eficácia-do-novo-cpc-antes-do-término-do-período-de-vacância-da-lei-1

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Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei 1 . Fredie Didier Jr. Livre-docente (USP), Pós-doutorado (Universidade de Lisboa), Doutor (PUC/SP) e Mestre (UFBA). Professor- associado de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Diretor Acadêmico da Faculdade Baiana de Direito. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da Associação Internacional de Direito Processual e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado e consultor jurídico. Palavras-chave. Novo Código de Processo Civil. Direito transitório. Vacatio legis. Eficácia das normas jurídicas Resumo: Este ensaio tem por objetivo defender a possibilidade de atribuição de efeitos às normas decorrentes do novo CPC, mesmo no período da vacatio legis. Keywords: New Code of Civil Procedure. Transitional Law. Legal Rules. Effectiveness of legal rules. Abstract: This paper defends the effectiveness of the rules of the new Code of Civil Procedure even within the period of its vacatio legis. Sumário: 1 - Generalidades; 2 – Proposta: 2.1 Normas jurídicas novas; 2.2 – Pseudonovidades normativas; 2.3 – Normas simbólicas; 3 – Arremate. 1. Generalidades. O novo CPC está em vias de ser aprovado. Projeta-se um ano como prazo de vacatio legis (art. 1.058) 2 . É elementar a lição de que uma lei não produz efeitos no período da vacatio legis; por não está em vigor, de seu texto não é possível extrair consequências normativas. O Código de Processo Civil é uma lei federal. O raciocínio deveria ser semelhante: somente após a vacatio de um ano, o CPC poderia surtir efeito. Mas talvez a edição de um texto normativo novo – sobretudo de um novo Código, com mais de três mil enunciados dispositivos (artigos, incisos, parágrafos, alíneas) – não seja algo totalmente anódino durante o período da vacatio. Para demonstrar essa hipótese, é preciso firmar uma premissa: texto normativo não se confunde com a norma jurídica. Lei não é norma jurídica; lei é fonte de norma jurídica. Riccardo Guastini acentua a diferença entre texto e norma. Norma é o resultado da interpretação; o texto, o seu objeto. Entende o autor como interpretação jurídica “a atribuição de sentido (ou significado) a um texto normativo.” 3 O discurso do intérprete seria construído na forma do enunciado “T significa S”, em que T equivale ao texto normativo e S equivale ao sentido que lhe é atribuído. 4 Seguindo essa linha, Humberto Ávila também afirma: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação 1 Publicado na Revista de Processo, São Paulo, RT, 2014, n. 236. 2 As referências levam em consideração a numeração da versão aprovada pela Câmara dos Deputados, em 25.03.2014. 3 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Edson Bini (trad.). São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 23-24. 4 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas, cit., p. 24.

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  • Eficcia do novo CPC antes do trmino do perodo de vacncia da lei1.

    Fredie Didier Jr.Livre-docente (USP), Ps-doutorado (Universidade de Lisboa), Doutor (PUC/SP) e Mestre (UFBA). Professor-

    associado de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Diretor Acadmico da Faculdade Baiana de Direito. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da

    Associao Internacional de Direito Processual e da Associao Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado e consultor jurdico.

    Palavras-chave. Novo Cdigo de Processo Civil. Direito transitrio. Vacatio legis. Eficcia das normas jurdicas

    Resumo: Este ensaio tem por objetivo defender a possibilidade de atribuio de efeitos s normas decorrentes do novo CPC, mesmo no perodo da vacatio legis.

    Keywords: New Code of Civil Procedure. Transitional Law. Legal Rules. Effectiveness of legal rules. Abstract: This paper defends the effectiveness of the rules of the new Code of Civil Procedure even within the

    period of its vacatio legis.

    Sumrio: 1 - Generalidades; 2 Proposta: 2.1 Normas jurdicas novas; 2.2 Pseudonovidades normativas; 2.3 Normas simblicas; 3 Arremate.

    1. Generalidades.

    O novo CPC est em vias de ser aprovado. Projeta-se um ano como prazo de vacatio legis (art. 1.058)2.

    elementar a lio de que uma lei no produz efeitos no perodo da vacatio legis; por no est em vigor, de seu texto no possvel extrair consequncias normativas.

    O Cdigo de Processo Civil uma lei federal. O raciocnio deveria ser semelhante: somente aps a vacatio de um ano, o CPC poderia surtir efeito.

