eixo de simetria 2

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Educ. Mat. Pesqui., São Paulo, v. 9, n. 1, pp. 121-153, 2007 Transição entre o intra e interfigural na construção de conhecimento geométrico por alunos cegos SOLANGE HASSAN AHMAD ALI FERNANDES LULU HEALY * Resumo A preocupação em garantir a todos o direito à Educação tem caracterizado a política atual do Estado em relação às necessidades educacionais especiais. Acreditamos que as necessidades de cada pessoa têm igual importância na construção de uma sociedade justa e com esse olhar temos desenvolvido nossos estudos investigando a apropriação de conceitos geométricos por aprendizes cegos. Neste artigo, descrevemos atividades realizadas com dois sujeitos, um portador de cegueira congênita e outro portador de cegueira adquirida, que envolvem noções de transformações geométricas. Apresentamos as bases teóricas e metodológicas do estudo e ilustramos nossas análises relativas à transição entre os níveis intra e interfigural por meio de alguns episódios de entrevistas. Palavras-chave: educação especial; intra/inter/transfigural; transformações geométricas. Abstract A central concern of current government policies relation to special educational needs is to guarantee as a right for all access to all levels of the education system. The actual position is based on the belief that each person has equal importance in the constitution of a just society and it is within this perspective that our studies of the appropriation of geometrical concepts by blind students are inserted. In this article, we describe activities involving notions of geometrical transformations realized with two subjects, one blind since birth and one who became blind during adolescence. We present the theoretical and methodological bases of the study, along with our analysis of episodes from the interviews in which we identified transitions between intra and interfigural levels of geometrical thought. Keywords: Special Education; intra/inter/transfigural; geometrical transformation. * Programa de Estudos Pós-graduados em Educação Matemática, PUC-SP. E-mail: [email protected] e [email protected]

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eixo de simetria 2

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  • Educ. Mat. Pesqui., So Paulo, v. 9, n. 1, pp. 121-153, 2007

    Transio entre o intra e interfigural

    na construo de conhecimento

    geomtrico por alunos cegos

    SOLANGE HASSAN AHMAD ALI FERNANDESLULU HEALY*

    ResumoA preocupao em garantir a todos o direito Educao tem caracterizado a poltica atual do Estado em relao s necessidades educacionais especiais. Acreditamos que as necessidades de cada pessoa tm igual importncia na construo de uma sociedade justa e com esse olhar temos desenvolvido nossos estudos investigando a apropriao de conceitos geomtricos por aprendizes cegos. Neste artigo, descrevemos atividades realizadas com dois sujeitos, um portador de cegueira congnita e outro portador de cegueira adquirida, que envolvem noes de transformaes geomtricas. Apresentamos as bases tericas e metodolgicas do estudo e ilustramos nossas anlises relativas transio entre os nveis intra e interfigural por meio de alguns episdios de entrevistas.Palavras-chave: educao especial; intra/inter/transfigural; transformaes geomtricas.

    AbstractA central concern of current government policies relation to special educational needs is to guarantee as a right for all access to all levels of the education system. The actual position is based on the belief that each person has equal importance in the constitution of a just society and it is within this perspective that our studies of the appropriation of geometrical concepts by blind students are inserted. In this article, we describe activities involving notions of geometrical transformations realized with two subjects, one blind since birth and one who became blind during adolescence. We present the theoretical and methodological bases of the study, along with our analysis of episodes from the interviews in which we identified transitions between intra and interfigural levels of geometrical thought.Keywords: Special Education; intra/inter/transfigural; geometrical transformation.

    * Programa de Estudos Ps-graduados em Educao Matemtica, PUC-SP. E-mail: [email protected] e [email protected]

  • Solange Hassan Ahmad Ali Fernandes e Lulu Healy

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    Reflexes tericas

    Educao especial no Brasil vem se construindo historicamente acompanhando os processos legais e apelos sociais. No entanto, apesar de sua especificidade, ela no tem se organizado com e para seus atores normais e deficientes. Nesse sentido, a reflexo passa a situar-se nas condies educacionais, nas mudanas que as escolas regulares precisam realizar e na proviso dos recursos para que os alunos com necessidades educacionais especiais, ou melhor, para que todos os alunos recebam nelas um ensino satisfatrio. Essas mudanas no se referem somente infra-estrutura como rampas e sala de recursos, dentre outros, mas tambm aos recursos didticos utilizados em situaes de ensino-aprendizagem por alunos normais e deficientes. No que se refere particularmente ao ensino de alunos cegos ou com viso subnormal, devemos considerar que o planejamento das intervenes de ensino deve considerar, sobretudo, as ne-cessidades especficas do aprendiz, conseqncia, principalmente, da falta ou da degradao de um dos canais de aquisio da informao o visual. As informaes chegam aos deficientes visuais mediadas por dois canais principais: a linguagem pois ouvem e falam e a explorao ttil (Gil, 2000, p. 24). atravs do sistema hptico (ou tato ativo) que o indivduo sem acuidade visual capaz de captar e processar informaes dos objetos que constituem o ambiente. O tato permite analisar um objeto de forma parcelada e gradual, ao contrrio da viso, que sinttica e global. Dessa forma, as informaes parciais fornecidas pelo tato tm carter seqencial e devem ser integradas, exigindo uma carga maior de memria (ibid., p. 25). Ao explorar um objeto, as mos do deficiente visual, assim como os olhos dos videntes, embora de forma mais lenta e sucessiva, movem-se de forma intencional captando particularidades da forma a fim de obter uma imagem desse objeto (Ochaita e Rosa, 1995, p. 185).

    O trabalho de contedos relacionados Geometria para alunos dos ensinos fundamental e mdio videntes ou deficientes visuais , a princpio, exige a utilizao de recursos didticos. No caso de aprendizes cegos, a formao de conceitos depende em parte do contato ttil com as coisas do mundo. Desse modo, a utilizao de modelos didticos constitui uma importante ferramenta no processo de ensino-aprendizagem. As ferramentas para aprendizes cegos que empregam a resposta ttil devem faz-lo a fim de propiciar representaes adequadas de informaes que permitam ao aprendiz estabelecer conexes, a fim de viabilizar o processo

  • Transio entre o intra e interfigural na construo de conhecimento geomtrico por alunos cegos

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    de ensino-aprendizagem. Por esse ponto de vista, as ferramentas materiais no servem simplesmente para facilitar os processos mentais que poderiam ocorrer de outra forma. Fundamentalmente elas formam e transformam esses processos (Cole e Wertsch, 2002).

    Decidimos centrar nossas investigaes, no campo de Geometria, uma rea usualmente associada a experincias visuais e que traz desafios particularmente para aprendizes cegos. Em relao a esse campo, Piaget e Garcia (1987) realizaram um estudo histrico-crtico examinando os aspectos psicogenticos e a psicognese das noes geomtricas. Para esses autores, tanto o desenvolvimento histrico da Geometria como a psicognese das estruturas geomtricas caracterizam-se por trs etapas de desenvolvimento: intrafigural, interfigural e transfigural.

    Na etapa intrafigural, os sujeitos no percebem as transformaes da figura dentro do conjunto (figuras-plano). Centram-se nas propriedades internas das figuras e nas relaes internas de duas ou mais figuras, o que resulta numa comparao entre essas figuras. Piaget e Garcia denominam etapa interfigural aquela em que o sujeito utiliza somente referncias internas do sistema analisado, ou seja, as figuras esto num plano, e esse conjunto (figuras-plano) apresenta caractersticas de totalidade. A transfor-mao associa a uma figura-objeto sua figura-imagem, mas no aplicada a nenhum outro ponto do plano, que visto apenas como um suporte para as figuras. O sujeito considera que qualquer mudana de forma de uma figura deve-se ao deslocamento de suas partes, j que somente compara posies iniciais e finais com suas respectivas referncias (ibid, p.118). Em seguida comea uma terceira etapa, que chamaremos transfigural, caracterizada pela preeminncia das estruturas (ibid, p.110). Essa etapa no trata somente da transformao de uma figura noutra, mas opera sobre todos os pontos do plano, verificando a realizao de determinadas condies (manter sem variao alguns elementos invariantes). Trata-se, sobretudo, de uma fase que se opera sobre um conjunto de elementos, podemos dizer que de relaes entre relaes onde s transformaes podem ser compostas e decompostas, j que passam a ser objetos.

