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IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM E NSINO DE F ÍSICA 1 ELEMENTOS FÍSICOS E CULTURAIS DO BRINQUEDO E DO MIRITI José Ricardo da Silva Alencar a [[email protected]] José Luiz Magalhães Lopes b [[email protected]] a Mestrando Núcleo Pedagógico de Apoio ao desenvolvimento Científico - UFPa b Prof. Msc. do Departamento de Física - Universidade Federal do Pará 1. RESUMO O presente estudo objetiva identificar os elementos de Física presentes em alguns brinquedos de Miriti, em geral aqueles dotados de movimento. Utilizou- se o método descritivo, partindo de modelos esquemáticos e aspectos matemáticos. Para tanto, se realizou pesquisa bibliográfica e de campo, esta última feita mediante visitas aos locais de confecção e venda dos referidos brinquedos, nas cidades de Belém e Abaetetuba, Estado do Pará, como a Feira do Ver-o-Peso, Espaço Cultural São José Liberto, SEBRAE-Abaetetuba, bem como casa de artesãos. Verificou-se a aplicação de diversos princípios, leis e conceitos de Física no funcionamento dos brinquedos de Miriti. Conclui-se que é perfeitamente possível a utilização destes como instrumento didático facilitador do estudo de Física no Ensino Básico até o Superior, uma vez que apresentam inúmeras características lúdicas, além de serem uma representação da cultura do homem nortista. 2. O BRINQUEDO O brinquedo é um instrumento lúdico. A palavra lúdico se origina do latim "ludus", que significa brincar. Segundo FEIJÓ (1992), “o lúdico é uma necessidade básica da personalidade, do corpo e da mente, faz parte das atividades essenciais da dinâmica humana”. O que caracteriza o lúdico é a experiência de plenitude que ele possibilita a quem o vivencia em seus atos. A ludicidade, como um estado de estar pleno naquilo que faz com prazer, pode estar presente em diferentes situações de nossas vidas. Os brinquedos nos ensinam a construir um mundo sem idade, que nos passa através de experiências de aprendizagem, isto é, aprendendo pela vivência do cotidiano – estágio elementar em cada fase de desenvolvimento do ser humano – o que se caracteriza pro uma prática pedagógica ativa. Aplicá-lo à educação, portanto, é captar todos os seus elementos básicos de construção como cultura do povo e compreendê -lo segundo variadas formas. O grande trunfo das atividades lúdicas é o fato de elas estarem centradas na emoção e no prazer, mesmo quando o jogo pode trazer alguma angústia ou sofrimento (GRILO, 2002). Neste trabalho, será desenvolvido o estudo sobre a Física subjacente aos brinquedos de Miriti, que podem ser adquiridos com certa facilidade em certas regiões paraenses, principalmente no município de Abaetetuba, a 150 km da capital Belém. Nada é mais

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I X ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM E NSINO DE F ÍSICA 1

ELEMENTOS FÍSICOS E CULTURAIS DO BRINQUEDO E DO MIRITI

José Ricardo da Silva Alencara [[email protected]] José Luiz Magalhães Lopesb [[email protected]]

a Mestrando Núcleo Pedagógico de Apoio ao desenvolvimento Científico - UFPa

b Prof. Msc. do Departamento de Física - Universidade Federal do Pará

1. RESUMO

O presente estudo objetiva identificar os elementos de Física presentes em alguns brinquedos de Miriti, em geral aqueles dotados de movimento. Utilizou-se o método descritivo, partindo de modelos esquemáticos e aspectos matemáticos. Para tanto, se realizou pesquisa bibliográfica e de campo, esta última feita mediante visitas aos locais de confecção e venda dos referidos brinquedos, nas cidades de Belém e Abaetetuba, Estado do Pará, como a Feira do Ver-o-Peso, Espaço Cultural São José Liberto, SEBRAE-Abaetetuba, bem como casa de artesãos. Verificou-se a aplicação de diversos princípios, leis e conceitos de Física no funcionamento dos brinquedos de Miriti. Conclui-se que é perfeitamente possível a utilização destes como instrumento didático facilitador do estudo de Física no Ensino Básico até o Superior, uma vez que apresentam inúmeras características lúdicas, além de serem uma representação da cultura do homem nortista.

