplomas são apenas algo decorativo, fabricado com material muito rijo e totalmente indigesto pelo assim chamado processo de auto-sugestão, aliás um processo internacional; portanto, não o engula! Meus respeitos."

E o conselheiro-jurídico almoçou o verme comprido que sua esposa havia embrulhado num papel de sanduíche. Os marabus moravam perto de uma habitação européia e eram tremendamente cultos! Daí o papel de sanduíche e os conhecimentos jurídicos.

Vendo o conselheiro-jurídico almoçar, o crocodilo sentiu-se mal. Pegou cuidadosamente o diploma entre os dentes, e afastou-se depressa em direção à margem do rio para comer o macaquinho. Este, porém, não estava mais lá.

"Como as pessoas são irresponsáveis hoje em dia!" — pensou o crocodilo. - "Não é de admirar que se patenteie o antigo e o bom." — Estufou-se de orgulho e enterrou-se bem dentro da lama.

Assim ficou durante horas. Entardeceu e juntou muito público na margem e na água para apreciar o pôr-do-sol.

— "Por que o senhor não toma uma refeição, colega? " — perguntou um pequeno lagarto ao crocodilo, nadando por perto. Apresentava um aspecto satisfeito e bem nutrido, e engolia com cara jovial os restos de um parente.

O crocodilo teve dificuldade para falar.

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— "Estou patenteado," — sussurrou com orgulho — "não posso comer, estou segurando meu diploma na boca. Em troca sou agora gente bem." — "Eu, de minha parte, prefiro estar bem nutrido," — disse-lhe o pequeno lagarto -'porém, o senhor tem a aparência de quem não tem comido nada desde cedo. O verde saudável de seu rosto tornou-se cinza. Coloque o seu diploma na margem e jante alguma coisa!"

O crocodilo lutou em seu íntimo — o apetite era enorme!

— "Não," — acabou sussurrando — "na margem os macacos poderão roubá-lo."

— "Então cuspa-o simplesmente fora!" — disse-lhe o pequeno lagarto com malcriação. - "Para que lhe serve o diploma? Se o diploma tem de ficar constantemente na boca é melhor desistir dele, porque, no fim, a gente não pode mais comer, e acaba sendo comido e, ainda, debochado pelos outros."

Isso é uma grande verdade, mas refere-se natural - mente, só aos crocodilos.

O crocodilo não se mexeu. Continuou segurando o diploma e olhou para o primo, zangado e morrendo de fome.

— "Já que o senhor continua com o diploma entre os dentes, permita-me comer sua pata traseira à guisa de sobremesa?" O crocodilo, de medo e raiva, deu uma viravol- ta, e nesta exaltação engoliu o diploma. Na mesma hora sentiu-se muito mal, tão mal como nunca, e perdendo os sentidos foi levado pelo rio e co-mido pelo pequeno lagarto e outros parentes prestativos.

Assim termina esta triste estória.

Posso acrescentar apenas ainda uma notícia familiar: enquanto isso sucedia, o macaquinho ficou noivo da filha mais velha do vizinho. Formavam um casal feliz de noivos e, logo no dia seguinte, tomaram parte num piquenique com parentes e amigos, naturalmente acompanhados por uma dama de honra, pois macacos — como todos sabem — têm muita coisa humana. Durante a festa souberam da morte do crocodilo patenteado. Um macaco bem velho comunicou o fato, acres-centando "sim, sim." Isto ele dizia sempre, pelo que era considerado muito inteligente. O macaquinho, porém, sabia muito mais sobre o assunto; claro, pois ele conhecia o finado pessoalmente, tão pessoalmente, que por um triz teria

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sido devorado por ele. É o conhecimento mais pessoal que se possa fazer. E aproveitando o momento em que a dama de honra subiu a uma tamarei- ra para comer (pois não sentindo mais amor, comia o dobro), o macaquinho contou à sua amada a estória horripilante. — “Não se deixe nunca patentear, Maquinho" — disse-lhe a jovem, cingindo-o com o rabo.

— "Não, nunca," — disse-lhe o Maquinho, e vasculhou com carinho e presteza o pêlo de sua noiva.

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O C. d. M.

As minhocas convocaram um congresso. Era um congresso moderno. Por isso não se chamava Congresso das Minhocas, mas C.d.M. O C.d.M. realizava-se numcanto muito poeirento do jardim. Foram tratadas apenas questões do cultivo do solo. O horizonte das minhocas não ultrapassava essa questão. Elas se arrastam na terra e comem terra. São gente pobre e modesta, porém, útil e indispensável. Sem elas a terra não seria fértil. Seu trabalho tem de ser realizado. Era de tarde. O crepúsculo cobria os caminhos pelos quais se arrastava o C.d.M. Um velho e comprido minhocão presidia a sessão. Discursou sobre questões de interesse local, como as condições do terreno do jardim em que trabalhavam. Os resultados mostraram-se satisfatórios. — "Já penetramos bem fundo na terra," — disse o presidente do C.d.M. — "Trouxemos à superfície muitas camadas, cuja existência ninguém suspeitava anteriormente. Porém, a terra parece aprofundar-se mais do que pensávamos. Nós a dividimos e a esmiuçamos. Parece ultrapassar aquilo que conseguimos trazer para cima. Carece arrastarmo-nos com afinco por toda parte e comermos terra, ê uma grande tarefa. Com isso, termina a sessão do C.d.M." O minhocão enrolou-se respeitosamente. A parte oficial do C.d.M. terminara. Vizinhos e amigos juntaram-se em grupos informais, conversando sobre a prática de desenvolvimento dos membros. Era desejo geral tornar-se mais comprido. Nisto consistia o progresso. Os novos métodos para consegui-lo interessavam sempre. — "O método mais moderno para se tornar comprida," disse uma minhoca jovem - "chama-se: enrosca-te no caule. Isto fortalece os músculos e revigora os membros. Vejam: assim!" Ela apalpou um caule e fez demonstração do novo método com energiae convicção. Nisso enroscou-se nalgu- ma coisa. Sentiu que essa "coisa" era áspera e cabeluda. — "Nossa, o que é isto? Tem cabelos e está se mexendo!" Assustada, desen roscou-se do caule.

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— "Queira desculpar, eu estava tão cansada! Por isso me sentei sobre o caule," - disse-lhe a "coisa" cabeluda.

— "Quem é a senhora? " — perguntou-lhe a minhoca, arrastando-se para mais perto.

— "Sou taturana de profissão. Não me teria sentado sobre o caule de maneira nenhuma, porém estou cansada demais. Venho de muito longe, andando sempre na poeira. Raramente encontrei alguma coisa verde. Sou um pouco fraca de natureza. Também, é tão cansativo curvar as costas a cada passo. Agora não posso mais. Estou cansada demais. Mortalmente cansada."

A taturana estava completamenteempoeiradae exausta. Seus tocos de pernas tremiam.

O C.d.M. inteiro, compadecido, arrastou-se para perto dela.

— "A senhora deve fortificar-se'" — disse-lhe uma minhoca gentilmente, — "deve comer um pouco de terra,"

— "Não, obrigada, estou fraca demais para comer. Sinto-me tão esquisita em geral. Não quero mais me arrastar pela terra." — "Tenha paciência," - disse-lhe o presidente do C.d.M..— "isto é a vida; arrastar-se na terra e comê-la. Não o conseguindo fazer mais, vem a morte. Nós, porém, devemos viver e tornarmo-nos bem compridos. Posso recomendar-lhe diversos métodos, é a macrobiótica."

— "Acho que a gente não morre," — disse-lhe a taturana. — "Quando a gente se cansa demais e não tem força para se arrastar na terra, a gente se encasula, e mais tarde torna-se uma borboleta multicor. Fica voando ao sol e ouve o badalar das campânulas. Eu apenas não sei como fazê-lo. Também, estou cansada demais para refletir."

As minhocas enroscaram-se desamparadas e agitadas.

— "Voar? - À luz do sol? - O que é isso? - Isso não existe! — A senhora está doente? "

— "A senhora usa palavras estranhas, tão esquisitas," — disse-lhe o presidente do C.d.M. — "A senhora está simplesmente indisposta."

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A taturana não respondeu mais. Estava cansada demais. Agarrou-se ao caule.

Então, sentiu escurecer ao seu redor.

Do seu interior, porém, saíam finíssimos fios e enrolavam seu corpo cansado e empoeirado. — "Isto é uma doença terrível!" — disseram as minhocas.

— "é um fenômeno!" — disse o presidente do C.d.M. — "Vamos observá-lo."

Diversas sumidades acenaram com os anéis da cabeça concordando.

Passaram-se algumas semanas. O presidente e as sumidades arrastavam-se diariamente para junto do fenômeno e o apalpavam. O fenômeno era branco. Estava totalmente encasulado e jazia inerte no chão.

Finalmente, numa madrugada, a "coisa" encapuçada mexeu-se. Uma pequena borboleta colorida saiu de lá e olhou admirada em seu redor. Conservava as asas dobradas e não sabia o que fazer com elas. Porque havia esquecido tudo o que imaginara e aspirara enquanto taturana, quão cansada estivera, mortalmente cansada...

As asas, porém, cresceram à luz do sol. Ficaram fortes e brilhantes. Então, a borboleta abriu-as e voou longe da terra, para dentro da luz do sol.

As campânulas badalavam.

Em baixo, na poeira, reuniu-se o C.d.M. Encontraram somente a capa, e todas as sumidades a examinaram.

- "é apenas um casaco," — disse a primeira sumidade decepcionada.

- "Sobrou só a doença," — disse a segunda.

- "O casaco era a doença," - disse a terceira.

Bem alto, por cima de suas cabeças cegas, balouçava- se a borboleta no ensolarado ar azul.

- "Agora ela está morta mesmo," - disseram as minhocas.

- "Ressurrexit!" - cantavam mil vozes no espaço.

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O Momento Supremo

De dentro de sua gaiola um passarinho olhava com ânsia para a luz do sol. Era uma ave canora e aconteceu num país culto — pelo menos num que assim se denominava.

No horizonte azul erguiam-se montanhas azuis.

"Atrás das montanhas está o sul," - pensava o passarinho. — "Viajei para lá só uma vez. Depois nunca mais."

As montanhas distantes pareciam-lhe bem próximas. Era a saudade que as aproximava das varas da gaiola.

"São tão próximas," — disse o passarinho. — "Se não fossem as varas da gaiola! Se a porta se abrisse uma vez, uma única vez! Então chegaria o momento supremo, e com algumas batidas de asas eu estaria atrás das montanhas azuis!" As garças emigravam. Seus gritos dolentes ressoavam através do ar outonal — queixoso e convidativo. Era o chamado para o sul.

O passarinho debateu-se contra as grades da gaiola.

Chegara o inverno e ele tornou-se quieto. Caíra neve e as montanhas azuis ficaram acinzentadas.Ocaminho para o sul jazia gélido e nevoento.

Passaram-se muitos invernos e muitos estios. Passaram- se muitos anos. As montanhas ficavam ora azuis, ora cinzentas. Os pássaros migratórios vinham do sul e partiam para o sul. O passarinho atrás das grades, esperava o'momento supremo.

Então, raiou um claro e ensolarado dia de outono. A porta da gaiola ficou aberta. Esqueceram-se de fechá-la por descuido. De propósito, os homens não o fazem. Chegara o momento supremo! O passarinho tremia de alegria e agitação. Com cuidado, timidamente, pulou para fora e esvoaçou para a árvore mais próxima. Tudo em seu redor o perturbava. Não estava mais habituado. No horizonte azul erguiam-se montanhas azuis. Porém,pareciam agora mui distantes. Distantes demais para as asas que não se

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moveram durante anos, atrás das grades. Mas tinha de ser! O momento supremo havia chegado! O passarinho encheu-se de coragem e de toda força que tinha, e desdobrou as asas largamente, bem largamente, para o vôo ao sul, atrás das montanhas azuis.

Todavia não chegou além do próximo galho. Atrofia- ram-se-lhe as asas durante os longos anos, ou foi alguma coisa que se atrofiou nele? Ele mesmo não o sabia. As montanhas azuis estavam longe, longe demais para ele.

Então ele voou devagarinho de volta para a gaiola.

As garças emigravam. Através do ar outonal soaram seus gritos dolentes e convidativos. Era o chamado para o sul.

Elas sumiram atrás das montanhas azuis.

O passarinho inclinou a cabeça e a escondeu em baixo da asa.

O momento supremo terminara.

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Súplicas Silenciosas

Os carneiros arrebanhavam-se agitados.

Um velho carneiro narrava:

— "Minha avó viu-o, ela própria," — dizia-lhes.

— Ê algo fabuloso, medonho! Não se sabe o que é . Também ela não viu tudo. Passou por lá quando ia para o pasto. Era um portão que levava a um recinto escuro. Havia cheiro de sangue junto ao portão do recinto escuro. Não se via nada. Mas ela escutou um grito de carneiro lá dentro, um grito horrível. Então voltou ao rebanho correndo, tremendo de pavor."

Todos estremeceram.

— "Nada se sabe de positivo," — disse-lhes o carneiro

— deve haver, porém, alguma verdade nisso. Em todo caso é medonho."

"Sua avó não vive mais? " — perguntou-lhe um jovem carneiro.

— "Não sei, isso já faz muito tempo — vieram buscá-la."

— "Isto deve ser o começo, depois nunca se volta,"

— disseram vários.

O cão pastor latiu e tocou o rebanho para a outra ponta do pasto. Ali estava o pastor a conversar com um estranho, que não tinha a aparência de pastor. Estavam negociando. O estranho aproximou-se do rebanho com passos firmes e examinou algumas peças com olhos de perito. Não eram olhos de pastor. Depois pegou no jovem carneiro, que antes havia feito a pergunta. O bicho gelou. A mão não se parecia com a mão do pastor.

No pescoço do carneiro puseram uma corda.

"Fico com este," — disse o estranho, tirando uma carteira suja do bolso. Pagou.

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Um ser vivo lhe pertencia. Ele o comprara.

Agarrando a corda, arrastou o carneiro do pasto para a estrada. O rebanho olhava, assustado e sem compreender, para aquele que partia. O carneiro olhou para trás. Seus olhos procuravam parentes e companheiros de folguedos. Alguma coisa nele se contraiu, alguma coisa lhe disse que se livrasse e voltasse correndo.

"Este é o começo," pensou, "vêm buscar a gente." Mas ele não reagiu. Estava desamparado. Que é que adiantava?

"Não precisa ser aquilo medonho," — pensava, consolando-se — "existem mais outros pastos. Talvez vão me levar para lá."

Tal é a confiança dos animais que são tratados com mansidão.

Agora dobravam uma esquina. Não se via mais nada do rebanho. O pasto sumira. Só de longe ouviam-se os latidos do cão e os sons da flauta do pastor. O vento os trazia.

O caminho era longo. O homem estranho andava rápido. Estava com pressa.

"Estou cansado, gostaria de descansar um pouco," - pediu-lhe o carneiro.

Foi uma súplica silenciosa.

Continuaram a andar.

Fazia muito calor e havia muita poeira.

"Por favor, um pouco de água," — disse-lhe o carneiro.

Foi uma súplica silenciosa. Finalmente chegaram a uma pequena cidade. Passaram por ruas estreitas e tortas, em que não havia pasto. Esta esperança fora em vão.

Pararam diante de um portão que se abria para um recinto escuro. Um cheiro asqueroso bateu na cara do animal. O carneiro virou a cabeça e emitiu um

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balido queixoso. Assustou-se com o cheiro e com a entrada escura. Um medo despertou-se-lhe no subconsciente, um medo sem limite.

"Quero ir para casa!" - disse o carneiro e olhou para o estranho.

Foi uma súplica silenciosa. As súplicas silenciosas não são ouvidas.

O homem laçou a corda com um golpe hábil em torno das pernas traseiras do animal e arrastou-o para frente. A corda cortava.

"Sim, sim, já vou," — disse o carneiro assustado. As pernas cansadas e duras apressaram-se.

Foram só poucos momentos, mas pareceram muito longos. Daí ele se encontrou no recinto escuro. Espalhava-se no ar um cheiro nauseabundo de sangue e des- pojos, o cheiro de cadáveres de seus semelhantes.

Não se julga necessário remover isso antes, pois é gado — gado de abater. Um horror paralisou o carneiro. Um horror que o fez esquecer-se de todas as súplicas silenciosas anteriores. Um horror que o dominou totalmente. O carneiro tremeu com o corpo todo. "Agora vem o fantástico, o espantoso," — pensou ele. E veio. — — —

— — —

O mundo está cheio de súplicas silenciosas que não são ouvidas. São homens os que não as ouvem, é impossível anotar essas súplicas silenciosas. São tantas! Porém, elas todas vêm sendo anotadas e escritas no livro da vida. Bem abertos e observadores, os olhos de Gotama Buda dirigem-se para a cultura européia.

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A Entrevista

O sujeito da cara preta é um boxer. Somos grandes amigos, e é por isso que resolvi, um dia, entrevistá-lo. Pensei em aprender muita coisa desta maneira; uma olhadela para a diferença entre as naturezas é sempre muito útil, e talvez o sujeito da cara preta pudesse dar-me algumas explicações interessantes do ponto de vista canino, verdadeiro, naturalmente, não daquele que os homens julgam ser.

O sujeito da cara preta estava roendo um respeitável osso, que havia requisitado na cozinha, assim como nós fumamos um charuto após as refeições.

— "Vá buscar um osso para você na cozinha," — disse-me ele em tom paternal (nós nos tratamos por você). Declinei, agradecendo. — "Hoje quero fazer-lhe algumas perguntas. Estou escrevendo um livro. Necessito do seu parecer; por exemplo, sobre os homens."

O osso estalou.

— "Então sobre os bípedes nus. é um tema muito espinhoso."

Ele rosnou baixinho.

Fiquei, de certo modo, estupefato.

— "Que quer dizer com isso: bípedes nus? Eu pensei... sobre nós!"

— "Sim, é assim que vocês se chamam," — disse-me o sujeito da cara preta sem perder a calma. — "A denominação é muito acertada, não acha também? "

Então também o achei.

— "Para ser franco, não gosto de dar informações sobre esse assunto. O tema é como uma fatia de carne: um pedaço bom, o outro tão duro que pode quebrar os dentes."

— Mas alguma coisa você podia, me dizer. Alguns pontos gerais. A gente não tem idéia certa sobre si mesmo." O sujeito da cara preta atacou o osso do outro lado.

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— “Está bem” — disse-me ele condescendendo — "porém, não lhe poderei dizer nada além do que nós, cachorros, aprendemos enquanto novos ainda. Mais é impossível. Também poderei dar-lhe só dados objetivos, e só em forma de bate-papo. Sabe, estou justamente na hora da minha sesta," — e apontou o osso com a pata.