    Em suas concluses, esses autores elucidam que essa trade (intra, inter e transfigural) so fases de um processo contnuo, ou seja, as es-truturas atingidas no nvel transfigural do lugar, por sua vez, s anlises intra que conduzem a novos inter, depois produo de super-estruturas

  • Solange Hassan Ahmad Ali Fernandes e Lulu Healy

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    trans e assim indefinidamente (ibid, p. 132). Portanto, embora ocorra um processo de sucesso entre os nveis, essa sucesso independe de um grau hierrquico absoluto.

    O estudo

    Neste artigo, propomo-nos a analisar aspectos dos dilogos e das aes1 de dois aprendizes sem acuidade visual, ocorridos durante uma situao instrucional a fim de compreender como eles se apropriam de algumas noes de transformaes geomtricas, mais especificamente de significados para simetria e reflexo. Em particular, pretendemos identifi-car como o trabalho de natureza intra e interfigural2 se manifesta quando o aprendiz no tem acesso ao campo visual. Para tanto, formulamos nossa questo de pesquisa:

    Como evoluem os significados associados simetria e reflexo dos aprendizes sem acuidade visual durante os dilogos instrucionais e como essa evoluo influenciada pelos sistemas mediadores?

    Na busca de resposta para essa questo complexa, tomamos o conjunto formado por trs dimenses para nortear nossas anlises: a ope-racionalidade entre os nveis intrafigural, interfigural e transfigural (Piaget e Garcia, 1987); a apropriao da voz matemtica (Renshaw, 1996) e a emergncia e manuteno da ZDP (Meira, 2002). Neste artigo interessam-nos, especialmente, os nveis intra e interfigural, e a possibilidade de nossos sujeitos de pesquisa transitarem entre os nveis intrafigural e interfigural. Com essa perspectiva, elaboramos uma questo mais especfica, que nos auxiliar a responder questo de pesquisa.

    Em que medida as transies entre os nveis intra, inter e transfi-gural do pensamento geomtrico emergem nos dilogos instrucionais e como elas so influenciadas pelas ferramentas materiais?

    1 O uso o termo ao se faz de acordo com a viso de Goodwin (2000, p. 1492), que prope que a ao humana seja analisada em termos de configuraes contextuais: uma abordagem interacional que investiga o uso simultneo de mltiplos recursos semiticos pelos participantes, tais como diferentes classes de fenmenos sgnicos que emergem do fluxo da fala, da expresso gestual, da produo e do uso de registros materiais e da manipulao de artefatos.

    2 Inicialmente, no tnhamos a expectativa de chegar etapa transfigural, pois acredit-vamos que o sistema hptico limitava as representaes mentais do espao euclidiano representado pela ferramenta material.

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    A fim de estabelecer uma variedade de entendimentos a respeito da capacidade cognitiva e dos processos cognitivos dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa, optamos pelo mtodo da dupla estimulao de Vygotsky (1998), onde o sujeito colocado frente a uma tarefa que excede em muito os seus conhecimentos e capacidades (Cole e Scribner, 1998, p. 16). Essa tarefa proposta dentro de uma situao estruturada e o sujeito recebe uma orientao ativa, do pesquisador, no sentido da construo de uma estratgia (que ainda no existia para o sujeito) para a realizao da tarefa (Veer e Valsiner, 1996, p. 187).

    No estudo aqui apresentado, o primeiro estmulo foi dado pelas ferramentas materiais desenvolvidas na fase inicial de nossa pesquisa e o segundo estmulo foi oferecido pela pesquisadora atravs de intervenes. Desenvolvemos uma srie de entrevistas baseadas em tarefas considerando pesquisas anteriores sobre as noes de reflexo por sujeitos com acuidade visual dentro dos padres normais, como Healy (2002), Grenier (1985) e Kchemann (1981). Tais entrevistas foram realizadas em sesses, com dois sujeitos: um portador de cegueira congnita, o qual chamamos Lucas, e outro portador de cegueira adquirida, que denominamos Edson.

    Durante as sesses, consideramos importante que a pesquisadora, em suas intervenes, partisse de conhecimentos matemticos j domina-dos pelos sujeitos. Para isso, a primeira parte das entrevistas tinha o objeti-vo de fazer uma investigao exploratria que nos permitisse identificar as conexes que esses sujeitos estabeleciam com termos matemticos, como, por exemplo, simetria, reflexo, eixo de simetria e figura-imagem.

    As tarefas, na segunda parte das entrevistas, foram divididas em trs conjuntos.

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    Diagrama 1 Estrutura das tarefas

    O primeiro conjunto envolvia figuras simtricas (Fig. 1) e foi subdividido em dois grupos. No grupo inicial, as tarefas foram realizadas utilizando figuras feitas em papel canson, que possibilitavam ao sujeito a utilizao de dois tipos de estratgias: o uso de rgua (especial para deficientes visuais) ou dobradura. O segundo grupo desse conjunto foi realizado na ferramenta que denominamos prancha de desenho, composta por uma prancha de madeira (Fig. 2) com 120 pinos alinhados em 10 linhas e 12 colunas. As figuras e o eixo de simetria foram representados por elsticos. O segundo conjunto de tarefas foi estruturado para o estudo de reflexo de figuras em relao a um eixo e o terceiro conjunto estudou a reflexo de segmentos e pontos em relao a um eixo.

    Figura 1 Polgonos em papel canson Figura 2 Ferramenta de desenho

    GRUPO 1 GRUPO 2

    Figuras simtricas Reflexo

    Conjunto 1a Conjunto 1b Conjunto 2 Conjunto 3 Conjunto 4

    QuadradoLosango

    ParalelogramoPipa

    DodecgonoTrapzioissceles

    Tringuloissceles

    Figuras Segmentos PontosHexgonoTringuloissceles

    Ferramenta material 1 Figuras de papel canson Ferramenta material 2 Ferramenta de desenho

    TAREFAS

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    Ao final das tarefas, voltamos a solicitar aos sujeitos que explici-tassem suas concepes sobre reflexo dentro do contexto matemtico: a essa fase demos o nome de retrospectiva. Foram realizadas, no total, trs sesses de aproximadamente uma hora e trinta minutos com cada um dos sujeitos, que foram videogravadas e transcritas em sua totalidade para facilitar as anlises.

    Sujeitos

    Lucas portador de cegueira congnita (perdeu a viso totalmen-te aos dois anos de idade) e faz cursos profissionalizantes na Adeva. Ele concluiu o ensino mdio em escolas pblicas regulares, inserido em classe comum. Desde sua primeira infncia recebeu estmulos tteis e sua alfabe-tizao foi feita em Braille. Mostrou ter um bom nvel de conhecimento matemtico e uma boa relao com a Matemtica. Especialmente na Geometria, mostrou conhecer elementos que foram fundamentais para o desenvolvimento dos dilogos durante as entrevistas, como: ceviana, ponto mdio, mediatriz, bissetriz e outros.