2. O BRINQUEDO

O brinquedo é um instrumento lúdico. A palavra lúdico se origina do latim "ludus", que significa brincar. Segundo FEIJÓ (1992), “o lúdico é uma necessidade básica da personalidade, do corpo e da mente, faz parte das atividades essenciais da dinâmica humana”. O que caracteriza o lúdico é a experiência de plenitude que ele possibilita a quem o vivencia em seus atos. A ludicidade, como um estado de estar pleno naquilo que faz com prazer, pode estar presente em diferentes situações de nossas vidas.

Os brinquedos nos ensinam a construir um mundo sem idade, que nos passa através de experiências de aprendizagem, isto é, aprendendo pela vivência do cotidiano – estágio elementar em cada fase de desenvolvimento do ser humano – o que se caracteriza pro uma prática pedagógica ativa. Aplicá-lo à educação, portanto, é captar todos os seus elementos básicos de construção como cultura do povo e compreendê-lo segundo variadas formas. O grande trunfo das atividades lúdicas é o fato de elas estarem centradas na emoção e no prazer, mesmo quando o jogo pode trazer alguma angústia ou sofrimento (GRILO, 2002).

Neste trabalho, será desenvolvido o estudo sobre a Física subjacente aos brinquedos de Miriti, que podem ser adquiridos com certa facilidade em certas regiões paraenses, principalmente no município de Abaetetuba, a 150 km da capital Belém. Nada é mais

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presente na realidade paraense do que o brinquedo de Miriti, principalmente na época das festividades do “Círio de Nossa senhora de Nazaré”, manifestação anual da religiosidade popular em nosso estado. Nesta ocasião, deparamo-nos com as girândolas1 cheias de brinquedos de Miriti, passeando pelo Conjunto Arquitetônico de Nazaré, no qual cada brinquedo é carregado de um significado especial e particular.

3. O MIRITI

O Miriti ou Buriti (Mauritia flexuosa) palmeira brasileira (Figura 1) que é doce, é vinho e é brinquedo. Da palmeira tudo se aproveita, sendo que cada região tem um uso específico. Pode ser para ornamentação, utilizando suas folhagens e cachos dos frutos; pode servir de alimento; o lenho serve aos seringueiros para fazerem as talas com as quais colhem o látex; do caule, fabrica-se o vinho; da medula do tronco, retira-se a ipurana, fécula cuja qualidade e sabor assemelha-se ao sagu e farinha de mandioca. A polpa amarelo-ouro, que envolve o caroço do fruto, pode ser consumida ao natural ou mesmo usada para fabricar doce, sorvetes, cremes e compotas, sendo também utilizada na confecção de uma espécie de vinho caseiro. O óleo da polpa é usado na cozinha como tempero, mas também serve para produzir sabão. As sementes são usadas no Ceará para alimentação de suínos. As folhas maduras servem para cobertura de casas rústicas e as novas fornecem “embira” bastante resistente, muito utilizada no artesanato regional.

Interessante notar a relação do artesão com o brinquedo de Miriti, como transcreve LIMA (2002) sobre a fala de Dona Nina, uma senhora idosa que desde criança trabalha com os brinquedos:

1 As girândolas são uma espécie de cruz com vários braços, também feita de Miriti, onde são espetadas ponteiras da casca do próprio Miriti, para amarração de brinquedos.

a)

Figura 1 - a) Palmeiras de Buriti. Gravura de Taunay. b) Palmeira de Miriti no meio da Floresta Amazônica. Foto: Luiz Braga.

b) a)

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“O Miriti só é bom porque tudo serve dele, do Miritizeiro. Começa da folha, o grelo da folha, aquela folha que vem nascendo. Eles tiram o grelo, deixam secar e fazem a Envira. Essa Envira tece as cordas pra rede. De uma tala, eles fazem o rabo do foguete – esses foguetes que soltam e sobem. E também eles tecem rede. Miritizeiro é a árvore. Miritizal é onde tem muito. A gente chama Miriti aqui, mas por aí chamam buriti. O Miriti é o braço da folha do Miriti, esse Miriti que a gente faz os brinquedos. Da tala, tece os paneiros, cestas, essas coisas. Da bucha, a gente faz os brinquedos. Da fruta, faz o vinho, faz o doce, faz o mingau” (Dona Nina Abreu, artesã).