— “Claro, isto é apenas uma entrevista. Só assim... não quero perturbá-lo de maneira nenhuma! Então, do ponto de vista pedagógico, o que é que vocês aprendem sobre os bípedes nus, enquanto são cachorros novos? "

— "Somente o indispensável. O resto se dá por si mesmo, e também varia muito. Em primeiro lugar, o valor dos bípedes é exclusivamente de ordem econômica: quanto mais perto da cozinha, melhor. Existem, naturalmente, excessões. Cientificamente podemos dizer o seguinte: os bípedes nus, aparentemente, sofreram em tempos remotos, de uma espécie de sarna, pois perderam todo o pêlo, com exceção da crina na cabeça, que causa impressão deveras ridícula. Os espécimes femininos possuem-na mais densa, ao contrário dos bípedes nus masculinos, que criam alguns poucos cabelos no focinho e tratam-no com carinho, embora isso não tenha o mínimo sentido. De um pêlo verdadeiro não se pode falar. O andar deles é muito esquisito e assemelha-se ao da cegonha. Erguem-se nas patas traseiras e movimentam-se com passos graves e comicidade grotesca, bastante devagar, enquanto que as patas dianteiras deixam-nas penduradas, ou balançam-nas no ar. Tudo isso causa uma impressão muito singular, mormente visto de longe e quando andam em grandes grupos. De vez em quando inclinam-se, acenam com a cabeça, ou soltam uma risada gozada, muito parecida com o relinchar do potro. Porém, não quéro cometer rata. Estpu a magoá-lo? "

— "De maneira alguma, pois fui eu que o pedi."

Na realidade sentia-me um tanto deprimido. O sujeito da cara preta percebeu a minha reação.

— "Os bípedes nus" — intercalou com benevolência — "não pareceriam tão incrivelmente cômicos se não se julgassem tão importantes. Correm por todos os lados como se farejassem alguma coisa. Entretanto, possuem um nariz deficiente e quase nunca encontram um rastro, mesmo o mais fácil."

— "Sim, quanto aos ares importantes, você tem razão,"

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— disse-lhe eu suspirando, e pensei em muita gente naquele momento. — "O resto é um pouco novo e inesperado para mim, você compreende..."

Desviando o olhar com discrição, ele roeu um pouco o osso. — "Os bípedes nus, então" - continuou - "não têm pêloá, com excessão dos poucos cabelos que, ainda por cima, caem-lhes quando ficam idosos, ou tornam-se brancos. Os filhotes — raramente mais do que um de cada vez — nascem também nus e ficam, durante muito tempo, desajeitados. Para não sentirem frio, os bípedes nus protejem-se com trapos coloridos. Fica muito feio, porém, as pobres criaturas indefesas não podem agir de outra forma senão morrem congeladas."

Fiquei calado. Não tive vontade de explicar-lhe nossas normas morais, que nos fazem considerar nosso corpo como algo indecente.

— "O rosto e as patas dianteiras ficam livres" - continuou o sujeito de cara preta. — "Somente quando os bípedes nus se reúnem, fazendo muitas vênias e inclinando a cabeça, é que cobrem também as patas dianteiras. Por que? Ignoro-o."

Eu também o ignorava.

— "Seus dentes são fracos, embora gostem de comer e comem muito. Nunca os vi se pegarem, pelo contrário, verifiquei com freqüência que, estando os bípedes nus enfurecidos um com o outro, redobram suas inclinações, trocando uma porção de amabilida- des. As patas dianteiras são extremamente desenvol-vidas, e os bípedes servem-se delas com muita habilidade, como os macacos, com os quais em geral, têm muita semelhança. A todos falta-lhes o rabo, por isso não podem abaná-lo. Mostram os dentes quando estão alegres. Quando se encontram ou se despedem, procuram arrancar reciprocamente as patas dianteiras. Não sabem catar pulgas. Você o sabe? "

— "Não," — respondi encabulado - "infelizmente não. Ainda não tive oportunidade."

— "Os bípedes nus são esquisitos também em outros assuntos. Por exemplo: consideram bonitos os rostos lisos e brancos. O que é que nós diríamos se as damas dos boxors não tivessem aquela tez aveludada e preta, e aquelas inúmeras rugas picantes? Muito estranha também é a predileção dos bípedes nus por um determinado metal sujo. Correm o dia todo e trabalham para adquiri-

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lo. Também não gostam de se desprender dele. Possuindo este metal sujo podem conseguir as coisas mais lindas, e quem mais o possui é o tal, e todos abanam o rabo perante ele (se é possível falar em abanar, tratando-se de tão triste ausência de rabo)."

O sujeito da cara preta terminou seu osso.

— "Não lhe posso dizer mais que isso. Sei ainda uma porção de coisas, ultrapassaria, porém, o que me é permitido dizer. São assuntos pessoais sobre os quais refleti, pois sou filósofo. Os filósofos nunca dizem tudo para não serem amordaçados."

— "Entre nós também é assim," — disse-lhe eu. — "Está vendo? Mas o pouco que lhe expliquei pode contar sossegado, é apenas sabedoria de cão novo. Muitos não compreenderão nem isso."

— "Estou convencido disso," - respondi.

— "Em última análise," — disse ele para rematar, — "não deixe pender as orelhas, mesmo sendo apenas um bípede nu! Qualquer um pode ter uma alma: tanto um bípede nu como um quadrúpede pe - ludo. Até logo."

O sujeito da cara preta deu a pata.

Despedi-me. Senti-me mal como um cachorro.

— "Quer dizer que você, de maneira nenhuma, desejaria ser um bípede nu? "

O sujeito da cara preta arreganhou os dentes: "Rrrrrrrr!"

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Mãe

No sótão, dentro de uma cesta, estava deitada uma gata com dois filhinhos. Os gatinhos nasceram havia poucos dias e eram ainda muito desamparados, com suas pequeninas patas que sempre escorregavam, e suas enormes cabeças de olhos cegos que se enterravam no pêlo da barriga de sua mãe. Eram muito esquisitos. A gata, porém, achava-os lindos sobremaneira, pois eram seus filhos: um, cinza e preto como um tigre, igual a ela mesma, isto é, uma beldade, modéstia à parte; o outro, rajado igualzinho ao pai, com elegantes calças e luvas brancas, uma pinta no nariz, cantava com muita expressão. Como eles cantavam lindo, juntos, no jardim, nas primeiras noites do mês de março: a duas vozes... tantas canções bonitas!... Não era de se admirar que esses filhotes de patinhas escorregadias e cabeças enormes, se tornassem criaturas tão maravilhosas, não somente gatos — o que já por si significa o máximo, como todos sabem — mas gatinhos como a terra nunca ainda tinha visto! A mãe gata espreguiçou-se numa curva orgulhosa e pôs-se a contemplar, ronronando amorosamente, os pequenos milagres de seu mundo. O agradável quarto do sótão parecia um lugar próprio em todos os sentidos, tranqüilo e sossegado; uma cesta macia, cheia de feno, quente e bem apropriada às primeiras tentativas de engatinhar; muita bugiganga em redor, muitas surpresas e material de investigações, tudo alegremente iluminado pelo luar de maio através da janela; largo espaço para folguedos, e... que refúgio admirável para a caça de camondongos! Que vasto território para a formação perfeita das aptidões profissionais! "Seria bom eu mesma procurar uns camondongos", disse a gata. — "Os pequerruchos estão dormindo e uma distração far-me-á bem; tratar de filhotes é cansativo e, de mais a mais, estou com um considerável apetite." A gata levantou-se do seu leito de feno, deu ainda uma rápida lambida nos filhos, e esgueirou-se em seguida, silenciosamente, farejando ao longo dos cai-xotes e cestos. Não obstante ter já alcançado certa idade, não deixava de sentir agradável excitação ao procurar camondongos. E, de repente... não se ouviu um farfalhar? Não estava cheirando tão bem a camon- dongo? Não era o perfume delicado, inconfundível para o nariz de um gato? Mais alguns passos cuidadosos com os seus chinelinhos de veludo — ninguém a imitava nisso — e ei-la perante um ninho de camondongos, com dois pequeninos filhotes nus. "Só filhotes," — pensou a gata — "então não havia necessidade dos chinelos de veludo, pois estes bichinhos não sabem correr, nem enxergam. Nem vale quase a pena, somente duas pequenas dentadas, mais nada. Mas enfim, sempre é

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alguma coisa para enganar o estômago, por assim dizer..." Preparou-se para abocanhar. Porém, alguma coisa falou dentro dela: "Eles não sabem correr, não enxergam, igualzinho a seus filhos. São totalmente desamparados e a mãe deles está morta possivelmente. Estão tão desampara-dos como seus filhos quando você não está junto deles. Verdade é, são camondongos, porém camondongos pequenos, muito pequenos, são filhotes; na verdade, você sabe o que quer dizer filhotes?" Era o amor maternal que falava, e dentro dele o amor universal, seu espírito no futuro. Ele só pode falar dentro de um amor maternal muito grande, assim como o amor maternal de uma gata, pois este é um dos maiores.

A gata inclinou-se, apanhou cuidadosamente um dos ratinhos com os dentes e levou-o ao seu cesto de feno. Em seguida, voltou para buscar o outro. Ela lhes deu o peito e amamentou-os junto com seus filhos. Os ratinhos estavam quase entorpecidos, porém esquentaram-se rapidamente no pêlo de sua barriga. Estavam quase mortos de fome, porém saciaram-se logo no peito da gata. Sentiam-se perfeitamente protegidos pela mãe e não imaginavam que esta fosse uma gata. Como haveriam de saber? Eles eram cegos e desprotegidos. Cobria-os agora, protegendo-os.uma pata de gato, sem unhas, macia, aveludada.

Os gatinhos cresciam e os ratinhos cresciam também; abriram-se-lhes os olhos e a primeira coisa que viram foi a mesma mãe e o mesmo amor maternal.

Eram pequerruchos e brincavam juntos; o sol de maio, olhando pela janela, brincava com eles, e cingia a cabeça da mãe gata com uma coroa dourada. Esta estória é verdadeira e pequenina, porém, muito grande. Nela renasceu um mundo novo de uma criatura pequena em um pobre sótão. E nem sempre se repetirá isso, oh! não; mas foi um acontecimento grande que se deu. As leis do mundo são fortes e duras, contudo serão dominadas, degrau por degrau, porque o amor universal é uma força viva dentro da alma desta terra. Lentamente, mui lentamente, o mundo velho transforma-se num novo, e isso já aconteceu muitas vezes num pobre quarto no sótão, mas os homens nem ficaram sabendo. Os homens sabem tão pouco, e menos que todos, sabem aqueles que imaginam saber mais que todo o mundo. Eles não sabem, também, se os bichos rezam. Eu creio, porém, que os bichos também imploram, em momentos de angústia, a um poder que está acima deles; e se essa gata pedisse, a Virgem Maria atendê-la-ia.

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O sol de maio sabia o que os homens ignoram, pois ele cingiu a cabeça da mãe gata com uma coroa dourada.

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A Mosca Efêmera

A mosca emergiu da água, arrastou-se devagar até a margem, e esticou suas asas finas sob o solde junho. Terminara uma forma de existência, uma outra estava para se iniciar. Sua existência de larva já lhe parecia um sonho distante; uma existência cheia de instintos selvagens e fome, dificultada e tolhida pela densidade da água. Algo novo principiava agora, algo sempre pressentido, porém, — só hoje — real. Leveza e luz foram as primeiras sensações alegres desta transformação, e a razão da vida eram agora as asas que brilhavam no ar azul, sob a luz doiradado sol. Liberta daquilo que antes fora ela mesma, a nova existência chamava-a para a dança do silfonoéter, por toda a longa vida de Manhã, Tarde e Noite, e suas asas tremiam de alegria, prontas para levantar vôo através do infinito banhado pelo sol.

No brejo, ao lado daquela água, da qual saíra a mosca para uma nova vida, acocorava-se uma grande rã verde, que olhava a estranha criatura com olhos esbugalhados e sentimentos totalmente diferentes. "Que criatura gorda! Tenho de comê-la sem falta," - pensava ela; e sua boca, de ricas dimensões, abria-se e fechava com apetite. Aproximou-se devagar e cuidadosamente, com a prática de um profissional.

A mosca esticou de novo as asas e os membros. Parecia-lhe haver ainda algum peso a dominar, e, de repente, seguindo um desejo inconsciente, arrastou-se para fora de si, tirou a pele, e ficou novinha em folha diante de sua própria máscara — a forma daquilo que era antes e agora não o era mais.

"Ué!" — disse a rã. — "A criatura gorda duplicou-se. Incrível. Será que se transformarão em três? Qual delas é a mais gorda? Qual comerei? " - resmungou ela, continuando imóvel com toda a paciência de rã madura e experimentada.

Na margem, peregrinavam uma formiga e um besouro. Também outras criaturas multípedes movimentavam- se nesse lindo dia de junho, esses dois, porém, encontraram-se para um bate-papo. A formiga assegurou-se antes, é claro, de que o besouro era vegetariano. Nunca se sabe, nessa família numerosa de multípedes, se algum deles não é justamente um consumidor de formigas - a gente sente tremerem as antenas só ao dizê-lo - e só é possível conversar sossegadamente após uma investigação cuidadosa. Este aqui, porém, era um peregrino inofensivo, dentro de uma simples roupa castanha, um besouro

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bonachão que se alimentava de cereais. — "Quando me movimento sinto sempre grande necessidade de pensar," — disse-lhe o besouro. — "A senhora também? é tudo tão estranho..." — "É uma maneira muito insalubre de encarar a vida” — respondeu-lhe a formiga que arrastava com dificuldade um pedacinho de palha. — "Devemos conservar-nos em atividade, e ter sempre em mira o bem-estar do povo, simplesmente o mais prático, sabe? " — "Depende, porém, de certos pontos," - disse-lhe o besouro. — "São justamente esses pontos sobre os quais devemos refletir sem falta. Por exemplo, estou trajado com a maior modéstia, como a senhora deve ter notado, porém, também tenho pontos sobre minhas asas castanhas, está vendo? Aqui, e aqui... três pontos." Ele apontou com uma pata dianteira a parte traseira das asas. Os olhos da rã saltaram para fora. Será que temos ainda mais comida? Que é que se engole agora? Como a vida é complicada! — “Olhe!" — disse-lhe a formiga, mostrando com as antenas a mosca e sua carcaça abandonada — "ali está sentado alguém e está sentado mais uma vez! Nunca vi coisa igual." — "Estranho, muito estranho," — disse-lhe o besouro - "vai ser necessário procurar os pontos que explicarão este fenômeno. Deve existir um ponto a partir do qual..."

- "Ah! pare com seus pontos." - disse-lhe a formiga. — "Isso é preciso encarar pela maneira prática da economia popular. Uma deve ser a criatura, e a outra, sua roupa. A roupa não se mexe, e a criatura balança as asas. Deve ser um ente muito leviano, pois não se deve balançar as asas dessa maneira numa sociedade decente. Mas que semelhança da roupa com a criatura! Não, uma coisa assim ainda não encontrei na vida, e, entretanto, terminei o curso estadual de ovos e sou enfermeira diplomada em larvas."

No pequeno besouro surgiu uma espécie de recordação: não estivera ele também, um dia, incluso numa larva e depois ficou livre, multípede e com pontos? Como é que isto se deu mesmo?

"Sinto, contudo não sei como, porém sinto-o realmente, só que não posso me lembrar direito." — disse ele e coçou pensativo a cabeça com as antenas.

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— "Preciso investigar," - disse-lhe a formiga com decisão. — Vou dar um pulo até lá; tome conta, enquanto isso, da minha bagagem."

A formiga correu apressada em direção à mosca. Os olhos da rã, que continuava atenta, saltaram, por assim dizer, das órbitas.

— "A senhora me interessa do ponto de vista nacional," — disse a formiga à mosca. — "Isto aqui é a senhora mais uma vez, ou é parte do seu guarda-roupa? "

— "Não sei," - disse-lhe a mosca - "é alguma coisa minha que, porém, não é essencial. O que sou eu mesma voa para a vida repleta de luz solar."

— "Deixe de falar difícil. Trata-se de economia popular que talvez seja aplicável aos nossos princípios estatais. Do que a senhora vive?"

— "De ar, luz e sol," — disse-lhe a mosca.

— "Isto é tapeação. Disso poder-se-ia viver um dia, não mais."

— "Pois eu vivo só um dia; uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde. é uma infinidade, difícil de imaginar, não é? "

— "Uma criatura decente vive anos," — disse-lhe a formiga, - "primavera, verão, outono, inverno."

— "Não sei o que é isso; talvez a senhora esteja apenas usando termos diferentes. Pois a vida inteira é só Ma- nhã.Meio dia e Tarde. Não posso imaginar outra coisa." — "Naturalmente, porque a senhora não tem instrução estatal." — "Encontrou o ponto? " — gritou-lhe o besouro. — "O senhor com o seu ponto!" — disse-lhe a formiga. — "Cuide melhor da minha bagagem; este é o único ponto que deve preocupá-lo agora. Se eu, voltando, não encontrar minha bagagem, hei de tamborilar tanto nos seus três pontos, que o farei esquecer-se de todos os outros."

— "Estou sentado sobre a sua bagagem; não é possível fazer mais. Contudo, deve existir um ponto..."

A rã não conseguiu mais se dominar. Deu um salto sobre a casca da mosca. Esta pareceu-lhe ser a mais gorda das duas pessoas gordas. A mosca abriu as

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asas bem abertas, e voou para a luz, o ar e o sol, deixando para trás, inanimado e insignificante, aquilo em que ela estava antes envolvida: seu vestido. Iniciava-se uma nova existência: Manhã, Meio-dia e Tarde.

"Isto não é ninguém, apenas um estojo," - coaxou a ra furiosa, e pulou zangada na água.

A formiga voltou apressada ao besouro, e retirou sua bagagem sem agradecer.

— "A criatura diz que vive de ar e de sol, que vive só um dia. Conforme diz: uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde. é uma vigarista. Logo imaginei quando a vi balançar as asas daquele jeito; é uma leviana."

"Manhã, Meio-dia, Tarde," — repetiu o besouro, coçando a cabeça com a antena. — "Deve ser possível, porém, encontrar um ponto, um ponto qualquer..."

Multípede e penosamente continuaram os dois a peregrinação. A rã verde e grande, sentada no brejo, estava com o pescoço inchado dè tanta raiva. A mosca balouçava-se com asas reluzentes na luz brilhante duma nova existência de um dia — uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde.

Porém, o que é uma tarde? Um momento e mil anos são igual mente efêmeros e inconstantes. Carece mesmo encontrar aquele ponto, como dizia o pequenino besouro peregrino, um ponto qualquer...

Não somos nós, também, moscas, e não deixamos também para trás larvas que se parecem conosco, e abandonamos assim apenas a terra e o brejo, para esticar nossas asas no éter azul da eternidade ensolarada? Todo presente encerra seu misterioso prenúncio do futuro, e em toda existência respira a grande intuição dos pequenos besouros: toda vida é uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde, e depois da noite, a aurora de um novo dia — a vida toda é uma eterna Páscoa.

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Tratamento Balneário

Um velho macaco resmungava zangado, sentado em cima de um coqueiro. Estava muito aborrecido, pois tinha um reumatismo nas pernas. Não era um macaco simples, e sim, chefe de numerosa família; era um macaco-prefeito. Quando um simples macaco tem reumatismo, isso incomoda apenas a ele próprio, se porém, um macaco graduado tem reumatismo, isso não é apenas desagradável para ele próprio, como também altamente penoso para o seu ambiente.

Todos os macacos o sentiam, pois quando alguém dizia ao velho macaco: “Bom dia, Vossa Peludeza!", ele arreganhava os dentes, e se alguém se informava sobre a sua saúde, dava uma bofetada no curioso, ou pisava-o com sua perna reumática. Afinal, era um macaco graduado.