    Edson, nome fictcio que demos ao portador de cegueira adquirida, nasceu em Pernambuco. Aos sete meses de idade, sua famlia recebeu o diagnstico de glaucoma congnito,3 o que o fez perder totalmente a viso do olho esquerdo aos quatro anos de idade. Sua alfabetizao foi feita de acordo com o sistema convencional. Aos quinze anos, aps um descolamento da retina,4 ficou com dois por cento de viso no olho direito, o que o possibilita ter percepo e projeo luminosas.5 Nesse perodo, comeou a fazer curso de reabilitao, o que implica no s a leitura e escrita Braille, mas tambm o desenvolvimento do sistema hptico ativo. Na poca do desenvolvimento desta pesquisa, Edson cursava a terceira srie do ensino mdio na Escola Estadual Gonzaga Pinto e Silva no

    3 O glaucoma uma doena causada pela leso do nervo ptico relacionada presso ocular alta.

    4 Retina a parte posterior do olho, formada em sua maior parte por clulas nervosas. A retina o local onde se forma a imagem ou viso que traduzida pelo crebro. Des-colamento da retina o desprendimento da retina da parte interna do globo ocular.

    5 No primeiro caso (percepo), h apenas a distino entre claro e escuro: no segundo (projeo) o indivduo capaz de identificar tambm a direo de onde provm a luz (Conde, 2004).

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    perodo noturno, inserido em classe comum e trabalha como recepcionista na Adeva Associao de Deficientes Visuais e Amigos.

    Ao ser questionado sobre memria visual, afirmou t-la e, no apresentar dificuldades para reconhecer formas que conheceu quando ainda tinha viso, mesmo que as tenha conhecido no perodo de baixa viso. Na escola, no tem acesso sala de recursos que s funciona nos perodos da manh e da tarde, por falta de funcionrios para o perodo noturno. Para acompanhar e registrar as aulas, Edson usa uma mquina de escrever em Braille de sua propriedade. Em relao Geometria, mostrou conhecer, ao menos nominalmente, alguns elementos que foram fundamentais para o desenvolvimento dos dilogos, como ponto mdio, bissetriz, perpendicular e outros.

    Sendo nosso objetivo fazer a anlise de dilogos e aes pela pers-pectiva intra, inter e transfigural (Piaget e Garcia, 1987), decidimos que nossos sujeitos de pesquisa deveriam ter concludo (ou estarem concluindo) o ensino mdio. Acreditamos que os dilogos com esses sujeitos poderiam ser facilitados, pois, apesar de no terem estudado transformaes geom-tricas durante sua vida escolar, a linguagem matemtica desses sujeitos mais rica do que a de indivduos ainda na fase escolar inicial. Alm disso, a percepo ttil desses sujeitos mais desenvolvida, o que crucial para a realizao das tarefas propostas em ferramentas tteis.

    Para este artigo, escolhemos alguns trechos que pudessem ilustrar a evoluo de algumas noes matemticas ligadas simetria e reflexo, que podem ter sido favorecidas pela sucesso entre os nveis intra e interfigural.

    Investigando figuras simtricas

    O sujeito Lucas

    Do conjunto inicial de tarefas, aplicado na primeira entrevista, destacamos a atividade que envolvia a determinao do eixo de simetria de um tringulo issceles. Inicialmente, oferecemos a Lucas, na prancha de desenho, um tringulo issceles e seu respectivo eixo de simetria. Lucas fez a explorao ttil e, a pedido da pesquisadora, destacou algumas ca-ractersticas da representao, como o tringulo ficou dividido em duas partes iguais. Na seqncia, oferecemos a Lucas a representao de um tringulo issceles com as mesmas dimenses do oferecido na tarefa anterior, feito

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    em papel canson, e propusemos que ele determinasse o eixo de simetria dessa figura. Inicialmente, o sujeito procurou posicionar a rgua no eixo de simetria; ao perceber que essa estratgia dificultava a explorao ttil, passou a fazer dobraduras. Lucas faz a primeira tentativa dobrando o tringulo a partir da bissetriz de um dos ngulos congruentes do tringulo e o entrega pesquisadora (Fig. 3), ao que se segue o seguinte dilogo:

    Figura 3 Primeira tentativa

    Pes: Voc pode me explicar por que esse o eixo de simetria? (Lucas passa a fazer a explorao ttil de todos os lados do novo tringulo formado)Lucas: No . No ficou certo.

    Trecho 1 Primeira discordncia

    Lucas tenta novamente, usando agora o ponto mdio de um dos lados congruentes (tomado por base) do tringulo.

    Figura 4 Segunda tentativa

    Lucas: Mas esse tambm no . (Fig. 4)Pes: Voc usou s um vrtice. Tem mais dois para tentar.Lucas: mesmo.

    Trecho 2 Uma reparao

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    Sendo, como j mencionamos, o tringulo entregue a Lucas uma rplica do oferecido na prancha de desenho (fixo), ao entrar em contato com o tringulo de papel canson (no fixo), o sujeito usou a imagem for-mulada a partir do tringulo fixo, o que fez com que ele elegesse como base um dos lados congruentes, no tendo xito em duas de suas tenta-tivas. Lucas s abandonou essa idia quando a pesquisadora sugeriu que ele tentasse outro vrtice. Atravs do tato, o sujeito passou a avaliar as medidas dos lados do tringulo, escolhendo, apropriadamente, o vrtice oposto ao lado no congruente para iniciar a dobra, realizando a atividade com sucesso.

    Esse tipo de tarefa favorece a etapa intrafigural, j que, para a sua realizao, o sujeito deve apenas preocupar-se com as propriedades internas da figura ou com as relaes internas entre as duas figuras criadas a partir do eixo de simetria, o que resulta na comparao entre elas. Lucas posicionou, inicialmente, o tringulo issceles com um dos lados congruentes paralelo ao seu corpo, como lhe foi oferecido na tarefa anterior, o que o fez formular respostas como as representadas na Figura 5. Creditamos esse fato a um efeito associado ao recurso didtico que escolhemos, que fez com que Lucas agisse sobre a figura de papel canson da mesma forma que agiu sobre o tringulo issceles representado na ferramenta de desenho.

    1 tentativa 2 tentativa

    Figura 5 Primeira imagem

    O sujeito Edson

    Antes de iniciar as tarefas da segunda sesso, a pesquisadora faz com Edson uma retrospectiva do que havia sido discutido na sesso anterior, na qual haviam sido exploradas algumas propriedades importantes do eixo de simetria, como: o eixo de simetria faz a diviso em dois lados iguais e a figura fica dividida em duas iguais. Na primeira declarao de Edson, vemos que ele destaca o eixo de simetria ocupando a posio de mediatriz de um dos lados da figura, e, na segunda, a congruncia, por sobreposio, das duas formas determinadas a partir do eixo de simetria. Ao propor a Edson

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    que explorasse as figuras de papel canson trabalhadas na sesso anterior e seus respectivos eixos de simetria, a pesquisadora introduz no dilogo um termo matemtico novo para Edson figuras simtricas: As figuras que tm eixo de simetria so chamadas figuras simtricas na Matemtica.

    O trabalho de Edson com o hexgono na ferramenta de desenho (Figura 6) surpreendeu-nos. Nesse ponto da entrevista, o sujeito, que mantinha sua ateno centrada no eixo de simetria, passou a centr-la na figura, sugerindo que o significado atribudo por ele ao eixo de simetria havia se aproximado do significado convencional.

    a b cFigura 6 O trabalho de Edson com o hexgono

    Inicialmente, Edson procurou conhecer a forma representada na ferramenta atravs do tato. Posiciona o primeiro elstico (Figura 6b), aps explorar a medida dos seus lados (nmero de pinos) e de reconhecer seus vrtices. Logo em seguida posiciona o segundo elstico (Figura 6c), anunciando que a figura tem dois eixos de simetria.