Os brinquedos de Miriti são uma forma de expressão da sensibilidade e da representação do universo ribeirinho da região Amazônica. Animais, meios de transportes, figuras humanas, atividades regionais, objetos domésticos, tudo isto está representado na arte do Miriti. Provavelmente, nasceram da capacidade de adaptação do caboclo brasileiro à natureza que o circunda. Segundo conta a história da região, a divulgação dos brinquedos começou a ser feita há mais de duzentos anos, por ocasião de uma feira realizada durante os festejos do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. A Feira de Produtos Regionais da Lavoura e da Indústria, como ficou conhecida, trazia de cada vila ou cidade do interior produtos como cacau, baunilha, guaraná, mandioca, arroz, cerâmica, tabaco, redes de pesca, pirarucu salgado, cesto, esteira e outros bens, estando, possivelmente, aí inclusos os brinquedos feitos no município paraense de Abaetetuba. Não existem registros históricos da denominação, como hoje conhecemos, dos brinquedos daquela feira.

A confecção dos brinquedos começa com a coleta dos talos (braços) da palmeira no meio do mato (Figura 2), em locais onde só se chega de barco. Geralmente, o Miriti escolhido é jovem e da planta se colhe apenas os braços onde estão as folhagens. Com isto, a confecção dos brinquedos não é uma atividade predatória, uma vez que a árvore é mantida viva e crescendo normalmente. A consciência de que preservar é preciso é transmitida entre as gerações: dos pais para os filhos, dos filhos para os netos, com o artesão retirando da natureza somente o que precisa.

Para se obter a matéria-prima dos brinquedos, os braços do Miriti são descascados para utilização do miolo, que fica em torno de 5 a 10 cm de diâmetro, e possui densidade

Figura 2 – Artesão retirando matéria prima (talo de Miriti) para confecção dos brinquedos. Foto: Luiz Braga

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menor que da água. Porém, ele não flutua na água por muito tempo, devido sua porosidade, logo se encharcando. As cascas, bem flexíveis, depois de secas, transformam-se em cestas, paneiros e varetas de papagaios e pipas. O miolo, trabalhado com facões de mato, é alisado e transportado em feixes para os produtores dos brinquedos. Os artistas com ferramentas rústicas (normalmente facas e facões) esculpem e montam peças segundo suas referências pessoais. Alguns se especializaram em barcos, outros em bonecos dançarinos, cobras, jacarés, madeireiros, pássaros, vaquinhas, aviões, rádios de pilha, televisões, etc. A escolha deste ou daquele motivo é parte da realidade individual de cada autor ou família de autores (MORAIS, 1989).

Depois de prontas, as partes são fixadas com cola do tipo látex e postas para secar. Então, é aplicado o desenho-base da pintura com tinta a base d’água, feita por membros das famílias (homens, mulheres e crianças), que repetem em cada peça o padrão estabelecido. Os brinquedos são estocados e, à véspera do Círio de Nazaré, são levados para Belém, onde ficam expostos e comercializados em praças e girândolas. A venda é feita pelos próprios artistas ou amigos que trabalham neste período. Ao contrário de outras formas de artesanato da região, como as réplicas de cerâmica marajoara ou tapajônica, cujas referências estão em achados arqueológicos expostos no Museu Emílio Goeldi, os brinquedos de Miriti são uma manifestação artística espontânea e o reflexo da criatividade dos produtores, seja no uso de cores primárias e poucas misturas (azul, vermelho, amarelo, verde, preto), seja na forma utilizada, que sempre reflete o universo caboclo, sua influência urbana e afetiva (TORRES, 1997).