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Todavia, tornara-se evidente que isso não podia continuar mais assim,e, numa reunião íntima de macacos, ficou resolvido curar este reumatismo graduado. Concordaram então em consultar dois velhos marabus, médicos célebres, e autoridades no seu campo. Os-* dois marabus apareceram de bom grado, eram senhores bondosos e, além do mais, o caso interessava-lhes profissionalmente, pois um reumatismo graduado não é nada comum.

Um dos marabus possu ía ainda um pouco de plumagem na cabeça: era o Conselheiro Médico; o outro estava totalmente calvo e era Conselheiro Médico Privado. Ambos caminhavam sobre altas pernas de pau e tinham grandes bicos.

O velho macaco desceu da árvore resmungando, e mostrou as pernas mal-humorado. Os marabus inclinaram-se com garbo mundano e estufaram-se cheios de perícia. Mediram com as garras o pulso do velho macaco, apalparam e examinaram as pernas reumáticas.

— "Seu reumatismo incomoda-o muito? " — pcrgun- tou-lhe o Conselheiro Médico, olhando de lado para o velho macaco.

— "A bem dizer, incomoda-me pouco ao trepar profissionalmente," — disse-lhe o velho..macaco, empolgado com os dois Conselheiros Médicos. — "Nos assuntos de família, porém, atrapalha-me muito. Por exemplo, quando piso nalgum de meus familiares, percebo claramente que não o faço mais com o impulso juvenil que me era comum, e sinto até uma dor. Fui obrigado ultimamente a renunciar a este hábito que me era tão caro, e a satisfazer-me com simples bofetadas. Além de estar prejudicando minha autoridade, isto, com o tempo, não me fará bem."

— "Compreensível, muito compreensível," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado. - "Portanto, uma perturbação nas atividades tanto familiares como so-ciais, de conseqüências perigosas."

"Tenho a impressão de que é reumatismo muscular. " — disse o Conselheiro Médico, coçando a plumagem da cabeça, — "rheumatismus musculorum ".

— "Poderia ser também gota," — disse o Conselheiro Médico Privado, pigarreando pelo bico, — "arthritis urica no local predileto do dedão. Os exames clínicos sobre o assunto ainda não foram concluídos."

— "Eu piso nos meus familiares com a planta do pé e não com o dedão," -

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disse-lhe o velho macaco.

— "Uma indicação preciosa," — disse-lhe o Conselheiro Médico, — "indicação muito preciosa, de grande alcance. Gostaria de insistir no rheumatismus mus-culorum, colega. Que acharia do método de auto- sugestão? Diga uma vez, bem nitidamente e articulado, com profunda convicção: não tenho mais reuma-tismo, estou cada dia melhor."

— "Estou cada dia melhor," - disse o velho macaco — "não tenho mais reumatismo." — "Continue dizendo," — aconselhou*o o Conselheiro Médico Privado. — "Diga: piso nos meus familiares comodamente e sem dor, não há nenhum reumatismo."

— "Piso nos meus familiares comodamente e sem dor," — repetiu o velho macaco - "estou cada dia melhor, não há nenhum reumatismo. Ai! que pontada me deu de novo!"

— "O método de auto-sugestão parece não surtir efeito neste caso especial," - disse o Conselheiro Médico Privado. — "Os exames clínicos sobre o assunto ainda não foram concluídos."

— "É um caso persistente," — disse o Conselheiro Médico — "rheumatismus musculorum chronicus.Gostaria de sugerir um tratamento de águas, banhos de lama, balnea limosa.”

— "Banho eu não tomo de modo algum," — disse-lhe o velho macaco — "quero ficar em casa, — fique na sua árvore e alimente-se bem."

— "Compreensível, muito compreensível," disse-lhe o Conselheiro Médico Privado — "talvez possamos tentar ainda a psicanálise. O senhor não tem algum ponto obscuro na sua vida? Talvez consigamos então descobrir a causa desse rheumatismus musculorum.”

— "Para ser franco," - disse-lhe o velho macaco, — "gostaria de que estes dois marabus cacarejantes me deixassem em paz; pontos obscuros nunca tive, a não ser pulgas, e estas não me podiam contaminar com reumatismo porque elas mesmas não o têm; são gente muito ativa." — "Continuo a favor do tratamento balneário," — disse o Conselheiro Médico Privado.

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— "Quero subir na minha árvore," — disse o velho macaco, e rumou com seus longos braços em direção a uma palmeira.

A família, porém, seguiu-o e pendurou-se no seu rabo. Todos lhe diziam guinchando, que experimentasse o maravilhoso tratamento balneário, e lhe asseguravam que os marabus eram verdadeiras capacidades.

— "É bem perto daqui," - disse-lhe o Conselheiro Médico;-"um balneário distinto e muito confortável. A responsável é minha conhecida, uma senhora valente e de muita confiança; tem mais de cem anos. Encontrará ali todas as comodidades, e as instalações seguem padrões europeus."

Ambos os Conselheiros Médicos, de braços dados com o macaco o levaram ao balneário. Movimentavam-se com imponência sobre as suas pernas compridas, gesticulando com as asas, e falando sem parar sobre o rheumatismus musculorum. Toda a turma de macacos os seguia guinchando e cheia de expectativa. Chegaram logo. Era um balneário distintíssimo na margem do Nilo, realmente no padrão europeu e cheio de lama. Na beira do rio, sobre as árvores, papagaios — uns mais coloridos que os outros — conversavam sobre as últimas notícias. A praia estava livre e justamente naquele momento um rinoceronte alisava-a pisoteando.

— "E este, com os dois chifres no nariz, é o recepcionista? " - perguntou o velho macaco preocupado.

— "Não, este é o chefe do balneário," — explicaram- lhe os marabus. - "Ele soca o chão para dar-lhe melhor aparência. Em geral o ambiente aqui é total-mente europeu."

O rinoceronte pisoteava pressuroso, focinhava por toda parte e enfiava seu chifre em coisas que não lhe diziam respeito. Quando encontrava alguma coisa totalmente inútil, grunhia de alegria.

— "O chefe tem de ser assim? " - perguntou o velho macaco.

— "Os exames clínicos sobre o comportamento das autoridades ainda não foram concluídos," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado.

— "Aquele senhor grande e gordo é o responsável- mor," — disse-lhe o Conselheiro Médico, mostrando com sua asa um elefante que abanava a

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comprida tromba para lá e para cá. - "Depois do seu banho ele lhe aplicará uma ducha. É exclusivamente por gentileza que ele o faz; é um tratamento terapêutico de grande valor. Nos intervalos, ele toca trombeta, substituindo assim a orquestra balneária. Ainda não possuímos uma. Estamos, porém, em negociações com várias hienas que deverão cantar regularmente, todas as noites, canções do deserto. Infelizmente exigem pelo seu trabalho uma vítima para devorar, e enquanto não temos ainda muitos clientes, isto se torna caro demais. Estes macaquinhos aqui são mascates, está vendo? ê um verdadeiro balneário moderno."

Os três macaquinhos dançavam com afã em redor do velho macaco.

— "Coçar o couro, pentear, pegar pulgas, caçar piolhos — preço: uma banana. Se fizer assinatura, mais barato!" — gritou um deles.

— "Qual o que!" resmungou o velho macaco — "meu princípio é: pegar piolhos só em casa. Daria muito por estar na minha árvore!"

Os outros dois macaquinhos aproximaram-se.

— "Deseja folhas secas para fricções? Uma tâmara cada; boas folhas secas para fricções."

— "Cascas de noz de coco, anéis de caniço, bonitos sou verti rs!" — "Vou me lembrar deste balneário até morrer, sem nenhum dossouvenirsV

— “Eis o local do banho," — disse o Conselheiro Médico Privado. — “Basta o senhor enfiar as pernas com rheumatismus musculorum, caso não lhe agrade mergulhar inteiramente. As pernas estando dentro, o sangue desce."

— "E as pulgas sobem," — disse-lhe o velho macaco.

Do fundo do rio fez-se ouvir um tremendo roncar, grunhir e gargarejar, e à tona apareceu um enorme hipopótamo.

— "ê a responsável," — exclamou o Conselheiro Médico satisfeito, e acenou com a garra. — "Este paciente deseja tomar um banho de lama balnea limosa;ele sofre de rheumatismus musculorum."

— "Esta é a responsável? " — gritou o velho macaco. — "Quero ir para casa, quero subir à minha árvore!"

A responsável sorriu com uma boca de vários metros, e principiou a remexer a

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lama com muita maestria, pois era uma criatura de muita experiência e jeito.

— "Quero ir para casa" — gritou o velho macaco , afastando as magras pernas de pau dos Conselheiros Médicos. — "Entre logo!" — comandou o rinoceronte — "deixe de encrencas; há mais gente ainda que quer tomar banho; também eu quero entrar."

— "Pois não, pois não, o senhor primeiro, o senhor primeiro," — disse-lhe o velho macaco, mas já sentiu o chifre da autoridade nas costas, e caiu na água de cabeça para baixo, quase nos braços da responsável.

Num segundo estava de novo fora d'água, verde e irreconhecível de tanto lodo. No mesmo momento o responsável-mor esguichou água com sua tromba, e o velho macaco teve a impressão de que o rheumatismus musculorum se precipitou das pernas para as mãos, das mãos para a cabeça, da cabeça para o rabo e do rabo para fora. O elefante era um mestre na ducha. Os marabus cacarejavam com aprovação; a responsável sorria gentilmente, e a família do macaco exultava de alegria.

Nisto apareceu ao lado da responsável um crocodilo verde, piscando os olhos.

— "Deseja uma massagem? " — perguntou,mostrando suas patas à guisa de propaganda — "deseja uma massagem? "

O velho macaco, com um inacreditável e grande salto, pulou da margem do rio para um lugar mais seguro. — "Colega, o que o senhor acha," — perguntou o Conselheiro Médico Privado — "será um massagista experimentado? "

— "Parece-me antes que é um massagista que experimentou outros," - disse-lhe o Conselheiro Médico.

— "Os exames sobre as vantagens da massagem com patas de crocodilo não foram ainda concluídos," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado.

— "Conheço esse massagista," - disse-lhe o Conselheiro Médico; — "uma vez ele fez massagem num cliente que sofria também de rheumatismus musculorum. O reumatismo sumiu durante a massagem, mas o cliente também. Desde aí, colega, não pude mais recomendar o massagista."

— "Compreensível, muito compreensível, colega,"

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— disse-lhe o Conselheiro Médico Privado. — "Existem sempre médicos que ainda defendem o ponto de vista de que a eliminação da doença não está ligada obrigatoriamente à eliminação simultânea do paciente. Porém, os exames clínicos também sobre isso não foram concluídos."

Ambos procuraram o velho macaco. Este, no entanto, havia sumido, e toda a família de macacos com ele. Não aguentaram o aspecto do massagista. No díà seguinte os dois Conselheiros Médicos puseram- se a caminho para fazer uma visita de praxe ao velho macaco. Não chegaram longe, todavia. O velho macaco estava sentado numa árvore e jogava cocos. Um dos cocos atingiu o Conselheiro Médico na cabeça, formando um galo que inchou consideravelmente. — "Colega, preciso refrescar o galo," — disse o Conselheiro Médico. — "Tenho também a leve impressão de que faríamos melhor se desistíssemos da visita planejada." — "Compreensível, muito compreensível, colega," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado, e ambos procuraram um riacho. Ali o Conselheiro Médico refrescou o seu galo, e o Conselheiro Médico Privado anotou, cuidadosamente,o resultado do tratamento pela água no seu livro de doentes, confeccionado com folhas de palmeiras. Anotou com exatidão científica: "Cliente: um macaco graduado. Rheumatismus mus- culorum nas pernas. Método de auto-sugestão e psicanálise sem resultado. Tratamento com águas, banho de lodo, balnea limosa. O cliente sarou, porém, joga cocos, jactatio nucis, causando galo na cabeça do Conselheiro Médico assistente, tumor capitis. Os exames clínicos para verificar se jactatio nucis é conseqüência de balnea limosa ou decorrência do rheumatismus musculorum ainda não foram concluídos."

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Heroísmo

Dois galos brigavam na frente do galinheiro da fazenda. Atrás deles, o parque sonhava num silêncio de verão, através dos sussurros de velhas árvores seculares, cheias de passarinhos que cantavam suavemente. Os galos, porém, não percebiam nada da paz das velhas copas e nada do sagrado silêncio do verão ensolarado. Enfrentavam-se, encaravam-se e brigavam, lá, no comedouro, no lugar de encontro da maioria dos galos briguentos. Costuma-se chamar a isso: "razoes econômicas", mas na realidade elas são bem outras.

— "Este grão é meu!" — disse um dos galos.

— "Não, ele é meu!" - disse o outro.

No terreiro havia grãos em abundância, o suficiente para saciar muitos galos. Mas tinha de ser justamente aquele grão, somente aquele, o único. — "Eu vi o grão primeiro!" — disse um galo, estufando-se zangado.

— "Não, fui eu que reparei primeiro!"

— "Porém, ele foi-me destinado!" — disse o primeiro.

— "Não, foi escolhido para mim!" — disse o outro. Ambos atacaram-se mutuamente, ergueram-se desajeitadamente um pouco no ar, bateram agitados as asas e abriram com raiva, desmesuradamente, os bicos. Os galos chamam a isso heroísmo, e é muito gozado de se ver.

— "O grão me pertence" - gritou um galo, - "pois sou descendente de uma raça melhor."

— "Não, eu sou de raça melhor!" — gritou o outro.

— "Sou duma família mais antiga!" — cacarejou o primeiro.

— "Não, eu!" - cacarejou o outro.

— "Eu saí de um ovo vermelho!"

— "E eu de um branco!"

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— "Vermelho é mais distinto!"

— "Não, branco é mais distinto!"

— "Não, eu!"

— "Razão tem quem é mais forte!" — grasnavam ambos.

Agitavam-se com fúria, dançavam esquisito, meio por terra, meio no ar, com saltos muito tolos e grotescos; batiam com os esporões e martelavam um no outro com ódio. Chamam a isso guerra — e julgam-na necessária por causa de um grão, ou mesmo por nada, o que é tolice, na realidade, mas como se pode explicar isto a um galo?

— "Não briguem!" — disse-lhes uma velha galinha, que passeava com seus pintinhos amarelos no parque, sob as copas das velhas árvores, no silêncio do verão ensolarado.

Os galos atacaram-se de novo, com fúria; penas arrancadas voavam em todas as direções, e o grão, que como se costuma dizer, era a "causa econômica" — já há tempo jazia enterrado na lama.

Em cima, no espaço azul, um gavião desenhava seus círculos. Devagar descia sempre mais. Depois, atirou- se de repente sobre o galinheiro. Todas as galináceas fugiram céleres para dentro de casa, os dois galos briguentos na frente, pois o mais forte está sempre com a razão.

Só a choca não conseguiu alcançar mais a casa; seuspintinhos não podiam fazer tão depressa o trajeto do longo caminho do parque, com suas patinhas fra-cas e desajeitadas. Por isso ela ficou, chamou assustada seus filhotes e esperou o temível inimigo com o coração aos saltos. Os pássaros canoros calaram-se nas árvores; havia um terrível silêncio deprimente. Só se ouviam as batidas do coração da pobre galinha.

O gavião aproximou-se da terra, pairando, e deslizou com o farfalhar medonho e assustador de suas pesadas asas, em direção da galinha e de seus pintinhos. Um deles ele apanharia, rasgá-lo-ia com seu horrível bico, e levaria depois consigo para longe dos prados verdes da vida, longe do coração materno, bem alto, pelo azul celeste e para a morte — uma dessas pequenas criaturas piantes

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que ela chocou, criou e guiou, um de seus filhos!

A choca soltou um grito dolente de tremenda queixa. Depois aconteceu algo inesperado, espantoso, algo que a orgulhosa ave de rapina ainda nunca presenciara. A galinha saltou para ele, pisou-o e mordeu-o com tanta fúria, tanta coragem e desespero, que ele foi obrigado a se defender.

A luta foi desigual. O gavião sangrava, mas a galinha sangrava ainda mais. A luta não podia demorar muito. De repente o gavião se assustou, ficou indeciso, subiu no ar e, nervoso, começou a esvoaçar.

Da casa vinham correndo as empregadas que escutaram o grito desesperado da galinha e enxotaram o gavião.

A ave de rapina,desiludida e zangada,subia sempre mais e mais, até que, pela primeira vez na vida, vencida e castigada, sumiu no ar transparente do verão nórdico, qual leve silhueta sobre um vidro azulado.

A galinha estava cheia de sangue, mas os ferimentos não foram graves. E em baixo das asas feridas da mãe, os pequenos, amarelos e desamparados pintinhos voltaram para casa. Não faltou nenhum deles.

— — —

Esta é uma estória verdadeira. Aconteceu há muitos anos na velha quinta de Paltemal, terra da minha infância. A galinha nunca foi sacrificada; recebeu a ração até sua morte natural e todos a respeitavam muito. Eu mesmo a conheci em garoto e tirava o chapéu ao en- contrá-la, certamente com muito mais razão e direito do que o fazia para a maioria das pessoas.

Desde aí nunca me impressionei com briga de galos. Galos briguentos sempre existiram e existem, ainda hoje, mais do que o suficiente. Alguns deles ganham até nomes tonitruantes na história mundial, como nos é ensinada. Não são heróis.

Os verdadeiros heróis, porém, — e existem muitos que a história mundial, como nos é ensinada, desconhece — esses receberam a galinha nas suas fileiras imorredouras.

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KRAKELIUS KREQUEQUEQUE

O céu matinal derramava seu anil sobre as campinas da India, mergulhando todos os milagres da existência na luz do novo dia, sob a benção de Brahma.

"Muito sábio e preclaro é este mundo," - disse o elefante Nalagiri Trapelhudo, acordando. E, levantando-se sobre suas pernas-colunas, quedou-se pensativo nessa posição, a larga cabeça virada para o oriente, pois alcançara grande experiência, e sua alma era clara e calma como o céu matinal da India.

Ao seu redor, porém, não estava nada calmo. Nos galhos das árvores agitava-se uma grande multidão de cabeças, pernas, mãos e rabos. Uma reunião de macacos elegia o seu chefe. Sempre que macacos se reúnem, escolhem o seu chefe, do contrário não e- xistiria legítima palhaçada, o que os macacos querem em toda parte, na India e no resto do mundo, em toda parte onde há verdadeiros macacos — e os há bastante. Para chefe sempre se escolhe um de focinho maior e mandíbulas mais fortes, e eleições desse gênero, como todas as eleições no mundo inteiro onde há macacos, são um acontecimento ligado a efeitos secundários, altamente agitados e inesperados. Primeiro, desencadeia-se uma terrível algazarra. Assim ninguém mais entende o que o outro está a dizer — o que nas eleições não é necessário. Depois, eles começam a se morder mutuamente, a bater-se, enrolar-se em novelos, até que um novelo após outro se desenrola, e do último, que conseguiu se livrar de todos os outros, aparece o chefe, que é eleito desta maneira.

Assim aconteceu também desta vez, e o macaco-chefe do novo dia chamava-se Krakelius Krequequeque. Ele assentou-se no mais alto galho da árvore e arrega- nhou os dentes, o que lhe formou muitas rugas no nariz, provocando assim uma expressão pouco amável. Por isso ele era o macaco-chefe.