    Mas talvez a edio de um texto normativo novo sobretudo de um novo Cdigo, com mais de trs mil enunciados dispositivos (artigos, incisos, pargrafos, alneas) no seja algo totalmente andino durante o perodo da vacatio.

    Para demonstrar essa hiptese, preciso firmar uma premissa: texto normativo no se confunde com a norma jurdica. Lei no norma jurdica; lei fonte de norma jurdica.

    Riccardo Guastini acentua a diferena entre texto e norma. Norma o resultado da interpretao; o texto, o seu objeto. Entende o autor como interpretao jurdica a atribuio de sentido (ou significado) a um texto normativo.3 O discurso do intrprete seria construdo na forma do enunciado T significa S, em que T equivale ao texto normativo e S equivale ao sentido que lhe atribudo.4 Seguindo essa linha, Humberto vila tambm afirma: Normas no so textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construdos a partir da interpretao

    1 Publicado na Revista de Processo, So Paulo, RT, 2014, n. 236.

    2 As referncias levam em considerao a numerao da verso aprovada pela Cmara dos Deputados, em 25.03.2014.

    3 GUASTINI, Riccardo. Das fontes s normas. Edson Bini (trad.). So Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 23-24.

    4 GUASTINI, Riccardo. Das fontes s normas, cit., p. 24.

  • sistemtica de textos normativos.5 Na verdade, trata-se de uma reconstruo de sentido, do contedo semntico inicial inerente ao texto, j que h traos de significado mnimos incorporados ao uso ordinrio ou tcnico da linguagem6. vila chama de ncleos de sentido os significados mnimos incorporados ao texto pelo uso lingustico e pela comunidade do discurso. A norma seria, assim, uma construo a partir de algo; logo, seria uma reconstruo.7

    A norma jurdica o resultado da interpretao do texto (signo de linguagem) ou dos sinais (circunstncias fticas) dos quais ela decorrente. Estes funcionam como ponto de partida da interpretao cujo sentido inicial a eles atribudo pode, inclusive, ser revisto no decorrer do processo do compreender.

    O novo CPC texto normativo, de cuja interpretao inmeras normas jurdicas decorrero. Essas normas jurdicas somente podero ser aplicadas aps o perodo de vacncia. Trs perguntas vm mente, porm: a) ser que os novos textos normativos do CPC-2014 produzem apenas normas jurdicas novas?; b) textos normativos novos ainda no vigentes produzem algum impacto na argumentao jurdica? c) h normas jurdicas novas que podem produzir efeitos mesmo no perodo da vacatio?

    Para responder a essas perguntas, preciso esboar uma tipologia das normas jurdicas que podem surgir do novo CPC.

    2. Proposta.

    Apenas como forma de facilitar a resposta s trs perguntas formuladas, possvel classificar as normas jurdicas provenientes do novo CPC em trs grandes grupos: a) normas jurdicas novas; b) pseudonovidades normativas; c) normas de carter simblico.

    A classificao no tem pretenso de exaustividade, mas serve, ao menos por ora, para dar incio discusso.

    .1 Normas jurdicas novas.

    O novo CPC ser fonte de inmeras normas jurdicas novas no fosse assim, no haveria necessidade de novo CPC. As normas jurdicas novas somente podero ser aplicadas aps a vigncia do Cdigo.

    o que acontece, por exemplo, com os novos requisitos da petio inicial (arts. 320, II e VII, CPC), que somente podem ser exigidos para demandas ajuizadas aps a vigncia do novo Cdigo; a irrecorribilidade imediata de algumas interlocutrias (at. 1.022, 1 e 2) somente poder ser considerada para as decises proferidas aps o incio da vigncia etc.

    Essas normas novas so absolutamente ineficazes no perodo de vacatio legis.Mas h normas jurdicas novas que reforam tendncias doutrinrias e

    jurisprudenciais que comearam a formar-se ainda sob a vigncia do CPC-1973. o que acontece, por exemplo, com a clusula geral de negociao processual

    (art. 191, CPC), os pressupostos para a distribuio dinmica do nus da prova (art. 380, 1, parte inicial) e a normatizao da formao, aplicao e superao dos precedentes judiciais (arts. 520-522, CPC). Em todos esses casos, a doutrina e a jurisprudncia j apontavam muitas das solues que vieram a ser consagradas legislativamente e esse apontamento visava soluo de problemas jurdicos surgidos na vigncia do CPC-1973. A consagrao legislativa dessas solues um dado nada desprezvel e serve como importante reforo argumentativo.