4. O BRINQUEDO DE MIRITI E O ENSINO DAS CIÊNCIAS FÍSICAS

A Física é geralmente encarada como uma disciplina entediante e de difícil compreensão, e o professor de Física como um alienado, que só tem em mente cálculos e fórmulas. Ante o exposto, torna-se de máxima importância o desenvolvimento de uma metodologia alternativa na sala de aula que sirva para expor os assuntos de forma mais lúdica e que aproxime o educador do educando. Para PIAGET (1973), a base para a estruturação da inteligência é a ação, ou seja, aprender fazendo. É aí que se encaixa o lúdico, pois através das experiências proporcionadas por ele, o educando pode estruturar o conhecimento.

“A ludicidade poderia ser a ponte facilitadora da aprendizagem se o professor pudesse pensar e questionar-se sobre sua forma de ensinar, relacionando a utilização do lúdico como fator motivante de qualquer tipo de aula” (CAMPOS, 1986, pg. 108).

Utilizando os produtos que fazem parte da vida do aluno, as ciências Físicas serão apreendidas mais por convencimento que por imposição, como infere RAMOS e FERREIRA (2001). A cultura é a forma de ser de um povo. O aluno é um produto social do seu meio e é preciso que o professor conheça e respeite essa diversidade, afastando-se de programas curriculares fechados e homogêneos. Apoiando-se na cultura já incorporada ao estudante, estaremos oferecendo oportunidades àquele para se desenvolver e ampliar sua capacidade de produzir conhecimento a partir de elementos existentes no seu próprio

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ambiente. Deslocar as aulas de Física da sala de aula (leia-se educação tradicional) para a vida do aluno, onde este possa experimentar, ver, tocar, ouvir, cheirar, provar; estimular e complementar o aprendizado em sala de aula, é uma modificação necessária que em muito contribuirá para a formação e o entendimento do mesmo sobre os fenômenos físicos à sua volta (MELO, 2003).

Muitos brinquedos de Miriti possuem movimento e emitem som podendo, portanto, serem estudados leis, princípios e conceitos físicos: conceitos da Mecânica, em Dinâmica, como velocidade escalar e vetorial, força resultante, atrito, energia, suas formas, transformações e conservação; em Estática, como o equilíbrio de corpos, momento ou torque, centro de massa e de gravidade; Ondulatória, como os movimentos oscilatórios e Acústica, como os tubos sonoros.

5. OS ELEMENTOS DE FÍSICA NOS BRINQUEDOS DE MIRITI

Neste artigo, pretendemos mostrar alguns brinquedos de Miriti oriundos da cidade de Abaetetuba, identificando alguns elementos de Física presentes em seu funcionamento e visualizando alguns aspectos físicos e matemáticos subjacentes, apresentando estes em modelagem matemática simplificada que possam revelar significados qualitativos e quantitativos das leis definidas em Física. Porém, deixamos claro ser apenas uma abordagem de “primeira ordem”, pois não nos aprofundamos no estudo formal matemático, ficando em aberto diversas aplicações nas situações aqui apresentadas. Contudo, iniciamos um trabalho que há muito deveria ser visto por todos que pesquisam Ensino de Ciências e se preocupam com a educação a partir de nossa realidade amazônida.

5.1. Oscilações e ondas transversais: a sinuosidade da cobra de Miriti

A cobra de Miriti é um dos brinquedos mais famosos fabricados pelos artesãos (Figura 3). Serpenteando2 pelo solo atrás de sua presa, a cobra movimenta-se sinuosamente da sua cabeça à ponta de seu rabo (movimento representado pelas setas em branco da Figura 4).

5.1.1 Características de nosso modelo

Cada peça tem comprimento variado, de tal forma que o comprimento total da cobra pode ser expresso por:

2 Movimento característico dos ofídios.

Figura 3 – A cobra de Miriti. Fonte: http://www.cpgp.ufpa.br/gibi/1/animais.htm

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∑= iLL i =1,2,3,...,n (1)

cujo L é o comprimento total e Li o valor de comprimento de cada peça.