"Muitas criaturas desta terra são tão barulhentas!" — disse o elefante Nalagiri Trapelhudo. Dobrou com dificuldade e resignação as grandes orelhas e mudou a posição de suas pernas-colunas para refletir, a larga cabeça virada para o oriente.

— "Doravante me incumbo do governo" — disse Krakelius Krequequeque, arreganhando de novo os dentes. — "Um governo consiste em impor restrições, em primeiro lugar, depois..." — "Não queremos restrições! Queremos liberdade! " — vociferaram os macacos.

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— "Calem a boca," — disse-lhes Krakelius Krequequeque — "não existe liberdade para macacos, nem para um legítimo governo de macacos. Tudo tem de ser restrito. Vocês devem restringir-se e eu já estou restringido porque estou restringido como autoridade. Por isso sou o macaco-chefe!"

Grande algazarra.

— "Antes de mais nada, os filhotes macacos não têm necessidade de ficar sempre deitados e ser acariciados nos braços de suas mães. Isto amimalha a geração vindoura; nós necessitamos de macacos rijos e corajosos, como eu."

— "Que é que você sabe sobre a criação de filhos? " — chacotearam as macacas mães. — "Não permitiremos que nos tire nossos doces pequerruchos."

— "Sei muita coisa sobre educação infantil porque sou um governo. Sei um pouco de cada coisa porque o sei como autoridade. Por isso sou o macaco-chefe!"

— "Sabe um pouco de cada coisa e não sabe nada." — disse-lhe uma jovem macaca mãe, arreganhando os dentes.

— "Em seguida" — disse Krakelius Krequequeque — "a mocidade não deve se coçar tanto em público. Não é bonito. Melhor será fazer exercícios com as pernas; isso cria a juventude que precisamos. Nosso futuro está nas pernas.

Grande algazarra.

— "Nós nos cocamos quando sentimos coceira," — gritaram as mocinhas e os mocinhos —"você também se coça."

— "Isso é diferente;" — disse-lhes Krakelius Krequequeque — "quando sinto coceiras, sinto-as como autoridade, e quando me coço, coço-me como auto-ridade. Por isso sou o macaco-chefe!"

Nesse ínterim sentiu coceira e se coçou como autoridade. — "Outra coisa: todos os macacos devem apanhar frutos e não vagabundear. Essas serão nossas provisões para os tempos das vacas magras e essa é a disposição do governo."

— "Queremos comer e não guardar provisões!" — gritaram os macacos.

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— "Isso é o que faltava!" — disse-lhes Krakelius Krequequeque. — "Viver sempre comendo sem trabalhar o governo não permite. Vocês têm de colher e o que colherem, trazer para mim. Um verdadeiro governo de macacos sempre guarda todos os frutos que os outros colhem." — "Para devorá-los!" — vociferaram os macacos.

— "Certamente," — gritou Krakelius — "e comendo-os todos sozinho, como-os como autoridade. Por isso sou o macaco-chefe!"

Um guinchar sempre mais forte de todos os macacos e macacas. Não se entendia mais nenhuma palavra sequer.

Repentinamente cessou todo o barulho.

Da mata cerrada apareceu a tigreza, num elegante vestido de pele listrada, com expressão zangadíssima na cara. Todos se afastaram rapidamente para as al-turas, pois em gente que não é tigre este animal causa facilmente um mal-estar.

— "Que é que significa esse barulho infernal? " — bra- miu a senhora Miesimissa Patamole. — "Meus filhi- nhos, os pequenos Patamole, não conseguem dormir por causa desse estúpido cacarejar."

— "Precisamos cacarejar tanto porque temos um governo e um macaco-chefe," — disse-lhe um macaco pequenino, uma criaturinha totalmente inocente.

— "Onde está o seu macaco-chefe? " — perguntou-lhe a senhora Patamole, batendo perigosamente com a pata num tronco. — "Macaco-chefc, macaco-chefe!" — gritaram os macacos assustados e correram desordenadamente a procurá-lo. — "O macaco-chefe tem de nos defender, tem de falar com a senhora Patamole. Onde está o macaco-chefe? "

Mas o macaco-chefe sumira. Finalmente encontraram uma solitária pata traseira saindo de um buraco num tronco de árvore. Puxando essa pata de autoridade, tiraram Krakelius do buraco e colocaram-no sobre seus membros cambaleantes. Ele esforçava-se muito para voltar ao buraco, debatendo-se veementemente com as mãos e os pés, os outros macacos, porém, seguravam-no.

— "É você o macaco-chefe? " — perguntou-lhe a senhora Miesimissa Patamole, lambendo o focinho de maneira desagradável.

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Krakelius Krequequeque estendeu uma perna e um braço em juramento.

— "Nunca fui um macaco-chefe, juro, nunca!" Como poderia ter ficado macaco-chefe? Sou tão fraco e doentio. Minha carne não tem saúde e sou muito magro. Nem o meu pêlo presta, pois estou cheio de traça. Não, não compensa mesmo a senhora se incomodar por minha causa. A senhora viu como me tiraram do buraco em que caí de fraqueza, de pura fraqueza!" — "Você não acabou de falar sobre educação de crianças? Não disse agora mesmo que é firme e corajoso? " — perguntou-lhe a senhora Miesimissa Patamole.

— "Como poderia ter dito isso se não entendo nada de educação? Nunca entendi nada disso," — disse- lhe Krakelius Krequequeque bamboleando-se todo. — "E eu corajoso? Meu Deus, meu bom Deus! " — choramingou comoventemente o macaco.

— "Você não falou agora mesmo da coceira da juventude? " perguntou-lhe Miesimissa Patamole, e rosnou assustadoramente.

Krakelius Krequequeque movimentou nervosamente a mão e o pé em juramento.

— "Nunca, nunca!" - assegurou - "fico feliz quando não sinto coceira."

— "Porém você estava querendo guardar os frutos que eles colhessem," — disse-lhe Miesimissa Patamole. — "Então você é o macaco-chefe!"

A mão e o pé em juramento moveram-se convulsivamente.

— "Juro pelo templo de Benares, pelo couro dos meus antepassados, juro com as mãose os pés, nunca falei semelhantes coisas! Como poderia ter dito isso? Ai de mim, pobre criatura indefesa! Não creia em semelhantes coisas, minha cara senhora Patamole!"

— "Não sou sua cara senhora Patamole, seu macaco bobo. Vou tirar-lhe as pulgas do pêlo!"

A senhora Miesimissa Patamole era uma dama. Custa- me dizê-lo, mas ela usou realmente essa expressão.

Das profundezas do jangal ouviu-se então um miado suave e queixoso, de

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várias vozes.

- "Oh, céus!" - disse Miesimissa Patamole - "meus doces filhotes, os pequenos Patamole, que vocês acordaram, estão me chamando. Estão com fome. Preciso voltar para casa. Mandarei, porém, meu marido assim que ele voltar da caça. Ele investigará todo esse assunto. Vocês vão ver, cambada de macacos!"

Miesimissa Patamole sumiu na selva e logo os Patamole estavam aconchegados entre as patas maternas, mamando de olhos cerrados, e ronronando alto e delicados.

Os macacos resolveram, é claro, não esperar a chegada do senhor Patamole. No momento em que a senhora Miesimissa Patamole sumiu, iniciou-se um debandar desordenado, um emaranhado confuso de cabeças, braços, pernas e rabos. À frente de todos fugia Krakelius Krequequeque, pois ele fugia como autoridade. Por isso era o macaco-chefe! Tudo silenciou nos galhos das árvores. O céu matinal derramava seu anil sobre as campinas da India, mergulhando todos os milagres da existência na luz do novo dia, sob a benção de Brahma.

"Muito sábio e preclaro é este mundo," — disse o elefante Nalagiri Trapelhudo, e mudou a posição de suas pernas-colunas para refletir, a larga cabeça virada para o oriente. — "Inúmeras criaturas, porém, são mui tolas e mui barulhentas. Especialmente tola e barulhenta é a macacada desta terra, e os mais tolos e mais barulhentos são os macacos-chefes."

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Glória Post Mortem

Os funerais do célebre anatomista e diretor do Instituto Fisiológico da antiga Universidade decorreram em forma de comovente homenagem dos círculos acadêmicos aos méritos do grande finado. O catafalco, ornamentado com coroas de flores e fitas de seda, mergulhado em flores e folhas de louro, estava emoldurado por círios ardentes, e, na sua frente, sobre uma almofada de veludo, tinham colocado numerosas insígnias que o eminente cientista havia usado, com justificável orgulho, durante sua vida. Dos dois lados do catafalco, os representantes das corporações montavam guarda de espada em riste; ao lado da família encontrava-se o senado da Universidade paramentado, o corpo docente em peso, e os representantes do governo. O sacerdote acabava de pronunciar seu discurso, que penetrou profundamente em todos os corações. "Foi um homem exemplar e um cientista exemplar," assim terminava ele, "foi um por ser também o outro, porque ser um grande pesquisador significa ser também um grande homem. Estamos ao pé do catafalco de um homem excepcional, com a alma cheia de tristeza porque ele nos foi tomado. Porém, não nos devemos entristecer nem lamuriar, pois este Grande não está morto; continua a viver, e está agora perante o trono do Todo-Poderoso, eriVolto no esplendor de toda sua vida laboriosa, como diz a escritura: "Eles descansam do seu trabalho e as suas obras os acompanham!" Todos ficaram em silêncio, e ninguém reparou que o sacerdote, aparentemente, havia se esquecido de um pormenor insignificante, isto é, que o Grande Morto, que devia encontrar-se nesse momento perante o trono do Todo-Poderoso, defendeu durante sua vida inteira a convicção da não existência de Deus. Essas minúcias, porém, são geralmente esquecidas nos discursos fúnebres. Em seguida, levantou-se o Reitor da Universidade, que ostentava uma corrente de ouro no pescoço, e pronunciou, com voz cheia de emoção, cálidas palavras de despedida para o seu célebre colega. "Ele foi sempre um ornamento da nossa velha alma mater e um ornamento da ciência, à qual consagrou toda sua existência; um exemplo para nós e para todos que virão depois, porque seu nome brilhará eternamente nas letras douradas do cabedal da cultura humana. Neste momento profundo e festivo bem pouco posso falar da grandeza do seu espírito, apenas, apontar como reunia provas e mais provas baseando- se em incansáveis experiências com animais. São imprevisíveis as grandiosas perspectivas que se abriram para a humanidade sofredora e para a ciência por meio de fatos totalmente novos na medicina. Resta-nos imitar o grande pesquisador, que nos indicou tais caminhos, e nós, assim como a juventude acadêmica que o admirava, para a qual ele foi um guia à verdadeira dignidade humana, queremos jurar, ao pé de suas cinzas, continuar e ampliar sua obra, para o bem da ciência européia e glória da nossa amada pátria. Como podemos felizmente constatar, não faltaram ricas distinções ao

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nosso Grande Morto, e mesmo honrosas demonstrações de benevolência chegaram-lhe dos mais altos poderes.'-Todos os o- Ihos dirigiram-se com admiração para a almofada de veludo com as condecorações que pesavam vários quilos. — "Ainda poucos dias antes de sua morte, recebera com alegria a nomeação de Conselheiro Privado Efetivo, com o título Excelência, homenagem que fez vibrar com ele nossa Academia inteira. Porém, por maior que tenha sido sua fama durante a vida, maior ainda ela será após a morte, para toda a eter-nidade, e nós, que o choramos, fazemos votos que descanse agora do seu trabalho, passeando nos Campos Elíseos na companhia dos grandes espíritos de todos os tempos, aos quais igualou-se por suas obras, e assim, também eu quero concluir com as palavras do conferencista eclesiástico que me precedeu: "e as suas obras os acompanham!" Todos estavam cheios de reverência, em parte por causa da ciência européia, em parte por causa do título Excelência. O Magnífico Reitor não se lembrou porém de uma insignificância, isto é, de a ciência européia considerar os Campos Elíseos uma fábula, e afirmar terem se dissolvido em substâncias químicas, os grandes espíritos do passado. Isto porém são insignificâncias, e a instrução que está em voga atualmente permite usar palavras gregas para as coisas que mais nada representam. Se quiséssemos pensar um pouco - meu Deus, aonde chegaríamos na nossa atual civilização e na ciência européia?

O representante do governo declarou haver sido o falecido o sustentáculo do regime moderno, e o representante da cidade disse haver a Prefeitura resolvido unanimemente conceder o nome do Grande Morto a uma das suas ruas. O coro da igreja cantou um coral, uma canção antiga de tempo remoto; homens diferentes, com princípios diferentes criaram essa canção que não se harmonizava com as tonitru- antes palavras de hoje. Muito suave e irreal, como de vozes do além, espalhava-se o canto pelo espaço: "como será, como será, quando entrarmos em Salém, a cidade das ruas douradas? ..."

Nisso o caixão baixou. — — —— — —

O morto estava o tempo todo assistindo aos funerais. Parecia-lhe não haver mudado muita coisa. Recordava apenas ter vislumbrado um brilho muito claro, depois voltou tudo a ser como antes; mal se dava conta de ter morrido. Sentia-se apenas mais leve, nenhum peso, nenhuma matéria densa. Ficou perplexo. Então existe uma vida após a morte? A antiga ciência estava certa e a nova, errada? Porém, assim era mais belo e proporcionava-lhe muita calma, embora houvesse algo de atroz em não poder falar mais com ninguém, e em nenhum

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dos seus parentes e colegas perceberem quão próximo deles se encontrava. Não obstante, consolava-o muito ouvir como o homenageavam e com quanta certeza falavam do trono do Todo- Poderoso e dos Campos Elísios. Os títulos e as condecorações faziam-lhe falta, não lhe era possível tocá- los. Todavia não continuava ele sendo sempre ainda o grande cientista, o célebre pesquisador? Não diziam: "e as suas obras os acompanham? ..." Ficou só. Os contornos do espaço escureceram e diluiram-se no nada. Um grande silêncio o envolveu; apenas bem de longe, quase imperceptíveis, chegavam os sons da canção: "quando entrarmos em Salem, a cidade das ruas douradas." Isto ia acontecer agora, talvez já. Sentiu uma grande tensão; e nesta tensão havia algo de medo, de inexplicável, uma grande interrogação que o enchia por completo. Também ficou tão escuro que não se via mais nada. De repente clareou e um anjo surgiu à sua frente. Então isto também existia? Neste caso existia também um Deus, e os inúmeros mortos que continuavam vivos, e a Jerusalém espiritual. Como era belo tudo isso! Mas o anjo parecia sério e muito triste. — "Para onde quer ir? " — perguntou-lhe ele. — "Ao paraíso." — "Venha," - disse-lhe o anjo. Um grande portal escuro abriu-se sem ruído e eles entraram num recinto ofuscantemente iluminado. As paredes tinham cor de sangue e no chão acocora- vam-se inúmeros bichos mutilados que gemiam. Estendendo seus membros ensangüentados ao morto, encaravam-no com olhos ofuscados e apagados. Suas fileiras alongavam-se até se perderem de vista. — "Eis aqui as cadelas que você martirizou para tirar os filhotes. Nunca teve filhos que amou? Quando seus filhos morrerem e procurarem o pai no paraíso, hão de encontrá-lo aqui. é o seu paraíso, o paraíso que você criou. Aqui estão os gatos, cujos ouvidos destruiu com tremendos suplícios. Deus deu- lhes um ouvido tão sensível que é uma maravilha da criação. Você não ouvirá nada mais a não ser isto. Aqui estão os macacos e os coelhos que você cegou. Deus deu-lhes a vista para poderem ver o sol. Você não via também o sol durante toda sua vida? Devo levá-lo adiante? é uma fila muito, muito longa."

— "É horrível," — disse-lhe o morto.

— "É sim," — disse-lhe o anjo.

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— "Todos estes bichos continuam vivendo? " — "Todos estes bichos vivem ao lado de Deus," — disse- lhe o anjo - "você não pode chegar até lá, pois eles estão lá acusando-o. Não o deixarão passar. O que está vendo aqui são suas imagens de outrora refletidas; são suas obras, e estarão com você. Sofrerá no próprio corpo os tormentos deles até tornar à terra para expiar. É um caminho longo e triste. Mas não serão seus únicos companheiros, terá ainda um outro: olhe quem está à sua frente, no meio de todas as suas obras!"

O morto olhou para cima e viu um repugnante fantasma com carranca humana. Trajava roupa cheia de sujeira e sangue, e segurava uma faca numa das mãos.

— "Isto é mais horrendo do que qualquer outra coisa que jamais vi na minha vida," — disse-lhe o morto, possuído de pavor como nunca tinha experimentado. — "Quem é este espantalho? Terei de olhar sempre para ele? "

— "Isto é você," — disse-lhe o anjo.

— "E a ciência? " — perguntou-lhe o morto assustado. — "Não lhe prestei serviços? Não pertenço aos grandes espíritos, embora tenha cometido esses atos? " — "Os grandes espíritos eram irmãos dos bichos, não seus carrascos. Eles iriam virar-lhe as costas, caso pudesse chegar até lá. Porém você nem pode se aproximar deles. Você foi uma nulidade e não um grande espírito. Você tinha consciência de ser uma nulidade, de nunca poder descobrir nada, e, por isso, de pura vaidade, cometia todas essas monstruosidades, na esperança de decifrar por acaso alguma coisa dos mistérios da natureza, torturando-a. Mais tarde, acres- centou-se-lhe a volúpia de matar, a loucura de dominar os seres inferiores. Está percebendo isso tudo? Pode vê-lo claramente no seu reflexo, que representa fielmente todos os seus traços. Fique com ele, lave sua roupa imunda e ensangüentada até ela se tornar branca como a neve! Poderá durar mil anos, ou talvez mais. Fique com ele, pois não lhe pode escapar. é seu companheiro e estas criaturas de Deus, mutiladas, são o seu Paraíso.

— "Tudo isso é verdade; porém, pensando e agindo dessa forma, não estimulava eu o conhecimento científico? Não terei a proteção da ciência? "

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— "Conhecimento através do crime? " — perguntou- lhe o anjo. — "Conhecimentos a ciência tinha outrora quando era um templo. Vou mostrar-lhe o que a vossa ciência representa hoje." Uma feia luz amarela piscou e o morto viu um bobo sentado, a construir casas de baralho com as mãos ensangüentadas; uma rajada de vento derrubava-as, mas o bobo continuava sempre a construir. — “Isto é tudo? " — perguntou-lhe o morto, agarrando-se às vestes do anjo em busca de proteção.

— "Isto é tudo. A vossa ciência não ensina também que não existe Deus, nem remissão, nem vida após a morte? Devo ir-me agora, fique no seu Paraíso!"

O morto ficou no seu Paraíso e teve-o perante seus olhos em todas as horas, todos os dias, todos os anos. Isso não pode ser medido pelo tempo, pelo menos não cientificamente, e esta forma é a única que pesa, não é? De muito longe chegavam os sons de uma canção antiga de um tempo remoto, quase inaudíveis, e cada vez mais fracos: "Como será quando entrarmos em Salém, a cidade das ruas* dou radas? ..."