    Pes: Dois eixos de simetria. No tem mais nenhum?Edson: Eu estou imaginando, fazendo na cabea. No d para fazer mais nenhum.Pes: No d por qu?Edson: Primeiro eu usei o tato para ter noo do desenho.Agora eu estou usando a imagem na minha cabea, como se eu estivesse dobrando com a mo.Pes: Voc est imaginando a figura?Edson: Isso, visualmente.Para c um e para c dois. (Simula a dobra na figura).Tem s dois mesmo.

    Trecho 3 Usando a imagem mental6

    6 Falas de 85 a 90 da segunda sesso, enumeradas de 1 a 350.

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    O procedimento declarado por Edson indica que, para ele, as ima-gens mentais caracterizam-se como um suporte bem mais sofisticado de representao conceitual. Edson, atravs do tato, estabeleceu uma imagem mental, e a partir dessa imagem fez ligaes com seus conheci-mentos. Tal fato evidencia-se na sua segunda declarao, presente nesse trecho, na qual ele fala sobre a imagem mental formulada a partir da explorao ttil, que lhe permitiu manipular mentalmente a forma geomtrica. Imaginando as dobras que poderiam ser feitas nessa figura, de tal forma que houvesse congruncia entre as duas partes, Edson realiza a tarefa com xito na primeira tentativa. Em suas elucidaes, percebe-se que seu pensamento manteve-se no nvel intrafigural. Em sua ao, pode-se perceber que, ao procurar a posio de cada um dos eixos do hexgono, ele procurou usar a bissetriz dos ngulos dos vrtices, assim como a mediatriz de seus lados. Isso nos encorajou a iniciar o trabalho com reflexo, o que foi feito ainda com base na figura representada na ferramenta de desenho.

    Ns vamos sair um pouco das figuras simtricas e vamos discutir um outro conceito matemtico o conceito de reflexo.

    Quando falamos de reflexo, falamos de uma figura e sua imagem. Se voc pensar nessa figura que est na ferramenta, metade dela, a metade que est sua esquerda idntica metade que est sua direita. (Aguarda a explo-rao ttil).

    O eixo de simetria atravessa a figura e tudo que voc tem direita tem tambm esquerda.

    Figura 7 Iniciando o estudo de reflexo

    A expresso facial de Edson sugere que ele aceitou bem ambos os termos e, na seqncia do dilogo, a pesquisadora o faz indicar alguns pontos e suas respectivas imagens. Ao solicitar que ele destaque alguma

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    relao entre esses pontos e o eixo de simetria, o sujeito diz que se for at o meio poder ter uma base da diviso entre os dois lados (da figura). Edson, dentro de uma perspectiva intrafigural, continua a imaginar uma dobra na posio do eixo de simetria, o que o leva a centrar sua ateno no meio.

    Considerando a investigao de figuras simtricas, o nvel do pen-samento geomtrico dos aprendizes, aparentemente, tem caractersticas da etapa intrafigural. Aparentemente, ao menos a princpio, confirmando a validade do carter hierrquico sugerido por Piaget e Garcia (1987) tambm para aprendizes cegos. Na prxima seo, voltamos a ateno para atividades que envolvem reflexo axial.

    Reflexo de figuras em relao a um eixo

    Nas intervenes seguintes, as atividades exploraram a reflexo de figuras em relao a um eixo. Dessa srie de atividades, destacamos alguns trechos, nos quais acreditamos ter indicadores da transio entre as etapas intra e interfigural.

    O sujeito Lucas

    Na primeira atividade descrita determinar o eixo de simetria de figuras planas Lucas mantm-se na etapa intrafigural. Na seqncia de tarefas do grupo 1, no foi possvel verificar a evoluo do pensamento geomtrico de Lucas em relao aos nveis intra e interfigural

    Nas tarefas do grupo 2, acreditamos haver evidncias da passagem de intra para interfigural.

    Pes: Agora vamos sair da simetria nas figuras e vamos tentar ir para a reflexo. Fazer a reflexo de uma figura encontrar a imagem dessa figura do outro lado do eixo de simetria. Eu vou fazer aqui (na prancha de desenho) uma figura e sua imagem segundo um eixo de simetria, e voc vo explorar (fig. 8).

    Lucas: A figura e a imagem dela (explora as figuras, mas sem perceber as relaes com o eixo de simetria).

    Pes: A figura e sua imagem tm algumas caractersticas, algumas propriedades a partir do eixo de simetria. Ou algumas regularidades, algumas coisas em comum a partir do eixo de simetria. O que voc percebe?

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    Lucas: Em primeiro lugar eu acho que elas esto mais ou menos centradas no eixo de simetria. Na parte central (no centro do eixo de simetria). A distncia entre cada uma das figuras e o eixo de simetria so iguais. Foi isso que eu consegui perceber.

    Trecho 4 Introduzindo reflexo de figuras

    Figura 8 Figura e imagem

    A pesquisadora, em suas intervenes, procura induzir Lucas a destacar propriedades que seriam aplicadas em atividades posteriores construo de imagem por reflexo. Nas falas de Lucas, pode-se perceber que ele mantm a perspectiva intrafigural. Ele no faz distino entre os elementos que compem o conjunto figuras-plano, ou seja, entre o eixo de simetria, os tringulos (figura e imagem) e os pontos do plano (pinos da prancha de desenho). A relao de eqidistncia, que Lucas destaca, feita como se a prancha de desenho fosse sua figura e o eixo de simetria o elemento que divide essa figura em duas, permitindo assim a comparao entre essas duas figuras. Na mesma sesso, aps algumas tarefas, as falas de Lucas nos sugerem a passagem do nvel intra para interfigural. No trecho transcrito abaixo, a pesquisadora prope ao sujeito a tarefa como representada na figura 9.

    Figura 9 Uma figura mais complexa

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    Lucas: Agora a referncia est fora do eixo de simetria.Pes: , agora no temos pontos comuns entre a figura e o eixo de simetria.Luca: Pronto.Pes: O que voc teve que considerar para fazer a imagem? Lucas: Pera a, deixa eu ver se est certo. s vezes pela disposio da madeira parece que no est. (Vira a prancha a fim de deixar o eixo de simetria perpendicular ao seu corpo). Primeiro eu levei em considerao a distncia do eixo de simetria. Comparei os pontos em que eu poderia estar reproduzindo essa imagem em relao ao eixo de simetria e a figura j feita.

    Trecho 5 Perspectiva interfigural

    A primeira fala de Lucas apresenta indicadores da passagem do nvel intra para interfigural. At essa tarefa, Lucas tomava por referncia o eixo de simetria para a determinao da figura imagem (nas tarefas propostas at aqui, as figuras dadas sempre tinham um ou mais pontos em comum com o eixo de simetria), considerando o eixo de simetria, a figura dada e a figura imagem um nico elemento (carter intrafigural). Assim que fez a explorao ttil da figura proposta na prancha de desenho (Fig. 9), Lucas percebeu ser necessrio eleger outra referncia para realizar a tarefa. Atendendo pesquisadora, explicitou a nova relao que estabeleceu para a construo da imagem. Em sua terceira declarao, Lucas afirma ter considerado a eqidistncia, em relao ao eixo de simetria, da figura e de sua imagem, para isso estabeleceu comparaes entre os pontos (pinos) representados na ferramenta nos dois semiplanos determinados pelo eixo de simetria, o que nos indica o nvel interfigural. Lucas utilizou referncias internas do conjunto figuras-plano comparando a posio inicial (figura dada) e a posio final (figura imagem).

    Uma das tarefas desse conjunto envolvia uma simulao que colocava Lucas no papel de professor:

    Faz de conta que eu estou em casa ao telefone, com uma ferramenta como essa e com um par de elsticos posicionados nela, um a imagem e outro o objeto, e voc conversando comigo ao telefone tem que me ensinar determinar o eixo de simetria, mas voc no tem idia da posio dos segmentos nem da ferramenta, j comentamos que ela no quadrada e se mudamos a posio da ferramenta o eixo de simetria vai junto. Ento voc vai ter que

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    me dar um mtodo, como um mtodo geral que vale para qualquer situao para que eu possa fazer essa tarefa l na minha casa.