Por causa da construção artesanal, as peças possuem massas diferentes. A cabeça e as peças próximas possuem maior comprimento e, portanto, mais massa. Conclui-se que o centro de massa da cobra está mais próximo da cabeça e, portanto, também o centro de gravidade. Desta forma, sua massa total é:

∑= imM ,i =1,2,3,...,n (2)

As peças são divididas ao meio longitudinalmente e coladas numa faixa de plástico (Figura 4, linha em branco) permitindo apenas mobilidade lateral ao brinquedo.

5.1.2 Como funciona

Ao produzirmos uma perturbação (um movimento brusco lateral) numa peça da cobra, por exemplo, na cabeça, que está conectada a uma peça pela faixa, aquela transmite esta perturbação mecânica à próxima peça, que por sua vez irá se movimentar lateralmente e transmitirá o movimento sucessivamente às demais, como podemos perceber acima na Figura 4. Esta perturbação é, por definição, uma onda mecânica que se propaga por toda sua extensão.

A amplitude e a freqüência desta onda mecânica dependem exclusivamente do usuário do brinquedo, pois este é a fonte da perturbação. A freqüência fornecida ao brinquedo responde pela velocidade do serpentear da cobra, imitando sua sinuosidade.

O comprimento de onda na cobra depende do tamanho das peças, pois estes têm comprimento considerável e as ondas mecânicas, como se sabe, dependem do meio em que é transmitida. Podemos inferir que quanto mais próximo do rabo, maior a velocidade de movimento lateral (freqüência) das peças, já que estas partes são menores e, portanto, oferecem menor inércia à perturbação.

Podemos visualizar o centro de gravidade (CG) da cobra abaixo (Figura 5), cujo D é a distância da ponta do rabo ao centro de gravidade e d a distância da cabeça ao centro de gravidade.

Figura 4 – A cobra em oscilação.

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Conforme o esquema gráfico anterior, as coordenadas do centro de gravidade ficam escritas segundo o par de equações:

=

=

0y

Dx

CG

CG

(3)

Como dito anteriormente, o centro de gravidade está mais próximo da cabeça. Isto se explica pelo fato desta e das peças vizinhas serem maiores que as da região do rabo e, portanto, D>d. Daí a prática de se fincar uma tala bem próxima à cabeça do brinquedo (aproximadamente no CG), por onde a cobra fica oscilando lateralmente. Alternando-se o sentido de rotação desta tala, produz-se a onda mecânica que se propagará em direção à cabeça e ao rabo, como é exemplificado no modelo a seguir (Figura 6).

O esquema anterior representa o perfil da cobra, onde se evidenciam os pontos de apoio formados pela faixa posta entre as talas (linhas em cinza). Importante notar que o movimento oscilatório da cobra se dá de forma lateral, pois cada parte do corpo está presa à faixa e esta não possui movimento vertical.

5.2 Lâminas vibrantes: a ressonância no corró-corró

O roque-roque ou corró-corró, como é mais conhecido (Figura 7), emite um som característico, cuja onomatopéia batizou o brinquedo, ao ser girado pelo brincante, divertindo a criançada a correr pelas ruas e praças da cidade das mangueiras.

CG

D d

XCG

YCG

Figura 5 – Esquema gráfico da cobra de Miriti

CG

CG

Figura 6 - Esquema gráfico da geração de oscilação a partir do centro de gravidade do brinquedo.

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5.2.1 Características de nosso modelo

Amarrado em uma vara de Miriti (Figura 8), um cordão feito de algodão com comprimento L e massa m, é conectado a um tubo feito papelão enfeitado com papel crepon de diversas cores. O fio é afixado em na base circular do tubo através de um furo no centro, amarrado numa pequena tala. O tubo tem um diâmetro D, altura H e massa total M.