Talvez esta canção signifique alguma coisa, pois todos nós temos de morrer um dia. Quem, porém, pensa nisso hoje, na época da esclarecida ciência européia?

Os jornais publicaram longas colunas necrológicas sobre o célebre, grande pesquisador e cientista, sua Excelência o Conselheiro Privado Efetivo, cuja morte representa uma perda insubstituível para a ciência, cujo nome, porém, permanecerá por todos os tempos, sendo uma página gloriosa na história da humanidade,um símbolo magnífico da nossa cultura avançada e um monu-mento para todas as gerações vindouras, como o foram os melhores antes dele. Glória a esses Grandes Mortos!

Sim, eles descansam do seu trabalho, e as suas obras os acompanham.

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A Terra da Promissâo

O caminho da selva

Não sei dizer quando aconteceu a estória que passo a narrar. Talvez há cem anos, talvez ontem. Talvez aconteça hoje ou amanhã,ou depois de centenas de anos e nem cheguemos a ver. Pois já faz muito tempo que a terra se livrou do sangue, da culpa e do engano, mas passará muito tempo até que se purifique, é difícil dizer quando as coisas acontecem, porque o tempo é ilusão e o que vemos aqui não é outra coisa que um molde de mil facetas. Os fatos verdadeiros, porém, acham-se atrás dos objetos palpáveis, no mundo espiritual, e esta estória também se encontra gravada no mundo espiritual, onde nascem e se transformam todas as formas, e onde respira, imensurável, a eternidade. O que passo a narrar, contudo, creio ter se repetido muitas vezes nos tempos idos; acontece ainda hoje e terá ainda de se repetir muitas vezes até a remissão total da terra. Pois é longo esse caminho, e nenhuma pobre sabedoria humana pode dizer algo sobre a sua duração. Sabemos apenas que é muito penoso e cansativo para os poucos que por ele hoje caminham. Eis porque esta estória aparecerá sempre com outras roupagens, de acordo com a época em que se desenrole, porque, de outra forma, a pobre sabedoria humana não poderá compreendê-la. Sempre estamos vendo a aparência das coisas, no entanto, precisamos nos esforçar para entender a essência das coisas por meio da sua aparência. A estória que pretendo narrar decorreu na selva, e sua personagem principal usava o hábito dos Irmãos de São Francisco de Assis. Tem de ser assim, pois é uma estória de união fraternal, e nela vive o espírito do Santo de Alverne. Não é necessário, porém, usar exteriormente aquele hábito para andar pelo caminho que aquele irmão seguiu, nem precisa ser obrigatoriamente uma selva onde se passa ou se passará esse fato. Poderá ser uma cidade com modernas fábricas e máquinas; poderá ser uma aldeia com roças e campinas, ou bem, uma estrada empoeirada. Tudo isto é indiferente e é apenas uma roupagem, como a vida de hoje não é mais que uma selva para quem segue pelo caminho de Francisco de Assis. Devemos compreender que todos nós vivemos sobre um limiar, e que as verdadeiras estórias da e'xistência se processam no mundo espiritual, atrás das coisas e daquilo que nós chamamos acontecimentos. Estes, porém, talvez sejam apenas nossos sonhos, e porque sônhamos não percebemos o que de fato é real. Talvez seja difícil compreender o que estou dizendo, mas devo dizê-lo porque é verdadeiro.

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Assim foi — vendo o acontecido com estas roupagens — que Frei Emanuel, da Santa Ordem de Francisco de Assis, despediu-se de seus irmãos para ir morar na selva. Isto é muito fácil de contar, porém, certamente, não é fácil iniciar-se um novo caminho. Frei Emanuel não conseguia encontrar a paz em sua cela, nem nas mortificações e meditações, e tampouco na oração ao pé da imagem do Salvador. Não conseguia aprender a contemplação, único meio que leva à paz neste mundo de ilusões, de culpas e de enganos. Ficou possuído de horror pela humanidade, assim como a via dia a dia, e não compreendia porque viera para a terra. Entretanto, sua alma era robusta demais para deixá-lo olhar tudo com um sorriso cansado e distante, e rezar o terço em silêncio e resignação, enquanto os homens, fora dos muros do convento, discutiam, agrediam-se e caluniavam-se, causando asco a si mesmos, a outros homens e aos animais. "Se não encontra Deus na cela, deve procurá-lo fora, na selva. Ele está em toda parte," — disse-lhe o superior do convento, e despediu-o com uma benção. — "Chegará o tempo em que todo o mundo terá de procurá-lo fora, cada qual no lugar em que Deus o colocou. Siga seu caminho, carregue sua cruz e assim encontrará Deus." Então Frei Emanuel, arrumou seus poucos pertences: alguma ferramenta e sementes de hortaliças da horta do convento. Botou tudo na sacola, colocando por cima a cruz do Redentor. Levou também um pequeno sino, que emitia um delicado som argentino, para poder tocar na mata a Ave-Maria ao pôr-do-sol. Pondo a sacola nas costas, despediu-se de todos os irmãos, para sempre. Certamente isto era difícil para ele e para os outros, porém, o que é uma despedida? Tudo é despedida aqui na terra: despedida do dia, da manha, da tarde, da noite com o seu silêncio, para enfrentar um novo dia de trabalho; despedida dos homens, animais e flores. A vida é um caminho infinito aqui na terra e não uma morada; o que serve de consolo é que é um caminho que leva ao lar que todos os homens de boa vontade procuram. Frei Emanuel peregrinou com sua sacola nas costas pela longa estrada empoeirada. Os vultos dos irmãos diluiram-se ao longe, tornaram-se pontos quase invisíveis, e o pico da igreja do convento apareceu pela última vez, iluminado pela aurora. Também ele sumiu, e a selva — o novo caminho o acolheu, e, conforme esperava, um caminho à paz e ao seu Deus. Era a época da Páscoa. Os sinos da Sexta-feira Santa ressoavam no ar de azul diáfano, e nos prados floresciam anêmonas, prímulas e violetas.Mangangabase abelhas zumbiam em redor das primeiras árvores em flor,e as borboletas sorviam o néctar nos cálices das flores. A natureza ressurgia no milagre da Páscoa, que tão poucos entendem porque julgam que toda a vida origina-se dos

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próprios objetos, e não daquilo que os santifica com um sopro que envolve tudo num mesmo amor, e os transforma no mesmo mistério do nascer e morrer. Uma esperança penetrou na alma de Frei Emanuel, esperança que nunca lhe nascera no claustro. Invadido de repugnância pelos homens e deles se afastando, sentia contudo atração fraternal por animais e flores; começava a pressentir algo da compreensão universal do seu grande Mestre de Alverne. "Esta montanha com suas rochas, suas cascatas, seus pinheiros sombrios, tornar-se-á, um dia, Alverne para mim? Chegarei a contemplar Deus aqui? Encontrarei a paz que nunca consegui encontrar entre os homens? " — perguntava a si mesmo, e iniciou uma peregrinação penosa, sempre a subir em direção ao fundo da floresta sem caminhos, confiando nos espíritos dessa aurora pascal. A pesada sacola machucava-o; seus pés, porém,pisavam leve e suavemente sobre o macio tapete de musgo e de sempre-vivas. Os pássaros cantavam e pareciam chamá-lo sempre mais para dentro da sua selva feliz, para a paz, longe da discórdia dos homens. Era, contudo, uma paz à distância. Quando ele se aproximava, todas as criaturas fugiam apavoradas, os pássaros emudeciam nos galhos, as corças corriam através das moitas, e os ouriços e ratos escondiam-se nos seus buracos. Em vão chamava-os em nome do Irmão. Onde pisava, a terra tornava-se muda, sem vida, e ele compreendeu, cheio de horror, que todos fugiam do homem que nele havia; ele, que devia ser a imagem de Deus, era um desprezado dentro da criação divina! Era feito nos mesmos moldes daqueles que matavam homens e animais e ensangüentavam uma terra florescente, e dos quais tudo o que tem vida se esconde, cheio de susto e pavor. Sombras profundas e escuras caíram sobre a calma pascal, e o caminho até o cume da montanha tornou- se triste e solitário. Lá em cima, uma fonte argentina cantava baixinho, e as pontas dos pinheiros sussurravam ao vento que lhes balouçava as copas; Frei Emanuel, porém, sentia-se tão solitário como nunca na vida: os homens dos quais se afastara não estavam mais com ele, e os animais, nos quais reconhecera seus irmãos, dele fugiam porque ele era um homem, a criatura mais pavorosa no mundo de Deus. Caindo de joelhos ao lado da sacola com seus pobres pertences, Frei Emanuel chorou. Compreendeu como é horrível ser homem. Ah, Frei Emanuel, assim como você, choraram todos os que andaram pelo seu caminho e hão de chorar os que o percorrerão no futuro. Pois sua estória não é ligada ao tempo, e, com a transformação das coisas, só a roupagem mudou. E o que você compreendeu,

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compreenderam todos os que andaram pelo seu caminho e hão de compreender todos os que o percorrerão no futuro. É tremendo ser homem, é tremendo, na qualidade de espírito de um reino cheio de amor a todos os seres, ter de habitar um corpo humano que, em tempos idos, foi a imagem de Deus, mas se transformou em caricatura a partir dos tempos de Caim. E tremendo ser um marcado num mundo maravilhoso, que, todavia, se tornou confuso depois do primeiro fratricídio. Não foi a paz que Frei Emanuel encontrou, mas a grande, a gélida solidão que todos atravessam à procura de Deus nesta terra profanada. Ao longe, bem longe, cantava um passarinho, mas não se aproximava, com medo do homem. A nascente, em cuja margem Frei Emanuel estava ajoelhado, marulhava e descia em ondulações prateadas para o vale. Diante dele formava uma pequena enseada rodeada de flores, e, no espelho calmo dessa água, ele vislumbrou sua imagem, traço por traço. Mas viu lá dentro algo mais que não tinha percebido até agora: na sua testa aparecia, grande e bem visível, um feio sinal encarnado — a marca de Caim, que a humanidade gravou na imagem de Deus. Mergulhou a mão na água e esfregou a testa, mas nenhuma água da terra lava a marca de Caim.

Entardeceu suavemente na selva, e a noite chegou de mansinho com os seus véus e as suas sombras. Não foi uma noite de paz, contudo. Frei Emanuel conti-nuou ajoelhado ao lado de seus pobres pertences rodeado pela infinita solidão dos que andam pelo seu caminho. Talvez esse caminho não seja somente dele. Um dia terá de ser de todos. Isto, porém, ainda está longe; ainda vai demorar bastante até que a terra esteja remida.

As estrelas brilhavam sobre ele, e em sua escrita luminosa podiam-se ler todas as peregrinações solitárias, e ver o caminho que leva à remissão da vida. Mas Frei Emanuel ainda não sabia ler a escrita das estrelas. Isto é difícil, e somente o aprendem aqueles olhos que choraram milhares e milhares de lágrimas. É tremendo ser homem...

O primeiro irmão

Passaram-se muitas semanas desde que Frei Emanuel se mudara para a selva. Construiu, com muito esforço, uma simples cabana de troncos fortes, encheu de

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musgo a sacola em que havia trazido os pertences, e com isso fez seu leito. Pendurou a imagem do Salvador numa das paredes, de tal forma que os primeiros raios do sol matinal a tocassem, e amarrou o sino num caibro do telhado, porém, não o fez repicar uma só vez. Não se atrevia, nem ele mesmo o sabia porquê. Era como se esperasse por um dia festivo para repicar o sino, e este dia festivo ainda não chegara desde aquele dia em que percebera o sinal de Caim na testa e a Sexta-feira Santa estendera suas sombras sobre ele. Cheio de devoção e de lembrança de seus irmãos humanos, comeu o último pedaço de pão do convento, e, desde então, vivia só de raízes e de água da nascente, porque as hortaliças, cujas sementes trouxera do convento e semeara, ainda não estavam maduras. Nos canteiros, que formavam um jardim em redor da cabana, apareciam os primeiros brotos, ao lado das flores do mato que Frei Emanuel plantou, os únicos irmãos que ele possuía agora; no entanto eram almas adormecidas — nem homens, nem animais. Dos homens ele fugiu para procurar Deus, e os animais fugiam dele, porque não conseguiam mais reconhecer a imagem de Deus no homem. Pois os homens haviam- na destruído em si mesmos, e Frei Emanuel partilhava a sua maldição. A vida é muito pobre nesta selva; todavia, o homem que deixa de ser uma fera, a fera mais feroz que a criação conhece, que começa a preparar seu corpo para se tornar um templo de Deus e de seu ego, vive com pouquíssima coisa. Frei Emanuel costumava ter muitas estranhas visões, como as têm todos que vivem assim. No começo, entretanto, as visões eram confusas, eram os primeiros sinais do mundo espiritual que, obedecendo às leis eternas, tecem, por detrás de todas as coisas e acontecimentos, o porvir e o passado, é preciso esperar até que tudo isso se esclareça, que as imagens comecem a se mover e as leis a falsar; esperar muito tempo, é preciso antes aprender a dominar sua tristeza,e a grande e gélida solidão,mas isso costuma demorar muito, e é necessário muita'humildade e devoção.O caminho a Alverne é um longo caminho. Frei Emanuel esperava com humildade e resignação. Mas que a peregrinação havia começado, ele o percebia claramente em sua alma. Podemos andar muito longe, embora continuando no mesmo lugar com nosso corpo físico; assim, podemos ver e ouvir muita coisa quando se afrouxam as correntes do corpo e começamos a reconhecer-nos a nós mesmos na prisão desta terra, é certo que também antes Frei Emanuel jejua- vaesemortificavanasuacela, mas o resultado era diferente do daqui. As forças do céu e da terra penetravam livres de qualquer influência humana no seu corpo purificado, e enchiam-no como a uma taça. Adormecer e acordar não eram mais momentos tão separados como antes, e, mesmo de dia, Frei Emanuel andava como um vulto leve dentro do corpo terreno, que lhe parecia não ser mais que uma cabana tecida de pedras e plantas..

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As coisas em seu redor também começaram a se transformar. Via as árvores e as flores nas suas cores e formas; ouvia os pássaros cantarem nos galhos e o longínquo clamor dos bichos, e percebia que todos esses sons significavam alguma coisa, e que a vida inteira era um todo indivisível. Era uma corrente contínua da existência que tudo envolvia — ele próprio, os animais, as plantas e as pedras. Não precisava mais contar os dias e entalhá-los num pau, como o fazia no princípio da sua vida na cabana; sentia quando a natureza se preparava para festejar o domingo. Havia vida universal em tudo e ele estava nela; e de mansinho despertou-se nele o pressentimento do caminho da salvação, da transformação da vida universal em amor universal. Toda a criação não era mais que uma união fraternal. Não era obrigação do irmão maior debruçar-se sobre o irmão menor, incansavelmente e cheio de piedade, para redimir assim a terra do primeiro fratricídio e de milhares e milhares de outros posteriores? O irmão mais velho, porém, era o homem, e foi ele que trouxe o fratricídio ao mundo. Era o primeiro que devia se penitenciar e expiar.

Então Frei Emanuel pediu a Deus que lhe desse um irmão.

Era Pentecostes quando ele encontrou um irmão. Entrando bem para o interior da floresta, como o fazia amiúde, procurou raízes e ervas. Sentia o milagre de Pentecostes na respiração da terra e ouvia o Espírito Santo falar nas copas dos pinheiros e nas coroas das flores. O fluxo da existência era mais forte neste dia e estava impregnado de algo novo, leve, como se a terra estivesse impregnada de um material mais fino do que habitualmente. O corpo de Frei Emanuel pisava no musgo mais silenciosamente, e a leveza dos seus pés quase não dobrava os talos das ervas. Avistândo-o,os pássaros não fugiam mais e os animais selvagens não se escondiam, apavorados, no mato. Ele também passou por uma transformação — aquela que leva da Sexta-feira Santa a Pentecostes.

De repente chegaram-lhe sons dolentes e queixosos, e, seguindo sua direção, encontrou um esquilo preso numa armadilha, procurando, desesperadamente, li-bertar dos ferros a patinha amassada. Uma festa humana de Pentecostes no meio da criação divina! Frei Emanuel viu-se dominado pela mesma sensação daquela tarde de sua chegada à selva: é terrível ser homem! Sem perder tempo, libertou a pobre criatura com a máxima precaução. Enterrou a armadilha e levou o esquilo para sua cabana. Lavou o ferimento e enfai- xou a patinha. O animal não sentia medo dele; sentado na sua mão, deixava-o fazer

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tudo. A patinha estava quebrada, mas talvez ficasse boa de novo; pelo menos ele o tentaria. Foi buscar água para o esquilo, procurou pinhas, e arrumou-lhe um ninho macio de musgo em baixo da imagem do Salvador. O animal emitia sons guturais, muito agitado no princípio, acalmando-se, porém, aos poucos. Por fim, dormiu sob a imagem do Crucificado. Frei Emanuel foi até a nascente, o mesmo lugar onde se havia ajoelhado no seu desespero em meio à enorme solidão quando chegara, e agradeceu a Deus por ter encontrado um irmão. Então sucedeu algo estranho. Mas talvez nem fosse estranho, pois na natureza era domingo de Pentecostes. Ao longo do ribeiro veio um vulto, de aparência humana, porém totalmente inundado por uma luz que emanava de si própria. O vulto usava o hábito dos franciscanos, e Frei Emanuel reconheceu nele, seu mestre Francisco de Assis, cujo retrato existia no convento. Ajoelhou-se então, e saudou-o com profunda inclinação; o mesmo fizeram as flores e as árvores em redor do ribeiro. Francisco de Assis parou ao lado da cabana de Frei Emanuel, olhou para dentro e fez o sinal da cruz sobre o esquilo ferido. Depois dirigiu-se a Frei Emanuel: “Seja abençoado seu caminho, Frei Emanuel", disse-lhe — "é um caminho cheio de espinhos, é um caminho cheio de solidão, porém leva a Alverne, onde encontrei Jesus Cristo. Poucos o percorrem atualmente e a terra está cheia de sangue e culpa; um dia, porém, todos terão de caminhar por ele até a terra ficar remida, ê dificílimo andar na frente; são os irmãos mais velhos que devem fazê-lo. Frei Emanuel. Torna-se fácil, no entanto, quando percebemos que o fazemos pelos irmãos menores." Frei Emanuel, olhando para São Francisco, viu ao seu lado o lobo de Gobbia e o carneiro, salvo pelo santo das mãos do açougueiro, e os pássaros,aos quais ele havia pregado, sentados nos galhos, escutando-o. Tudo isso estava se passando neste mundo — mas não bem neste — mergulhado numa luz azul transparente que emanava de si própria. O santo de Alverne traçou o sinal da cruz sobre Frei Emanuel e foi como se a luz azul tivesse erguido uma ponte para o espaço celeste, e como se Francisco de Assis, acompanhado pelo lobo de Gobbia, pelo carneiro e pelos pássaros, a atravessasse em direção à terra prometida. Quando Frei Emanuel se levantou e abriu seus olhos terrenos, não enxergou apenas as coisas ao seu redor, mas também as almas de toda a criação, e entendeu o que os bichos falavam. Este foi o presente de Francisco de Assis àquele que andava pelo seu caminho. Frei Emanuel entrou na cabana para ver seu irmão menor. O esquilo estava sentado no seu ninho sob a imagem do Salvador, segurando uma pinha nas patinhas. — "Como vai sua patinha, meu pequeno irmão? " — perguntou-lhe Frei Emanuel, vendo que a faixa havia caído.