    Lucas assume o papel de instrutor, mas, a princpio, tem dificul-dade para verbalizar o que tinha em mente. A pesquisadora posiciona na ferramenta de desenho dois segmentos para auxili-lo. Usando essa representao, ele apresenta uma seqncia de procedimentos para a realizao da tarefa. No trecho transcrito abaixo, pode-se verificar que a pesquisadora o fez justificar cada um deles.

    Lucas: Voc toma por base uma das extremidades de cada um dos segmentos.Pes: Uma qualquer?Lucas: As duas extremidades do mesmo lado (com suas mos, mostra referir-se a um ponto e seu simtrico). Voc centraliza o eixo de simetria no ponto mdio entre uma extremidade e outra de cada segmento.Pes: E como eu fao para achar o ponto mdio?Lucas: Voc pode usar uma rgua ou mais simples contar os pinos a partir de um dos segmentos at o outro segmento, e localizar o pino que seja o ponto mdio dessa distncia entre um segmento e outro.Pes: T, achei, e agora?Lucas: Fixa o elstico a e traa uma reta sempre obedecendo distncia, ou seja, tanto as duas extremidades dos segmentos como os outros pontos dos segmentos guardam a mesma distncia.Pes: Ento todos os pontos dos segmentos esto mesma distncia do eixo de simetria?Lucas: Isso mesmo. As extremidades do segmento A, vamos chamar assim. Tem que ser a mesma distncia do segmento A ao eixo de simetria e do eixo de simetria ao segmento B. Isso nas duas extremidades dos dois segmentos.

    Trecho 6 Uma simulao7

    No papel de professor, Lucas aproveita os conhecimentos mate-mticos da pesquisadora, e os envolve num dilogo totalmente voltado para o objeto matemtico em estudo.

    7 Falas de 80 a 88 da terceira sesso, enumeradas de 1 a 148.

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    Fixa o elstico a (no ponto mdio) e traa uma reta sempre obedecendo a distncia, ou seja, tanto as duas extremidades dos segmentos como os outros pontos dos segmentos guardam a mesma distncia (do eixo de simetria).

    Lucas, ao falar sobre a distncia, no se refere somente s extre-midades dos segmentos, mas aos outros pontos dos segmentos, o que denota o carter interfigural. Alm disso, passa a ver o eixo de simetria como o lugar geomtrico dos pontos do plano que esto mesma distncia de dois pontos simtricos. Implicitamente, ao solicitar que a pesquisadora deter-mine o ponto mdio para, a partir dele, obedecer distncia e determinar o eixo de simetria, manteve a preocupao com a perpendicularidade entre o eixo e o segmento formado por um ponto e seu simtrico.

    Figura 10 Caracterizao do eixo de simetria por Lucas

    A emergncia de uma perspectiva interfigural incentivou-nos a avanar, oferecendo ao sujeito a ltima forma geomtrica que nos propu-semos estudar: a reflexo de pontos segundo um eixo. A primeira tarefa do Conjunto 4 foi proposta a Lucas, como apresentada na Figura 11.

    Pes: ... Eu vou colocar o eixo de simetria e posicionar um ponto e voc vai determinar o simtrico desse ponto em relao ao eixo (Figura 11a).Lucas: Ento no tem figura nenhuma. Voc quer que eu faa a imagem desse? (Indica a representao do ponto).

    Trecho 7 Uma nova forma geomtrica8

    8 Falas 89 e 90 da terceira sesso, enumeradas de 1 a 148.

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    a bFigura 11 Reflexo de pontos

    Lucas substitui o termo usado pela pesquisadora simtrico des-se ponto em relao ao eixo por a imagem desse ponto, tal fato nos permite considerar que ele poderia estar usando esses dois termos como sinnimos, o que coerente quando se trata do trabalho com pontos. A tarefa realizada com xito numa nica tentativa (Figura 11b). Na ao de Lucas, observamos que ele conta o nmero de pinos do ponto-dado ao eixo de simetria, seguindo a orientao da perpendicular, e reproduz essa distncia para posicionar o ponto-imagem. Ele justifica sua resposta declarando ter conservado a distncia, mas no verbaliza a relao com a perpendicular.

    Nas tarefas seguintes, para determinar o simtrico do ponto-dado, Lucas aplica a mesma estratgia descrita acima. O xito de Lucas e a rapi-dez com que ele realizou as tarefas, mesmo quando representamos o eixo de simetria oblquo, motivou-nos a prosseguir com o roteiro original de tarefas. Passamos a oferecer a Lucas dois pontos na ferramenta de dese-nho. Cabia a ele representar o eixo de simetria de modo que esses pontos assumissem o papel de ponto-dado e sua imagem, respectivamente. Na primeira tarefa, Lucas deveria posicionar o eixo de simetria na horizontal, o que foi feito com exatido. Na segunda tarefa (Figura 12a), o eixo de simetria deveria ser posicionado obliquamente, e nessa atividade Lucas deparou-se com alguns obstculos.

    a b cFigura 12 O eixo oblquo

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    Na primeira tentativa (Figura 12b), Lucas no posiciona correta-mente o eixo de simetria. Em sua ao, pode-se observar que ele considera duas retas distintas, perpendiculares ao elstico usado para representar o eixo, cada uma delas passando por um dos pontos representados na fer-ramenta de desenho. Ao ser questionado sobre a preciso de sua resposta, Lucas rev as distncias entre os pontos e o eixo, e afirma que sua resposta est correta. De fato, h dois pinos entre cada um dos pontos e o eixo na direo perpendicular. O que Lucas no percebe, a princpio, que estava considerando duas retas perpendiculares paralelas entre si. Talvez o paralelismo entre elas e a forma parcial de aquisio das informaes o tenha induzido a apresentar essa resposta.

    A pesquisadora estabelece, ento, um dilogo com o sujeito, procurando deixar evidente sua posio discordante a fim de lev-lo a reparar sua resposta.

    Pes: Lembra quando colocamos a rgua para ver a reta que voc estava imaginando? (Rgua posicionada sobre o segmento determinado por dois pontos simtricos).Lucas: Lembro. O eixo de simetria tem que estar inclinado aqui. Acho que agora est certo. (Figura 12c)

    Trecho 8 Percebendo a inclinao do eixo de simetria9

    Lucas usa a rgua para ajudar na determinao da posio perpen-dicular do eixo, mas descuida-se das distncias entre os pontos e o eixo, o que faz a pesquisadora intervir novamente.

    Pes: Agora perpendicular, mas no est passando pelo ponto mdio. (Refaz com xito). Lucas: Acho que agora est certo (Figura 13).

    Trecho 9 Fazendo uma reparao10

    9 Falas 103 e 104 da terceira sesso, enumeradas de 1 a 148.

    10 Falas 109 e 110 da terceira sesso, enumeradas de 1 a 148.

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    Figura 13 A assertiva de Lucas

    O discurso argumentativo e as aes do sujeito nos fazem perceber que ele percebe com clareza as propriedades que devem ser verificadas para a determinao do eixo de simetria, podendo assim estar sua dificuldade inicial associada natureza da figura (ponto), posio do eixo de simetria (oblquo) e formulao de uma imagem mental do conjunto representado na ferramenta de desenho, feita a partir de informaes fragmentadas adquiridas atravs do tato (aquisio parcial de informaes).

    Para concluirmos o Conjunto 4 de tarefas, restava-nos voltar simulao da ligao telefnica.