5.2.2 Como Funciona

Com o movimento em torno da vara de Miriti, executado a certa velocidade angular ω, dependente do usuário, que dificilmente a produz de forma constante, o cordão traciona por causa da força centrípeta (Fcp) e, quanto maior for a velocidade angular, maior a tração (T) exercida tanto na vara de Miriti e, por reação, na base do tubo.

Por causa da granulosidade da tinta utilizada na vara, sua superfície é irregular, e quando ocorre o giro, o cordão atritado produz vibrações mecânicas que se propagam por toda a extensão do cordão (Figura 9). A freqüência das ondas geradas pelo atrito não é constante; o giro fornecido pelo usuário não é o mesmo para todos os ciclos. Todos estes fatores acabam fazendo com que a interação entre o cordão e a vara seja caótica, produzindo as mais variadas freqüências.

Figura 7 – O corró-corró

Figura 3.18

ω T T

Tinta com “breu”

M D

H L

Figura 8 - Esquema gráfico do corró-corró.

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A velocidade da onda no cordão pode ser dada pela equação da velocidade de propagação de uma corda:

µT

vcordão = (4)

cujo T é a tração no cordão e µ sua densidade linear (considerando-a constante em toda a extensão). Como a tração é originada pela força centrípeta Fcp, e µ = m/L, temos que:

cpcordão FmLv =

(5)

As ondas chegam ao tubo transmitidas pelo cordão. Sua base circular age como uma membrana, que, posta em vibração, faz o ar contido no interior do tubo vibrar também. As variadas freqüências que a corda possui, quando transmitidas ao tubo, fazem o este ressoar nos mais variados modos (Figura 10). Dentre estes modos, alguns são audíveis ao ser humano.

Figura 9 – Esquema gráfico da geração de onda no corró-corró

Figura 10 – Analogia das ondas longitudinais das freqüências formadas pelo ar no interior do corró-corró com as ondas transversais geradas pela “tala”

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Podemos perceber que o brinquedo é um exemplo de tubo sonoro fechado e, portanto, as freqüências que ressoam são da forma:

Hv

41-2n

f artubo =

n=1, 2, 3,... (6)

As diferentes vibrações criadas pelo giro do “corró-corró” fazem variar a freqüência do som gerado de acordo com a velocidade angular impressa ao brinquedo. Quanto mais rápido o movimento, mais agudo é o som característico produzido.

Em suma, a perturbação produzida no fio devido à rugosidade da tinta com “breu” utilizada na vara gera a vibração forçada na base circular do tubo. Notamos que não ocorre ressonância para todas as freqüências geradas. Para que ela ocorresse sempre, seria necessário que cada freqüência de oscilação do cordão fosse igual às freqüências correspondentes do tubo de papelão. Além disso, o que se caracteriza no roque-roque é a oscilação forçada, pois o tubo vibra determinado pela freqüência do cordão.

5.3 Conservação e transformação de energia mecânica: o ratinho

Correndo por entre as pernas das pessoas, o ratinho assusta e diverte o brincante, que ao puxar sua corda, fá-lo correr para todos os lados (Figura 11).

5.3.1 Características de nosso modelo

O ratinho é formado por uma tala de Miriti esculpida de forma que seja oca em sua parte interna (Figura 12 e 13). Nesta parte se transpassa um elástico feito com borracha que é afixada em um carretel de barro onde se enrola um cordão de algodão. A extremidade “livre” do cordão é levada ao exterior do ratinho por um furo na parte superior do corpo do brinquedo e atada a uma pequena tala.

Figura 11 - O ratinho de Miriti

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Como o barro é bem mais denso que o Miriti, a massa do carretel mais a do conjunto (corpo do ratinho, borracha) tem um centro de massa próximo ao centro do carretel.

O carretel é disposto de tal forma no interior do ratinho que parte do mesmo fica abaixo da base de sustentação do brinquedo, pela necessidade do contato com o solo no instante da liberação do elástico para promover o movimento do mesmo. Em nosso estudo, adotaremos o centro de gravidade bem próximo ao eixo do carretel.