— "Obrigado," — disse o esquilo — "minha pata está boa. Alguém esteve aqui

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e a curou. Foi um Irmão Maior."

Frei Emanuel ouvia os sons guturais que o animal emitia, mas entendia com clareza também seu sentido. Examinou a pata doente e viu que estava boa, como se não tivesse sido machucada.

Inclinou-se sobre o esquilo, cingiu-o com as duas mãos.

— "Andaremos juntos pelo caminho da nossa vida," - disse-lhe baixinho - "é o caminho de Alverne, meu pequeno irmão, para a terra prometida." O sol de domingo de Pentecostes caiu atrás das escuras copas dos pinheiros, parecendo sangue translúcido e transfigurado, e uma tarde cheia de paz derramou-se sobre a selva. Nesta tarde, pela primeira vez, Frei Emanuel tocou o sino pendurado sob o telhado de sua cabana. Com sua voz suave e argentina, o sino cantou a Ave-Maria na solidão da floresta.

O encadeamento das coisas

— "é verdade, comi ovos que não me pertenciam", — falou o esquilo, passando a pata pela cara, como se quisesse afastar uma recordação pecaminosa — “porém não tornarei a fazê-lo, porque isso magoa os pássaros. Não pensava assim antigamente, mas agora trilharei também o caminho do “I rmão Maior."

É singular um ente tão pequeno pronunciar uma palavra tão grande; no encadeamento das coisas, porém, a menor transformação é um acontecimento.

O esquilo procurou mostrar-se útil em vários sentidos, desde seu restabelecimento. Pulando de árvore em árvore, até bem dentro da floresta, anunciou por toda parte ter encontrado um Irmão Maior que lhe enfaixara a pata ferida, e um outro que a curara. A estória era extremamente curiosa, porém, contada por alguém de toda confiança devia ser verdadeira, e em conseqüência disso apareceram muitos esquilos à porta da cabana de Frei Emanuel. No começo apenas parentes mais próximos; mais tarde, tendo se espalhado a singular estória, também os membros mais afastados da tribo. Traziam frutos, e, no início do outono, nozes, em sinal de agradecimento. Carecia fazer algo para sua manutenção, desde que ele se mostrara tão prestimoso. Assim Frei Emanuel e o esquilo abasteceram-se de alimentos para o inverno. O esquilo

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sabia enfiar, com muita habilidade, cogumelos nos galhos para que secassem. Desta maneira conseguiam armazenar grande quantidade de alimentos para o inverno, à disposição de todos os esquilos. Frei Emanuel ensinou-lhe a enfiar os cogumelos num cordão e guardá-los desta forma.

A outros bichos teve também ocasião de prestar auxílio. Eles não o receavam mais desde que o esquilo lhes serviu de fiador; além disso o bichinho jurou, levantando a patinha, nunca mais comer ovos que não lhe pertencessem. Isto impressionou sobremaneira os pássaros, e eles compreenderam que devia ter acontecido algo realmente maravilhoso na cabana da floresta. Frei Emanuel ajudou também várias vezes, filhotes a voar para seus ninhos, quando eles confiavam cedo demais na sua arte de voar. Acontecia freqüentemente que os pais iam agradecer-lhe, e empregavam, nessas ocasiões, muito cuidado e arte nas suas exibições canoras. Alguns construíram seus ninhos ao lado da cabana, e assim surgiu muita vida ao redor daquele que estava tão só no começo. Frei Emanuel acudira também uma abelha, quando esta caiu de costas e não pôde mais se levantar. Logo depois veio uma delegação de abelhas do mato pousar na sua batina, e a rainha dirigiu-lhe muitas palavras de gratidão.

- "Queremos dizer-lhe," - zumbia - "que sempre teremos mel para você. Teremos prazer em mostrar a nossa gratidão."

Frei Emanuel aceitou de bom grado; para as abelhas não faria falta, e ele teria valorizada sua alimentação.

Uma corça lhe ofereceu leite, caso necessitasse. Ele salvara seu filhote que havia tropeçado e ficara preso num emaranhado de raízes. Frei Emanuel agradeceu, mas declinou, não lhes querendo tirar o leite. Disse que não havia necessidade.

— "Em todo caso, pense nisso quando tiver alguém doente em casa," - disse-lhe a corça — "estaremos sempre às ordens, e uma de nós certamente terá leite, Basta chamar-nos."

Frei Emanuel via cada vez melhor como a vida toda é entrelaçada pelo encadeamento das coisas, e como o homem a dilacerou, de maneira que os elos não mais se encontram. Somente as feras se retraíam ainda. Embora convencidas da veracidade dos relatos do esquilo, dos pássaros, das abelhas e da corça, preferiam aguardar os acontecimentos futuros. O homem era uma criatura perigosa demais e não se devia confiar nele tão depressa. Elas não atacavam Frei Emanuel; retraíam-se porém, e não respondiam quando ele as

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cumprimentava. Frei Emanuel aceitava resignado e esperava. Podia aguardar com paciência, já não estava mais só.

Vivia agora dentro do encadeamento das coisas e elas dentro dele. Conseguir isso significa muito. Sentimo- nos de certa maneira protegidos, e alcançamos a corrente que nos originou.

Ele ia com freqüência bem longe, pelo mato adentro, até onde começava a terra dos homens. Até lá o esquilo não o acompanhava. Nessas ocasiões ficava em casa, arrumava as nozes, fazia ginástica no telhado da cabana, ou convidava alguém da família para uma pinha. Conversavam, então, sobre o caminho do Irmão Maior, sobre o trecho do caminho ao alcance de um esquilo.

Num desses passeios aconteceu a Frei Emanuel de encontrar um homem. Há muito tempo isso já não sucedia, e ele teve a impressão de ver sua terra natal numa imagem confusa. Era como se ela o atraísse e o repugnasse ao mesmo tempo - a imagem de Deus em caricatura.O homem trajava-se pobremente e tinha uma das mãos enfaixada. Frei Emanuel cumprimentou-o e perguntou-lhe do que sofria. O homem fitou-o com espanto. Frei Emanuel não se dava conta de estar vivendo muitos meses longe dos homens, de estar com o hábito roto e os cabelos emaranhados. — "Esmaguei minha mão," — disse-lhe o homem, resmungando desconfiado.

Frei Emanuel fitou-o com muita calma, com os olhos interiores que adquirira, olhos que o outro não possuía.

— "Você esmagou a mão numa armadilha que armou para pegar bichos," — disse-lhe — "foi numa clareira, onde há bétulas novas e jorra uma nascente duma rocha. A essa nascente vão os bichos, por vontade de Deus, para beber, e não para serem apanhados pelas armadilhas dos homens."

— "Como o sabe?" — perguntou-lhe o homem.

— "Pelo espírito de Deus e pela falta de espírito dos homens," — disse-lhe Frei Emanuel. — "Libertei uma criatura de uma dessas armadilhas; agora vive comigo: é meu irmão."

— "Sabe enxergar atrás das coisas? " — perguntou-lhe o homem, sem saber se o que sentia era medo ou alegria.

— "Ninguém vê atrás das coisas grandes, nenhum homem é capaz disso. Porém, atrás das coisas pequenas, de que está falando, posso ver, como se

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elas fossem de vidro."

— "Não é coisa pequena que a minha mão quebrada sare ou não," — respondeu-lhe o homem; — "gostaria muito se pudesse dizê-lo.” — "Ela não vai sarar enquanto você montar armadilhas nas quais os bichos quebram suas patas, porém, há de sarar assim que procure e enterre todas as armadilhas, de modo que nenhum dos seus irmãos menores possa se machucar."

— "Como poderei fazê-lo, pois vivo de montar armadilhas e matar animais? Sou muito tolo para qualquer outra coisa. Desde a minha infância não consigo outro trabalho lá na aldeia."

Era um simplório, mas talvez fosse bom ser assim, porque alguém que possui aquilo que os homens chamam inteligência, não consegue compreender o encadeamento das coisas. Deus ajuda aos simples; eles não lhe estão ainda tão distantes quanto os que são inteligentes neste mundo.

Frei Emanuel pegou a mão do simplório e fê-lo olhar para dentro da cadeia das coisas. Um sábio pode mostrar isto somente a um simplório, não a um inteligente, no sentido da inteligência deste mundo. Então o simplório viu como todas as coisas se entrelaçam numa corrente na criação de Deus, e como o homem rasgou essa corrente de modo que os elos não se juntam mais. Viu também como os irmãos menores aguardam esperançosos a salvação pelos Irmãos Maiores, e uma grande tristeza invadiu-o pelo que havia feito, porque viu muitos irmãos menores erguerem os membros aleijados a recriminá-lo pelo fratricídio. — "Não posso mais fazer isto," — disse baixinho e desamparado — "mas do que viverei? Sou pobre e muito simples e os homens caçoam de qualquer trabalho que eu faço."

— "Aja de acordo com o que você viu, e igrejas e reis procurarão seu trabalho. Deus abençoe seu caminho, querido irmão, porque ele há de se tornar o caminho do Irmão Maior pelos seus irmãos menores. Muitas forças existem latentes na cadeia das coisas para aquele que a viu."

Separaram-se em seguida.

— "Onde poderei encontrá-lo? " - perguntou-lhe o homem. — "Talvez precise do seu conselho ou auxílio porque me parece que estarei muito só agora entre os homens."

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— "Há de me encontrar prosseguindo no caminho; ficará durante certo tempo muito solitário. Porém, pensando bem, um certo tempo não representa nada , caro irmão."

Frei Emanuel deu meia volta e a escuridão dos pinheiros o acolheu.

O simplório partiu e enterrou todas as armadilhas que havia preparado. Chegando a casa viu sua mão curada. Nunca mais caçou, e recusava-se obstinadamente a fazê-lo quando solicitado. "É um tolo," - diziam todos e iam à floresta colocar as armadilhas sem ele. Porém não as encontravam depois. O simplório procurava-as todas e enterrava-as. Mas ninguém na aldeia suspeitava dele, e, assim, aos poucos, abandonaram essa prática. Durante certo tempo o simplório viveu muito pobre e solitário. Davanvlhe um pedaço de pão por caridade, mas nenhum serviço, porque era um tolo e dele caçoavam. Ele, porém, esperava, com paciência, pelo encadeamento das coisas, porque sabia que sua mão fora curada em um único dia. Um trecho de tempo não é nada, pensava ele e dizia-o sempre de novo com seus botões; mas assim mesmo era muito duro.

Um dia pegou uma faca para recortar certa figura que havia visto, porque desde que enterrara todas as armadilhas apareciam-lhe muitas imagens. Entalhava com dificuldade e julgava que fosse apenas passatempo; quando terminou, porém, era uma obra de arte e muita gente veio admirá-la. Entalhou novos bancos para o coro da igreja de sua aldeia; sua fama correu longe. Reis e conventos procuravam seu trabalho; tornou-se muito respeitado.

Todos o tratavam por Mestre, ele, porém, continuava reservado e modesto. Tinha visto o encadeamento das coisas e sabia que andava pelo caminho do Irmão Maior. Sabia que toda arte verdadeira não é mais que a contemplação da criação, próxima a Deus, aos animais e flores, e longe da inteligência deste mundo. Suspeitava também, de que suas mãos, comumente tão desajeitadas, tornaram- se mãos de Mestre por terem recebido toda a habilidade das patas dos animais que ele salvara. É tão maravilhoso este mundo, quando visto da maneira como os homens não o vêem habitualmente, e é muito esquisita e delicadíssima a cadeia das coisas.

A ursa e seu filho

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Frei Emanuel trabalhava aplicadamente com o esquilo no seu jardim. Removia a terra com a enxada que trouxera consigo, e o esquilo escavava com cuidado pequenos buracos nos canteiros preparados, e neles deixava cair sementes. Juntava também sementes para o futuro, e desenvolvia múltiplas e grandes prendas caseiras. Os depósitos para o inverno eram modestos. Aumentavam, porém, visivelmente, pois levavam em conta a possível chegada de visitas que nada tivessem preparado para os meses de neve.

Ao lado da cabana, formigas construíram um formigueiro, pedindo licença antecipadamente, e prometendo não tocar no mel das abelhas do mato. Apareceram, outrossim, alguns ouriços oferecendo pressuro- sos seu auxílio na jardinagem. Não podiam se gabar de muita habilidade, porém, tinham filhotes engraçadinhos e Frei Emanuel os aceitou. Os grandes corriam para lá e para cá, os pequeninos tomavam banho de sol na relva. Era uma turma bem movimentada. Garantiram, repetidas vezes, que não tocariam nas cenouras cultivadas por Frei Emanuel, embora justamente o perfume destas últimas tivesse atraído sua atenção, fora todos os outros louvores que ouviram sobre o Irmão Maior. Frei Emanuel dividiu as provisões, dando cenouras aos ouriços e mel às formigas, mas só aos domingos, porque não havia muita coisa guardada. Os bichos sabem distinguir exatamente o domingo, e as árvores e flores adivinham-no.

Assim, as noites seguiam-se aos dias, e os dias às noites, e Frei Emanuel sentia, cada vez mais profundamente, como se unia a toda a vida que o circundava.

Nisso, aconteceu-lhe receber a visita do simplório que se tornara Mestre. Este encontrou o caminho à selva e à cabana do seu Irmão Maior sem a mínima dificuldade, mesmo pela primeira vez. Nem precisou procurar. Havia uma luminosidade que ia à sua frente, parecida com aquela certeza com a qual ele percebia e depois criava suas figuras. Levou pão, alguma ferramenta e pano simples para uma batina. Frei Emanuel não precisava mais do que isso. Compreendera profundamente como dentro de nós nasce um homem novo quando se faz tudo com as próprias mãos, dependendo só de nós mesmos e das leis da natureza ao nosso redor. E como se a gente revivesse conscientemente a infância da história da humanidade, e a terra ficasse nova como no primeiríssimo dia. — "Nós todos que caminhamos para a frente devemos regressar ao princípio," - disse Frei Emanuel ao simplório que se tornou Mestre — "devemos voltar muitos milênios até os tempos em que se formaram as forças que hoje trabalham. É como se no íntimo nos libertássemos do tempo. O corpo deve se

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tornar flexível e leve como uma planta que está dentro da terra, contudo não presa a ela por algum desejo; a alma deve ficar dentro do corpo como uma borboleta abrigada numa flor."

— "Isto é muito difícil," — disse-lhe o outro.

— "Somente no princípio; depois sobrevem a grande solidão e em seguida, a bem dizer, torna-se tudo muito fácil. Veja: quando hoje contemplo os homens, animais, árvores e flores, observo todas as cores e formas, mas reconheço que são todos corpos de um único material, e vejo as forças que plasmam a pluraridade dentro de uma unidade. Como se a árvore que temos aqui à nossa frente ficasse totalmente transparente. Atrás de sua maravilhosa casca, de seus galhos e suas folhas, vejo aquilo que é a verdadeira árvore; é uma alma, parte de uma grande alma, e todas as almas, de certa forma, são ligadas umas às outras no encadeamento das coisas, e aguardam sua redenção pelo Irmão Maior."

— "Gostaria de andar como você pelo caminho do Irmão Maior," - disse-lhe o simplório que se tornara Mestre. — "Não o está percorrendo, contemplando imagens dentro de sua alma e formando-as em seguida para que os outros as vejam com os olhos terrenos? Não desperta nos outros, que ainda não estão acordados, o desejo ardente de redimir a terra? Os caminhos dos Irmãos Maiores diferenciam-se muito entre si meu caro irmão, porém, em todos eles vive aquele desejo que ainda dorme nos outros. É mister lembrar-lhes aquele lugar onde eles também estiveram uma vez naquela terra sem pecado, a terra das crianças, como foi uma vez, e será de novo um dia." — "Quando e como surgirá esta terra nova? " — perguntou-lhe o simplório que se tornara Mestre. — "Um espaço de tempo não é nada pensando bem, meu caro irmão; e lá, onde se resolvem essas coisas, não existe tempo. Contudo, o material para essa nova terra será o espírito do amor em penitência e anseio. Proclame-o! Temos de estar vigilantes e chamar aqueles que estão dormindo." — "Amiúde não sei o que criar," — disse-lhe o outro. Acontece freqüentemente a um Mestre dizer isto. Só os que não são Mestres não o dizem nunca. — "Deve chamar os outros e seguir Aquele que o chama, pois Este estará sempre ao seu lado, quando chegar a hora. Volte para casa, caro irmão. Pelo

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caminho encontrará alguém; molde sua imagem! Encontramos sempre o que procuramos quando nossa alma caminha para o lar." O simplório que se tornara Mestre dirigiu-se então para casa, e bem no fundo da floresta encontrou alguém que logo modelou. Era um homem de grande bondade, envolto numa luminosidade, com um lobo e um carneiro ao seu lado, e pássaros sentados em seus ombros. Assim,o simplório que se tornara Mestre criou a imagem do Santo de Alverne. Esta foi a coroa de toda sua obra. Frei Emanuel foi para a sua cabana e deitou-se. O esquilo jádormia no seu ninho, em baixo do crucifixo. A floresta e as campinas estavam mergulhadas nas profundas sombras da noite cerrada, e por sobre a cabana brilhavam as estrelas. Frei Emanuel não dormia e olhava através da pequena janela para a escrita que formavam. Agora já sabia ler a escrita das estrelas, e também nela encontrava a imagem de Francisco de Assis inscrita com letras grandes e salientes que nunca se apagarão. Já ia tarde quando de repente bateram à porta da cabana. Tal coisa jamais havia acontecido; quem podia nesta selva bater à porta? Era incrível! Contudo Frei Emanuel levantou-se da cama e abriu a porta. Na escuridão da noite, desenhou-se à sua frente, como uma sombra enorme, uma grande ursa. Outro poderia ter se apavorado; Frei Emanuel, porém, percebeu que a ursa se encontrava em dificuldades, pois trazia consigo seu filhote doente. Frei Emanuel tomou o bebê-urso nos braços e deitou-o com todo cuidado na sua própria cama. O ursinho deixou-se levar sem medo, sem nenhuma dúvida. A ursa seguiu-os devagar e um tanto desconfiada.

-- “Tentamos com algumas ervas que conhecemos," — disse-lhe ela — "mas desta vez não deu resultado."

— "É preciso conhecer ainda algumas outras ervas, cara irmã," — disse-lhe Frei Emanuel com muita bondade. — "Também entre vocês existe certa desor-dem no encadeamento das coisas, senão vocês não poderiam ficar doentes. Um dia isso há de desaparecer."

O esquilo levantou-se resmungando e fungando.

— "Caro irmão," — disse-lhe Frei Emanuel — vá procurar para mim a flor vermelha que floresce no caminho dos espinhos, e chame a corça, porque necessito de um pouco de leite para um doente."

O esquilo sumiu na escuridão e Frei Emanuel cobriu o ursinho com cuidado.

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— "Esta erva medicinal nós não conhecemos," — disse-lhe a ursa.

— "Vão conhecê-la também quando as coisas mudarem. Ela floresce no caminho que o Irmão Maior percorre."