    Pes: Ento vamos voltar ao telefone. Na minha casa eu tenho a ferramenta com dois pontos e voc da sua casa vai tentar me explicar como posicionar o eixo de simetria.Lucas: Eu acho que a maneira mais simples medir com a rgua a distncia entre um ponto e outro e calcular o ponto mdio. E fixar o eixo de simetria de forma que se tenha um ngulo de 90 entre o eixo de simetria e o segmento formado pelos dois pontos.

    Trecho 10 Ao telefone11

    Com mais clareza e segurana, Lucas expe um procedimento pre-ciso para a determinao do eixo de simetria. O sujeito nos parece estar submerso na perspectiva interfigural, j que descreve um procedimento que no depende, para sua realizao, da posio dos pontos ou do eixo de simetria que ser representado, mas que leva em conta todos os elemen-tos que compem o conjunto (figuras e pontos do plano). Nem mesmo a presena da malha quadriculada essencial, pois Lucas no recorreu,

    11 Falas 119 e 120 da terceira sesso, enumeradas de 1 a 148.

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    a exemplo do que fez na simulao anterior, contagem dos pinos. Essa atividade completou o roteiro previamente determinado. As mudanas nas aes de Lucas devem-se a muitos fatores, como, por exemplo, as fer-ramentas materiais tteis e as escolhas didticas (tarefas, variveis, tipo de intervenes), mas a importncia da prtica dialgica na interao entre pesquisadora-instrutora e sujeito indiscutvel.

    A primeira estratgia formulada por Lucas para a realizao das tarefas, que envolviam a reflexo de figuras, manteve-o preso idia de reproduo, o que, at certo ponto, o fez trabalhar na perspectiva intrafi-gural. Com essa estratgia, ele conseguia ter xito na realizao das tarefas, pois a idia de reproduo permitia que preservasse a congruncia entre figura-dada e figura-imagem, e a eqidistncia entre os pontos simtri-cos era obtida a partir de uma distncia entre elementos das figuras (vrtices ou lados). Assim, para ter sucesso em suas investidas, Lucas no precisava reestruturar as noes formuladas com base no trabalho com as figuras de papel canson. Passou a ser desejvel que ele estabelecesse outras relaes e reconhecesse outras propriedades ligadas ao conceito de reflexo. Nesse ponto, a pesquisadora iniciou o trabalho de enfatizar a distncia na perpendicular.

    A passagem para o nvel interfigural s comeou a tornar-se eviden-te no trabalho com uma forma mais complexa as bandeiras (Figura 9). Nessa atividade, Lucas ampliou as noes formuladas anteriormente, ten-do que considerar, para a realizao da atividade, alm da distncia e da reproduo, a orientao da figura (ngulos). As tarefas com os segmentos trouxeram a Lucas mais uma necessidade, pois, para ser fiel s represen-taes, ele precisou lanar mo de mais um recurso em sua estratgia. A partir da passa usar a distncia na perpendicular. Agora a distncia usada por Lucas no mais uma distncia qualquer e, durante o trabalho com segmentos, vai ampliando-se a quantidade de elementos que compem o conjunto figuras-plano que Lucas precisa considerar para a realizao das tarefas, o que faz a perspectiva interfigural prevalecer.

    O sujeito Edson

    A exemplo do procedimento realizado com Lucas, a pesquisadora oferece a Edson, na prancha de desenho, a representao de um tringulo issceles e sua imagem segundo um eixo (Figura 8). Aps a explorao ttil, ele reconhece a forma geomtrica, e, respondendo solicitao de

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    falar sobre a posio do eixo de simetria em relao figura e sua imagem, diz que ele est no meio, mas a seqncia de sua declarao ... o eixo de simetria o que separa os desenhos em dois desenhos. Desenhos que tm a mesma imagem, que so idnticos fez com que a pesquisadora assumisse uma posio discordante.

    Pes: O que voc est considerando como desenho?Edson: O tringulo e o outro lado e no meio o eixo de simetria, ou seja, o eixo de simetria dividiu o tringulo em dois.Pes: Mas cad as duas partes do tringulo?Edson: T uma aqui e outra aqui (indica os dois tringulos).

    Trecho 11 Uma posio discordante12

    A fala e as aes de Edson sobre a ferramenta de desenho sugerem pesquisadora que ele est considerando cada um dos tringulos como parte de um nico tringulo. As concepes desenvolvidas por Edson nas atividades que envolviam o estudo de figuras simtricas associado ao nvel intrafigural impedem-no de reconhecer duas formas geomtricas: um tringulo e sua imagem obtida por reflexo sobre um eixo. A insistncia da pesquisadora em discutir as colocaes de Edson o faz perceber a sua posio discordante.

    Pes: Essas duas partes formam um nico tringulo?Edson: No. No foi dividido no. Aqui tm dois tringulos.Pes: Tm dois tringulos.Edson: O eixo de simetria est no meio.

    Trecho 12 Reconhecendo dois tringulos13

    Nesse trecho do dilogo, parece-nos que o equvoco criado pelas primeiras colocaes de Edson havia sido resolvido. Para certificar-se disso, a pesquisadora pergunta: Se eu te der um tringulo, como voc faria para de-terminar a imagem dele? A resposta (Figura 14) e a justificativa de Edson nos surpreenderam.

    12 Falas 125 a 128 da segunda sesso, enumeradas de 1 a 350.

    13 Falas 121 a 124 da segunda sesso, enumeradas de 1 a 350.

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    Eu faria assim, olha (Figura 14). Aqui tem um lado (completa o tringulo direita) e aqui tem o outro. o tringulo.

    Figura 14 Um obstculo

    Pes: E o que voc levou em conta para fazer isso?Edson: O exemplo. O eixo de simetria. Esse aqui no caso o eixo de simetria (aponta o eixo). Aqui o tringulo (aponta os dois tringulos).Ou seja, aqui temos um eixo de simetria, mas para ficar uma simetria tenho que deixar s uma parte (Figura 14).

    Trecho 13 Um mal-entendido14

    Parecia-nos mais claro o que Edson tinha em mente. Ele estava imaginando os dois tringulos como duas partes simtricas de um nico tringulo simtrico. No esquema abaixo, procuramos representar essa idia (Figura 15).

    Figura 15 O ponto de vista de Edson

    Interpretamos que o sujeito est empregando de forma sintati-camente correta o termo eixo de simetria, mas atribuindo a esse termo um significado distinto do aceito pela comunidade matemtica, criando um conceito idiossincrtico. Nesse momento, o objeto matemtico eixo

    14 Falas 131 e 132 da segunda sesso, enumeradas de 1 a 350.

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    de simetria est em patamares distintos de significado se comparamos as concepes do sujeito e da pesquisadora.

    Na seqncia, a pesquisadora procura fazer com que Edson amplie o conceito formulado para eixo de simetria, e oferece ao sujeito a opor-tunidade de construir a imagem do tringulo que estava sendo estudado (Figura 14). Edson realiza a tarefa com xito e justifica sua resposta.

    Pes: E por que voc escolheu bem esse ponto aqui para ser a imagem desse daqui? (posiciona a mo do sujeito em dois pontos simtricos, um de cada tringulo).Edson: Porque eu contei daqui at aqui e daqui at aqui (distncia do ponto ao eixo de simetria e do eixo at o ponto-imagem).Pes: Ento o que voc est mantendo entre as figuras?Edson: Distncia.