    5 VILA, Humberto. Teoria dos princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos. 10 ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 30.

    6 VILA, Humberto. Teoria dos princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos, cit., p. 32.

    7 VILA, Humberto. Teoria dos princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos, cit., p. 33.

  • H, ainda, normas novas, que se contrapem diretamente a entendimentos jurisprudenciais consolidados ao tempo do CPC-1973. Essas normas implicaro, necessariamente, a superao do entendimento jurisprudencial anterior, com o cancelamento de enunciado de smula, se houver. Nesses casos, o novo regramento servir, inevitavelmente, para que se busque uma superao do entendimento anterior. certo que essas normas podem ser revogadas ou tidas por inconstitucionais (hiptese meramente especulativa), no perodo da vacatio; mas indiscutvel que a previso delas no CPC um fator de impacto considervel para justificar o overruling, mesmo no perodo da vacatio legis. Dois exemplos inmeros outros poderiam ser citados: a) 18 do art. 85 do CPC8 frontalmente contrrio ao enunciado 453 da smula do STJ9; b) 4 do art. 1.037 do CPC10 regra oposta que decorre do n. 418 da smula do STJ11.

    Em suma: enunciados normativos novos deste tipo exercem, no perodo da vacatio, uma funo persuasiva, como instrumento retrico-argumentativo para convencimento do acerto dogmtico de propostas doutrinrias ou decises judiciais ou para demonstrar a necessidade de superao imediata de entendimento jurisprudencial consolidado.

    .2 Pseudonovidades normativas.

    O CPC contm enunciados normativos, que, embora novos, nada inovam normativamente no direito processual civil brasileiro. So textos normativos novos, mas deles no decorrem normas jurdicas novas. Isso no uma crtica ao novo Cdigo. Ao contrrio. A observao ratifica que o novo CPC est em consonncia ao que j se havia consagrado, normativamente, no direito processual civil brasileiro, ainda que mngua de texto normativo.

    Dois exemplos inmeros outros poderiam ser citados. O art. 10 do CPC: Em qualquer grau de jurisdio, o rgo jurisdicional no

    pode decidir com base em fundamento a respeito do qual no se tenha oportunizado manifestao das partes, ainda que se trate de matria aprecivel de ofcio. Desse artigo decorre a regra de proibio da deciso-surpresa. A proibio de deciso-surpresa corolrio do princpio do contraditrio amplamente aceito pelo pensamento jurdico brasileiro h muitos

    8 18 do art. 85 do CPC: Caso a deciso transitada em julgado seja omissa quanto ao direito aos honorrios ou ao seu valor, cabvel ao autnoma para sua definio e cobrana.

    9 Smula do STJ, n. 453: Os honorrios sucumbenciais, quando omitidos em deciso transitada em julgado, no podem ser cobrados em execuo ou em ao prpria.

    10 4 do art. 1.037, CPC: Se os embargos de declarao forem rejeitados ou no alterarem a concluso do julgamento anterior, o recurso interposto pela outra parte, antes da publicao do julgamento dos embargos de declarao, ser processado e julgado independentemente de ratificao.

    11 Smula do STJ, n. 418: inadmissvel o recurso especial interposto antes da publicao do acrdo dos embargos de declarao, sem posterior ratificao.

  • anos12. Essa norma decorre do texto constitucional; o texto do novo CPC apenas ratifica o que j se entendia. Mesmo se o novo CPC silenciasse a respeito do tema, ainda assim o princpio do contraditrio, de fundo constitucional, tornaria nula a deciso-surpresa.

    O trecho final do 1 do art. 380 determina que o juiz, ao redistribuir o nus da prova, garanta parte, a quem foi atribudo o nus da prova, a oportunidade de se desincumbir dele. Esse trecho tambm concretiza o princpio do contraditrio. Sucede que essa providncia j exigida atualmente, a despeito da ausncia de texto normativo, exatamente como concretizao do princpio do contraditrio13. Tambm aqui no h norma nova.

    A percepo de que o CPC traz algumas pseudonovidades muito importante, ainda, por outro motivo.

    H o risco de que, no perodo de vacatio, algum considere que essas pseudonovidades sejam realmente novidades; assim, decida somente aplic-las a partir da vigncia do novo Cdigo, o que funcionaria, em razo dessa interpretao canhestra, como fonte normativa do retrocesso. O perigo existe e inadmissvel que esse pensamento se concretize.