Frei Emanuel passou mel em um pedaço de pão e o- fereceu-o à ursa. Ela cheirou-o mas não quis comer porque estava preocupada com a cria. — "Vamos comê-lo juntos," — disse-lhe Frei Emanuel. — "Ê bom para você não só por estar cansada da viagem e preocupada com o filhote. É bom também por outra razão comermos juntos o pão. Assim, inclusive, torna-se mais fácil para mim, curar o seu pequeno."

A ursa pegou o pão e comeram juntos. Frei Emanuel sentou-se ao lado do ursinho e começou a recortar uma bola rústica de madeira.

— "Isso é magia? " — perguntou-lhe a ursa, aproximando-se desconfiada para apreciar melhor. De certa forma ainda estava preocupada com o filho.

— "Isto não é remédio," — respondeu-lhe Frei Emanuel, amavelmente. — "é uma coisa simples. Será uma bola de pau para seu filhote brincar amanhã cedo, quando acordar restabelecido."

Então a ursa lambeu as mãos que recortavam a bola e a- creditou que Frei Emanuel era de fato um Irmão Maior.

O esquilo voltou, trazendo a flor vermelha que colhera no caminho dos espinhos. Fora da cabana, a corça esperava, e Frei Emanuel foi ter com ela.

— "Agradeço-lhe muito por ter vindo," — disse-lhe — "é para a ursa e sua cria que deve dar seu leite."

— "Aos ursos não darei nada do meu leite; eles mataram muitos dos nossos na floresta." — "É verdade," — disse-lhe Frei Emanuel — "porém, sabe, é o filho dela que não poderá sarar se não lhe der um pouco do seu leite. Só este leite pode salvar a cria, justamente porque os ursos lhe causaram mal no emaranhado do enca-deamento das coisas. Dando o leite, andará pelo caminho do Irmão Maior. Eu também o estou percorrendo; de outra forma não lhe poderia ter feito este pedido”

Então a corça deu do seu leite e Frei Emanuel lhe agradeceu muito. Porque o que ela fez foi muito mais do que dar o leite. Um elo se libertou no emaranhado do encadeamento das coisas, e com isso foi dado um passo no grande caminho

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da salvação. Talvez o que aconteceu foi insignificante nesta terra de ilusões, porém, no mundo da realidade espiritual foi um acontecimento poderoso.

Frei Emanuel colocou a flor vermelha do caminho dos espinhos com o leite da corça numa tigela e deu para o ursinho. O bebê-urso tomou tudo e adormeceu profundamente.

- "Cara mana, a corça, cujos numerosos parentes vocês mataram, deu-lhes este leite. Amanhã seu filhote estará bom."

Dentro da alma da ursa aconteceu algo que ela nunca ainda havia experimentado. Foi uma noite deveras milagrosa. — "Nunca mais materemos uma corça, nem seus filhotes, na floresta," - disse-lhe a ursa. - Eu odirei a todos os ursos e eles o compreenderão."

— "Agora pode dormir," — disse Frei Emanuel à ursa. — "Eu velarei ao pé do seu filho."

A ursa deitou-se a seus pés, suspirou profundamente e adormeceu.

Na manhã seguinte, ao acordar, deu com o ursinho fazendo folia pela cabana, brincando com a bola de pau, bramindo de alegria, pois a bola era muito bonita.

A ursa agradeceu muito ao esquilo pelo trabalho que teve, e ao Frei Emanuel pelo milagre da cura.

— "Não posso fazer milagres, nem curar por mim mesmo," — disse-lhe Frei Emanuel. — "Os milagres e as curas estão dentro de vocês mesmos. E se a sua cria ficou curada, agradeça-o ao esquilo, à corça e a si própria. Não faço mais do que preceder vocês no caminho do Irmão Maior."

A ursa vislumbrou o acontecido e despediu-se de Frei Emanuel e do esquilo com muitas vênias; o ursinho fez o mesmo, estendendo uma pata. Com a outra segurava a bola de pau que levava para continuar a brincar. Era apenas um brinquedo, porém, um brinquedo feito pelo Irmão Maior. Assim cerrou-se mais um elo no encadeamento das coisas.

Nessa floresta nunca mais foi morta uma corça ou um veadinho, e quando Frei Emanuel passava por lá, as feras cumprimentavam-no de longe. A ursa fazia vênias, os lobos e as raposas uivavam baixinho, com polidez, e as onças, avistando-o. ronronavam. Ele, entretanto, benzia-os a todos com o sinal do I rmão Maior; e entrou em acordo com eles: na montanha onde se erguia sua

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cabana nenhum bicho poderia fazer mal a outro.

O encadeamento das coisas ainda não estava desema- ranhado, e ainda ia acontecer de um matar o outro para se alimentar. Nessa montanha, todavia, isto não deveria mais suceder; os bichos prometeram cumprí- lo, e o cumpriram.

Assim eles compreenderam o sentido do direito de asilo, o que foi um grande acontecimento na terra, e um muito maior no mundo das realidades espirituais, o maior dos grandes acontecimentos daquela noite maravilhosa.

As taças de barro e de cristal

Frei Emanuel não vivia apenas com os bichos, não. O simplório que se tornara Mestre também não era a única alma humana que ele encontrava. Claro, mesmo se assim fosse, não estaria só. Porém, havia algo diferente, e é sempre assim quando se anda pelo caminho do Irmão Maior. Frei Emanuel via com os olhos internos, que se lhe abriram, não somente as almas dos animais e as forças das plantas e das coisas; aconte- cia-lhe freqüentemente vislumbrar, com esses olhos internos, vultos que andavam ao seu lado, ou ficavam sentados no aconchego da sua cabana a conversar com ele, de dia ou de noite. Eram os Irmãos Maiores que palmilharam o caminho antes dele, e preparavam sendas idênticas na outra margem deste mundo. Pois os mortos e os vivos trabalham na construção das pontes para a Terra da Promissão, e dão à alma da terra sempre novas formas.

Os homens, presos a seus corpos, esquecem-se de haverem chegado da outra margem e de terem de voltar para lá, levados na barca da morte, através da corrente escura. Isto parece certamente muito importante para os homens de hoje, todavia, não precisa ser tão importante. É simplesmente uma taça de cristal dentro de uma de barro. Um corpo de materiais grosseiros, que servia de taça de barro a um corpo mais delicado, é abençoado. E é só. O "eu" continua a viver na taça de cristal. Este corpo mais delicado, porém, já o possuíamos também antes, enquanto estávamos dentro da taça de barro, apenas não o percebíamos porque nos preocupávamos somente com a taça de barro. No sono, os homens o percebem porque então abandonam a taça de barro, e ficam a contemplá-la, metidos no seu corpo mais fino; afastam-se, muitas vezes, bastante da sua taça de barro, continuando apenas como que ligados à mesma por um fino fio de prata. Após a morte dissolve-se também esse fio, pois a taça

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de barro se torna inútil e não pode ser aproveitada na outra margem, onde o material é diferente. Mas que importância tem isso? Continuamos a viver dentro da taça de cristal, na qual vivíamos sempre, mesmo enquanto ela estava ainda dentro da taça de barro. Isto, na realidade, é muito simples, e os homens não percebem até que ponto o é só porque a taça de barro é grossa demais, e entrando nela esquecem-se de tudo. Por isso é tão importante tornar a taça de barro o mais fina possível, para levar dentro dela, pelo menos um pouco da consciência luminosa trazida da outra margem, pois a taça de barro deve apenas sustentar a de cristal e não escurecê-la, e a taça de cristal deve iluminar a taça de barro. Eis um mistério deste mundo e do outro, e ninguém poderá compreender a vida e a morte se não compreender este mistério.

Revestidos com esses corpos mais finos da outra margem, os Irmãos Maiores, que já atravessaram a corrente, ficavam sentados ao lado de Frei Emanuel, conversando com ele sobre os caminhos dos Irmãos Maiores e sobre a terra prometida. Às vezes era Frei Emanuel que abandonava sua taça de barro, no sono, e ia visitar, dentro da taça de cristal, os Irmãos Maiores na outra margem, quando desejava falar-lhes. Nessas ocasiões bastava cuidar de não partir o fio de prata, que o ligava à sua taça de barro e se estendia por sobre a corrente sombria. Mas quem havia de rasgá-lo? Frei Emanuel vivia longe dos homens que mexem em tudo com as mãos rudes, e ao pé da sua taça de barro, na cabana, vigiava o esquilo, esperando pacientemente a sua volta. A corrente sombria também não é mais que um riachinho para os que andam pelo caminho do Irmão Maior, e a distância entre as margens não é grande para eles.

Precisei dizê-lo para não pensarem que a vida de Frei Emanuel era solitária e absorta; apenas o insignificante se afastou, e o essencial tornou-se próximo.

Uma vez, enquanto Frei Emanuel, sentado diante da cabana, conversava com os vultos dos seus Irmãos Maiores sobre a essência das coisas, chegou-lhes da floresta um tremendo barulho, e muitos bichos assustados vieram correndo em direção à montanha em cujo cume erguia-se a cabana de Frei Emanuel.

- "Deve ter acontecido algo de horrível," - disse o esquilo que já acordara, apesar de ser ainda cedo. Ele era muito curioso e gostava de ouvir as conversas dos Irmãos Maiores. Todos eram também sempre muito gentis com ele.

Um grande mocho veio voando sem ruído, e sentou-se no colo de Frei Emanuel. — "Um rei com grande séquito, muitos cavalos e cães, irrompeu na floresta para uma caçada. Trazem enormes lanças, e todos os bichos fogem

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espavoridos em direção à sua cabana. O caminho, porém, é longo e eles trazem os filhotes que não podiam abandonar portanto não se salvarão, a não ser que os ajude. Vim pedir-lhe auxílio, pois sou o único que sabe voar depressa no escuro."

O mocho estava exausto e suas asas tremiam.

Então, a pedido de Frei Emanuel, seus Irmãos Maiores da outra margem, envolveram o rei e seu séquito, os cavalos e os cães, numa densa neblina cinzenta. Por sobre os animais da floresta subiu o sol que lhes iluminou o caminho. O mocho, ofuscado, cerrou os olhos, e Frei Emanuel levou-’o à cabana, a fim de que repousasse durante o dia.

— "Mande os pássaros dos ninhos de sua cabana avisar a todos os animais que podem estar tranqüilos," — disseram os Irmãos Maiores. — "A neblina que cobriu o rei e seu séquito não cederá sem você o querer; os homens e os cavalos não penetrarão mais, e os cães não encontrarão rastros."

Os pássaros voaram em todas as direções, felizes de poder anunciar a paz.

— "Espere até a noite'" - disseram os Irmãos Maiores — "então vá e fale com o rei. Ele é um tolo e tem de se tornar um sábio. — "Quando devo partir para chegar a tempo? Quantas horas levarei daqui até lá? "

— "É indiferente a distância; vá com sua taça de cristal, enquanto a de barro estiver dormindo, e nós o acompanharemos."

Dizendo isso, foram para a outra margem, e Frei Emanuel entrou na sua cabana, deu de comer ao mocho e ao esquilo, e juntos esperaram chegar a noite.

Quando apareceram as primeiras estrelas, Frei Emanuel deitou-se no seu leito e abandonou seu corpo material com a maior facilidade, tal como a gente tira a roupa. De pé, em frente do esquilo e do mocho, ante a imagem do Salvador, estava ele no seu translúcido corpo sutil a persignar-se antes de partir.

— "Fique com a minha taça de barro," — disse ele ao esquilo — "para você o caminho é muito longo. Meu irmão mocho está acostumado a voar, ele pode acompanhar-me."

O mocho deslizou para a escuridão da noite com um silencioso bater de asas, e

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mais silencioso, mais irreal, deslizava o vulto de Frei Emanuel ao lado da ave; para ele não havia obstáculos, nem árvores, nem galhos. Era de um material que transpassa tudo que não seja da outra margem. É muito difícil explicá-lo a alguém que vive exclusivamente na consciência da sua taça de barro; porém, na realidade é assim, e é preciso dizê-lo por ser verdade. No acampamento do rei ninguém pôde dar um passo sequer durante o dia todo, pois a densa neblina cinzenta embaraçava a visão, e todos foram dormir aborrecidos e queixosos. Somente o rei estava acordado, e olhava sombrio para uma pequena fogueira acesa à frente da sua tenda. Aborrecia-o existir algo mais poderoso que ele a lhe estragar o prazer. Frei Emanuel deslizou e parou diante do rei. O mocho sentou-se no topo da tenda real; queria ouvir tudo que ia ser dito, para contá-lo depois aos bichos da floresta. Foi muito estranho: mesmo os cães não perceberam haver chegado alguém. Ou, quem sabe, perceberam, mas não deram alarme porque sentiram que era algo da outra margem. Os animais são amiúde mais sensitivos que os homens. "Você deve abandonar esta floresta, caro irmão," disse Frei Emanuel ao rei — "pois veio aqui para matar." O rei olhou-o assustado. Era estranho ver de repente um homem desconhecido diante de si, e os guardas terem-no deixado passar. Mais estranho ainda era o corpo deste homem, tão diferente de todos, pois era translúcido. Um pavor tomou conta do rei, porém, lembrou-se que era rei e dono de todas aquelas terras. — "Não sou seu irmão," - disse-lhe - "sou o rei desta floresta. Suma-se. Aqui não manda ninguém a não ser eu."

Quis chamar os guardas mas não o conseguiu.

— "Você ainda não é meu irmão," — disse-lhe Frei Emanuel — "chamei-o assim por bondade, porque um dia o será, mais cedo ou mais tarde, conforme sua vontade. Um dia terá de sê-lo, e para você é melhor que o seja quanto antes. O rei desta floresta não é você. Deus é o rei desta floresta. Ele deu-a de presente aos bichos."

— "Você próprio é um bicho!" — gritou o rei furioso, e estendeu a mão para a lança.

— "Sou irmão dos bichos e ando pelo caminho do Irmão Maior, que você também terá de percorrer um dia. Deixe sua lança, ê desatino querer atingir-me com ela, pois não estou na minha taça de barro como você."

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— "Não sei quem é você, nem quero sabê-lo," — disse-lhe o rei. — "Saia daqui, está a me fazer medo, saia daqui, ordeno-lhe; sou o rei!"

— "A ordem de um rei que não é rei, é algo de ridículo no país da outra margem," — disse-lhe Frei Emanuel tranqüilo e amavelmente, como quando se constata um fato. Não havia ameaça em suas palavras, e o rei emudeceu sem querer, pois não soube o que responder. — "Está vendo, caro irmão," — continuou Frei Emanuel, sentado ao lado do rei — "precisamos retroceder muitos milênios, querendo avançar um passo. Levá-lo-ei para trás." — Colocou-lhe uma das mãos sobre os olhos, de tal forma que os olhos terrenos do rei se fecharam, e os internos principiaram a enxergar.

— "Está vendo os milhares de anos para trás? Perante Deus eles não são mais que um dia. Todos os homens atravessam muitas vidas terrenas, e as outras criaturas, que a eles são ligadas pelo encadeamento das coisas, caminham junto. Você. diz que é rei. Não acredito, porque não é rei no país da outra margem. Na sua vida passada, foi servo de um homem grande e desejou ser grande também. No país da outra margem, esse desejo tornou-o mendigo, porém, sua aspiração foi satisfeita e na reencarnação tornou-se rei entre os homens. Ainda hoje em dia os homens escolhem seus reis entre os tolos, e não entre os reis espirituais, porque eles são tolos também. Acha uma grande vantagem ser o maior dentre os tolos? Os anjos que o guiaram e lhe fizeram a vontade, pensavam que você talvez ainda se tornasse um rei ao agarrar em suas mãos uma responsabilidade. Você, porém, só aprendeu a ordenar e a matar. Ninguém que ordena e mata é rei. Continua sendo servo de uma força negra, a qual não está reconhecendo por ser tolo demais. Também nunca teria sido rei nesta terra se os homens não o merecessem como tal. Ainda se orgulha de ser rei?" — O rei percebeu aquilo que Frei Emanuel via, porque olhava para a vida com seus olhos internos. — "Estou vendo que sou mendigo e não rei; abandonarei a floresta assim que a neblina desaparecer." — "A neblina desaparecerá assim que o quiser. Não é a neblina que desceu sobre vocês. Meus Irmãos Maiores estenderam esta neblina usando os pensamentos de vocês mesmos." — "Que devo fazer? " — perguntou-lhe o rei que era mendigo.

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— "Nunca mais mate nem homens nem bichos! Santifique a vida, pois somente isto é realeza. Caminhe pela estrada do Irmão Maior, como o tenho feito, porque só pode dominar quem sabe respeitar o mais ínfimo ser como irmão." "Mesmo se viver como santo, deverei travar guerras enquanto for rei." — "Ninguém precisará guerrear, se for sábio," — disse- lhe Frei Emanuel. — "Não são os reis que mandam na guerra, mas as guerras que mandam nos reis. E uma corda bamba cheia de sangue. Não se deixe guiar pela guerra, e não terá necessidade de travar batalhas nem com os homens, nem com os animais. O indivíduo,cuja taça de cristal é límpida, pode evitar muita coisa. Veja, você vive dentro da consciência de sua taça de barro, que lhe encobre o país da outra margem e a sabedoria deste mundo e do além. Eu saí da minha taça de barro e aqui estou, dentro da taça de cristal. Viva de maneira a deixar sua taça de barro tornar-se sempre mais fina, e a encontrar-se a si mesmo dentro da taça de cristal! Procure, porém, tornar essa taça de cristal tão livre de desejos, tão pura e cristalina, que toda a luz da outra margem possa penetrar nela, pois essa luz inunda todas as taças que estejam prontas para recebê-la. Desta maneira tornar-se-á um rei espiritual, e nenhum rei terrestre pode vencer um rei espiritual. Conserve sua taça de cristal preparada pela penitência, pelo anseio e amor, porque é a taça do Graal, que cada criatura de Deus traz dentro do seu ser," — Sem ruído, da mesma maneira como chegou. Frei Emanuel desapareceu na escuridão da noite, seguido pelo mocho. Igualmente sem ruído, deslizou para dentro da sua taça de barro na cabana, para repousar, e o esquilo dormiu em seus braços. — "Andarei pelo caminho do Irmão Maior," — disse o rei que havia sido mendigo. E assim que pronunciou essas palavras, desapareceu a neblina e surgiu o sol da manhã. Seus raios caíram dentro da taça de cristal que havia ficado clara, límpida e preparada pela penitência, pelo anseio e amor, para o Graal. O rei não era mais mendigo, tornara-se rei de verdade. Os homens mantiveram-se calados, as cornetas não ressoaram e os cães não latiram quando o rei voltou para para casa, seguido de sua corte. A partir daquele dia, ninguém mais entrou na floresta para matar. O rei não caçava nem guerreava, porque a guerra não o seduzia mais desde que se tornara um rei espiritual, e trazia, conscientemente, no seu íntimo, a taça do Graal. O mocho contou pela floresta inteira tudo o que vira e ouvira, e desde então foi considerado o pássaro mais sábio entre os animais do mato, pois falou de peni-tência, anseio, amor, do mistério que abrange a vida e a morte, e das taças de barro e de cristal. Os hóspedes de Deus Ê muito duro para os bichos quando começa a nevar e os milagres da floresta voltam para o seio da terra. Muitos pássaros emigram, não podendo suportar