    Trecho 14 Reconhecendo a distncia15

    Edson recebe a proposta de determinar a imagem de outro tringu-lo (Figura 16). A tarefa realizada com sucesso numa segunda tentativa, e, para fazer a verificao da sua construo, em sua ao, pode-se percebe que ele se certifica de que o nmero de pinos que ficaram no interior dos dois tringulos o mesmo (caracterstica do nvel intrafigural).

    a bFigura 16 Construindo a figura imagem

    A pesquisadora pede que Edson justifique a posio dos vrtices simtricos que no pertencem ao eixo de simetria. Ele diz ter contado de 1 a 4 at chegar ao eixo, e, comeando por esse ponto, conta mais quatro

    15 Falas 157 a 160 da segunda sesso, enumeradas de 1 a 350.

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    para chegar posio do simtrico. Na ao de Edson a pesquisadora percebe que ele comea a usar, mesmo que implicitamente, a distncia na perpendicular. A pesquisadora decide aproveitar os resultados de pesquisas precedentes com aprendizes videntes, recorrendo memria visual de Edson (portador de cegueira congnita): Na sua memria visual voc tem a sua imagem no espelho?

    Na discusso sobre a posio da imagem no espelho, Edson lem-bra-se de que a imagem aparece invertida. Na sesso anterior, ele j havia percebido a inverso de orientao, quando o objeto de estudo eram fi-guras simtricas, mas no estava conseguindo conectar essa propriedade s imagens obtidas por reflexo em torno de uma reta. A pesquisadora frisa, ainda, a eqidistncia entre objeto e imagem em relao ao espelho. A ao de Edson, ao realizar a primeira tarefa proposta do Conjunto 3 (Figura 17a), foi surpreendente.

    a bFigura 17 Uma nova estratgia

    Edson posiciona um elstico numa das extremidades do segmento, de modo que esse elstico fique perpendicular ao eixo de simetria. Conta o nmero de pinos do segmento-dado ao eixo, reproduz o mesmo nmero de pinos partindo do eixo de simetria para o semiplano inferior e deter-mina o simtrico da extremidade eleita. A partir desse ponto constri o segmento-imagem. Faz a verificao certificando-se da eqidistncia entre os segmentos em relao ao eixo e a congruncia dos mesmos.

    O trabalho com segmentos trouxe a necessidade de uma nova estratgia, j que manter as distncias, os ngulos e a inverso das figu-ras exigia mais do que o intuitivo, ou seja, sua memria visual associada a espelhos. Embora no tenha falado explicitamente sobre a relao de perpendicularismo, na descrio da ao do sujeito, observamos que ele cria um signo externo (usando um elstico para definir a perpendicular) a

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    fim de determinar o simtrico de um ponto. Para realizar a tarefa, Edson no se concentra apenas nas distncias, mas tambm na orientao do segmento e imagem em relao ao eixo. Ao justificar seu procedimento, o sujeito nos sugere a aplicao de algumas propriedades, ligadas dis-tncia na perpendicular.

    No entanto, at esse ponto nessa sesso, Edson havia trabalhado com o eixo de simetria nas posies horizontal e vertical, assim, no fica bvio se ele est usando o objeto matemtico perpendicular ou usando um signo externo somente para auxili-lo na eqidistncia entre um ponto e seu simtrico. O que, no caso de eixos horizontais ou verticais, pode ser associado a imagens no espelho.

    Edson: Eu usei um exemplo meio louco. Eu fiz como se tivesse trabalhando com um espelho, e eu tentei medir a distncia, a mesma distncia.Pes: Essa reta que voc traou chamada reta perpendicular.Edson: Perpendicular.

    Trecho 15 Perpendicular16

    De qualquer modo, a nova estratgia aplicada por Edson sugere a passagem para o nvel interfigural, pois o uso de um signo externo poderia indicar a necessidade de relacionar outros pontos do conjunto figuras-plano para conservar distncias e medidas.

    O trabalho no nvel interfigural ficou mais evidente na realizao de tarefa oferecida a Edson, em que o segmento-dado posicionado obli-quamente em relao ao eixo de simetria (Figura 18a).

    a bFigura 18 Usando signos externos

    16 Falas de 36 a 38 da terceira sesso, enumeradas de 1 a 226.

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    Edson comea a posicionar elsticos perpendicularmente ao eixo de simetria (Figura 18b) para determinar a distncia entre cada um dos pontos e seu respectivo simtrico. Para saber o que Edson tinha em mente ao posicionar cada um dos elsticos, a pesquisadora pede que ele v contando o que est fazendo.

    Eu t medindo, j fazendo de uma vez, por isso que eu estou usando vrios elsticos. Quando eu terminar j vou ter a forma feita desse outro lado aqui.

    Acreditamos que a ao e a declarao de Edson confirmam o tra-balho no nvel interfigural. Nas quatro tarefas seguintes, que envolviam a construo da imagem de um segmento em relao a uma reta, o sujeito aplicou a estratgia descrita acima, mesmo quando o eixo de simetria era inclinado. Em determinado ponto do desenvolvimento das atividades, Edson percebe no ser necessrio usar tantos elsticos auxiliares, e passa a posicion-los somente nas extremidades dos segmentos.

    Consideraes finais

    O objetivo principal da pesquisa que deu origem a esse artigo mostrar que o conceito matemtico de reflexo, to impregnado por experincias visuais no caso dos videntes, acessvel a indivduos sem acuidade visual dentro dos padres normais, se viabilizado por sistemas mediadores adequados (ferramentas materiais e dilogos) e operaciona-lizados de forma a potencializar as habilidades dos indivduos e no sua deficincia (visual).

    A anlise da operacionalidade entre as etapas intra e interfigural, nos discursos instrucionais, inspirada no trabalho de Piaget e Garcia, permitiu-nos analisar aspectos dos dilogos que possibilitaram perceber uma mudana conceitual no pensamento geomtrico dos nossos sujeitos de pesquisa, ou seja, a passagem do nvel intra para interfigural induziu-os a perceber propriedades ligadas simetria e reflexo, e a adotar novas perspectivas em relao aos objetos matemticos em questo.

    No primeiro conjunto de tarefas (estudo de figuras simtricas), o trabalho no nvel intrafigural possibilitou o uso de uma estratgia (do-bradura) que os sujeitos no tinham antes da situao instrucional, tal estratgia permitiu-lhes, ainda, validar suas conjecturas atravs da sobre-

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    posio. De fato observamos que nossos sujeitos de pesquisa, a exemplo do que ocorre com aprendizes videntes, privilegiaram, inicialmente, o trabalho no nvel intrafigural. Em suas falas, esses sujeitos explicitamente descrevem as propriedades internas de duas figuras ou as propriedades de duas partes de uma mesma figura obtidas a partir do eixo de simetria. Para os aprendizes videntes, o domnio da perspectiva intrafigural pode ser justificado pelo modo de aquisio das informaes. Os videntes rece-bem as informaes de forma global e sinttica, assim a viso beneficia a formao de imagens com caractersticas de totalidade. Tal caracterstica parece favorecer a predominncia no nvel intrafigural, pois faz com que o conjunto figuras-plano seja visto como uma unidade.

    No caso dos cegos, a explorao ttil oferece informaes de forma gradual e parcelada. Essa forma de aquisio das informaes levou-nos a pensar que a natureza interfigural poderia ser privilegiada desde o incio das atividades. Por exemplo, ao explorar com as mos figuras como a re-presentada na Figura 19a, o aprendiz cego, em contraste com o vidente, pode perceber e relacionar as duas partes da figura antes de reconhec-la como uma nica figura. Nessa anlise ttil, a distncia pode ser observada a partir dos pontos do plano que compem (interna e externamente) cada uma das partes da figura.

    a bFigura 19 Os nveis intra e interfigural

    De fato, as anlises pertinentes s aes dos nossos sujeitos seguiram trajetrias muito parecidas com a dos aprendizes videntes, ao menos at o momento que eles comearam a trabalhar com segmentos. Mesmo traba-lhando com figuras como a representada na Figura 19b, nossos sujeitos, assim como os aprendizes videntes, tinham a tendncia de percebe cada uma das formas geomtricas representadas e relacion-las com o eixo de simetria, considerando, por exemplo, a distncia entre elas e o eixo onde a distncia vista como uma propriedade intrnseca das figuras sem relao

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    com os pontos do plano uma estratgia basicamente intrafigural. Essa ao sugere que a percepo de que todos os pontos do plano so subme-tidos mesma transformao geomtrica possa ser prejudicada.