    Esses enunciados normativos novos reforam, ratificam, confirmam, corroboram etc. a compreenso atual do direito processual civil brasileiro, construda antes da vigncia do novo CPC. Podem, por isso, ser utilizados imediatamente como reforo de argumentao.

    .3 Normas simblicas.

    12 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e viso cooperativa do processo. Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gnesis, 2003, n. 27, p. 28-29; DIDIER Jr., Fredie. Princpio do contraditrio: aspectos prticos. Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gnesis, 2003, n. 29, p. 510; BEDAQUE, Jos Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados luz do contraditrio. Causa de pedir e pedido no processo civil (questes polmicas). Jos Roberto dos Santos Bedaque e Jos Rogrio Cruz e Tucci (coord.). So Paulo: RT, 2002, p. 39-42; GRECO, Leonardo. O princpio do contraditrio. Revista Dialtica de Direito Processual. So Paulo: Dialtica, 2005, n. 24, p. 76-77; CABRAL, Antnio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditrio, influncia e validade prima facie dos atos processuais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.103-171, 207-234 e 239-243; CABRAL, Antonio do. ll principio del contraddittorio come diritto d'influenza e dovere di dibattito. Rivista Di Diritto Processuale. Milano: CEDAM, 2005, v. 2, n. 2, p. 449-464; ZANETI JR., Hermes. A constitucionalizao do processo. O modelo constitucional da justia brasileira e as relaes entre processo e constituio. 2 ed. revista, ampliada, alterada. So Paulo: Atlas, 2014, p. 180; NUNES, Dierle Jos Coelho. Processo jurisdicional democrtico. Curitiba: Juru, 2008, p. 224-231; MITIDIERO, Daniel. Colaborao no processo civil. So Paulo: RT, 2009; CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil: uma anlise comparativa entre o sistema portugus e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p. 61; BARREIROS, Lorena Miranda. Fundamentos constitucionais do princpio da cooperao processual. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013, p. 198-199; CAVANI, Renzo. Contra as nulidades-surpresa: o direito fundamental ao contraditrio diante da nulidade processual. Revista de Processo. So Paulo: RT, 2013, n. 218, p. 65-80; MALLET, Estevo. Notas sobre o problema da chamada deciso-surpresa. Revista de Processo. So Paulo: RT, 2014, n. 233, p. 43-63.

    13 STJ, 2 S., EREsp n. 422.778/SP, rel. Ministro Joo Otvio de Noronha, rel. p/ Acrdo Ministra Maria Isabel Gallotti, j. em 29.02.2012, publicado no DJe de 21.06.2012. No mesmo sentido, enunciado 91 da smula da jurisprudncia predominante do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro: A inverso do nus da prova, prevista na legislao consumerista, no pode ser determinada na sentena. Na doutrina, no mesmo sentido, h muitos anos, GIDI, Antnio. Aspectos da Inverso do nus da prova no Cdigo do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 13, p. 38; MARINONI, Luiz Guilherme. Formao da Convico e Inverso do nus da Prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Disponvel em: . Acesso em: 13 dez 2007, p. 06, 07, 13 e 14; CAMBI, Eduardo. A Prova Civil. Admissibilidade e Relevncia. So Paulo: RT, 2006, p. 418 segs.; CARPES, Artur Thompsen. Apontamentos sobre a inverso do nus da prova e a garantia do contraditrio. In: Prova Judiciria. Estudos sobre o novo Direito Probatrio. Danilo Knijnik (Coord.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 40 segs.; MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. nus da Prova: No Direito Processual Pblico. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 217-218; MENDES Jr., Manoel de Souza. O momento para a inverso do nus da prova com fundamento no Cdigo de Defesa do Consumidor. Revista de processo. So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 114, 2004, p. 89; DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 9 ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, v. 2, p. 83-86.

  • O novo CPC traz alguns enunciados que podem ser considerados como manifestao de legislao simblica.

    No Brasil, o conceito de legislao simblica foi desenvolvido por Marcelo Neves. Para ele, considera-se legislao simblica a produo de textos cuja referncia manifesta realidade normativo-jurdica, mas que serve, primria e hipertroficamente, a finalidades polticas de carter no especificamente normativo-jurdico14. Na legislao simblica, o sentido poltico prepondera sobre o sentido normativo-jurdico do texto legislado. Um mesmo texto normativo pode ser lido em uma dimenso simblica e em uma dimenso normativo-jurdica.

    Umas das espcies mais comuns de legislao simblica a legislao-libi, que aquela por meio da qual o legislador procura descarregar-se de presses polticas ou apresentar o Estado como sensvel s exigncias e expectativas dos cidados 15 . A legislao-libi serve para, dentre outras coisas, amortecer as reivindicaes dos cidados, permitindo o surgimento de um clima de que agora, vai!. 16

    Dois exemplos alguns outros poderiam ser citados.O art. 3, 2: O Estado promover, sempre que possvel, a soluo consensual

    dos conflitos. Trata-se de enunciado que consagra, legislativamente, uma poltica pblica: a soluo consensual dos conflitos passa a ser uma meta a ser realizada. O dispositivo ratifica a Resoluo n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justia, que j havia determinado a implantao dessa poltica pblica. Agora, h a consagrao legal dessa opo, que est em consonncia com movimento mundial de estmulo soluo negociada, considerada o mais efetivo entre todos os mtodos de resoluo de conflitos.

    O art. 1.083 outro exemplo: O Conselho Nacional de Justia promover, periodicamente, pesquisas estatsticas para avaliao da efetividade das normas previstas neste Cdigo. Esse dispositivo veio atender a velho reclamo da cincia jurdica brasileira17 e da sociedade civil18: a existncia de uma base confivel e permanente de dados estatsticos para a aferio da qualidade da nossa legislao processual civil. Alm disso, o artigo uma forma de exposio simblica do Conselho Nacional de Justia19, instituio que se apresenta como responsvel pelo bom funcionamento do Poder Judicirio brasileiro e que deve ser merecedora da confiana pblica dos cidados. O sentido poltico desse enunciado prepondera claramente sobre o seu sentido normativo, que, embora rarefeito, existe20.

    Essa legislao simblica ineficaz no perodo da vacatio?O Estado esperar o CPC entrar em vigor para continuar implantando a poltica

    pblica de busca pela soluo consensual dos conflitos? O Conselho Nacional de Justia

    14 NEVES, Marcelo. A constitucionalizao simblica. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 30.

    15 NEVES, Marcelo. A constitucionalizao simblica. 3 ed., cit., p. 37.

    16 (...) evidente que a legislao-libi pode induzir um sentimento de bem-estar, com isso levar resoluo de tenso e, portanto, servir lealdade das massas. (NEVES, Marcelo. A constitucionalizao simblica. 3 ed., cit., p. 40).

    17 MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. O futuro da justia: alguns mitos. Temas de Direito Processual (Oitava Srie). So Paulo: Saraiva, 2004, p. 10-12; As reformas do Cdigo de Processo Civil: condies de uma avaliao objetiva. Temas de Direito Processual (Sexta Srie). So Paulo: Saraiva, 1997, p. 93; ARAGO, Egas Dirceu Moniz de. Estatstica judiciria. Revista de Processo. So Paulo: RT, 2003, n. 110, p. 9.

    18 Que j se organiza nessa direo, como se v dos notveis exemplos do CEBEPEJ Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais e da Fundao Getlio Vargas, com trabalhos importantssimos de minerao e organizao de dados sobre o funcionamento do Judicirio e dos processos.

    19 A exposio simblica de instituies uma das utilidades da legislao-libi (NEVES, Marcelo. A constitucionalizao simblica. 3 ed., cit., p. 38).

    20 possvel cogitar uma ao civil pblica para impor ao CNJ a realizao das referidas pesquisas.

  • somente comear a preparar-se para a promoo das pesquisas aps o CPC entrar em vigor ( claro que as pesquisas pressupem a aplicao do novo CPC, mas a preparao para elas, no)? Parece que no. O sentido poltico desses enunciados, que se sobrepe ao sentido normativo-jurdico, revela uma escolha poltica j feita no se trata de uma escolha poltica condicionada ao incio da vigncia do CPC. A vigncia do novo CPC determinar o incio da produo de suas consequncias normativas; mas a concretizao de escolhas polticas to claras pode comear imediatamente. Essas normas devem produzir pelo menos o efeito de dar incio mobilizao.

    3. Arremate.

    preciso iniciar o debate sobre a eficcia das normas projetadas e daquelas em perodo de vacatio. Ao menos entre ns, processualistas, a discusso urgente, tendo em vista o o novo CPC. O debate j existe em outros pases, sobretudo na Alemanha. Esse ensaio um esboo para o incio dessa conversa, que se espera longa e proveitosa.