5.3.2 Como Funciona

Ao puxar o cordão do ratinho (Figura 14), o carretel, envolto pelo mesmo, começa a rotacionar. Este movimento é transmitido ao elástico fixo ao ratinho.

A torção provocada no elástico produz um armazenamento de energia elástica diretamente proporcional ao comprimento l do cordão que é puxado, de maneira que, quanto mais se puxa, mais energia elástica é armazenada pelo elástico, até o limite do comprimento total L do cordão.

Figura 13 – Vista lateral

Figura 12 – Vista inferior

Figura 14 – a) Vista lateral ao puxar o cordão. b) Vista inferior – o elástico é enrolado

R b) F

a) b)

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l∝.elastU (7)

Quando o fio é esticado até seu comprimento L, o carretel sofre um deslocamento angular máximo θmax. A energia potencial elástica armazenada (Uelast.) naquele instante também é máxima. Relacionamos esta energia com o deslocamento angular máximo do cordão da seguinte forma:

2elast. Maxk?

21

U = (8)

2elast. )k(2n

21

U π= (9)

cujo k está relacionado com as propriedades do elástico e do carretel e n ∈ ℜ, pertencente ao reais que relaciona ao número de voltas do carretel. Na Figura 15 abaixo, temos um modelo da situação descrita acima:

Quando a cordinha é liberada (solta repentinamente), a energia elástica armazenada começa a se transformar em energia cinética rotacional KR no carretel. Importante destacar que estamos considerando o sistema sendo conservativo – tomando como sistema apenas o brinquedo. Logo, pelo princípio da conservação da energia mecânica, temos:

2carRelast. I?

21

KU == (10)

Destarte, o carretel girando em contato com o solo rola, fazendo o ratinho adquirir velocidade em relação ao chão. De outra forma, a energia cinética de rotação do carretel é transformada em energia cinética de translação do ratinho. Portanto:

L F

Figura 15 – Esquema gráfico do ratinho de Miriti

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2totalR )v(M

21

KK == (11)

KUelast. = (12)

Totalmax M

kn2v π= (13)

O resultado desta troca de energia é o movimento do ratinho para frente. Após algum tempo, o movimento cessa porque é limitado pelo comprimento do fio e pela torção no elástico. Ao retornar à posição inicial, o cordão impede o carretel de rotacionar para o sentido contrário. A maior parte da energia elástica é transformada em movimento no carretel, simulando a corrida de um ratinho atrás de comida ou perseguindo as pessoas.

6. CONCLUSÃO

No desenvolvimento da pesquisa, pode-se (re)descobrir um pouco da riqueza cultural amazônica, presente em seu artesanato, especificamente, nos brinquedos de Miriti. Estes feitos de uma planta da Amazônia da qual, como disse a artesã Nina Abreu, “tudo se aproveita”.

Teorias de Física foram utilizadas na descrição do funcionamento dos brinquedos, constatando-se possibilidades de sua aplicação em sala de aula. O Ensino de Física é perfeitamente conciliável com o lúdico, aspecto este tão presente no cotidiano de qualquer ser humano, pois sem brincar, sem ter prazer, não é possível viver em paz consigo e com os outros.

A transposição didática, numa perspectiva presente e apontando para o futuro, fica a cargo de todos nós educadores interessados em “inculturar” a Física, produzida primeiramente na Europa Moderna por Newton e muitos outros, para uma linguagem mais próxima do cotidiano do aluno, particularmente numa linguagem para o estudante papa-chibé3.

Mais pesquisas devem ser feitas para um aprofundamento neste tema. Existem diversos indícios de que o futuro da educação na Amazônia passa pela valorização dos materiais culturais que aqui são produzidos e de suas riquezas intrínsecas, trazendo-as para a esfera da educação. Nesse sentido, a etnociência configura-se uma linha de pesquisa em ensino de ciências geradora de novos horizontes para a Educação na Região Amazônica.

3 Papa-chibé – relativo à cultura paraense.

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7. BIBLIOGRAFIA

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FEIJÓ, O. G. Corpo e Movimento. Rio de Janeiro: Shape, 1992.

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