    No entanto, observamos, nos procedimentos de ambos os sujeitos, movimentos entre as perspectivas intra e interfigural. Para Lucas, a tran-sio entre as perspectivas intra e interfigural tornou-se evidente quando, alm da eqidistncia entre figura-dada e figura-imagem em relao ao eixo de simetria e da idia de associar a imagem a uma reproduo, ele percebeu a necessidade de considerar a orientao da figura (ngulos) para determinar sua imagem. Outro ponto que merece destaque no trabalho de Lucas, em relao a essa transio, a primeira simulao de uma conversa ao telefone. Ao falar sobre a determinao do eixo de simetria a partir da representao de uma figura e sua respectiva imagem, ele con-sidera o eixo de simetria como o lugar geomtrico dos pontos do plano que esto mesma distncia de dois pontos simtricos, caracterizando-o como mediatriz, o que denota fortemente uma perspectiva interfigural. Tais propriedades passaram a fazer parte da estratgia utilizada por ele, gerando um conceito mais abstrato, que pode ser articulado tanto para a manuteno do dilogo como flexibilizado para ser aplicado s tarefas propostas posteriormente.

    Edson, nas tarefas iniciais, havia identificado propriedades impor-tantes, como o carter bissetor do eixo de simetria. A estratgia criada no trabalho com figuras simtricas acabou gerando uma noo resistente, na qual o eixo de simetria no era reconhecido como prprio da figura, mas a figura que deveria ser modificada para atender s propriedades do eixo de simetria. Essa noo s sofreu alteraes com o apelo da pesquisadora memria visual do sujeito, associada a sua experincia com espelhos, o que motivou uma reconcepo do termo eixo de simetria e o fez identificar propriedades importantes do eixo de simetria. Mesmo assim, essa memria visual associada a espelhos no o auxiliou na passagem do nvel intra para interfigural. A perspectiva interfigural somente ficou evidente nas ativida-des em que Edson passou a usar um signo externo para determinar pontos simtricos na produo da imagem de um segmento-dado, obtida por re-flexo sobre um eixo. A estratgia por ele formulada (uso de signo externo) o conduziu ao xito e fez com que a perspectiva interfigural emergisse.

    Para ambos os aprendizes, a verbalizao do trabalho no nvel interfigural no aconteceu espontaneamente a partir da construo de

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    imagens, mas iniciou-se quando os sujeitos buscaram ir alm da eqidis-tncia entre um ponto da figura-dada e o seu ponto-imagem a partir do eixo de simetria. interessante notar que, ao longo do desenvolvimento das atividades, Lucas e Edson no consideram apenas extremidades ou vrtices das formas geomtricas para determinar sua imagem, envolvendo, em suas aes, outros pontos do plano (ou das formas geomtricas) Lu-cas quando descreve como determinar o eixo de simetria de dois pontos simtricos e Edson na construo da imagem de um segmento-dado. Nos dois casos, h sinais de uma perspectiva interfigural geralmente ausente no trabalho de videntes. Talvez isso possa ter sido motivado pela presena dos pinos que favorece a percepo ttil de vrios pontos do plano, das retas ou dos segmentos representados na ferramenta de desenho, o que no perceptvel nas tarefas realizadas em papel e lpis por aprendizes videntes. Destacamos que os dois sujeitos envolvidos neste estudo trabalharam de forma confortvel, tanto na perspectiva intrafigural como na interfigural, no sendo adequado, portanto, descrever essas duas perspectivas como nveis cognitivos com grau hierrquico. Acreditamos, no caso de nossos sujeitos, que a transio entre as duas perspectivas mantm uma estreita relao entre as demandas das tarefas, os procedimentos possveis para sua realizao (influncia das ferramentas materiais) e o pensamento geomtrico dos indivduos.

    De fato, pode ser um engano imaginar que o nvel representativo de um tipo de atividade seja cognitivamente superior ou inferior ao outro. De qualquer modo, a transio entre os nveis, e at mesmo o trabalho no nvel intrafigural, permitiu a ampliao dos significados atribudos, pelos sujeitos, a noes associadas a transformaes geomtricas. Os su-jeitos puderam tirar de uma situao particular a ao que os conduziu apropriao de noes ligadas a transformaes geomtricas, conectando o conceito gerado a partir de uma experincia concreta a um conceito mais prximo do institucionalmente aceito. A estrutura das tarefas (no rgida) e as ferramentas materiais, desenhadas para favorecer a percepo ttil dos sujeitos e a passagem de um nvel a outro, foram decisivas para o desenvolvimento do trabalho emprico.

    Nossos resultados de pesquisas sugerem que a aquisio de con-ceitos processa-se de forma semelhante em qualquer pessoa com ou sem alteraes sensoriais (ao menos de natureza visual), porm, nos faz ressaltar que, para se inserirem no mundo dos videntes, os cegos, atravs do tato,

  • Transio entre o intra e interfigural na construo de conhecimento geomtrico por alunos cegos

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    analisam os objetos de forma parcelada e gradual para, posteriormente, compor o objeto que est sendo analisado, o que caracteriza a etapa interfigural. Em outras palavras, a criao da imagem mental do todo resulta de anlises que tm traos da perspectiva interfigural, e a partir dessa imagem que emergem as anlises com caractersticas intrafigural, necessrias para oferecer as repostas apropriadas a nossas tarefas do modo e nas ferramentas em que foram propostas, especialmente na prancha de desenho. Nas situaes de ensino de Geometria, de modo geral, alme-jamos o reconhecimento de representaes que constituem uma forma acessvel pela sensibilidade, mas, com uma complexidade maior, devido exigncia da interpretao de seu significado. Em suma, a identificao dos invariantes conceituais, a partir da leitura de um desenho, no uma atividade direta para os cegos, j que estes devem integrar as informaes obtidas atravs do tato para constituir uma imagem mental, o que, em nossa opinio, denota um carter interfigural.

    Embora os resultados obtidos a partir das anlises relativas ao tra-balho de dois aprendizes cegos no nos ofeream bases conclusivas, propor-cionam indicadores a serem seguidos em trabalhos futuros com aprendizes portadores de necessidades educacionais especiais, guardadas as diferenas inerentes a cada uma das necessidades educacionais especiais. As atividades propostas aos sujeitos de pesquisa neste estudo foram inspiradas em pes-quisas precedentes, realizadas com alunos videntes, assim, natural que o apelo visual fosse parte integrante dessas atividades, conseqentemente, inacessveis aos sujeitos desta pesquisa. Somente a atividade que props uma simulao de dilogo ao telefone foi realmente motivada para privilegiar um tipo de estratgia mais natural aos aprendizes cegos, ou seja, a partir de conceitos inicialmente estruturados por estmulos hpticos, o aprendiz pode empregar a imagem mental formulada para reger os conceitos apropriados no planejamento de uma estratgia no mais condicionada presena de um signo externo. Pelo apontado, destacamos que o design das atividades carece de mais estudos a fim de que sejam de fato voltadas para favorecer o processo de aprendizagem de alunos cegos.

    Finalmente, salientamos que, durante a investigao emprica, alm dos dilogos, a ao gestual dos sujeitos foi especialmente importante para nossas anlises, considerando-se as necessidades especiais dos sujeitos envolvidos. A partir delas pudemos analisar as estratgias empregadas, que muitas vezes ficavam implcitas nos dilogos.

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    Recebido em maio/2006; aprovado em jun./2007.

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