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tamanho frio, e muitos animais se escondem em tocas e ninhos para hibernar e aguardar, no limiar entre este mundo e o outro, o novo desabrochar da vida. Estes passam melhor do que os outros. Mas há muitos que enfrentam a luta com o inverno. Deve existir uma razão para isso; talvez seja uma missão no decorrer misterioso dos acontecimentos. Frei Emanuel auxiliava-os com os parcos meios que possuía; contudo não podia ajudar a todos, e a consciência disso deprimia-o muito. Ao se aproximar o Natal, sua pobreza abatia-o ainda mais perante os irmãos menores. Percebia claramente que o Natal se aproximava porque via com os olhos internos como a terra, nas suas profundezas, se tornava sempre mais resplandecente, como se todos os germes nela escondidos irradiassem pequeninas chamas, e se juntassem em suas múltiplas formas, desenhando uma escrita da vida futura, que deveria acordar na Páscoa. Também nas árvores expostas ao gélido vento via-se essa reverberação interna, e era, realmente, como se toda a floresta fosse um mar de pequenas luzes, embora envolta em gelo e neve, como num manto mortuário. A morte, porém, é uma ilusão em toda a parte. Assim, o reverberar da terra aumentava dia a dia, e a Noite Santa se aproximava. Frei Emanuel preparara bastante sementes da sua safra para os pássaros, repolho e nabo para os veados, gazelas e lebres, nozes e cogumelos para os esquilos e outros roedores. Para as feras e os peixes preparou pão, que o simplório que se tornara Mestre, nesta época, levava-lhe com mais freqüência. Frei Emanuel se perguntava se haveria comida suficiente para todos os que queria convidar para a festa de Natal, porque era pouco, levando em consideração a quantidade de bichos que iam aparecer, sendo convidados. Em todo o caso resolveu servir tudo o que tinha e o esquilo ajudava com boa vontade a arrumar os mantimentos de maneira bonita e atraente, para ficar logo visível que não era uma mesa comum, mas um banquete de Natal. Fora desses dias de preparação, o esquilo dormia muito; também ele não suportava bem o inverno. Só de vez em quando levantava-se, esfregando os olhos com as patinhas, para comer uma noz ou um cogumelo, ou jogar uns gravetos ao fogo que Frei Emanuel não deixava morrer. Muito antes do Natal, Frei Emanuel foi à floresta dizer aos bichos que encontrava, que todos os irmãos menores es- tavam convidados a festejar o Natal com ele. Os bichos agradeciam o convite e transmitiam-no uns aos outros. À tarde, na véspera do Natal, Frei Emanuel reavivou o fogo na sua lareira, e abriu a porta para a branca imensidão gelada que ficou iluminada pelo zigue-zaguear das chamas. Enfeitou a porta com grinaldas de pinheiros, e diante dela colocou todas as iguarias preparadas. Perante a imagem do Salvador ardia um círio bento, trazido para esta ocasião pelo simplório que se tornara Mestre. O esquilo, sentado em frente dele, olhava com devoção a chama calma e silenciosa. Frei Emanuel fez repicar o sino de voz argentina, chamando os

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bichos para a festa do seu Natal e do Natal deles.

Ouvindo o sino, os bichos acorreram e se agruparam no espigão da montanha; então Frei Emanuel convidou-os para comer. Era tudo o que possuía, disse-lhes, e pediu que partissem com ele o pão do Natal da floresta. Em seguida, contar- Ihes-ia o milagre do Natal. — "Agradecemos-lhe muitíssimo," disseram-lhe alguns bichos, em seu nome, e em nome de todos os outros — "porém, não queremos comer seu pão. Como você viveria então? Não viemos para isso. Gostaríamos contudo de ouvir a explicação do milagre do Natal. Todos nós o sentimos quando se espalha pelo mato, mas talvez sejamos muito novos ainda para entendê- lo. Ou, quem sabe, é porque ainda ninguém nô-lo explicou? Certamente um Irmão Maior é quem deve fazer isto, porque é muito difícil."

— "O milagre do Natal não é difícil," — disse-lhes Frei Emanuel. — "Ele é difícil somente para os que não o querem compreender; a maior parte dos homens não o quer. Pois os homens festejam o Natal matando inúmeras criaturas de Deus. Essas criaturas, porém, são seus irmãos. Assim, a noite, ao invés de santificada, fica profanada. Os homens estão longe da Noite- Santa por estarem longe do amor, e, entretanto, são eles que devem abrir o caminho dentro da Noite-Santa e do amor por serem os irmãos maiores. Vocês devem comer o meu pão. Guardei-o para vocês e muitos aqui estão com fome. Este é o meu Natal: vocês serão meus hóspedes, e o Natal será meu e seu se comermos o pão juntos."

Então os bichos começaram a comer. Frei Emanuel viu que a comida não ia dar, porque muitos estavam com muita fome e o número deles era grande, dirigindo-se à imagem do Salvador com o círio bento, disse: — "Peço-Vos que meus irmãos se saciem, festejando comigo o Vosso Natal."

A noite começava a cair. De repente, ficou dia sobre a montanha. Dois grandes anjos apareceram de cada lado da cabana, e a neve e o gelo começaram a derreter, porque os anjos chamaram as correntes quentes, que corriam por baixo da montanha, para que subissem e aquecessem a terra. Sobre a terra livre de neve, os anjos estenderam os braços, e, na mesma hora, a terra cobriu-se de capim e flores, e até de plantas nunca vistas naquela zona; deste modo a montanha ficou verdejante como na primavera, e os bichos puderam comer com fartura. Também as feras comeram e saciaram-se, e gostaram tanto como

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nunca imaginaram poder gostar. Porque era Natal, e todos os seres que o reconheceram tornaram-se juvenis de novo, como havia sido uma vez, e será novamente na Terra da Promissão, quando a terra ficar remida. Os anjos andavam entre os bichos e conversavam com eles como se conversa com irmãos menores. Contavam-lhes terem lhes anunciado outro- ra o nascimento do Salvador, quando a Estrela se encontrava sobre Belém. Os bichos pareciam lembrar- se de algo que se haviam esquecido; algo de que sabiam bem lá no fundo de suas almas, e que se havia emaranhado na corrente dos acontecimentos. E a terra floresceu no meio do inverno, e as duas margens se tocaram. Também a terra tem as suas duas taças: a de cristal e a de barro. E foi como se a de cristal tivesse transpassado a de barro, e a tivesse iluminado pelo amor a todas as criaturas, e assim será um dia, quando todos andarem pelo caminhodo Irmão Maior.

Quando os bichos ficaram saciados, Frei Emanuel sentou-se ao seu lado, e, com o esquilo no ombro, contou-lhes o milagre do Natal, do amor que nasceu na terra para iluminá-la sempre mais; e contou que isso sucedeu quando nasceu um rei na mangedoura de um estábulo e os animais estiveram presentese vi' ram o rei; a estrela de Belém brilhava sobre o rei e os bichos. Os bichos entenderam que esse devia ser um verdadeiro rei, porque não era uma coroa, mas sim uma estrela que brilhava sobre seu berço, é um mistério da criação, mas tão fácil de compreender como o milagre do amor.

— "Este é o único caminho ò salvação," — disse-lhes Frei Emanuel — "e todos os irmãos Maiores o percorreram na frente dos irmãos menores, em penitência, anseio e amor. O rei que nasceu, não sob uma coroa, mas, debaixo de uma estrela, disse aos homens que fossem pelo mundo pregar o evangelho a toda a criatura. Os homens, porém, não eram de boa vontade e não o são nem hoje. Esta foi a luz que resplandeceu nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Os homens, ao invés de Irmãos Maiores, tornaram-se tiranos e assassinos para os outros homens e os bichos, e é por isso que levam o sinal de Caim na testa, e todas as criaturas de Deus fogem, encontrando sua imagem, é por isso que vocês fugiam de mim, porque eu não sou como o Santo de Alverne, e porque tenho o sinal de Caim na minha testa. Creiam-me, caros irmãos menores, é horrível ser homem quando se deseja andar pelo caminho do amor e se percebe, com máximo espanto, ser um marcado entre as criaturas de Deus." — "Nós não percebemos mais a marca na sua testa," — disseram-lhe os bichos. — "Você não está mais marcado com o sinal de Caim."

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Pela primeira vez, depois daquela tarde sombria em que chegara a essa montanha, Frei Emanuel chorou, escondendo o rosto com as mãos. Mas estas lágrimas eram diferentes daquelas que ele chorara na tarde da solidão. E os anjos colocaram-se ao seu lado e cruzaram as asas sobre ele e sobre o esquilo que se havia tornado seu primeiro irmão.

Foi este o Natal de Frei Emanuel e de seus irmãos, os bichos. Ao se despedirem, aproximaram-se um a um; os pássaros sentavam-se na sua mão, os veados e as gazelas inclinavam-se, os peixes saudavam-no dentro do ribeiro, e os lobos, as onças, as raposas, as lebres, os esquilos e todos os outros, estendiam-lhe a pata, assim como o lobo de Gobbia estendera a pata a São Francisco, prestando-lhe juramento.

— "Agradecemos-lhe muito por tudo que nos contou," — disseram-lhe os bichos - "e agradecemos muito, também, aos anjos e a você por nos terem dado de comer. São coisas grandes que se deram hoje, e há muitos entre nós que estão querendo seguir o caminho do Irmão Maior, na medida que isso for possível, dentro do emaranhado do encadeamento das coisas." — "Tive desejo de convidá-los, e havia algo de muito sagrado nisso para mim; porém, fui eu quem recebeu o presente maior. Na realidade vocês não foram meus hóspedes, mas hóspedes de Deus. Foi Ele quem os convidou para Sua mesa do amor."

A montanha em que se erguia a cabana de Frei Emanuel permaneceu sempre verdejante a partir daquela Noite-Santa, no inverno e no verão, e nunca- mais se viu neve nem gelo sobre ela. Assim, todos os bichos que ali pediam asilo, encontravam comida e não precisavam padecer.

Era como se um torrão da terra tivesse sido expiado, e sobre ele tivesse sido construída uma ponte para a Terra da Promis- são.

Os bichos nunca se esqueceram de terem sido convidados por Frei Emanuel para a festa de Natal da floresta, de terem os anjos falado com eles, e de haverem sido hóspedes de Deus. Não há muita coisa mais a contar desta estória, pois, afinal, é apenas uma das numerosas roupagens com que a revesti. Naturalmente é uma estória muito sin-gela, mas justamente por esta razão não pertence a nenhuma época. Deu-se muitas vezes há centenas de anos, passou-se ontem, está acontecendo hoje, e

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terá de se dar ainda muitas e muitas vezes, pois é longo o caminho à remissão total da terra. Também não posso precisar quanto tempo Frei Emanuel viveu com o esquilo e com os outros bichos naquela maravilhosa floresta. De acordo com o desenrolar normal das coisas, pode-se supor talvez que o esquilo tivesse morrido antes do seu Irmão Maior. Pode ser que a vida terrestre de Frei Emanuel tenha sido en- curtada e a do esquilo, prolongada. Tudo isto é sem importância, e no mundo das realidades espirituais apenas os acontecimentos essenciais estão inscritos. Eu os li neste mundo, se não, onde poderia tê-lo feito? No mundo da outra margem, porém, esses acontecimentos foram de muita importância, apesar de terem sido aqui uma estória simples e insigni-ficante, porque os grandes acontecimentos sempre se escondem atrás das coisas. Não sei dizer também durante quanto tempo se desenrolaram os fatos que narrei. Eles se deram, a bem dizer, no reino das realidades espirituais, e ali não existe o que nós chamamos de "tempo". O tempo é algo supérfluo para quem vive fora dele. Talvez seja difícil compreendê-lo; preciso, porém, dizer tudo isto desta forma, por ser verdade. Assim, aconteceu um dia, e não sei precisar quando, que o anjo de Frei Emanuel dele se aproximou. Foi seu anjo da guarda, como os que todos nós temos para a nossa peregrinação terrestre.

- "Frei Emanuel" — disse ele com muita brandura - "deve preparar-se agora para desatar o fio prateado entre sua taça de barro e a de cristal, e seguir à outra margem para continuar a construir ali o caminho dos Irmãos Maiores."

- "Fá-lo-ei com müito gosto; porém, não queria deixar meu irmão menor sozinho, porque ele se habituou a andar aqui na terra comigo, e tem sido tão bom irmão para mim como poucos."

- "Nós já pensamos nisso," - disse-lhe o anjo - "todas as criaturas de Deus chegam à outra margem em suas taças de cristal. Basta segurar nos braços seu pequenino irmão na hora em que o chamarmos."

- "Logo atravessaremos juntos uma ponte, irmãozi* nho," — disse Frei Emanuel ao esquilo. — "Isso não tem importância, eu o levarei nos meus braços, assim nem perceberá se o caminho é longo ou curto. No país para aonde iremos aprenderá a conhecer o essencial, e verá que tudo o que era essencial aqui, permaneceu como se nada tivesse mudado." E quando o simplório que se tornara Mestre o visitou, disse-lhe:

— "É pela última vez, querido irmão, que estamos nesta margem juntos. Não é

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preciso mais vir até aqui; quando quiser me ver, chame-me antes de adormecer. Assim poderemos nos encontrar em nossas taças de cristal!"

— "Isso será tão difícil para mim!" — ctisse-lhe o simplório que se tornara Mestre — "porque eu não estou ainda tão longe quanto você no caminho que andamos."

— "Veja, se pensar bem, ninguém está perto ou longe, porque o fim não está marcado. Nós dois andamos pelo caminho do Irmão Maior nesta margem e na outra, e este caminho é muito diverso para a maioria, de maneira que ninguém pode dizer o que é perto e o que é longe. Você, porém, deve completar muitas obras aqui, mesmo eu partindo."

— "Será para mim uma temporada triste, até que eu possa partir também," — disse-lhe o simplório que se tornara Mestre.

— "Não pense assim, uma temporada é pouco; pensando bem, talvez não seja nada mesmo. Na verdade, o encadeamento das coisas se desembaraça sempre mais. Deus abençoe seu caminho, caro irmão, porque é o caminho do I rmão Maior nesta margem e na outra." Frei Emanuel despediu-se do simplório que se tornara Mestre. Foi num entardecer de um dia e de uma vida. Mas o entardecer de uma vida não é mais que o entardecer de um dia, e é somente nesta margem que costuma entardecer.

No dia seguinte, ao amanhecer, apareceu de novo o anjo do Frei Emanuel e disse-lhe com brandura:

— "Agora deve vir para a outra margem."

Frei Emanuel deitou-se no seu leito e pegou o esquilo nos braços. Muito estranho: os traços do seu anjo mudaram, ficaram pálidos e sérios, suas asas tornaram-se pretas, e o hábito escureceu. Foi como se o anjo da morte tivesse se revezado com ele. Devagar afrouxou-se o fio prateado entre a taça de barro e a de cristal. Os traços do anjo da morte transformaram- se em traços do Salvador na cruz, as asas ficaram douradas e o hábito branco, transparente como neve translúcida. O fio prateado entre as taças de barro e de cristal acabara de se desatar. Isto aconteceu na época da Páscoa. Não sei dizer se foi exatamente no domingo de Páscoa. Na cabana de Frei Emanuel, porém, era domingo de Páscoa.

Os pássaros, que viviam nos seus ninhos no telhado da cabana, levaram a

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notícia da morte de Frei Emanuel aos bichos da floresta, e houve um grande luto entre eles por ter ido embora seu Irmão Maior. Eles eram ainda irmãos menores e viviam na consciência desta margem. Mas nesse luto vive a idéia da outra margem, e por isso ele deve continuar a existir neste mundo, até que as duas margens se encontrem. Enorme quantidade de bichos da floresta chegaram à montanha onde estava a cabana de Frei Emanuel. Um após outro entrava na cabana para contemplar a taça de barro de Frei Emanuel, que repousava em paz, com o esquilo nos braços e a imagem do Salvador sobre ele. Reinava grande silêncio e o sol da manhã tingia as paredes de ouro. Os bichos mantinham-se também em silêncio, e nenhum deles molestava o outro. Somente dois grandes ursos choravam alto, entrando pela porta da cabana, e as lágrimas corriam-lhes pelo focinho. Eram uma ursa e seu filho. O filho não era mais um bebê, como naquele tempo; ficou forte e poderoso e mais alto que sua mãe quando se erguia nas patas traseiras. Porém, apesar de não ser mais um bebê, trazia uma bola de pau nas patas, só que hoje não brincava mais com ela. Não posso contar quais foram todos os bichos que chegaram à cabana de Frei Emanuel. Também, seria demais enumerá-los todos. E isto não importa. O importante é que todos se sentiam unidos, como irmãos menores, perante este leito fúnebre. Foi um acontecimento real e grandioso, que não se dá sempre quando alguém morre. "Vamos abrir um túmulo para o nosso Irmão Maior," — disse o urso, depositando com o maior cuidado sua bola na relva, como quando se deposita uma relíquia. A ursa e seu filho abriram um túmulo na cabana para Frei Emanuel e seu esquilo. Colocaram os dois com o máximo cuidado dentro dele, cobriram-no com terra e puseram flores por cima. Os bichos ficaram mais alguns minutos perante o túmulo do seu Irmão Maior. Depois, encaminharam-se tristes de volta à floresta, cada um para a sua morada, e sentiram-se todos muito abandonados. Quando, porém, iam separar-se, eis que viram Frei Emanuel no meio deles, com o esquilo nos braços. "Eu não os abandonei, caros irmãos," — disse-lhes ele — "apenas abandonei minha taça de barro e estou agora com vocês em minha taça de cristal. Isto é um grande mistério que abrange a vida e a morte, como lhes contou o mocho,

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pois ele o viu. É um grande mistério, mas é muito simples. Preciso ir agora à outra margem para ajudar a preparar os caminhos dos Irmãos Maiores, contudo, não os abandonarei, voltarei todos os dias para tratar de vocês, e ninguém ficará só. Há sempre Irmãos Maiores perto dos menores, pois é este o caminho da salvação em penitência, anseio e amor." Os bichos compreenderam que em comunidade estão unidas todas as criaturas de Deus, e ficaram muito agradecidos por terem podido entendê-lo. Compreen-deram também que ninguém fica sozinho se tiver boa vontade, e que qualquer criatura, a mais ínfima, sempre tem um acompanhante na sua insignificante peregrinação. Então sentiram-se livres daquele grande desamparo e voltaram para casa. Em redor da cabana de Frei Emanuel cresceram rosas silvestres que a cobriram com um manto florido. Assim ela se tornou um templo num torrão de terra redimida. Francisco de Assis, contudo, levou um irmão homem e um irmão bicho pela ponte à outra margem.

Esta estória já se repetiu muitas vezes, há muitos milênios e muitos séculos; ela se deu ontem, está se dando hoje, e terá de acontecer ainda muitas vezes antes de desaparecer o sinal de Caim na testa dos homens, e desembaralhar-se o encadeamento das coisas. Muitos percorrem o caminho do Irmão Maior pelos seus irmãos menores, muitos o andam hoje, e inúmeros o andarão ainda. É um caminho cheio de espinhos em penitência, anseio e amor, e sobre ele resplandece a estrela de Belém. Todavia só depois de todos andarem por ele é que será redimida a terra e suas duas margens encontrar-se-ão numa Terra da Promissão.

Fim

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SUMARIO: