educar en tempos incertos

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RfSPI!:tl[OAUlOR NAO A CoPI II. !llé,''&\[email protected].¡w F363e Fernández Enguita, Mariano Educar e m tempos incertos 1 Mariano l'ernández Enguita; trad . Fátima Murad. - Porto Alegre : Artmed, 200 4. l. Pedagogía crítica. l. Título. CDU 37.013 na Mónica Ballejo Canto- CRB 10/1023 ISBN 85-363 - 0110-4 EDUCAR EMTEMPOS INCERTOS Mariano Fernández Enguita Fátima Murad Consultoria, supervisao e revisao técnica desta Rogério de Castro Oliveira Doutor em Educa¡;iio. Professor Titular da UFRGS. o 1 1 o " " 2004

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Cataloga~ao na publica~ao: Mónica Ballejo Canto-CRB 10/1023 ISBN 85-363-0110-4 F363e Fernández Enguita, Mariano Educar e m tempos incertos 1 Mariano l'ernández Enguita; Tradu~ao: 2004 Doutor em Educa¡;iio. Professor Titular da UFRGS. CDU 37.013 trad. Fátima Murad.-Porto Alegre : Artmed, 2004. l. Educa~ao- Pedagogía crítica. l. Título. • o 11 o "" !llé,''&\[email protected].¡w RfSPI!:tl[OAUlOR NAO FA~ A CoPIII.

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RfSPI!:tl[OAUlOR

NAO FA~ A CoPI II.

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F363e Fernández Enguita, Mariano

Educar e m tempos ince rtos 1 Mariano l'ernández Enguita; trad . Fátima Murad. - Porto Alegre : Artmed , 2004 .

l. Educa~ao- Pedagogía crítica. l. Título.

CDU 37 .013

Cataloga~ao na publica~ao : Mónica Ballejo Canto- CRB 10/1023

ISBN 85-363 -0110-4

EDUCAR EMTEMPOS INCERTOS

Mariano Fernández Enguita

Tradu~ao:

Fátima Murad

Consultoria, supervisao e revisao técnica desta edi~ao:

Rogério de Castro Oliveira Doutor em Educa¡;iio. Professor Titular da UFRGS.

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2004

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Obra originalmente publicada sobo título Educar en tiempos inciertos

© Ediciones Morata , S. L., 2001 ISBN 84-7112-469-6

Capa Mário Rohnelt

Preparac;áo do original Maria Lúcia Barbará

Leitura final Rubia Minozzo

Supervisao editorial Monica Ballejo Canto

Projeto gráfico e editorac;ao eletrónica Armazém Digital Editora!(éi.O Eletronica - rcmv

Reservados todos os direitos de publicac;áo, ero língua portuguesa, a ARTMED® EDITORA S.A. Av. Jerónimo de Ornelas, 670- Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone: (51) 3330-3444 Fax: (51) 3330-2378

SAO PAULO Av. Rebouc;as , 1073 - Jardins 05401-150 Sao Paulo SP Fone: (11) 3062-3757 Fax: (11) 3062-2487

É proibida a duplicac;áo ou reproduc;ao deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrónico, mecfuüco, gravac;ao, foto­cópia, distribuic;ao na web e outros), sem permissao expressa da Editora.

SAC 0800 703-3444

IMPRESSO NO BRASIL PRJNfED IN BRAZIL

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A Jesús M. Sánchez Martín e Grac;a Ramos, coro o maior afeto.

Obra miginalmente publicada sob o título Educar en tiempos inciertos

©Ediciones Morata, S. L., 2001 ISBN 84-7112-469-6

Capa Mário Rohnelt

Prepara¡;ao do original Maria Lúcia Barbará

Leitura final Rubia Minozzo

Supervisao editorial Mónica Ballejo Canto

Projeto gráfico e editora¡;ao eletrónica Armazém Digital Editorap'io Eletróníca - rcmv

Reservados todos os direitos de publica¡;ao, em língua portuguesa, a ARTMED® EDITORA S.A. Av. Jerónimo de Ornelas, 670- Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone: (51) 3330-3444 Fax: (51) 3330-2378

SAO PAULO Av. ReboU<;as, 1073- Jardins 05401-150 Sao Paulo SP Fone: (11) 3062-3757 Fax: (11) 3062-2487

É proibida a duplica¡;ao ou reprodu¡;ao deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrónico, mecanico, grava¡;ao, foto­cópia, distribui¡;ao na web e outros), sem permissao expressa da Editora.

SAC 0800 703-3444

IMPRESSO NO BRASIL 'PRINTED IN BRAZIL

A Jesús M. Sánchez Marún e Gra¡;a Ramos, com o maior afeto.

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Prefácio

Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informa<;iio?

T. S. ELIOT, The Rack.

Houve um tempo em que a tarefa de educar era vista por seus prota­gonistas - tanto professores como alunos - como algo pleno de sentido. lsso nao está tao distante a ponto de só ser lembrado pelos mais velhos ou pelos filhos daqueles apóstolos culturais . Ainda sao muitos os que acredi­tam que assim é e continuará sendo, ontem, hojee sempre. Estes sao aque­les que veem na educac;ao o melhor e principal instrumento para ajudar as pessoas a se prepararem para urna vida plena, urna cidadania participati­va, urna posic;ao economica digna e suficiente, urna convivencia nao­conflituosa, urna apreciac;ao adequada da cultura e das relac;oes sociais em constante processo de mudanc;a. Contudo, proliferam -e, as vezes, ruido­samente - os que asseguram que já nao é assim. Ninguém proclama, é claro, que educar seja algo francamente inútil, contraproducente ou errático, mas insistem nos tópicos mais ou menos parciais que, reunidos, dariam como resultado esse diagnóstico. Assim, por exemplo, seria inútil estudar quanto o desemprego e o subemprego se expandem entre os jovens, quan­to o trabalho se desqualifica em grande escala ou quanto um encanador ganha mais do que um bacharel. Seria incoerente educar para a conviven­cia, a solidariedade, a paz, etc., quando, em tomo da escoJa, a sociedade se mostra individualista, competitiva ou agressiva. Seria um total absurdo buscar estimular hábitos de trabalho e de reflexao quando a televisao e

yjjj PREFÁCIO

outros meios de massa incitam, de modo tao eficaz, o desfrute imediato e o consumo do efemero. Saltaria a vista a pouca importancia que as famílias atribuem a educac;:ao, seu escasso reconhecimento do trabalho docente, seu empenho em utilizar as escoJas como albergue ou como casa de correc;:ao para os filhos que nao conseguem ou nao sabem educar: Enfim, as deman­das feítas a instituic;:ao seriam excessivas, contraditórias e mutáveis, expres­sando-se em urna interminável sucessao de reformas indicativas da deso­rientac;:ao da sociedade e das autoridades e causadoras da desorientac;:ao dos professores.

Qualquer desses tópicos poderia ser facilmente rechac;:ado por sua ina­dequac;:ao, mas o essencial é descobrir o fio condutor que perpassa todos eles: a derrocada das velhas certezas em torno da educac;:ao. O desmorona­mento da crenc;:a na associac;:ao entre educac;:ao e emprego; da sintonía entre os valores escolares e os valores sociais; da crenc;:a na capacidade da escola para moldar as crianc;:as e os jovens; da tranqüilidade proporciona­da pela aquiescencia incondicional das famílias ou da simples idéia de que as autoridades, a instituic;:ao e os agentes do processo educativo sabem o que buscam ou que, pelo menos até certo ponto, buscam urna mesma coi­sa. Contudo, nao seria difícil construir um rosário de argumentos contrá­rios: urna economía crescentemente baseada na informac;:ao e no conheci­mento, urna sociedade mais democrática e mais aberta do que jamais foi, meios de comunicac;:ao cada vez mais poderosos, famílias cada vez mais preocupadas - para nao dizer obcecadas - em obter mais e melhor educa­c;:ao para seus filhos, uma crescente atenc;:ao pública as políticas educacio­nais. Por que, entao, essa desorientac;:ao generalizada? Porque a mudanc;:a se estendeu, se intensificou e se acelerou em todos os ambitos da vida social, de modo que a educac;:ao, que antes vivia de sua gestao (educaré mudar, seja consciente ou inconscientemente), agora se ve envolvida por seu movimento, como em um torvelinho.

Neste breve trabalho, tentamos expor algumas linhas fundamentais desses processos de mudanc;:a, visto que afetam, de modo particular, as insti­tui<;oes escolares e a tarefa educativa. No Capítulo 1, centramo-nos na mu­danc;:a em si ou, mais exatamente, nas conseqüencias de sua mera expansao e acelerac;:ao, independentemente de seu conteúdo. Os tres capítulos seguin­tes sao dedicados ao tratamento mais específico e detalhado das grandes mudanc;as que giram em tomo do sistema educacional, específicamente na economía, na política e na família. No que diz respeito a economía, damos ,urna atenc;:áo especial ao novo papel da informac;:ao e do conhecimento e as transformac;oes na organizac;ao do trabalho. No que se refere a política,

PREFÁCIO iX

detemo-nos na passagem das nac;:oes homogeneas as sociedades multiculturais e a economía global. Quanto a família, examinamos as conseqüencias das mudanc;as em sua estrutura e na distribuic;:ao de papéis em seu interior. O Capítulo S trata da complexa relac;áo entre educac;ao e igualclade. Por últi­mo, os Capítulos 6 e 7 sáo dedicados as conseqüencias e implicac;:oes de tudo isso para a organizac;ao das escolas e para a profissao docente.

Sumório

Prefácio .... ...... ... .. ... .. .. ... ..... .. ... .. ... .. ..... ... ... ... .... .. ... ....... ... ..... .... .... .. .. ......... ... ... vii

A educac;áo e a mudanc;a social................................... .. .. .. .. .......... .... 13

A mudan<;a suprageracional ou a sociedade sem escoJas ......... .. .. .. .......... 15 A mudanc;:a intergeracional ou a época domada da institui<;ao ...... .. .... ... ... 17 A mudanc;a intrageracional ou a crise do sistema educacional ............ .. .. . 19 Al unos e professores diversificados .. ............................... .. .. ...... .. ... ... .. .. ... 22

2 O trabalho na sociedad e do conhecimento ... .... .. ... .................. .. . .. ...... .. ... 27

A sociedade industrial e o desenvolvimento da escala de massas .... .. ...... .. ... .. ...... .. ......... .. ... .. .. ... .. 28

Os desajustes entre a educac;:ao e o mundo do trabalho ......... ... .. ........ .. ... 31 Educar na sociedade do conhecimento ........ ... .. ... .. .................. .... .... .... ..... 35

3 A cidadania na era da globalizac;áo .... . .. ....... ...... . .. .. .. .. ... ... .. ... ... .. . .. ......... 45

A escala e a formac;:ao do Estado-Nac;:ao .. .... .... .. .... ....... .... ..... ...... ........ ... .. 46 A educac;:ao intercultural na sociedade multicultural .. ... ................... ... ..... 49 A formac;ao humanista na sociedade global .... .. .... .. .... ................ ....... .. ... . 55

4 Encontros e desencontros família-escola ........ .. .. .... .. .. .. ...... .... .......... 61

Comunidad e, família e custódia: o adeus a tradic;:ao ..... .. .. .. .. .. .. ... ..... .. ..... 62 A socializac;:ao da socializac;ao e o imperialismo escolar ....... .... ..... .. .. ...... . 65 A derrocada da hierarquia escola-família .. ...... .. ... .. .. .. .. .. .. .. ... ..... ........ 70

12 SUMÁRIO

5 Educo<;Óo e justi<;o social .. ..... ..... ........... ........ ......... . .... .... .. .... ... .... ........... 75

Desigualdade social e igualdad e territorial .... ...... ..... ... .. ..... .. ..... ...... ......... 76 As políticas igualitárias e seus resultados desiguais .... .................. .. ......... 79 O difícil equilíblio entre igualdade, liberdade e diversidad e ........... .. ....... 83

6 As escolos, su o orgonizo<;Óo e se u entorno ...... .. .... .. ... ............. .. ....... .. ..... 91

A crise da organiza<;ao escolar ou a quebra do sistema racional ....................... .. ..... .. .... .. ..... .. .... .... .. ......... 93

A organiza<;ao escolar como sistema natural ou a dissolu<;ao em seus elementos ......................... .. ..... .. .. ..... ...... ... .... .. ... 97

A necessária primazia do sistema ou a abertura para o entorno .... .. ........... .. .. .... ...... ... ..... .. .. .... .. .. .... ........... 101

7 As tronsformo<;Óes do profissóo ........................ .. ......... .. ... .. ........ .. ......... 107

Natureza e composi<;ao social da profissao .............. .. ..................... .. ...... 109 Estratégia coletiva e jurisdi<;ao profissional ................... ... ... .. ... .. ............ 115 As mudan<;as no modelo de profissionalismo ....... ... .. .. ... .... .. .................. 118

Epílogo: Prometen e Epimeteu .......... .. ... ...... .. ... .. ... .. .. ... ... ........ .. ... ... ...... .. ...... 125

Referencias bibliográficas .... .. .... ........ ... .. ..... ... .. .. .. ...... ...... .. .... .. .............. .. ...... 127

1 A Educa~ao e a Mudan~a Social

Um dos debates mais insistentes e repetidos em torno da instituic;:ao escolar sempre foi a questao de evidenciar se o seu papel era "reprodutor" ou "transformador", isto é, se contribuía para conservar a sociedade ou para mudá-la. Até certo ponto, era trivial, pois, por um lado, nenhuma sociedade poderia subsistir sem formar seus membros em certos valores, habilidades, etc., e, por isso, toda educac;:ao é reprodutora; mas, ao mesmo tempo, nenhuma sociedade atual seria, sem a escoJa, o mesmo que chegou a ser com ela, e, por isso, toda educac;:ao é transformadora. Contudo, e salvo alguns doutrinários, ninguém se pergunta, na realidade, se a institui­c;:ao escolar pretende petrificar a sociedade de tima vez por todas o u virá-la do avesso, mas sim qual dos dois componentes, continuidade ou mudanc;:a, predomina em sua ac;:ao . Depois de tudo, aprendemos a distinguir- pobre de quem ainda nao aprendeu! - entre as escoJas do franquismo e as da democracia, por exemplo, o u entre o padre Manjón e o anarquista Ferrer y Guardia. Note-se, entretanto, que a escoJa pode ser mais transformadora a medida que for mais instrumentalizada por forc;:as alheias a ela. Assim, nos processos revolucionários, é posta pelo poder político a servic;:o de objeti­vos transformadores claramente determinados e estritamente controlada em seu funcionamento (por exemplo, em escoJas cubanas do castrismo ou nas nicaragüenses do sandinismo); a o contrário, uma orientac;:ao aberra­mente conservadora pode decorrer da falta de controles externos ou da mera influencia da comunidade imediata (por exemplo, nas ofensivas criacionistas locais - em favor de nao ensinar a teoría da evoluc;:ao das espécies ou de po-las em pé de igualdade coma mitología (pré]crista sobre

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Adao e Eva - que foram urna praga para as escotas norte-americanas - e ainda persistem) .

Talvez pudéssemos sugerir que a chave nao está na escota, mas na sociedade em tomo dela. As escotas sao, ou tendem a ser, conservadoras e reprodutoras quando a sociedade é estável e estática; progressistas e transformadoras quando a sociedade é mutável e dinamica. De fato, essa é a hipótese que defenderei aquí. Nas sociedades predominantemente está­ticas, a escota nao é urna coisa nem outra, pois simplesmente nao é, já que (quase) ninguém tem necessidade dela. Nas sociedades que mudam e que, além disso, sabem ou acreditam saber em que direc;ao o fazem, a escota se converte em um poderoso (e manipulado e controlado) instrumento de transformac;ao. Por último, nas sociedades que mudam, mas o fazem de maneira errática ou simplesmente imprevisível, a escola se ve imersa em urna desorientar;ao que conduz facilmente a urna crise que supóe tanto a impossibilidade de sustentar;ao da dinamica prévia como a manifestar;ao de novas opottunidades .

Essas diferentes situac;óes tem a ver antes de tudo - embora nao ape­nas - com o ritmo da mudanr;a social. Isso posto, como se mede esse rit­mo? Poderíamos imaginar diversas maneiras: desde o número de patentes registradas por dia até o valor relativo das ferramentas tecnológicas na economía, passando pela durar;ao média das inovar;oes ou por qualquer outro indicador. Mas um indicador mais parcimonioso e razoável pode ser (admitindo a velha máxima humanista: o homem é a medida de todas as coisas) a própria experiencia humana, considerada de urna forma global. Vejam que nao se trata, por exemplo, de comparar o dinamismo tecnológi­co de diversas sociedades, o que exigiria medidas mais precisas - e menos significativas-, mas de pensar os efeitos da mudanr;a sobre a educar;ao, ou as relar;oes entre esta e aquele. Podemos, entao, postular tres possibilida­des, mais ou menos correspondentes a tres épocas na história da humani­dade (embora de durar;ao muito distinta), que definimos da seguinte ma­

neira:

• Mudanra suprageracional. A mudanr;a existe, mas é imperceptível de urna gerar;ao a outra, pelo menos para a maioria da popular;ao, seja por sua lentidao, seja porque afeta apenas setores minoritários.

• Mudanra intergeracional. A mudanr;a é claramente perceptível de urna gerar;ao a outra para setores relevantes da popular;ao, ainda que seja em diferentes momentos e gerar;oes.

EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 15

• Mudanra intrageracional. A mudanr;a é perceptível, de maneira ge­neralizada, dentro de urna mesma gerar;ao e nos aspectos funda­mentais da experiencia humana: economía, política, cultura, famí­lia, cidade, etc.

Naturalmente, referimo-nos a mudanr;as substanciais nas formas de vida, trabalho e convivencia. Nao pretendemos, de modo algum, que a passagem de um período a outro seja claramente datável, nem que nao haja períodos, inclusive longos períodos, de transir;ao ou de indefinir;ao, mas sim que certos períodos se enquadram claramente dentro de urna ou outra categoria. Além disso, nao excluímos, mas damos por assentado, que diferentes ~etores sociais podem estar passando, dentro de urna mesma sociedade, como, por exemplo, de urna mesma nar;i:í.o, pelas distintas fases mencionadas (senda, como dizia Ortega, coetfmeos, mas nao contempora­neos). Dito isso, passemos a analisar mais detalhadamente os diferentes períodos e suas implicar;óes para a educar;ao. 1

A MUDAN~A SUPRAGERACIONAL OU A SOCIEDADE SEM ESCOLAS

Na fase da mudanc;a suprageracional, a sociedade, para todos ou para a imensa maioria, é um contexto estável, invariante. Embora a confiabili­dade do retrato tenha sido posta em questao, 2 esse é claramente o caso no tipo de sociedad e desctito por Margaret Mead (194 7), e m Adolescéncia, sexo e cultura em Sarnoa, um livro que se tornou patticularmente popular entre os educadores, sem dúvida pelo fato de a autora defender a idéia de que os adolescentes samoanos, sendo levados sem a menor vacilac;ao a ocupar tao logo quanto possível papéis sociais adultos e amplamente esta­belecidos, evitavam as crises. e incertezas dos norte-americanos - como se fosse sequer pensável trasladar os processos samoanos as condir;óes norte­americanas. A incorpora<;ao precoce a posir;óes e papéis estáveis e, prova­velmente, herdados é o que se espera de todos nas sociedades primitivas e da grande maioria nas civilizar;óes pré-industriais . Ao crescer, cada gera­r;ao deverá incorporar-se ao mesmo mundo ao qual se incorporou e já do­mina a gerar;ao anterior. Essa estabilidade propicia urna visao do mundo como algo estático ou, talvez - reproduzindo e ampliando a expetiencia mais elementar do ambiente, a do tempo atmosférico - cíclico, sem nada que possa recordar a idéia de progresso tao intensamente associada a esco­ta na cultura da modernidade.

16 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA

Visto que os adultos sabem e podem ensinar tudo aquilo que urna crianc;:a necessita, deve e pode aprender, nao há nenhuma necessidade de urna instituic;:ao nem de um corpo especializados que se ocupem da educa­c;:ao. Em outras palavras, nao é preciso escolas nem professores. Em urna sociedade primitiva, ou pré-histórica, cada indivíduo sabe mais ou menos o que a sociedade sabe, e as destrezas sornadas de homens e mulheres - a primeira e mais elementar fmma de divisao do trabalho - resumem prati­camente o saber social global. Por conseguinte, os meninos aprendem com os homens, e as meninas com as mulheres adultas, seja de forma indivi­dual- com os pais- ou de forma coletiva- em fratrias, etc. -, seja com a gerac;:ao imediatamente anterior o u com outra com mais experiencia e com menos obrigac;:óes laborais - os anciáos. A transmissáo é essencialmente oral, centrada em um número reduzido de mitos, comportamentos e habi­lidades transmitidos de fom1a mais ou menos identica a cada nova gera­c;:ao. Pode haver algum saber especializado, como o do xamá, mas também aquí se produz urna socializac;:ao direta, sem um corpo intermediário dedi­cado pela divisao do trabalho a tarefa específica de educar.3

Nas sociedades da Antigüidade, os saberes especializados e mais ou menos esotéricos multiplicam-se, dando lugar a estratos mais ou menos numerosos de funcionários, mandarins, escribas, sacerdotes e similares, mas trata-se, em todo caso, de setores claramente minoritários e cujas condic;:óes de vida sao muito distintas das do ser comum. Esses sao os únicos grupos que podem requerer urna educac;:ao institucionalizada, so­bretudo se houver tabu, norma ou proibic;:ao que os impec;:a da reprodu­c;:ao biológica e de herdar por via familiar sua posic;:ao privilegiada. Os demais, inclusive até os primórdios da industrializac;:ao, continuaram vi­vendo processos de socializac;:ao indiferenciados, isto é, nao-segregados de sua patticipac;:ao progressiva na vida adulta. Com certeza, os campo­neses, mas também outros setores sociais: pense-se, por exemplo, nos artesaos medievais, que levavam seus filhos como aprendizes a oficina de outro mestre, mas, seja como for, a oficina (e a sua família, pois aquele sentava-o a sua mesa, colocava-o a seu servic;:o e assumia a responsabili­dade por sua formac;:áo moral), nao a urna escola de formac;:ao profissio­nal; ou nos nobres, que punham seus filhos a servic;:o de outros nobres ou os enviavam ao palácio do rei.

Para a maioria, portanto, a instituic;:ao educativa é, nesse período de mudanc;:a suprageracional, a família ou a comunidade imediata; isto é, nao existe urna instituic;:ao educativa diferenciada. O processo de aprendiza­gem é o próprio processo de incorporac;:ao ao trabalho; vale dizer que nao

EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 17

existe um ambito dedicado a aprendizagem de modo específico. Os agen­tes educativos sao, exatamente, os adultos, ou os mais adultos entre os adultos: nao há agentes singularizados. A base do papel de tais agentes é a experiencia, nao urna formac;:ao profissional para esse efeito. O status do educador em face do educando baseia-se em sua idade e experiencia com­partilhada com seus contemporaneos, e nao em urna formac;:ao especializa­da nem em qualquer nomeac;:ao burocrática.

Nesse contexto, a func;:ao da educac;:ao é claramente a reproduc;:ao: da estrutura social nas sociedades primitivas e, em geraJ, em todas as pré­industriais; das tecnologías imperantes entre os camponeses e, sobretudo, entre os artesaos; das tradic;:oes e do esprit de corps entre a nobreza; das tradir;óes, dos arcanos do saber esotérico ou da palavra divina e de sua interpretar;ao entre os sacerdotes. Nada aqui, portanto, incita a mudanr;a, e a educar;ao é tudo, menos urna forc;:a transformadora.

A MUDAN~A INTERGERAClONAL OU A ÉPOCA DOURADA DA INSTITUI~ÁO

Na pressa de resumir, costumamos chamar de "modemizac;:ao" um con­junto de mudanc;:as de tal envergadura e profundidade que, por si mesmas, representam, cada urna delas, a passagem a um mundo distinto do ante­rior. Entre outras, a passagem da agricultura a indústria - ou antes, da agricultura de subsistencia a agricultura comercial- e do trabalho de sub­sistencia ou por conta própria ao trabalho de cooperac;:ao e assalariado; do campo a cidade; da tradi<;:ao oral e do analfabetismo generalizado a cultu­ra escrita e a alfabetizac;:ao em massa; das crenc;:as mágicas, religiosas e tradicionais a cultura escrita, científica e racional (isso entendido no senti­do de urna articulac;:ao meios-fins); das pequenas comunidades e dos pode­res senhoriais as nac;:óes, aos Estados modernos e a cidadania. O comum a esses processos é que, em geral, representam alterac;:óes de tal profundida­de que urna ou válias gerac;:oes tem de se incorporar a um mundo tao distinto daquele das anteriores que estas já nao podem orientá-las em seu percurso (o mais provável é que, além disso, as gerac;:óes anteriores vejam desvanecer-se sob seus pés o mundo que conheceram, e esse é um dos fato res de crise da velhice) .4

Quando as velhas gerac;:oes já nao podem introduzir as mais novas no mundo que as espera, as instituic;:oes naturais, específicamente a família e a comunidade imediata, perdem em grande parte suas fun<;:óes educativas. Requerem-se, a o contrálio, instituic;:oes novas e agentes próprios, e é justa-

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18 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA

mente isso o que serao, antes de tudo, a escola e o magistério. Ambos representam, nesse momento (um período que abarca inúmeras coortes profissionais), o progresso diante da tradic;ao, o futuro diante do passado, a cultura diante da barbárie , a razao diante da superstic;ao. É, de certa fom1a, sua época gloriosa, que nunca voltarao a conhecer, pois sao o ins­trumento de criac;ao da nac;ao homogenea, do mercado diáfano, do exérci­to de alistamento leal, do proletariado disciplinado, da cidadania confiável. De fato, toda a mitología do magistério está ancorada nessa época.

Nao quero dizer com isso que se trate de um período inequívocamen­te de melhoria (riqueza, direitos, cultura, etc.), tampouco do contrário, da perda do paraíso (proletarizac;ao, opressao, assimilac;ao, etc.). Exigiría, ir­remediavelmente, urna análise mais matizada- embora, sem dúvida, tam­bém com um saldo positivo. Mas o importante é que se trata de urna época imbuída da idéia de progresso, e que é essa mentalidade de progresso, de · avanc;o, de desenvolvimento histórico, etc. que dá cobettura a expansao da escola e do magistério. Por isso, é um período no qual o magistério se sente incumbido de urna missao, de um propósito que !he foi atribuído e é reco­nhecido pela sociedade. Pode ser que as condic;oes de vida nao sejam as melhores (faJa-se de passar mais fome do que u m professor), que o apostolado ilustrador seja menos doce do que pretende (a letra, com sangue entra) ou que cada um possa executar essa missao de maneira distinta (cada professorzinho te m se u caderninho) , mas a sociedade, de bom o u mau gra­do, percebe e proclama que o professor representa algo distinto, novo e necessário, tanto no ambito coletivo, político (recorde-se que os professo­res franceses foram tachados, em finais do século XIX, como os sacerdotes da República, ou que o breve interregno democrático espanhol de 1931-1936 autodenominou-se República pedagógica), como no ambito privado e imediato (o professor atuando in loco parentis, no lugar do e coma autori­dade do pai). A docencia é vista assim quase em termos de apostolado: professor-missionário, profissao-vocac;ao, escolas-templo de saber, missoes pedagógicas, a nobre tarefa de ensinar, a ilustrac;ao como evangelizac;ao e assim sucessivamente .

Outro elemento a ser considerado é que, nesse lapso, o professor está definitivamente em um plano superior (mais culto, mais moderno, etc.) que a comunidade na qua] se integra. Automaticamente, e por mera razao do cargo, passa a fazer parte das forr;-as vivas. Sua formac;ao e seu crédito iniciais bastam para isso, sem necessidade de demonstrar mais nada pessoalmente, nem de revalidar sua posic;ao. Por conseguinte, sua

EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 19

profissao lhe assegura por si mesma um status ao menos moderadamente elevado, em relac;ao inversa com ~ tamanho e o nível de modemizac;ao da comumdade na qual se insere. E, em boa medida, o trampolim para o futuro, o vínculo com o além terreno, a janela aberta para o mundo. Pode-se pedir mais?5

A MUDAN~A INTRAGERACIONAL OU A CRISE DO SISTEMA EDUCACIONAL

Mas nao faz nem cem anos, e a acelerac;ao da mudanc;a social, que esteve na base da universalizac;ao da escola e da "época dourada" do ma­g_istério: c01¡verte-se no detonador do questionamento daquela e na deso­nent~c;ao deste. Isso ocorre quando, ao tomar-se mais rápida, generaliza­da e mtensa, a _m~danc;a nao apenas impoe que cada gerac;ao se incorpore a ~m m~ndo dts_tmto daquele da anterior, mas que ela própria, se me per­mttem d1_zer ~sstm, passe por vários mundos distintos. As trañsformac;oes na orgamzac;ao d~ mercado de trabalho e da organizac;ao empresarial, nas formas de comumcac;ao e de acesso a informac;ao, na estrutura e na vida urbanas, nas configurac;oes e nas relac;oes familiares , nas expectativas e n~s modos_ de exercício da cidadania supoem alterac;oes de grande profun­dtdade, CUJa percepc;ao como tais toma-se clara na facilidade com que se difundem os diagnósticos alarmantes, geralmente exagerados, mas nao carentes de fundamento: globalizac;ao, fim do trabalho, sociedade de ris­co, mundo desenfreado, império do efemero, aldeia global, etc. Tais altera­c;oes obrigam a maioria da populac;ao adulta, pelo menos nas sociedades avanc;adas -e, seja como for, urna proporc;ao crescente da populac;ao em qualquer soCiedade -, a se readaptar a novas condic;oes de vida, de traba­lho e de sociabilidade.

Da perspectiva discente, isso significa urna reestruturac;ao do ciclo de vida no que diz respeito a aprendizagem. Rompe-se a velha seqüencia na q,ual, a un: perí~do inicial de educac;ao e aprendizagem, seguía-se um pe­nodo de VIda at1va baseado na plena competencia do trabalhador, do cida­dao, do consumidor, etc. As mudanc;as constantes nas tecnologías e nas formas de organizac;ao (isto é, nos modos de relacionamento com as coisas e com as pessoas , respectivamente) requerem novas etapas de aprendiza­gem, alternadas ou simultaneas como trabalho, ao longo de toda a exten­s~o da vida útil ou entremeando-a em qualquer momento. Essa nova apren­dtzagem, atualizac;ao, reciclagem, modernizac;ao, readaptac;ao, formac;ao

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contínua, permanente, recorrente, ou como quer que a chamemos, pode passar pelo retomo a educac;ao formal, por diversas figuras de f?rmac;ao ocupacional ou pelo treinamento no terreno da ac;ao, do autodtdattsmo com manuais, tutotiais, publicac;ües profissionais ou qualquer outra fór­mula. Mas, de qualquer modo, implica continuar aprendendo ao longo de toda a vida. Sem necessidade de dramatizar isso, nem de supor todo mun­do dividido entre a sala de aula e o locaJ de trabalho, basta pensar naquilo que, por vários procedimentos, um empregado burocrático tem de apren­der sobre novos programas informáticos, urna advogada sobre novas nor­mas, um vendedor sobre novos produtos,_ um medmico sobre novos moto­res, urna dona de casa sobre novos eletrodomésticos e alimentos, urna médica sobre novos fármacos e técnicas, etc. A formac;ao inicial perde um peso relativo em contraste com a formac;ao perm.anente e, enquanto nesta reside, em proporc;ao cada vez maior, a aprendizagem dos conhecimentos úteis e aplicáveis no trabalho e na vida social, aquela corresponde, em contrapartida, a formac;ao e o desenvolvimento das capacida,des gerais para poder aproveitar, posteriormente, as possibilidades desta. E sua responsa­bilidade, portanto, assegurar a cada aluno a oportunidade de aprender a aprender.

Mas seria absurdo pensar que todos serii.p abrigados a aprender du-rante toda a vida .. . menos o professor. De fato, um dos cenários e m que mais se faz notar a insuficiencia da formac;ao inicial é o próprio ensino . Considere-se que os professores de ensino fundamental ou médio, que an­tes tinham um público procedente de famílias com nível educativo precá­rio, encontram-se agora diante de alunos que, em muitos casos, vem de famílias em que os país possuem diplomas similares ou superiores aos de­les próprios. Mas, além disso, esses mesmos pais sao abrigados a adquirir no ou para seu trabalho nao apenas conhecimentos muito específicos, como também capacidades e habilidades transversais, como a informática ou ciutros idiomas, que gostariam que seus filhos adquirissem na escoJa. Como qualquer profissional, o u como qualquer trabalhador, os professores perce­bem que precisam seguir a evoluc;ao constante, seja do que ensinam, so­bretudo entre os especializados em urna determinada área, seja de como ensinam, especialmente os que tratam com as crianc;as e com os jovens nas idades mais difíceis (urnas por sua importancia seminal, apesar de seu manejo aparentemente fácil, outros por seu caráter de encruzilhada, ape­sar de e também em razao da maior maturidade pessoal), seja de ambas as coisas. Mas, enquanto em outros ofícios e profissoes os sinais de inadaptac;ao

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lho próprios e os do colega ou do concorrente, ou, quando nao sao vistos diretamente, revelam-se pela comparac;ao que o supervisor ou o mercado estabelecem, no ensino, as indicac;oes sao sempre confusas, pois qualquer um pode ter sua opiniiio sobre como se repartem as responsabilidades entre o professor, a escola, o "sistema" (educacional), a família, o meio, a rua, as condic;oes de vida, os meios de comunicac;iio, o outro "sistema" (social), cer­tas "crises" (de valores, de modelos, de religiáo, de economía, etc.), etc. Desse modo, como todo grupo profissional, o dos professores se ve diante da necessidade e da imposic;ao de urna adaptac;ao permanente, mas, diferente­mente da maioria deles, pode isolar-se e encastelar-se no saber e no saber­fazer inicialmente adquiridos, nos métodos de sempre, em seu caderninho particular; ou, ao contrário, no apego a algo que o livre, de modo incondicio­nal, do mar de dúvidas, normalmente o livro-texto. Também pode, é claro, procurar acompanhar o ritmo da mudanc;a, procurar inclusive antecipar-se a ela e dominá-la, no sentido de preve-la e tirar o melhor proveito dela . Meios nao faltam, desde os recursos disponíveis oficialmente, que nao sáo poucos (cursos de longa ou curta durac;áo, programas especiais, nenhum dos quais, pelo que se sabe, esta o além de sua capacidade), até urna infini­dade de outros aos quais se pode ter acesso por iniciativa própria, mas é comum o professor prometéico, que olha para a frente, chocar-se de imedi­ato com seu colega epimetéico,· o que só olha para trás, seja em forma de reac;ao hostil, de falta de apoio ou de simples indiferenc;a, e tanto por parte de seus colegas como indivíduos quanto da escala como instituic;áo ou da administrac;ao educacional como autoridade.

Essa perda de referencia com relac;ao as func;:oes necessárias é tam­bém urna perda de status do professor. Enquanto sua formac;áo é hoje praticamente a mesma que há um século (urna formac;ao de curta dura­c;ao, embora convertida em universitária para os professores de ensino fundamental e urna licenciatura para os professores de ensino médio),** o nível geral do público elevou-se de forma espetacular. De um modo ou de outro, as famílias, a maioria em profissoes e locais de trabalho menos encastelados do que a docencia e a escala, percebem, seja de urna forma crítica ou de urna forma fetichista, que a corrente social nao se detém e que elas próprias, conforme o caso, só conseguem manter-se nela com

·N. de R. T. Os adjetivos prometéico e epitéico fazem referencia aos personagens mitológicos Prometeu ("aqueJe que pensa antes") e seu irmiio Epimeteu ("aqueJe que pensa depois"). (Ver Epílogo neste Ji vro.) .. N.de R. Dados referentes a realidade da Espanha.

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grande esfon;o (correndo para conseguir permanecer no mesmo ponto e tendo de correr muito mais para ir a algum lugar, como no país das mara­vilhas), ou se veem afastadas dela por falta de meios e/ ou de capacida­des pessoais e se interrogam e interrogam os professores sobre se a esco­Ja caminha ou nao paralelamente a sociedade. Surgem, enüí.o, inúmeras perguntas: Por que já nao estao aprendendo a ler? E o ingles? E a infor­mática? Há atitudes sexistas? Refon;a-se sua auto-estima?, etc. Assim, o professor pode ver seu trabalho revalorizado, visto o maior interesse da comunidade por sua atividade, mas também - e, infelizmente, isso é o mais freqüente - pode achar que está senda questionado e sentir que estao invadindo sen terreno.

ALUNOS E PROFESSORES DIVERSIFICADOS

E, mais urna vez, naturalmente, a mudan<;a no tempo é vivida como mudan<;a no espa<;o, tanto longitudinal como transversal: o público da es­cola é comparativamente mais diversificado, porque a sociedade é mais diversificada e porque setores mais amplos podem permanecer por mais tempo na institui<;ao, porque grupos distintos nascem em meios e em con­di<;oes diferentes e porque o processo de mudan<;a torna essas diferen<;as mais agudas. O professor se dá canta, entao, de que aquilo que para alguns é excessivo, para outros é insuficiente; senda assim, enguanto alguns nao compreendem o sentido de seu trabalho e algumas famílias nao oferecem a escala o apoio individual e coletivo necessário, outros podem dizer que tuda parece pouco, que nao estao satisfeitos, que nao valorizam e que até menosprezam seu trabalho.

Nem é preciso dizer que as mudan<;as sociais, assim como nao ocor­rem em um día, ocorrem antes em alguns países do que em outros, em algumas regioes do que em outras, para alguns grupos sociais do que para outros. lsso faz com que, em um determinado momento, possam coexistir, em urna mesma sociedade, grupos que se encontram em estágios muito distintos do processo de moderniza<;ao, ou que percorrem ou percorreram tal processo de formas muito díspares, dando lugar a combina<;oes muito diversas - ou simbioses, como diziam antes os documentários - de tradi­<;ao e de modernidade. Essa desigualdade essencialmente longitudinal no tempo manifesta-se, em um determinado momento, como diversidade trans­versal no espa<;o, entre países, regioes, zonas, bairros ou grupos sociais. Essa desigualdade é muito visível no conjunto do sistema educacional e

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pode chegar a acorrer em urna única escala ou em urna única sala de aula, sobretudo quando sao trazidas pelas migra<;oes para as cidades e quando as políticas sociais incorporam as escoJas ou mantem em suas salas de aula grupos que, de outro modo, teriam levado mais tempo para chegar a elas ou muito menos tempo para abandoná-las.

Os professores nao sao menos diversificados. Em alguns casos, referimo-nos, na Espanha, ao profesorado ou aos docentes de forma indife­renciada e, em outros, distinguimos entre maestros (de primaria) e profesores (de secundaria): Mas nao devemos encerrar este capítulo sem nos deter­mos em urna distin<;ao mais profunda. Ao assinalar as diferen<;as entre o longo período de mudan<;a suprageracional e o relativamente recente (e, em muitos lqgares, recém-chegado) de mudan<;a intergeracional, assinala­mos que a maioria da humanidade viveu um longo período em condi<;oes em que nao havia necessidade de escalas e, portanto, nao havia escalas. Mas, ao mesmo tempo, mostramos que, para um pequeno grupo de sacer­dotes, escribas, funcionários, etc., a escoJa era um instrumento essencial pois o coletivo se produzia e reproduzia por meio dela. Poderíamos desta~ car casos como dos escribas egípcios, dos mandarins chineses, dos funcio­nários do Baixo Império, dos padres e equivalentes ao longo de toda a história das religioes do livro, os missi dominici carolíngios e, naturalmente, os funcionários e, em inúmeros casos, os militares da Idade Moderna e Contemporanea. Pois bem, os centros de ensino em que se formavam esses diversos carpos de profissionais burocráticos eram o que boje chamaría­mos de secundários (os lycées franceses, os gymnasia alemaes, os institutos italianos ou espanhóis, as grammar schools britanicas, etc.), que durante muito tempo coexistiram, mas sem se misturarem, com as escalas elemen­tares, primá,rias, ou com a simples inexistencia de escalas para as classes populares. E um lugar-comum, por exemplo, que os liceus franceses eram o viveiro da burocracia napoleonica, assim como os ginásios alemaes seri­am da oficialidade bismarckiana.

Conseqüentemente, o que foi dito sobre o papel da escala em rela<;ao a mudan<;a social deve ser entendido como urna interpreta<;ao essencial­mente relativa a educa~ao básica e primária, isto é, a escola propriamente dita, o que foi chamado de instrucción em contraposi<;ao a enseñanza , escuelas em contraposi<;ao a institutos (e alumnos em contraposi<;ao a

'N . de T. No sistema brasileiro, primaria e sewndaria correspondem, respectivamente, a ensino fundamental e ensino médio.

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estudiantes, maestros e m contraposic;áo a profesores), etc., para distinguí-la da secundaria. Mas o problema desta, e de seus professores, é o oposto, pois sua origem está na escolarizac;áo dos estratos sociais que foram desde o início (ernbora tivessern diferente amplitude) a chamada noblesse de robe em contraposic;áo a noblesse d'épée.' O problema, entáo, é bem distinto para a primaria e a secundaria, maestros e profesores (e que cada um situe a ESO"' onde preferi1~ para esses efeitos). O problema do primário e do magistério é que, se a acelerac;áo da mudanc;a (intergeracional) elevou-os as alturas, sua nova acelerac;áo (intrageracional) ameac;a deixá-los na sar­jeta. Ao contrário, o problema do secundário e de seus professores é que só agora está vivendo tal rnudanc;a de forma radical (corn a universalizac;áo), depois de ter sido durante muito ternpo o ensino exclusivo de um setor reduzido e claramente associado ao acesso a posic;oes sociais privilegiadas, ainda que tanto a exclusividade como os privilégios já estivessern sofrendo urna lenta, mas significativa, erosáo.

A mudanc;a na rnudanc;a tambérn trouxe consigo importantes altera­c;oes na base social dos professores. O rnagistério, ern particular, é recruta­do menos entre os varoes das classes populares - eles próprios produto dessa abertura para o mundo trazida pela escola- e rnais entre as mulhe­res das classes médias; em menor proporc;ao, pode-se dizer o mesrno dos professores do secundário. Por outro lado, o que outrora tinha sido sobre­tuda urna rnaneira de sair da cornunidade local e de se associar ao auto­denominado progresso, para os maestros, ou as principais instituic;oes de difusáo da cultura, para os profesores, atualmente, quando quase dois ter­c;os do ensino náo-universitário é público e quase um terc;o semipúblico, passou a ser, ern boa medida, urna rnaneira de buscar estabilidade e urn posta de trabalho ern condic;oes vantajosas e relativamente bern-remune­rado, em contraste com o setor privado. Assim, urn tipo de pessoa que alrnejava a rnudanc;a dá lugar, paulatinamente, a outro que almeja segu­ranc;a . Voltarernos a isso no último capítulo.

'N. de T. Noblesse de robe (literalmente nobreza de túnica), conferida pelo exercício de um cargo judiciário, em contraposi<;iio a Noblesse d'épée (literalmente nobreza de espada), a que fazia a guerra (Le Petit Robert) .

"N. de T. Na Espanha, ESO: Educa<;iio Secundária Obrigatória.

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NOTAS

l. Tratei disso mais detalhadamente em Fernández Enguita, 2000a. 2. Específicamente por Derek Freeman (1983) que, se guindo como fiel admira­

dor os passos de Mead algumas décadas depois, constatou que nem a reali­dade tinha muito a ver com o que ela tinha descrito, nem as condir;oes de seu trabalho tinhan1 sido propriamente exemplares. Por isso, nao importava muito, porque Mead acabou dizendo o que, nesse momento e em meio a polemica entre partidários da hereditariedade e ambientalistas, se queria ouvir, em particular os educadores: que a forma de educar;ao era crucial. E também que urna educar;ao mais u·anqüila, mais tolerante, etc. produzíria melhores efeitos. Como diz o refrao italiano: se non é vera, é bene n-ovato.

3. Diga-se de passagem, o xama, que é ao mesmo tempo bruxo, curandeiro, homem da chuva, oráculo e guardiao dos mitos, é o precursor de várias profissoes: padres, médicos, economistas , sociólogos e professores, pelo menos.

4. A recente moda de cantar as excelencias de que as crianr;as sejam educadas pelos avós é outro exemplo de um desejo piedoso tao irreal como interessa­do. Por um lado, idealiza a demanda de seus servir;os como babás, disfarr;an­do sua crueza. Por outro, esquece que o maior bem dos avós é a experiencia, mas sua experiencia costuma ser extemponlnea. No mais, é claro que há avós e avós.

5. Embora seja um caso diferente, do quallogo diremos alguma coisa, poderia afirmar-se algo parecido sobre os professores de ensino médio. Leve-se em conta que os institutos foram, em outro tempo, as principais instituir;oes educativas e estiveram entre as principais instituir;oes culturais, primeiro em todas as capitais administrativas e depois em todos os povoados de certa coletividade, exceto nas que tinham universidades, que podiam ser contadas nos dedos . Hoje, nao se pode dizer isso nem sequer das universidades.

2 O Trabalho na Sociedade

do Conhecimento

Embora a generalidade do público escolar (alunos e pais) tome suas decisoes em matéria de educac;ao pensando, antes de mais nada, na rela­c;ao entre esta e o emprego, os profissionais do setor, que antes tinham muito pouco presente esse vínculo, agora estao divididos diante dele. Sao muitos os que rechac;am esse tipo de problema por considerarem que ele diz respeito a objetivos de categoría infetior a outras finalidades da educa­c;ao, supostamente. superiores, como a formac;ao para urna sociedade de­mocrática ou para o desenvolvimento pessoal (quem poderia dizer o con­trário diante da contraposic;:ao entre propósitos tao elevados e a prepara­~ao para o trabalho?). Mais do que propor perguntas ou respostas constru­tivas quanto a se a educac;ao deveria caminhar neste ou naquele sentido visando a incorporac;:ao dos jovens a vida ativa (quem costuma tratar disso sao os sociólogos, os economistas e outros especialistas fora do núcleo do sistema), propaga-se a tendencia a se entregar a considerac;oes de caráter negativo que oscilam entre idéias extremas, por exemplo, que se está ten­tando submeter a es cola as demandas da empresa (o u do mercado, o u do capital, ou do neoliberalismo) ou, inversamente, que só importa o que se faz na escala quando se percebe um mercado de trabalho impraticável (desemprego, preca1iedade, subemprego, contratos espúrios) .

"A economía, estúpido!" Esse foi o lema principal da campanha inova­dora da Bill Clinton a presidencia dos Estados Unidos, e é isso o que se deve dizer aqueles que acham que a escala pode permanecer a margem

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das mudanc;as economicas ou ignorá-las. A economía conta, e muito. Mes­mo aqueles que dao ou querem dar mais importancia ao cidadao ou a pessoa do que ao trabalhador devem recordar que nao se pode pensar em uma democracia saudável sem uma economía saudável, na qual nao haja grupos excluídos das oportunidades ou preteridos na distribuic;ao da ri­queza, e que uma vida pessoal plena e gratificante passa, em grande medi­da, por um trabalho digno e satisfatório (e hoje - hoje seria o caso de ressaltar -, simplesmente por um trabalho).

N este capítulo, comec;aremos por destacar que, contrariamente a uma idéia (uma ideología) muito difundida, a escola sempre teve e continua tendo uma estreita relac;ao com a economía e, em particular, coma organi­zac;ao do trabalho. Depois nos Jeteremos em alguns desajustes e em algu­mas disfunc;oes provocados pelas mudanc;as em curso no mercado de tra­balho e na organizac;ao da produc;ao. Por último, centraremos nossa aten­c;ao no novo papel da infonnac;ao e do conhecimento no processo econó­mico e nas conseqüencias disso para a escola.

A SOCIEDADE INDUSTRIAL E O DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DE MASSAS

O desenvolvimento da escolarizac;ao universal teve a ver muito menos do que se ere ou do que se quer crer com a filantropía, com os ideais da revoluc;ao ou com o furor evangelizador das religioes e mais do que se costuma admitir comas duas grandes instituic;oes da modernidade: o Esta­do-Nac;ao e a empresa industrial. Do primeiro trataremos no próximo capí­tulo, e da segunda vamos dizer algo agora. Na verdade, também entre eles é preciso assinalar que há urna tendencia a superes timar o papel do Estado -e dentro dele, em pmticular, o papel dos direitos cidadaos - como motor da escolarizac;ao, e a se subestimar o da empresa. Nao porque a empresa adotasse por si mesma um papel de protagonista direto no processo- em­bora também o tenha feíto -, papel que correspondería mais ao Estado (incluídos os poderes locais), a lgreja (incluídas as ordens religiosas) e a diversas associac;oes civis (de caridade, filantrópicas, reformistas, etc.), mas sim porque foi seu surgimento, coma conseqüente separac;ao dos locais de trabalho e de residencia, da atividade trabalhista e da vida doméstica, da empresa e da aprendizagem, etc., que criou a necessidade tanto de novas instituic;oes encarregadas da custódia das crianc;as, como novas formas de socializac;ao e de capacitac;ao para o trabalho. 1

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A fábrica (ou, de maneira mais geral, a organizac;ao cooperativa do trabalho) representou uma ruptura radical coma economía de subsisten­cia (unidades familiares auto-suficientes, logicamente camponesas) e com o trabalho por conta próp1ia para o mercado (artesanato, agricultura co­mercial, pequeno comércio). Os trabalhadores já nao poderiam decidir os objetivos de seu trabalho, nem controlar seu processo produtivo, nem de­terminar livremente o uso de seu tempo. Ao contrário, deveriam submeter­se as rotinas da organizac;ao coletiva do trabalho e da regularidade neces­sária para o máximo aproveitamento do oneroso maquinário. Tal objetivo, que hoje parece trivial porque já é um ponto de partida, custou, nesse momento, sangue, suor e lágrimas. Por diferentes motivos, camponeses e artesaos naq se mostraram propriamente dispostos a aplaudir as novas condic;oes de trabalho que !hes eram oferecidas como alternativa a seu modo de vida tradicional, em plena crise. Essa recusa se manifestou em seu apego as velhas condic;oes e, quando nao eram economicamente viá­veis, na extensao da vadiagem e da mendicancia, nas revoltas contra a industrializac;ao e na proliferac;ao dos conflitos no local de trabalho.

O que para as gerac;oes adultas, contudo, era um conflito inevitável, para as novas gerac;oes podía e devia ser visto de outro modo. Parte da contribuic;ao da escola a mudanc;a intergeracional, a qual nos referíamos antes, foi seu papel decisivo na socializac;ao das crianc;as para as novas condic;oes de trabalho. Nao foi preciso que isso se convertesse em um obje­tivo aceito de forma generalizada e deliberadamente, embora nao faltasse quem fizesse disso seu no1te. 2 Bastou que as escolas se vissem submetidas, como instituic;oes, a pressao do ambiente: ao exito das empresas como organizac;oes exemplares por sua eficiencia a serem imitadas, a influencia de alguns reformadores inspirados e até financiados por elas, a lógica par­cialmente compartilhada por urnas e outras como organizac;oes hierárqui­cas, ao peso dos novos valores empresariais ascendentes na opiniao públi­ca, a influencia crescente do mundo dos negócios sobre as instituic;oes po­líticas, etc. 3 Na Espanha, um caso de desenvolvimento económico tardío tendo como fundo o panorama europeu, essa influencia foi menos visível, mas também chegou com a importac;ao de modelos educacionais de fora, comec;ando pela influencia dos reforn1adores da Nova Inglaterra sobre Giner de los Ríos até a do behaviorismo, a programac;ao por objetivos, etc., sobre o importante setor educacional vinculado a o Opus Dei. 4

A escola chegou a se configurar como uma antecipac;ao da fábrica, isto é, como um cenário adaptativo - o que significa intermediário- en­tre as relac;oes sociais próprias da família e as do trabalho assalariado.

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Seria nela que as crianc;as aprenderiam, de modo sistemático, a se sub­meter a urna autoridade impessoal e burocrática; a aceitar que . outros decidissem por elas o que fazer, como fazer, quando e em que ntm?; a conceber 0 tempo como um contínuo passível de ser fragmentado e vahoso por si mesmo; a nao esperar de sua a~ividad~ dirigida (seu trabal~o) urna gratificac;ao intrínseca (lucro), mas si m extnnseca (recompensa), a com­petir de maneira destrutiva (estigmatizante e .ex:ludente) uns com .os outros; a se submeter aos ditames de urna avahac;ao alheia const~nte, a aceitar diferenc;as geométricas nas recompensas resultante.s de d~feren­c;as aritméticas em seus exitos; a assumir urna estrutura ~oClal desigual e estratificada, mas presumivelmente produto de suas diferenc;as e seus desempenhos individuais; a organizar sua atividade seguindo o~ ditames da divisao vertical e horizontal do trabalho; a manter urna atiVIdade re­gular e continuada independentemente de seu estado de animo e suas circunstancias; a desenvolver hábitos de conduta de acordo com as ne­cessidades do trabalho organizado. 5

Essas relac;oes sociais do processo educativo antecipavam as rel.a­c;oes sociais próprias da industrialízac;ao, mais acentuadas .no_ capitahs­mo, no qua! o empregador dispóe da poderosa .arma da den;u~sao em face do empregado, do que no estatismo (ou social,Ismo bur~cratic~), no ~ual na falta desta tem de recorrer diretamente a repressao, ma1s tem¡vel, porém muito menos eficaz para esses efeitos. A aliena~a~ d~ trab.al?a~or dos fins, meios e processos de seu trabalho, sua submissao a~ e~1genoas tanto do autocrata (o empresário) como do aut6mato (a maquma), sua motivac;ao mediante recompensas extrínsecas ~sal~ri?s), su~ indiferenc;a em relac;ao ao conteúdo do trabalho, sua deferencia a autondad~ na em­presa, suas relac;óes competitivas no merc~do d~ tr~balho: tudo Isso tem sua antecipac;ao na escala. A sala de aula e a pnme1ra bancada de traba­lho do futuro trabalhador, e o professor, seu primeiro capataz - embora ambos suavizados, em versáo ad usum delphini.

Por outro lado, desaparecida a aprendizagem (como um aspecto a mais da perda do controle, nesse caso coletivo, do trabalho pelos trabalha­dores, pois controlar a aprendizagem era também controlar o acesso a profissao e, portanto, as condic;óes do mercado e o prec;o. d~ tr~balho) , alguém ou algo teria de assumir a preparac;ao tanto da soc1ahzac;ao con_:o da capacitac;ao para a atividade trabalhista, e ninguém ou nada estava ~ao a mao como a escala. Assim, a ela eram dirigidas as demandas no sentido de desenvolver, nos adolescentes, as aptidoes e as atitudes requeridas pelo novo cenário do trabalho. Deve-se levar em canta que estamos falando de

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urna época, praticamente um século - o último terc;o do século XIX e os dois primeiros do século XX-, e m que a divisa.o manufatureira do trabalho e a mecanizac;ao, primeiro, e o taylorismo, juntamente com o fordismo e a automatizac;ao, depois , atuariam como poderosos instrumentos na desqualificac;ao, na submissao e na normalizac;ao das atividades trabalhistas.

OS DESAJUSTES ENTRE A EDUCA~ÁO E O MUNDO DO TRABALHO

Mas será que a escala foi eficazmente submetida aos ditames da em­presa, como as vezes se supóe? Se olhamos para as rotinas das escalas mútuas ou simultaneas do século XIX, ou simplesmente para as de algu­mas escalas tradicionais no século que acaba de se encerrar, surge esponta­neamente a evocac;ao de imagens como a escala-fábrica, a escola-quartel, a escola-prisao, etc. No essencial das relac;oes cotidianas, pode-se observar que existiu urna forte aproximac;ao entre as relac;oes sociais do processo de ensino-aprendizagem e as relac;oes sociais do processo de produc;ao na so­ciedade industrial (capitalista o u socialista). Contudo, a es cola nao foi úni­ca ou unilateralmente isso. Nenhuma organizac;ao é simplesmente o que suas autoridades em exercício querem que seja: nem mesmo com as fábri­cas de propriedade de Ford ou as oficinas dirigidas por Taylor foi assim. Além disso, embora se possa observar urna lógica interna da empresa (para o controle vertical e a desqualificac;ao do trabalho) da qual Ford e Taylor nao seriam mais do que paladinos, as coisas nao sao üío claras na escala, pois seu ambito é outro (o Estado, em vez do mercado), o núcleo operacional nelas (os professores) tem seus interesses e sua dinamica próprios, e as mudanc;as em su<! composic;ao demográfica (a feminizac;ao) nao devem ser consideradas irrelevantes.

No ambito da economía capitalista (mercado, acumulac;ao privada de capital mais trabalho assalariado), a fonte de poder é a propriedade, o que converte o empresário, em princípio, em autoridade suprema e legítima da empresa como organizac;ao e, portanto, do trabalho. O Estado, no entanto, insere-se em outra lógica. Embora ele próprio e qualquer de suas depen­dencias estejam sujeitos a tendencia autoritária de toda organizac;ao, um e outras inserem-se em um campo de legitimidade no qua! os titulares de direítos sao todos os indivíduos por igual, índependentemente de suas di­ferenc;as de propríedade ou de outras características índividuais . Podemos resumir isso dizendo que a empresa desenvolve urna lógica autoritária, e o Estado, urna lógica democrática, ainda que nos dois casos trate-se de urna

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caracterizac;ao sumária e, nesse sentido, unilateral - e aqueles que se dis­puserem depois a assinalar os aspectos nao-democráticos do Estado mo­derno, que sao muitos, também poderiam entreter-se enumerando os as­pectos democráticos da empresa, que nao sao poucos. Seja como for, o Estado desenvolve urna lógica universalista e igualitária, da qual o merca­do e a empresa carecem, e sem a qual tetia sido impensável, por exemplo, que as mulheres chegassem a receber tanta (ou tao pouca) e tao boa (ou tao má) educac;ao quanto os homens -para que escolarizar as mulheres se a escala era simplesmente um instrumento a servic;o do capital, em urna época em que o trabalho assalariado se tomava esmagadoramente mascu­lino? E para que escolarizar tanta gente hoje, se urna parte importante dela vai parar em empregos tao pouco qualificados que praticamente nao requerem formac;ao prévia? Essa lógica se traduziu na incorporac;ao de novos setores a escola, em sua universalizac;ao efetiva, na melhoria da es­colarizac;ao básica, na ampliac;ao do período obrigatótio, na inclusáo e nas diversas políticas compensatórias. Talvez nao tenha sido suficiente, mas, sem dúvida, nao foi irrelevante.

Por outro lado, é preciso levar em conta o peso da profissao docente. Apesar da tendencia atual de tomar emprestada para a escala a linguagem da empresa (nao apenas a servic;o do empregador, mas também a servic;o dos empregados), nema escala é (simplesmente, seja pública ou privada} urna empresa (como lugar de trabalho), nem os professores sao propria­mente um grupo proletário. A diferenc;a entre urna profissao e um simples grupo de trabalhadores é que aquela se distingue por seu nível de qualifi­cac;ao e, sobretudo, por sua autonomía no processo de trabalho (resultante de sua qualificac;ao ou de outras circunstancias); duas características que sao, cada urna delas, fontes de poder. Urna fábrica de automóveis tende a ser (embora nunca chegue a se-lo) o que seu proprietário quer que seja, mas urna instituic;ao centrada no tn~balho de um grupo profissional (como a escoJa ou, no que se refere a isso, os hospitais ou os quartéis) tende a ser o que a profissao quer que seja. o poder da profissao docente nao parou de crescer desde seu surgimento, mais urna vez apesar do que sustentam cer­tas teorías radicais- mas que seria insustentável se, em vez de se lamentar pela perda de um passado imaginário, ou de confundir o poder com a distinc;ao ou o prestígio, se considerassem simplesmente as condic;oes de trabalho, a flexibilidade horária, a possibilidade de estabelecer por si só objetivos e formular processos, a ausencia de controles externos, etc. Esse poder profissional, como nao podía deixar de ser, manifestou-se em um crescente isolamento da escola com relac;ao a sociedade e, conseqüente-

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mente, de suas diversas instituic;oes, incluídos o mercado de trabalho e a empresa.

Por último, a atenc;ao, pelo menos retótica, ao desenvolvimento pes­soal por meio da educac;ao escolar teria sido impensável, creio, sem a feminizac;ao do ensino- a retórica é em si mesma efetiva, sobretudo quan­do seu conteúdo passa a fazer parte da moral. É verdade que a própria atividade de educar presta-se particularmente a ser concebida como urna simples ajuda ao desenvolvimento de qualidades, de dons, de potenciali­dades e de outros elementos presumivelmente inatos, mas é difícil imagi­nar as modernas tendencias pedagógicas vindo das maos de professores do sexo masculino (haverá oportunidade de voltar a isso) . A incorporac;ao em massa da..mulher ao magistério e ao conjunto do ensino nao-universitá­rio - com sua maior proximidade e sua visao provavelmente mais ampla da infancia e do desenvolvimento das crianc;as como pessoas, e nao mera­mente como aluno's -, sem dúvida, foi decisiva para que a escala assumisse valores e metas que difícilmente poderiam resultar da economía ou da política, do mercado ou do Estado, porque resulta antes das relac;oes holísticas, onicompreensivas, nao-específicas e difusas, próprias e caracte­rísticas da esfera familiar.

A expansao- ou, se preferir-se, inflac;ao - dos títulos escolares e aca­demicos, por outro lado, escapou a qualquer requisito de ajuste as necessi­dades e as possibilidades do sistema produtivo . Em primeiro lugar, pela já mencionada lógica democrática e igualitária do Estado, que é nao só o grande regulador e financiador como também 9 principal provedor de es­colarizac;ao, nao podendo deixar de responder as demandas de ampliac;ao das oportunidades. Em segundo lugar, pelo impulso expansivo da profis­sao docente, sempre a favor da ampliac;ao da oferta educativa e do orc;a­mento destinado a ela. Mas também, em terceiro lugar, a própria dinamica do mercado de trabalho contribuí para a inflac;ao dos diplomas, para o credencialismo. Justamente porque os empregadores utilizamos títulos dis­ttibuídos pela escala como um dos melhores indicadores das qualidades dos trabalhadores (nao importa que as vejam como indicadores de capaci­dade ou de submissao, de inteligencia ou de diligencia, etc.), estes devem tratar de obte-los para competir com outros concorrentes potenciais na busca de emprego. O paradoxo consiste em que, quanto maior importan­cia adquire no mercado de trabalho a educac;ao em geral (quanto mais é levada em conta no recrutamento e na promoc;ao dos empregados), mais se desvalorizam os títulos individuais (nisto consiste a inflac;ao: nao em que o dinheiro-símbolo caia em desuso, mas em sua perda de valor unitá-

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rio) , embora nunca todos por igual. A segunda parte do paradoxo é que, assim como na inflac:;ao monetária quanto mais o dinheiro se desvaloriza, maior quantidade se necessita para adquilir os mesmos produtos; na infla­c:;ao de diplomas , quanto mais se desvalorizamos títulos em termos absolu­tos, mais se necessita de um nível mais elevado para se ter acesso aos mesmos pos tos de trabalho. 6

Por outro lado, importantes mudanc:;as - tanto no emprego como no trabalho - poem em questao atualmente a funcionalidade da organizac:;ao escolar tradicional para os requisitos, as necessidades, as oportunidades e os desafíos do mercado de trabalho e da organizac:;ao da produc:;ao. O contexto em que as empresas se movem tornou-se visivelmente mais turbulento, com­petitivo e imprevisível, obrigando-as a extremar sua capacidade de respon­der com flexibilidade. No que diz respeito ao trabalho, urna empresa pode conseguir flexibilidade por duas vías: a primeira, que poderíamos chamar de Jlexibilidade externa , consiste em ajustar constantemente seus recursos as necessidades do mercado, captando e prescindindo da mao-de-obra segun­do as oportunidades que este lhe oferec:;a. Por mais contrastante que seja e por mais indignac:;ao que cause a desigualdade entre as condic:;oes de vida do empregador e as do empregado, é preciso ser muito intransigente para nao compreender que, em última instancia, e o resto das coisas permanecendo igual, urna empresa nao pode manter intacto um quadro de pessoal quando o mercado para seus produtos se reduz de forma duradoura, do mesmo modo que nao pode deixar de ampliá-lo quando se expande; em algum mo­mento, p01tanto (outra coisa é nao fazer isso antes do tempo, em excesso, para quando chegar a ocasiao ou para manter ou elevar os lucros da propri­edade, ou que ao mesmo tempo elevem os salários astronomicos dos direto­res), será forc:;ada a modificar seu quadro de pessoal, na falta de outra solu­c:;ao. Nao é preciso dizer que, vista da perspectiva do trabalhador, essa é a vía da precariedade, do salto de um emprego a outro, de urna empresa a outra, do emprego ao desemprego, etc. A segunda vía, que podemos chamar de flexibilidade interna, consiste em buscar novos mercados mediante novos produtos, o que sup6e fazer coisas novas com o quadro de pessoa\ antigo. (Deixemos de lado as implicac:;oes de tais estratégias para os demais fatores da produc:;ao: maquinário, financiamento, etc.) Nesse caso, o trabalhador mantém seu emprego, mas este se transforma internamente, exigindo dele readaptac:;oes sem dúvida maiores do que se tentasse conseguir o mesmo tipo de emprego anterior em outra empresa.

O que as duas estratégias tem como efeito comum é que o trabalhador precisa desenvolver urna gama mais ampla de aptid6es, destrezas, conhe-

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cimentos, etc., sendo, no primeiro caso, por meio de diferentes empregos e, no ~eg~ndo, dentro de um mesmo emprego que se modifica. Além disso no pr~metro caso - flexibi\idade externa - terá de acrescentar a isso cert~ ca~aCldade de procurar novos empregos, talvez de se instalar por conta propna, d~ co~seguir _s~b~í~ios para o desemprego ou para a criac:;ao de emprego, tsto e, certa mtClattva. No segundo caso- flexibilidade interna­, a aposta da empresa por colocar novos produtos em novos mercados para ~anter _o-quadro d~ pessoal requererá ciclos mais rápidos do projeto a dtstnbmc:;ao, mecamsmos de decisao mais compartilhados e participativos e, de manetra geral, um maior envolvimento e urna maior participac:;ao do trabalhador no funcionamento da empresa, o que é outra forma de inicia­t~va. O que pretendo destacar é que urna escola uniformizadora, autoritá­na, moldada e~ grand.e medida conforme o padrao da velha organizac:;ao d~ tr~balho hoJe em cnse, poderia ficar abaixo das expectativas e das exi­gencias d~ mundo do emprego ou, pelo menos, de sua patte mais dinami­ca e promtsso:a. E, como temía Machado de Assis, • nao porque es teja a u dessus de la melée, mas por nao estar a altura das circunstancias.

EDUCAR NA SOCIEDADE DO CONHECIMENT07

Seria um erro crasso interpretar esse questionamento das atuais rela­c:;oes da ~duc~c:;ao com a economía e o trabalho como urna negac:;ao ou urna desvalonzac:;ao de sua relevancia para estes. Ao contrário, há todos os moti­vos p~ra assegurar, com toda a enfase possível, que a educac:;ao nunca teve tanta tmportancia económica como em nossos dias, tanto para as socieda­des como para os indivíduos. Esse é o sentido das freqüentes afirmac:;oes de que estamos e~trando na (era da) economía (ou na sociedade) do conheci­mento (ou da mformac:;iio, informática, digital, etc.). Sem entrar na discus­sao.sobre o ma~or ou o menor acerto de cada urna dessas express6es _que muttas vezes sao usadas de maneira indistinta, embora nao devesse ser assim -~ é n~cessário _compreende~ o peso decisivamente maior que adqui­rem hoJe a mformac:;ao, o conhec1mento, a qualificac:;ao e a educac:;ao nas coordenadas da nova economía e da nova sociedade que, com suas Iuzes e suas sombras, já se tornam visíveis por toda parte.

·N. de R. Broca , J.B. Na década modernista: Machado de Assis a u dessu.s e la melée. Revista do L!vro, Rio de Janeiro, set. 1948.

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A economía o u, em termos mais restritos, a produc;ao pode ser inter­pretada como um sistema pelo qual fluem tres elementos: matéria, ener­gía e informac;ao. Cada um deles apresenta, nesse ambito, suas peculiari­dades. A "matéria" do sistema económico produtivo nao é a mesma que a de um sistema físico, mas incluí todos aqueJes elementos que, por si mes­mas, sao inertes a partir da perspectiva do sistema, embora possam ser utilizados como meios de produ~ao - entre os quais se incluí a energía física, além das instalac;oes, o maquinário, os instrumentos e os materiais de trabalho. A "energía" do sistema económico é o trabalho, sem o qual nenhum meio de comunicac;:ao selia capaz de produzir nada (no extre­mo, nem mesmo o maquinário automático) e que se encarrega de utilizar ou de ativar todos eles. E a informac;ao é simplesmente isto: a informa­c;:ao, o conhecimento ou essa parcela deles que é economicamente perti­nente e útil.

Em urna economía de subsistencia plimitiva, os meios de produc;ao, o trabalho e a informac;ao atingem dimensoes muito limitadas, manejáveis em escala individual ou doméstica. Em outras palavras, cada habitac;ao tem urna quantidade de meios de produc;ao (armas de cac;a, instrumentos de pesca, terra ou o que seja) suficientes para suas necessidades e possibi­lidades e essencialmente equivalente a de qualquer outra; cada indivíduo em idade útil conta com seu trabalho, e a habitac;ao típica conta com um número limitado de unidades de trabalho, embora as habitac;:oes mais nu­merosas tendam a ser mais exíguas; por último, a acumulac;ao da informa­c;ao, as destrezas e os saberes de um homem e de urna mulher adultos (levando em canta que a divisao sexual é a primeira forma de divisao do trabalho) praticamente equivalem ao conjunto do saber social (exceto o saber esotérico do xama). Mas as coisas mudam quando qualquer desses tres elementos comec;a a ser utilizado em grande escala, isto é, quando os meios de produc;ao alcanc;:am um volume tal que apenas alguns poucos podem obte-los ou controlá-los (porque tem autoridade para isso se forem coletivos ou públicos, porque podem pagar o prec;o se forem particulares o u privados, etc.); quando os trabalhadores devem cooperar regularmente em grandes grupos cuja eficácia requer urna autoridade coordenadora; quando a informac;ao e o conhecimento aumentam de forma tal que cada indivíduo só pode possuir urna parte deles, mas essas partes nao tem todas elas a mesma utilidade.

O poder diferencial sobre esses tres elementos do sistema económico é o que chamamos, na ordem correspondente que vem sendo apresentada neste capítulo, de propriedade, autoridade e qualificac;ao. Quando falamos

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da propriedade como urna forma de poder social nao pensamos nos meios de consumo, mas na propriedade diferencial dos meios de produc;áo; por exemplo, a que separava o nobre proprietário de terra dos camponeses sem-terra ou da que separa o capitalista do trabalhador assalariado. Quan­do nos referimos a autoridade, nao se trata de qualquer forma desta, como, por exemplo, a parental, a patriarcal ou a política, mas da autoridade pura e simples sobre o trabalho de outras pessoas, a que possui o diretor ou o capataz. Quando mencionamos, finalmente, a qualifica~ao, nao estamos pensando neste ou naquele nível absoluto de informac;ao ou de conheci­mento (todo mundo tem algo de ambos), mas na posse de urna informac;ao e de um conhecimento maiores do que os de outros e/ ou simplesmente diferentes, porém mais escassos (em relac;áo as necessidades económicas). Poderíamos dizer também que essas tres formas de poder sao tres formas de capital: económico, social e cultural. O importante, porém, é assinalar que, antes ou acima de suas diferenc;as, tem um elemento comum: todas elas sao poder, embora com características distintas, e todas elas estao desigualmente disttibuídas.

O característico da economía da informac;:ao, ou da sociedade do co­nhecimento, é o crescimento espetacular do papel da qualificac;ao. A pri­meira revolu~ao industrial, cujo cenário inicial foi o norte da Europa e que nao casualmente se identifica coma máquina a vapor, com os altos fomos, com o tear automático ou com a estrada de ferro, foi, antes de tudo, urna revoluc;ao nas dimensoes dos meios de produc;ao e, devido a isso, na estru­tura da propriedade. A segunda revolu~ao industrial, cujo cenário inicial foram os Estados Unidos, e que se identifica com o taylorismo e o fordismo (e com a grande corporac;ao, isto é, com a concentrac;ao do capital por meio das sociedades por ac;:oes), foi, mais do que tudo, urna revoluc;:ao nas dimensoes e, por isso, nas formas de organizac;ao do trabalho (e do capi­tal) e, portanto, na estrutura da autoridade. A terceira revolu~ao industrial, que também qualificamos como tecnológica, ou científico-técnica - a que vivemos hoje - com um cenário mais difuso, porém localizado em certas regioes interconectadas, embora nao-contíguas, que sao viveiros das novas tecnologías centradas na informática e nas telecomunicac;oes, é, acima de tudo, urna revoluc;ao nas dimensoes e no papel do conhecimento (a ciencia e a tecnología) e, portanto, na estrutura da qualificac;ao. Essas revoluc;oes nao foram (nem estao senda) monoaxiais, mas há sempre um elemento que predomina claramente sobre todos os outros, embora também os in­duza. A escalada dos meios de produc;ao resultante da primeira revoluc;:ao industrial exigiu, de imediato, novas formas de organizac;:ao, em particular

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a submissao da mao-de-obra a disciplina fab ril, 8 e precisou de formas de trabalho mais qualificadas, embora minoritárias (o projeto do próprio maquinário, su a manutenc;ao , etc.). A segunda revoluc;ao industrial, isto é, a transformac;ao nos métodos de organizac;ao do trabalho representada pelo fordismo (e do capital, pela corporac;ao), tomou possível o uso de meios de produc;ao em volumes e quantidades até entao insuspeitados e criou novas qualificac;oes, embora ainda minoritári.as (as oficinas de proje­to e de métodos). O uso intensivo da infotmac;ao e do conhecimento que a nova revoluc;ao industrial trouxe consigo permitiu novas formas de mobili­zac;ao dos meios de produc;ao e de coordenac;ao do trabalho, em grande escala e mediante estruturas reticulares, que escaparam as deseconomias da grande fábrica, inclusive de "empresas sem fábricas", mas que os orga­nizaram e coordenaram em urna escala ainda mais ampla.

Cada um desses desenvolvimentos deu lugar a urna nova divisao so­cial, ou aprofundou-a e ampliou-a em níveis e limites antes inimagináveis. A prime ira revoluc;ao industrial multiplicou numericamente e consolidou a burguesía como classe privilegiada, coro a contrapartida de um proletaria­do formado por todos aqueJes que, nao possuindo meios de produc;ao (ero grande ou em pequena escala), viam-se abrigados a vender seu trabalho a terceiros em troca de um salário. A segunda revoluc;ao industrial permitiu a proliferac;ao e a reafirmac;ao dos diretores, isto é, a burocracia (se nao a entendemos apenas como pública) , colocando, diante deles, trabalhadores definitivamente subordinados ao processo de trabalho. A terceira revolu­c;ao industrial está trazendo consigo o desenvolvimento e o fortalecimento das profissoes, em contraste coro grupos de trabalhadores náo-qualifica­dos, ou pouco qualificados, que se veem relegados a urna petmanente con­correncia com as máquinas que ameac;am substituir seu trabalho por terem um custo menor.

Precisamente do fato de estarmos em meio a terceira revoluc;ao indus­trial, que atribuí a informac;ao e ao conhecimento um papel cada vez mais decisivo na produc;ao, multiplica o poder da qualificac;ao e divide a socie­dade a sua volta , decorre, como nao poderia deixar de ser, urna importan­cia redobrada da educac;ao. Enguanto a concentrac;ao da propriedade de­pende principalmente do funcionamento do mercado (do que se permite comprar e vender e da estrutura das dotac;oes iniciais) e a da autoridade, do desenvolvimento das organizac;oes (de suas dimensoes e de suas regu­lamentac;oes externas e internas), a concentrac;ao da qualificac;ao depen­de, essencialmente - mas nao apenas -, da estrutura das oportunidades escolares e do funcionamento do sistema educacional. Assim, nao obstante

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todo o niilismo educativo que encontramos por toda parte, a instituic;ao escolar tem hoje urna importancia económica e social nunca antes alcanc;ada.

Tanto o sistema económico em seu conjunto como seus atores indivi­duais necessitam e requerem do sistema escolar a qualificac;ao do trabalho, algo que tal sistema, por sua vez, pode e deve oferecer-lhes. É preciso en­tender a qualificac;iio como o conjunto de habilidades, de destrezas, de informac;oes, de conhecimentos, de capacidades, etc. necessárias ou úteis para o processo de trabalho e discutir amplamente sobre o papel relativo das capacidades gerais e específicas das aptidóes e das atitudes, das des­trezas formais e das habilidades informais, etc. Com fins heurísticos, sugi­ro entender a qualificac;ao como a capacidade de:

a) aplicar certos procedimentos ou rotinas a certas tarefas; b) diagnosticar cada caso ou problema para determinar qua! é o pro­

cedimento ou a rotina adequada; e e) identificar novos problemas e criar novos procedimentos ou reti­

nas para estes, ou para a melhor resoluc;ao de problemas antigos.

Trata-se de tres formas distintas de saber que poderíamos designar, respectivamente, como conhecimento operacional, profissional e científi­co. O primeiro, o conhecimento operacional, surge da divisao de tarefas e é configurado por ela: urna vez que as tarefas se multiplicam devido ao sur­gimento de novas processos de trabalho e a constante subdivisiio dos ve­lhos, é tao impossível que um indivíduo possa dominá-las todas como é importante especializar-se em algumas deJas. O segundo, o conhecimento profissional, aufere sua necessidade da incerteza: visto que os casos e pro­blemas nao tem - ou nem sempre tero - estampado um rótulo que nos informe de antemao sobre o modo de abordá-los e de resolve-los, em mui­tas situac;óes requer-se nao só urna análise e um juízo prévio sobre a na tu­reza do problema, como também urna escolha entre as diversas rotinas e procedimentos disponíveis, mas nem todos aplicáveis nem igualmente efi­cazes, como é de se esperar. O terceiro, o conhecimento científico , é efeito e condic;ao da própria mudanc;a, pois obedece a situac;óes, a necessidades e a possibilidades novas, ao mesmo tempo em que as cría por si mesmo.

A contraposi~ao dessas formas de conhecimento deve ser entendida em um sentido limitado. A incerteza surge da ampliac;ao da variedade e das possibilidades e, portanto, é acompanhada do aumento das tarefas singularizáveis, e a mudanc;a cría também novas incertezas e novas tare­fas . Assim, até certo ponto, os tres tipos de conhecimento podem fazer

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parte de um mesmo pasto de trabalho, mas em combina¡;óes muito dife­rentes. O trabalho predominantemente científico de um pesquisador, por exemplo, incluí diagnósticos profissionais (como decidir que tipo de entre­vista aplicar em um projeto sociológico, o u que tipo de tintura utilizar para observar certas células) e rotinas operacionais (como repassar as respostas a um computador ou contar os exemplares em um microscópio). O traba­lho predominantemente profissional de um médico incluí, em geral, roti­nas operacionais, como as que se aplicam para a realiza¡;ao de certos exa­mes e, eventualmente, inova¡;óes científicas, cpmo as que podem surgir da observa¡;ao de um grupo de casos ou a modifica¡;ao experimental de certos tratamentos. As rotinas predominantemente operacionais de um mecanico exigem, normalmente, algum tipo de diagnóstico prévio e, ainda que de forma esporádica ou excepcional, podem dar lugar a inova¡;:óes. Pode-se notar, no entanto, que a rela¡;áo é assimétrica. Os trabalhos centrados na inova¡;:ao requerem sempre os diagnósticos e os procedimentos estabeleci­dos; os trabalhos rotineiros podem nao incluir o diagnóstico e raramente implicam inova¡;ao. Sempre que é possível separar os diferentes compo­nentes - pesquisa, diagnóstico e rotinas -, também é possível confiar sua realiza¡;:ao a pessoas diferentes. De fato, a divisao do trabalho que poded­amos chamar de vertical - a separa¡;ao entre concep¡;ao e execu¡;ao - con­siste, em grande medida, exatamente nisso.

O desdobramento da informa¡;ao e do conhecimento tem diferentes efeitos sobre cada um desses componentes da qualifica¡;ao e, portanto, sobre os empregos em que cada um deles predomina. Por um lado, as dimensoes gigantescas da informa<;ao, a amplia¡;ao global do conhecimen­to, a diversifica¡;ao de produtos e processos, a própria inova¡;:ao e se u papel central na concorrencia economica refor¡;am a importancia do diagnóstico profissional e da pesquisa científica. Por outro, a crescente capacidade de processar a informa¡;ao por meios nao-humanos permite substituir as pes­soas nas fun¡;oes que requerem processos menos complexos, fun¡;óes que sao principalmente operacionais e, apenas algumas, profissionais. U m exem­plo de substitui¡;ao em massa de postos de trabalho operacionais - e ao mesmo tempo dos diferentes efeitos da terceira revolu¡;ao industrial em compara¡;:ao com as precedentes- pode ser visto na robotiza¡;ao da fabri­ca¡;ao de automóveis. Essa indústria, que nos anos 1960 ou 1970 era o paradigma do traba)ho nao-qualificado, coma utiliza¡;ao em massa de ope­rários literalmente a servi¡;o da máquina, hoje pode suprimir grande parte desses postas de trabalho justamente por sua baixa qualifica¡;ao e elevada

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padroniza¡;ao, isto é, porque as tarefas de processamento da informa¡;ao contidas neles eram de pouca complexidade e podem ser atribuídas a au­tomatos. Ao mesmo tempo, significativas tarefas de diagnóstico profissio­nal já podem ser realizadas por mecanismos informáticos simplesmente por sua velocidade no tratamento da informa¡;ao ou pelo desenvolvimento dos chamados sistemas especialistas e da inteligencia artificial (por exem­plo, os cálculos de seguros e de empréstimos, a detec<;ao de problemas mecanicos nos automóveis, as análises clínicas ou até mesmo, com limita­¡;oes, o diagnóstico médico) .

lsso tem efeitos sobre o conteúdo técnico do emprego, pois cresce a demanda de conhecimentos científicos profissionais de alto nível, tanto no conjunto do. mercado de trabalho como na configura<;ao interna de nume­rosos empregos singulares. Em contrapartida, destroem-se em massa em­pregos operacionais e empregos semiprofissionais. lsso nao significa que tais empregos deixem de existir: primeiro, porque continuam senda de longe os mais numerosos; segundo, porque aparecem outros novos, de nível similar, em setores novas da produ¡;ao (por exemplo, transportado­ras, embora os que saem dos velhos empregos nao sao necessariamente os que entram nos novas) ou se mantem e inclusive proliferam em setores cujas tarefas nao podem ser normalizadas o suficiente para serem atribuí­das as máquinas (por exemplo, na confec¡;ao, diferentemente do setor tex­til, que foi a principal vítima da primeira revolw;ao industrial). Tuda isso representa urna sensível polariza¡;ao do mercado de trabalho, com cresci­mento simultaneo dos empregos mais ou menos qualificados e redu¡;ao dos intermediários. Nessas circunstancias, a educa¡;ao redobra sua impor­tancia, já que é o que mais entra emjogo- as probabilidades de ir parar em um dos dois extremos.

Mas qua! educa¡;ao? Naturalmente, nao a mesma das fases manufa­tureira e fordista da sociedade industrial. A relevancia crescente da infor­ma¡;ao e do conhecimento desloca o peso da qualifica¡;ao do componente operacional para o profissional e de ambos para o científico. A aprendiza­gem profissional era essencialmente prática (baseada na repeti¡;ao das ta­refas típicas) e dirigida (sob a supervisao imediata do professor), pois o que se espera do operário é que ele realize tarefas simples e repetitivas, mas exatas. A aprendizagem profissional tem de ser, sobretudo, mais abs­trata, já que se trata de adquirir um conhecimento a partir do qua! deverao ser abordados os casos particulares, e um pouco mais ativa, já que o profis­sional deverá atuar por canta própria . A aprendizagem científica tem de

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ser ainda um pouco mais abstrata e, sobretudo, muito mais ativa (mais crítica em face do saber estabelecido), já que cabe ao cientista questionar e renovar os conhecimentos existentes.

Como se vé, nao se trata apenas de mudan<;as no conhecimento a partilhar ou a adquirir que se deslocaria do concreto para o abstrato e do prático para o simbólico, mas também de mudan<;as nas atitudes a favo­recer e a desenvolver. A atitude que se espera de um operário é a submis­sao, isto é, a capacidade de seguir instru<;óes; e também, talvez, certa indiferen<;a em rela<;ao ao conteúdo de trabalho, isto é, a capacidade de trabalhar em algo que nao suscite seu interesse. O que se espera de um profissional, ao contrário, é sua confiabilidade, a tranqüilidade para o cliente ou usuário ou o consumidor final de que o trabalhador atinge o nível de competéncia que o estado da técnica permite (é o que espera­mos, por exemplo, do médico que acompanha o paciente: que ele esteja atualizado e que aplique isso, e nao que invente ou seja habilidoso), e também um certo grau de compromisso com os objetivos de seu traba­lho. O que se requer, finalmente, de um cientista ou de um profissional de alto nível é a crítica e a criatividade, necessárias para resolver proble­mas novos ou encontrar novas solu<;óes para velhos problemas.

Portanto, nao se trata simplesmente de se familiarizar com o uso e com o manejo da informa<;ao. Pode-se padecer por falta de informa<;ao, evidentemente, mas também por excesso, se nao se souber o que fazer com ela. O conhecimento é justamente a capacidade de compor e de manejar essa informa<;ao. O que separa o conhecimento profissional do operacio­nal, a parte urna informa<;ao possível, mas nao necessariamente maior -urna digitadora ou um guarda de transito, por exemplo, manejam informa­<;óes o tempo todo -, é a capacidade de discernir e de se orientar em meio a e la. E o que distingue o conhecimento científico de ambos é a capacidade de refletir críticamente, de ir além deJa.

NOTAS

l. Tratei desse processo e de seus mecanismos de forma muito mais detalhada em Femández Enguita, 1990.

2. Sobre esse aspecto, é muito ilustrativo o trabalho de Callahan, 1962. 3. Sobre os fatores do isomorfismo es cola-empresa, ver Dimaggio e Powell, 1983. 4. Ver Gimeno Sacristán, 1976. 5. Ver os Capítulos 6 e 7 de Fernández Enguita, 1990.

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6. Somente na década de 1980, por exemplo, dobrou a propon;ao de estudan­tes universitários, mas o emprego manteve, ou mesmo ampliou, a estrutura piramidal de antes.

7. Este item resume alguns aspectos e desenvolve outros de urna comunicar;ao apresentada na Fundar;ao Santillana (Fernández Enguita, 2002b).

8. Ure dizia, por exemplo, que o mérito de Arkwright nao estava no tear meca­n~co_ (~eio de pr~dur;ao), que ele apenas aperfeir;oou, mas na regular;ao da disc1plma (orgamzar;ao, autoridade) necessária para faze-lo funcionar.

3 A Cidadania na Era da Globaliza~ao

O Estado-Na~ao foi e continua sendo, junto coma empresa industrial­como mostramos no capítulo anterior-, o outro grande beneficiário do pro­cesso de escolariza~ao e, portanto, o outro grande impulsionador da escola. É evidente que, em grande medida, a institui~ao escolar foi estendendo-se, cada vez mais, por impulso, sob o comando e como financiamento do Esta­do. No entanto, nada disso era inevitável, mesmo considerando o papel de organizador geral da convivencia que possui o poder público. A primeira expansao significativa da vida econ6mica em muitos casos veio da Igreja e do movimento operário, 1 por meio de algumas ordens religiosas e dos movi­mentos de auto-instru~ao vinculados a gremios, sindicatos e partidos dos trabalhadores. O mesmo se pode dizer de sua 01ienta~ao, balizada de fom1a decisiva pela influencia de movimentos nao direta nem necessa1iamente li­gados ao poder político, tais como as ordens e as reformas religiosas, as conentes de opiniao laicas vinculadas ao Renascimento, ao Humanismo ou a Ilustra¡;ao, mais tarde o socialismo, o anarquismo e o comunismo, ou, recentemente, as conentes, as escolas e os modelos academicos. Finalmen­te, ainda hoje seu fmanciamento depende apenas parcialmente dos fundos públicos, dependendo dos níveis, dos ramos e dos países de que se trate.

Mas, pelo menos a pmtir do século XIX (em alguns casos, antes, como na Escócia o u na Alemanha), os Estados nacionais estiveram entre os pri­meiros interessados na expansao da educa~ao e foram os principais deter­minantes de sua organiza~ao. E isso porque nela encontraram um podero­so instrumento para a forma~ao de urna cultura e de urna identidade nacio­nais, para a configura~ao de urna rela~ao mais direta entre o indivíduo e o

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poder político e para a generalizac;ao da cidadania. Este último fez com que fosse também parte do resultado de um movimento de baixo para cima, o da consecw;ao do que Marshall (1950) chamou de direitos sociais, hoje vinculados ao Estado do bem-estar, no qua! figura a escolarizac;ao básica obrigatória e comum.2 A classe trabalhadora, em particular, foi in­corporada a vida política como contrapartida a sua renúncia a objetivos revolucionários.

Outro aspecto desta realidade foi dado pela assimilac;ao para dentro e a segregac;áo para fora. Assimilac;ao das minorías, territoriais ou nao, como as nacionalidades ou os ciganos da Espanha; segregac;ao com respeito aos de­mais Estados nacionais e aos cidadaos procedentes deles. Sombras sobre a cidadania que se intensificam hoje, quando a globalizac;:ao da economía tor­na pequenos os Estados nacionais e os movimentos migratórios intensificam a diversidade interna de cada um deles. Mas o sistema educacional, as insti­tuic;:oes escolares, os corpos docentes e os planos e os métodos de ensino e de aprendizagem foram concebidos em func;:ao desse trabalho de nacionaliza­~áo da escola, a servic;o do Estado-Nac;:ao e do tipo de cidadania a ele asso­ciada, e nao para outro tipo nem para qualquer forma política, razáo pela qua! se veem hoje em sétias dificuldades quando se trata de enfrentar um mundo novo no qua! ele se encontra, simplesmente, ultrapassado.

A ESCOLA E A FORMA~ÁO DO ESTADO-HA~ÁO

Contra urna crenc;:a bastante difundida entre e pelos nacionalistas, as nac;:oes nao nascem, mas se fazem. Sao mesmo impensáveis, se nao o forem como produto do poder político, moderno o u nao, e forjam-se com os instru­mentos a sua disposic;:ao.3 o principal instrumento desse processo é a escola, que serve para estender a massa da populac;:ao o que sem ela nao seria nada mais do que a cultura da elite, ou de urna elite (que, por sua vez, pode ser constituída por urna classe social, mas também por urna casta guerreira, urna aristocracia proprietária de terras ou urna burocracia política ou religio­sa). Outros mecanismos, tais como a Igreja anteriormente e os meios de comunicac;:ao hoje, podem desempenhar um papel confluente e importante, mas nenhum chega a ser sistemático e eficaz como a escoJa, pois nenhum é capaz, como ela, de incorporar crianc;:as em massa, submete-las a urna dou­trinac;:ao forc;:ada, fazendo isso em nome e com a legitimidade da razao, da cultura, da história, etc., sempre no singular. Urna prova disso pode ser en­contrada hoje, em meio ao processo de reconstruc;:ao e construc;:ao das nacio-

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nalidades que fazem parte da nac;:ao espanhola, em como os conflitos entre as autoridades autonomicas nacionalistas e as autoridades estatais se centram sempre na educac;:ao, raramente nos meios de comunicac;:ao ou em outros agentes e outras agencias de socializac;ao.

Os recursos mais elementares de que dispoe a escola nessa func;:ao sao, sem dúvida, os ensinos da linguagem e da história. É o mesmo que tratar de impor o espanhol aos que tem como língua materna o catalao, o basco ou o galego, ou impor qualquer destas aos de qualquer outra língua espanhola. O mesmo oc01-re também com a imposic;:ao do espanhol oficial sobre seus diferentes dialetos locais, do eu.skera batua sobre suas outras variantes, ou (a fmstrada) do catalao sobre o valenciano. Em qualquer desses casqs, como em outros, impoe-se urna língua dominante sobre as línguas secundárias no território submetido ao poder político imperante e urna versao oficial sobre as (outras) vers6es locais.

O papel da história é assinalar, até que nao reste nenhum tipo de dúvida, a singularidade do povo escolhido, suas raízes desaparecidas nas profundezas da tradic;:ao, sua eterna vontade de unidad e interior e liberda­de exterior, seu passado comum como prenúncio de um destino comum, as esséncias inesgotáveis de sua gente simples, a invejável beleza de suas paisagens, as incomparáveis fac;:anhas de seus heróis, os sofrimentos sem par de seus mártires, a grande sensibilidade de seus artistas e as palavras inigualáveis de seus literatos. Algo que aborrecería insuportavelmente urna pessoa madura e formada, mas que poderia produzir efeitos indeléveis sobre mentes imaturas que estao dando seus primeiros passos (e sobre algumas que continuam imaturas além de qualquer prazo razoável) . A prova disso é a facilidade com que os estudantes de todo o mundo chegam a convicc;:ao de que seu país ou sua terra sao os melhores.

Há outras matérias escolares que também podem contribuir e con­tribuem para a empresa nacionalista. A geografía ressalta ou inventa a singularidade em face do exterior e a unidade interior, criando imagens que cala m fundo nas mentes infantis. 4 A literatura se a profunda sobre o Volkgeist da vez, escolhendo os autores e as obras convenientes. A mate­mática homogeneíza os sistemas de pesos e medidas, preparando o terre­no para a criac;ao de mercados nacionais diáfanos. As ciencias naturais ensinam a apreciar o ambiente local, fauna e flora incluídas, quando nao resvalam para o panegírico de urna rac;:a. Todas essas matérias, evidente­mente, dedicam-se em maior ou menor medida a muitas outras coisas mas sao suscetíveis de instrumentalizac;:ao para as finalidades do nacio~ nalismo da vez. Outras podem ser criadas ad hoc, com essa func;:ao espe-

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cífica, como a antiga "Formac;ao do Espírito Nacional" (que nome acerta­do e sincero!), sob o franquismo, o u suas mais discretas variantes con­temporáneas, como formac;ao cívica, educac;ao para a convivencia, etc.

Aqui e em Pequim. As ditaduras e as democracias, o século XIX e o século XX (e o XXI), as nac;oes soberanas e os nacionalismos independen­tistas , os revolucionários e os reacionários, os radicais e os moderados. Todos os poderes políticos se servem da escala para formar, sob seus pés, uma cultura homogenea e leaP As diferen~as sao de grau e de toleráncia, segundo o nível de fanatismo e a disposic;ao para nao deixar que se ouc;am outras vozes. O grau, naturalmente, pode chegar a ser urna questao muito importante, inclusive a mais ou a única importante, pois o nacionalismo de predomínio cívico da ilustra~áo ou da democracia espanhola e do catala­nismo nao sao a mesma coisa que os delhios arcaizantes do franquismo ou a fantasmagoría étnica do abertzalismo:

O reverso da nac;ao é a cidadania. A nac;ao se torna coesa mediante a homogeneiza~ao cultural e a identifica~ao de seus membros com ela. Mas, em contrapartida, estes sao declarados iguais e sentem-se e convertem­se em titulares de direitos perante o coletivo. Ao mesmo tempo, a lealda­de a nac;ao e os direitos perante ela exigem a supressao de todas as corporac;oes intermediárias. A família, a aldeia, o gremio, a profissao, a cidade, etc., todos os coletivos, que antes definiam por si mesmos os di­reitos de seus membros - embora, por sua vez, estes devessem ser reco­nhecidos (exceto a família) pelas autmidades políticas superiores mediante cartas fundacionais, etc. -, ficam relegados a mera agregac;ao de interes­ses individuais, os únicos que se reconhecem como verdadeiramente le­gítimos perante o coletivo nacional.

O papel da escoJa nao é menos importante nesse aspecto. Por um lado, ela própria é um desses direitos: desde os argumentos ilustrados pela ex­tensao das luzes em face da superstic;ao até a atual conversao da escolari­zac;ao universal em um dos pilares do Estado social, considera-se que um dos primeiros direitos dos cidadaos é o direito a educac;ao. Por outro lado, a escolarizac;ao bem-sucedida apresenta-se ao mesmo tempo como a con­di~ao sine qua non para o exercício de todos os direitos, como se manifesta

'N . de T. Do basco abertzale, patriota. Diz-se do movimento político e social basco, mais o u menos radical, partidário do nacionalismo, e também de seus seguidores. Diccionario de la

Lengua Española. Real Academia Española .

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na continuidade de um discurso que vai desde as esperanc;as depositadas pelos Ilustrados na educa~ao como o melhor remédio contra a tiranía até as defini~oes ampliadas da alfabetiza~áo dadas hoje pelos organismos in­ternacionais, que incluem aspectos como a capacidade de ter urna vida plena, de participar na vida da comunidade, etc.

A EDUCA~O INTERCULTURAL NA SOCIEDADE MULTICULTURAL

Uma coisa sáo os propósitos do poder político, e outra, bem diferente, sua realizac;ao. Ainda que os Estados-Na~ao europeus tenham alcanc;ado um alto grau ,d~ mtegrac;ao e de homogeneizac;ao interna (por exemplo, a Fra.n~a. a Suecra ou Portugal), outros (por exemplo, a Espanha, 0 Reino Umdo o u, a o que parece, a Itália, para nao fa lar das desaparecidas I ugoslá­vw ou Checoslováquia) nao deram conta da consistencia e da inércia das ~acionalidade~ integradas neles, isto é, de coletividades territoriais que reumam tambem, por sr mesmas, todos o u alguns dos requisitos que facili­tam a co.nstru.c;ao de urna na~áo, tais como uma língua própria mais ou menos drfund1da e uma história comum mais ou menos assumida (a falta sempre de um: o poder político independente) . Isso pode ser entendido co~o um éxito das nacionalidades, que resistem e sobrevivem a política umfrcado~a ou de assimilac;ao, ou como um fracasso da construc;ao do Es­tado-Nac;ao, qu~ se transformaria assim, para usar as palavras de Anthony Smrt~, em Na!ao-Estado (em urna na~ao, poderíamos dizer, que há urna exrstenc1a pohtrca- o Estado-, mas nao cultural). 6 No item seguinte, nos deteremos no problema da superposic;ao da comunidade cultural e da co­munidad~ política ou, se preferirern, da cultura e da cidadania. Por ora, basta assmalar que no seio de urn Estado-Na~ao com liberdade de movi­rnentos e de estabelecimento (como cabe a toda na~ao moderna), a plurahdade de c~letividades territoriais (nacionalidades e religioes) logo desemboca, medrante as mrgra~oes internas, na pluralidade de culturas no interior de cada urna delas.

Por outro lado, certas minorías podem ter ficado a rnargern do proces­so de construc;ao nacional, principalmente por estratégias excludentes da mawna, mas também, em alguma medida, por estratégias de isolarnento próprias, reativas ou nao (porexemplo, os ciganos, osjudeus, os lapoes) . A segregac;áo dessas minorias pode ter a ver particularmente com seu modo de vida, com diferenc;as religiosas, com sua presumida lealdade a poderes extra ou supranacionais, mas o resultado é sempre a exdusao da ciclada-

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nia, em geral primeiramente de direito e depois de fato. Quando essas minorias vivem afastadas do grupo dominante, como os lapóes, é provável que a relac;ao consista em urna combinac;ao de expropriac;ao das oportuni­dades económicas, como, por exemplo, a terra, e estereótipos culturais depreciativos ; quando, ao contrário, vivem misturados com a maioria ou nos interstícios da sociedade, como ciganos e judeus, embora de maneira distinta, é fácil apontá-los como povo pária, como bode expiatório das iras e das fobias da maioria, sobretudo da plebe.

Por último, os grupos imigrantes, a pattir de cetta entidade e ao cabo de urna ou duas gerac;óes , tomam-se minorías étnicas . Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o projeto inicial do imigrante raramente consiste em se assentar no país de acolhida. O propósito mais comum é o oposto: ganhar e economizar dinheiro para se instalar por canta própri~ no país de origem, para pagar um casamento ou um dote, ir embora, etc. E o fracasso total ou parcial na consecuc;ao de tal objetivo que prolonga o período de permanencia, impulsiona a reunificac;ao familiar (ou a criac;ao de urna fa­mília no ponto de destino) e, como tempo, converte o país de acolhida em local de residencia definitivo. Um elemento decisivo nesse processo, embo­ra naturalmente imprevisto, sao os filhos . Essa segunda gerac;ao, que co­nhece apenas referencias e talvez por visitas breves o lugar de o rige m, que nao encontra nele nada que se compare as possibilidades do lugar de des­tilia e que é socializada sem concessóes, pela escala, na cultura de acolhi­da, converte-se logo na principal oposic;ao ao retomo. Passam, assim, pau­latinamente, de imigrantes a mi noria. 7

Tudo isso nos leva a questao da relac;ao entre as diferentes culturas dentro de urna única comunidade nacional, o que normalmente se desig­na, com diferentes termos pouco satisfatórios, como o problema do pluralismo, do multiculturalismo ou do interculturalismo. Ou, mais exa­tamente, ao problema da atitude da sociedade de acolhida em relac;ao as culturas de origem dos imigrantes . Para a instituic;ao escolar, esse é um problema inteiramente imprevisto, diante do qual se encontra desarma­da, confusa e, para dizer de maneira branda, pouco disposta. A escala nasceu como mna instituic;ao decididamente de assimilac;ao, uniformiza­dora, urna máquina de fabricar súditos ou cidadaos, mas, em todo caso, iguais, com urna única cultura comum, compreendidos nesta a lingua­gem, as crenc;as, a identidade, os valores, as diretrizes de conduta, etc. O pressuposto que se oculta por trás do trabalho da escala, que fica bastan­te patente nas metáforas sobre a ilustrac;ao , a missao, a civilizac;ao, a modernizac;ao, etc. , é que existe uma cultura, a boa, diante da qua! todas

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as demais, na melhor das hipóteses, nao sao mais do que aproximac;óes acompanhadas por insuficiencias o u por desvíos e, na pior, alguma forma de barbárie. Onde ficaria a escala se a cultura escolar aparecesse como mais urna entre as possíveis, sem maiores nem melhores direitos do que qualquer outra? E o que seria dos professores de ensino fundamental- e, em menor medida, mas também, dos professores de ensino médio - se, em vezde urnas poucas certezas, tivessem de se mover entre urna infini­dade de perguntas, dúvidas , op<;:óes e alternativas?

É justamente essa a situac;ao criada pela coexistencia de diferentes culturas dentro de urna mesma comunidade política, qualquer que seja a origem delas (nacionalidades, minorías, imigrantes). A primeira resposta escolar é a assimila~éío pura e simples, a acultura<;:ao; isto é, a imposic;ao da cultura escolar acima de qualquer cultura popular, étnica, grupal, estran­geira. E "cultura escolar" significa, evidentemente, a cultura dos grupos dominantes na sociedade : da etnia majoritária, da classe alta, dos homens, dos estratos já educados, etc., embora passada pela peneira eficaz desse grupo social que tem na cultura sua principal posse- as novas classes mé­dias funcionais em geral e os professores em particular.

Comumente, a segunda resposta é a tolerancia. A cultura escolar con­tinua senda a cultura com maiúsculas, mas já nao se reprime m- ou tenta­se nao fazé-lo , ou acredita-se nao fazé-lo - as manifestac;óes de outras culturas. Trata-se simplesmente de evitar a recusa do outro e procurar aceitá­lo como é (algo como o velho To 'er mundo e'güeno!),* mas sem o menor esfon;o para compreendé-Jo. Seja como for, ainda se atribuí a cultura esco­lar e própria urna posic;ao de supetioridade. Já nao se trata de impó-la como única, com a supressao de todas as demais, mas como necessária, ainda que possa coexistir com elas. É problema de cada um aquilo que faz na sua vida privada, mas todos devem ater-se as mesmas regras, aos mes­mas valores e significados na esfera pública. Portanto, o membro de outra cultura tem simplesmente a oportunidade de se desdobrar entre a socieda­de global e o grupo, a escoJa e a família, a esfera pública e o recluto priva­do, as leis e as cren<;:as, etc. Em seu limite máximo, essa política de toleran­cia pode incluir mecanismos ou institui<;:óes formais nas quais o grupo minoritário possa difundir e desenvolver su a próptia cultUra, como os Black

' N. de R.T "Todo mundo é bom" , no falar do sul da Espanha : refere-se a um filme de sucesso popular, do genero "camara oculta", dirigido por Manuel Surnrners ern 1982.

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studies, os estudos sobre a mulher, as associa«;éíes de defesa da cultura cigana ou as aulas complementares sobre o país e a cultura de origem para imigrantes marroquinas ou portugueses em algumas escalas espanholas.

A terceira resposta é o reconhecimento, o respeito. Implica aceitar que a cultura, independentemente de sua origem e forma, é um elemento constitutivo da identidade dos indivíduos e, portanto, deve ser respeitado. E, ao mesmo tempo, aceitar que todas as culturas, mesmo que sejam dife­rentes, contem elementos de valor, que podem coexistir urnas junto as ou­tras e que a diversidade cultural é um bem em si mesma. Mas até que ponto? Nao é a mesma coisa a ora«;ao na dire«;ao de Meca e a obriga«;ao de vestir o xador; nao é a mesma coisa a circuncisao e a abla«;ao do clitóris; nao é a mesma coisa a valoriza«;ao da virgindade pré-matrimonial e o apedrejamento por adultério, etc. Pessoalmente, sou contra todas e cada urna dessas cren«;as e práticas, mas algumas sao toleráveis e outras nao. Se o multiculturalismo é entendido nao como urna simples denomina«;ao para a coexistencia de fato de diferentes culturas, mas como urna afirma«;ao de seu igual valor e, portanto, de sua necessária autonomía total - como relativismo cultural -, acaba entrando em choque, por um lado ou por outro, com qualquer defini«;ao universalista dos direitos humanos e civis (e de suas corresponden tes obriga«;éíes).

Por onde cortar? Antes de mais nada e em primeiro lugar, distinguin­do claramente a esfera pública da esfera privada. Pode-se aceitar o véu quando é voluntário, mas nao quando é imposto; a divisao sexual do traba­lho se for livremente assumida, mas nao a desigualdade de genero nos direitos; a difusao de doutrinas sobre a desigualdade ou as diferentes fun­«;éíes de homens e mulheres, mas nao a escolariza«;ao segregada, etc. Sem dúvida, essa delimita«;ao será sempre extremamente complexa e potencial­mente conflituosa, urna tarefa de Sísifo, um conto que nunca termina. Mas o importante, pelo menos no primeiro caso, é o duplo reconhecimento de que, por um lado, a sociedade política dispoe de competencias próprias e nao tem por que se submeter ao ditame dos diferentes grupos que a cons­tituem, nem se colocar simplesmente a seu servi«;o, claudicando diante das for«;as centrífugas; por outro, as culturas nao podem ser pisoteadas, e há um espa«;o privado (nao individual, nem doméstico, mas sim privado, que também pode ser coletivo, grupal) para sua existencia e seu desenvolví­mento autónomos.

Além disso, é preciso entender que toda cultura é um conjunto de rela«;éíes de poder. O terreno percorrido pelas sociedades ocidentais- direi­tos civis, políticos e sociais - nao permite voltar atrás, nem admite exce-

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«;éíes e, por isso, quem quiser fazer parte dessas sociedades, seja como imi­grante ou como refugiado, como convertido religioso ou como dissidente político, como nacional que deseja mudá-las ou como estrangeiro que as encontra dadas, tem de admitir suas regras básicas de convivencia e as regras sobre como mudar as regras. Da perspectiva da sociedade liberal, democrática e de bem-estar ocidental (da perspectiva da proclama«;ao do indivíduo como sujeito de direitos civis, políticos e sociais), é inevitável constatar que em outras culturas existem desigualdades e rela«;éíes inter­nas de poder que foram abolidas ou enfraquecidas nela, e nao se pode esquecer que a liberdade de consciencia, a igualdade entre os sexos ou a autonomía individual sao o u devem ser direitos reconhecidos e protegidos para todos; os indivíduos, e nao apenas para os que tenham nascido no Ocidente. E impossível acreditar nos direitos humanos, na liberdade ou na igualdade sem tentar estende-los, a nao ser que se acredite que sao apenas para urna parte seleta da humanidade- a qual sempre pertence o que faz a distin«;ao -, como tantas vezes ocorreu na história (nao se esque«;a que a democracia, demokratia, e a igualdade, isonomia, foram inventadas na Grécia associadas ao escravismo, nem de que o liberalismo floresceu na Europa e na América de origem européia junto com o colonialismo e a escravidao comercial para o resto do planeta).

O respeito a outras culturas nao pode consistir em petrificá-las, em hipostasiá-las. De fato, as pretensas tentativas de mante-las impolutas, li­vres da influencia ocidental, algumas vezes levaram a refor«;ar suas desi­gualdades e sua opressao internas, ou em faze~las voltar atrás ou percorrer caminhos nao-desejados, como no caso em que os compradores europeus de peles de castor para chapéus levaram grupos de índios hortícolas a se converterem em ca«;adores, em que a indica«;ao de supostos homellS de respeito como porta-vozes e mediadores refor«;a o poder de certos caciques ciganos ou em que a introdu«;ao nas escalas laicas de professores nomea­dos pelas autoridades islámicas criam inesperadas redes de propaganda e de proselitismo integristas. As culturas mudam, nao podem deixar de mu­dar, e é de se supor que o contato com a cultura ocidental, com sua maior riqueza material, seu desenvolvimento mais amplo de oportunidades e seu ámbito mais extenso para a liberdade individual tenha efeitos corrosivos para as culturas tradicionais. Sempre foi assim em qualquer lugar do pla­neta e em qualquer momento, independentemente de processos de retro­cesso, como o do atual fundamentalismo islámico, o de certo indigenismo latino-americano que aparece e desaparece, como o Guadiana, e também o recorrente eslavismo antiocidental na Rússia, etc.

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lsso tudo nao significa que nós, ocidentais, tenhamos o direito de des­denhar as outras culturas, nem as maos livres para decidir o que mante­mos e o que tiramos delas. Sao as comunidades políticas, as Nac;óes-Esta­do, nao as culturas em si, que tem o direito de impor certas regras, já que elas mesmas sao a fonte e a garantía únicas de todo direito individual ou coletivo, mas somente as regras necessárias para a manutenc;ao da convi­vencia e da vigencia desses direitos. Além disso, a evoluc;ao de cada cultu­ra deve ser urna evoluc;ao autonoma, entendendo por autonomía nao viver em urna redoma, nem em um gueto, nem sob a protec;ao incondicional do multiculturalismo ou de algum departamento universitário de antropolo­gía, mas em permanente contato e, portanto, em intercambio com as de­mais culturas. Nesse processo, nao apenas evoluíram as culturas minoritárias ou convidadas, mas também as majoritárias ou anfitrias. É provável que a cultura ocidental, baseada no conjunto de direitos tantas vezes já mencio­nado , tenha muito a aprender com os ciganos em matéria de solidariedade intergeracional, com os árabes em matéria de caridade, com os asiáticos em matélia de autoridade, etc., isso para nao falar de sua literatura, de sua arte, de sua técnica, etc. Mas o importante nao é fazer agora um catálogo classificatólio do bom e do menos bom de cada cultura - algo que segura­mente ninguém podelia fazer, com toda certeza nao o autor destas linhas­, e sim admitir essa permeabilidade entre elas, sua possibilidade de mudan­c;a, seus conflitos internos. lsso é o interculturalismo, na falta de urna outra palavra, e desde que nao se entenda como um novo míx determinado pelos sábios, pegando um pouco aquí, um pouco ali - que seguramente acabaría em muito daqui e muito pouco dali -, que seria apenas outra forma de etnocentrismo vergonhoso.

Na confusao de neologismos em que se incorre tao facilmente no mun­do da educac;ao , mais urna vez nos debatemos entre termos que, as vezes, nao sabemos muito bem se significam a mesma coisa ou coisas diferentes: tolerancia, respeito, reconhecimento, multicultural, plurinacional, multiétni­co, pluricultural, intercultural, diversidade, necessidades especiais, plura­lismo, segregac;ao, assimilac;ao, incorporac;ao, integrac;ao, etc. Parece-me que as expressóes multiwlturalidade e interculturalismo captam, cada urna, um dos aspectos do problema, mas que nenhuma delas é capaz de captar ambos por si mesma. Multiculturalidade significa reconhecer a existencia, o valor e a autonomía das diferentes culturas existentes. Interculturalismo significa compreender que sao sistemas em processo de mudanc;a, por sua dinamica tanto interna - evolU<;ao, conflito - como externa - imitac;ao,

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competencia. Os sufixos nao sao inocentes: a multiculturalidade é urna situac;ao dada; o interculturalismo, urna visao de futuro .

Será que é preciso explicitar que nem a instituic;ao escolar, nem os professores estao, em princípio, equipados para isso? Seguramente, nao. Seguramente, é,d.esnecessário dizer que se requer urna formac;ao mais ampla e menos dogmattca dos professores, orientac;óes curriculares mais atentas a natureza mutável da sociedade, relac;óes mais fluidas e úteis entre as autolidades públicas e as minorías , etc. Ao mesmo tempo, é preciso adver­tir que ne~hum plano vindo de tima pode abarcar a potencial e imprevisí­vel d1vers1dade do ambiente e do público escolares e, por isso, os mecanis­mos de a~uste devem estar muito mais atrelados ao terreno prático, mais perto da mformac;ao e das necessidades reais: nas escalas e nos profissio­nais do ensino. Diremos algo sobre isso em um capítulo posterior.

A FORMA<;ÁO HUMANISTA NA SOCIEDADE GLOBAL

~ outra face da diversidade e da diversificac;ao interiores é o reforc;o dos vmculos e dos lac;os de dependencia exteriores: isso foi chamada de globaliza~áo. Se fizéssemos um levantamento dos objetos presentes em q~alquer casa, encontraríamos mercaderías procedentes de países muito diversos; se desmontássemos algumas dessas mercadorias, por exemplo um computador, oficialmente made em um único lugar, encontraríamos componentes procedentes de urna lista nao menos diversificada deles; se pudéssemos chegar a unidade de produc;ao de qualquer desses componen­tes, por exemplo, urna memória ou um disco rígido, encontraríamos traba­lh~dores nacionais e imigrantes de diversas origens, ou urna empresa com umdades de produc;ao espalhadas por meio mundo, ou ambas as coisas.

A circulac;ao internacional das mercadorias é a parte mais trivial e menos nova desse processo, pois desde o início da civilizac;áo conhecemos o tráfico de especiarias e de materiais preciosos (pense-se na rota da seda n~ comércio a longa distancia do sal, etc.) e até o início da industlializac;a~ nao faltaram mercaderías que circularam por todo o mundo (tecidos da Holanda, cristais da Boemia, porcelanas de Sevres, lás de Jersey, vemizes chines~s, chá do Ceilao, etc.). Também nao é novo o movimento do capital produttvo nem o do trabalho qualificado. Os capítais europeus se dirigí­raro, desde o primeiro momento, as colonias, em busca de lucros rápidos, e os artesaos e os comerciantes medievais se moviam sem muitas dificulda-

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des entre as cidades e os reinos . Outra coisa é a descentraliza~áo dos pro­cessos produtivos: urn computador norte-americano pode repartir sua pro­dw;:ao entre Massachusetts, México e Coréia do Sul; calc;:as espanholas se­rem cortadas na Galícia e costuradas no Marrocos; urn autornóvel alernao ser produzido de forma cornpartilhada na Polonia, no Brasil e na Espanha. Ou a inusitada velocidade com que o capital financeiro vai de urn lugar do mundo a outro ern busca de lucros rápidos, nao rnais saltando de urn setor de produc;:ao a outro, mas de urn produto financeiro a outro (ac;:oes, obriga­c;:oes, bónus, fundos, depósitos, etc.). Ou as novas rnigrac;:oes, novas nao por serem mais numerosas do que as do século XIX, por exemplo, mas por se dirigirem nao apenas a países de colonizac;:ao recente (como erarn os da América e da Austrália), mas tarnbém as velhas metrópoles (européias), e por nao se tratar rnais de urn trabalho altamente qualificado (corno o que já rnigrava pela Europa), mas de trabalhadores que vern dispostos a assu­rnir ernpregos pouco qualificados no local de destino (ainda que, parado­xalrnente, costurnern ser, contra outra crenc;:a rnuito difundida, dos traba­lhadores rnais qualificados no lugar de origern, justamente os que, por es­tarem nos setores rnais modernizados da economía, tern conhecimento de algumas oportunidades no exterior e podem aspirar a e las) . Assim, as es­peculac;:oes de urn operador da bolsa na Ásia podem fazer corn que evapo­rem as economías de milhares de aposentados britanicos, a instabilidade política argentina pode provocar a queda na bolsa das rnaiores empresas espanholas, e a forte demanda de telefones rnóveis pode alimentar as guenas civis na África central.

Outro ámbito da globalizac;:ao é o do rneio ambiente. As indústrias inglesas provocarn chuva ácida na Alernanha, as correntes de vento que passam por Chernobil trazern risco de cáncer ao leste espanhol, a alirnen­tac;:ao das vacas inglesas provoca um desastre ern todo o rebanho europeu, etc. Nao se trata rnais de sofisticadas especulac;:oes sobre o efeito que a batida das asas de uma borboleta pode ter no outro hernisfério, mas de algo muito rnais prosaico e evidente: a escala atingida pela explorac;:ao dos recursos naturais na produc;:ao, a intensidade alcanc;:ada pelos intercam­bios dos produtos intermediários e de consumo e a interdependencia dos produtos financeiros sao de tal monta que urna ac;:ao de determinada enti­dade em qualquer lugar do mundo pode ter conseqüencias espetaculares (boas ou más) sobre rnilhares ou rnilhoes de pessoas que nern sequer sa­biam de sua existencia nern, rnuito menos, de seu vínculo corn isso.

O terceiro grande ámbito da globalizac;:ao, rnais diretarnente relacio­nado com a educac;:ao, é, corno nao poderia deixar de ser, a cultura. Para o

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bem e para o mal. Por urn lado, as rnelhores manifestac;:oes culturais per­corrern o mundo sirnultanearnente, por meio dos rneios de cornunicac;:ao de rnassa ou incorporadas a mercaderías baratas produzidas ern série, corno livros, discos ou vídeos. Por outro lado, os produtos de baixa qualidade apoderam-se da rnaior parte do mercado: séries televisivas norte-america­nas, telenovelas caribenhas, best sellers editaríais, músicas DJ, concursos­fórmula, cinema de efeitos especiais, etc. Essa homogeneizac;:ao cultural através do mercado - isto é, da sorna de decisoes individuais - choca-se rnais ou menos diretamente como ernpenho ern reproduzir a cultura nacio­nal através do ensino - isto é, da ilustrac;:ao despótica decidida pelas auto­ridades e pela profissao. A escoJa está mal-equipada para competir nesse teneno: por _um lado, suas rotinas rnais elernentares sao particularmente tediosas e exigentes, em cornparac;:ao corn a divertida e confortável triviali­dade da televisao, videojogos e computadores; por outro, suas penosas e áridas incursoes na cultura, no sentido pleno do tenno, nada podern fazer ern face do acúrnulo de oportunidades oferecido por urn mundo globalizado.

o principal problema desse processo de globalizac;:ao nao é a rápida circulac;:ao das mercadorias, dos capitais ou, o que constituí a novidade diante dos processos anteriores, dos bits de inforrnac;:ao. O problema é que, assim como nos processos anteriores, mercadorias e capitais vao avanc;:an­do ern seu rnovirnento para as pessoas, e, todos eles, para as instituic;:oes. Tambérn os mercados nacionais foram criados antes dos Estados nacio­nais, e a soluc;:ao nao foi frear aqueles, mas sirn potencializar estes. Assisti­rnos a urna globalizac;:ao económica galopante, na qua] o comércio se de­senvolve sem outras travas a nao ser as muitas que os países ricos poem aos produtos dos países pobres, e as poucas que os países pobres podem pór a apropriac;:ao de seus recursos naturais pelos países ricos, e na qua] a emigrac;:ao ultrapassa as baneiras impostas pelas cidadelas dos ricos. Mas essa globalizac;:ao económica nao vem acornpanhada da correspondente globalizac;:ao política - ou, na visao rnais otimista, digamos que se adianta a ela, tanto que se mistura nas vidas de rnilhoes de pessoas. Os irnigrantes chegam sem direitos, os capitais se rnovirnentam sem controle, as doenc;:as se expandem gratuitamente, mas os medicamentos sao pagos, os países pobres se tomam cada vez mais pobres em termos relativos- e, em alguns casos, inclusive absolutos, etc.

A maior esperanc;:a para suprir tal defasagem é precisamente a globa­lizac;:ao cultural. A extensao da democracia representativa- inclusive quan­do oculta regimes autoritários de fato ou corruptos -, a aceitac;:ao quase universal dos direitos humanos -inclusive quando se trata de declarac;:oes

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para a platéia- nao sao produto de mecanismos políticos, mas culturais. A informa~ao instantanea sobre as condi~oes de vida, sobre as catástrofes, sobre os conflitos bélicos, sobre os confrontas civis, etc., nao faz com que todos se tornero mais conscientes de que somos parte de um só mundo e de que somos também, cada vez mais, parte de urna única ra~a e de urna única na~ao: a humanidade. 8 As recentes interven~oes humanitárias- ain­da que alguns as condenem -, as mostras de persegui~ao por toda parte dos crimes contra a humanidade, o debate sobre o perdao da dívida dos países mais pobres, sao sinais tímidos, porém inequívocos, de que se está ampliando a consciencia da necessidade de institui~oes de governo univer­sais (nao necessariamente um governo universal, mas instituic;oes de media­~ao, de arbitragem dos conflitos, de controle dos movimentos economicos, de prote~ao dos direitos humanos, de interven<;:ao em situa<;:oes de emer­gencia, etc.). As mercadorias, incluídas as mercadorias culturais, ultrapas­sam as fronteiras sem consciencia alguma, movidas pelos interesses sem contrapartida de compradores e vendedores; os imigrantes, inclusive, emi­gram por necessidade, nao por cosmopolitismo. Os direitos individuais, a solidariedade e a democracia, ao contrário, requerem consciencia; urna importante e, sem dúvida, grandiosa missao para a escola é trabalhar por essa outra globaliza~ao.

A generalidade dos critérios e dos valores sobre os quais se assentam a liberdade, a democracia e a justic;a é universalista. Já nao nos falam do povo eleito, de urna ra~a superior nem de um grupo plivilegiado, mas de direitos humanos, de igualdade entre os homens, de deuses de todos, de sujeitos autonomos por serem racionais e morais. A nao ser que se adote abettamente urna perspectiva sexista, classista, racista ou imperialista, tudo o que dizemos para sustentar a idéia da igualdade ou da dignidade de nossos concidadaos pode ser considerado válido para qualquer ser huma­no. Tudo, menos a eficácia que só pode ser garantida pelo Estado (ainda que possa também nao garantí-la: Ibn Jaldún dizia que os govemos sao necessários para resolver todas as injustic;as, menos as que eles próprios produzem). Por isso, podemos dizer que a humanidade é urna comunidade moral , mas cada Estado-Na<;:ao chega a ser urna comunidade política. A diferen~a entre urna comunidade política e urna comunidade moral é que, na primeira, existem mecanismos coercitivos para tomar efetivos os direi­tos que a própria comunidade reconhece, enquanto que, na segunda, o único mecanismo é a reciprocidade. E a reciprocidade, como se sabe, ape­nas funciona de forma aceitável nas distancias curtas, ou muito curtas.

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. Certamente, a escola nao vai criar nem substituir as institui~oes glo­bats das quats carec:mos, mas pode desempenhar um papel muito impor­tante no desenvolvtmen~o e na consolida~ao da comunidade moral que deve lutar por elas e servn-lhes de apoio, pois essa comunidade moral nao é senao a a~rega~ao de muitas consciencias morais conscientes dos que as ~ne.!: func;~o dos edu~a~ores nao é predicar nem vociferar contra a globa­hza~ao, e stU: po;enc~ahz~r os valores morais que sao necessários para corngt-la e onenta-la, 1sto e, para govemá-la coma finalidade de distribuir ~elhor seus benefícios e seus custos e proteger os mais fracos contra seus nscos.

NOTAS

l. Conu·a. a cre~c;a e_m um movimento continuado a favor da insUcu;:ao univer­sal, CUJa teona fm proporcionada pela Ilustrac;ao e cuja implementac;ao veio ~os govemos em finais do século XIX e princípios do século XX, o certo é que foram algu~as ordens religiosas, primeiro, e o movimento operário organi­zado, depms, que tomaram a iniciativa de educar os trabalhadores e as das­ses populares, com evidente apreensao de muitos ilustrados e de todos os govemos (ver Femández Enguita, 1988).

2. A es~o~arizac;ao universal constituí, junto como sistema público de saúde e 0

substdiO ao desemprego, o núcleo dos direitos humanos (o Estado de bem­e:tar), m~s .é' ao mesmo tempo, a precondic;ao para urna vigencia efetiva dos dtreltos ctVIs (o Estado liberal) e, sobretudo, políticos (o Estado democráti­co).

3. Nao q~~ro dizer com isso que se possa construir urna nac;ao com quaisquer m~tenms. Pode-se, tsto s1m, construir a partir do nada, mas 0 nada já nao existe. O que existem sao comunidades, produtos de algum poder passado ou presente, que as vezes já nao se encaixam com facilidade em outras mais am~las. Mas, como sustentava Hegel em face da essencialidade de sua épo­ca, e o Estado que faz o povo, e nao o contrário. Basta apenas olhar a volta para testemunhar isso.

4. Ag~ra qu~ f~ram reeditadas estas pérolas da pedagogía que foram as E~nclopedza Alvarez, Hemando, etc., podemos voltar a ver aquelas ilustra­c;oes que e~ g~os~as linhas compactas separavam sem remissao os países, enquanto deb~t~ lmhas pontua~as sugeriam a permeabilidade das regioes nos mapas poht1cos, ou nas qua1s estas apenas se distinguiam pelo maior ou menor número de espiguinhas ou chaminezinhas nos mapas economicos.

5. Nesse .sentido, nao há muita diferenc;a entre explicar que Deus escolheu Franco para hmpar a Espanha dos vermelhos, educar as crianc;as com urna cartilha

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chamada Eu quera ser como Stalin ou alfabetizar os campone;,e~ com urna adaptac;ao da pedagogía de Freire na qua! a "palavra geradora e Sandmo.

6. Compreendo que essa distinc;ao entre "Estado-Nac;ao" e "Nac;ao-Estado", ou a idéia de urna "nac;ao" formada por "nacionalidades", possa surpreender _o leitor nesse contexto, mas ele nao é o indicado para entrar em detalhes. F1z isso em Fernández Enguita, 2002, Capítulos IX e, principalmente, X.

7. Esse processo, sem dúvida, torna ainda mais dramático. o f.e~omen~ d.a imi­grac;ao e ajuda- apenas ajuda- a explicar tanto a contnbmc;ao do:_ 1m1gran­tes para o seu próprio isolamento como as diflculdades de, ~ntegrac;ao. escolar da segunda gerac;ao. Nesse sentido, a imigrac;ao europe~a, conceb1da, em princípio, como provisória, é um pouco distinta da amencana, mms comu­mente empreendida como definitiva. Sobre esse ponto, ver Pwre (1979) e Castles, Booth e Wallace (1984).

8. Quando Joe Luis derrotou o alemao Max Schmeling, uns ~ outros quiseram ver no combate urna !uta entre o nazismo e o mundo hvre, entre a rac;a ariana e a rac;a negra. Após essa vitória, o jornalista Jimmy Can~,on escreveu com acerto: "Luis é um orgulho para su a rac;a ... a rac;a humana ·

4 Encontros e Desencontros

Família-Escola

Se nao me falha a memóría, foi Octavio Paz quem dísse que a história da Espanha e da América era a de um encontro, um desencontro e um reencontro. A seqüencía é particularmente sugestiva para a escoJa, pois a semelhan<;a entre a educa<;ao (dos indivíduos) e a civiliza<;ao (das socieda­des) nao é absolutamente nova. A descoberta da América pelos espanhóis e a coloniza<;ao européia da África subsaariana e dos mares do Su! alimenta­ram urna idéia da evolu<;ao da humanidade, da barbárie a civiliza<;ao, que logo se projetaria sobre a escoJa. Segundo Hegel, a crian<;a deve percorrer em sua educa<;ao as diferentes fases seguidas pela humanidade em seu processo de civiliza<;ao. A ontogenese- o desenvolvimento do indivíduo -, diríamos boje, deve seguir os passos da filogenese - o desenvolvimento da espécie. O Emílio de Rousseau nao era senao a transposi<;ao do bom selva­gem, conduzido suavemente por seu mentor a maturidade, isto é, a civili­za<;ao.1

O período de expansao da escolariza<;ao foi e ainda é um pouco como a conquista da América. Também se disse sobre o encontro entre os dois mundos que foi antes um encontrao, e o mesmo se poderia dizer da escolari­za<;ao: famílias carentes de educa<;ao em vez de índios alheios a civiliza<;ao, aldeias e bairros de absor<;ao em vez de assentamentos, professores em vez de missionários, escolas em vez de igrejas ou missoes, a letra - que com sangue entra - em vez da cruz - mas, geralmente, misturada com ela -, a

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obrigatoriedade escolar em vez do rep~r~imiento : da e_ncomienda, etc.* ~s famílias por um lado, nao podiam reststn- a essa mvasao e, por outro, nao viam p;r que fazé-lo, dado que, ao fim e ao cabo, t~mbém abría para seus filhos um mundo de oportunidades inéditas e promtssoras_ Na melhor das hipóteses, a generalizac;ao da escolaridade. pós a instituic;~o em contato com urna infinidad e de famílias diferentes, sttuadas e percebtdas por .ar_n.bas as partes em um escalao abaixo daquela na escala da cultura: da ctvthza­c;ao, da modemidade e do progresso. Ao mesmo tempo, po.rem, a escola pressupunha a família, contava com_ ela com? ~ase de apo10, emb~r~ os professores, em seu ambito de atuac;ao, substttmssem com plenos dtrettos

os país (in loco parentis). . Tudo isso mudou de forma radical. A família já nao se encontra mms

no lugar designado ou, pelo menos, já nao é a mesma família, :om as mesmas possibilidades e funcionalidades de antes do ponto de vt.sta .da escala. Isso supoe um deslocamento da família para a esc~la: en:_ pnmetro lugar, das func;oes de custódia e, e m segundo, l.u~~r, ~a soCl.ahzac;ao e~ .sua forma mais elementar. Por outro lado, a famthap nao acetta com facthda­de urna posic;ao de subordinac;ao obsequiosa perante os professores, o que gera um terceiro problema: o de quem controla quem. Vamos por partes.

COMUNIDADE, FAMÍLIA E CUSTÓDIA: O ADEUS A TRADI<;ÁO

As criaw;as adoram ir durante as férias para vilarejos, pois para elas esse é um espac;o no qual podem mover-se livremente, .sem se verem fecha­das nas escalas _ sao férias - nem em suas casas - a vtda se faz na rua. Os pais, embora talvez preferissem o Caribe - sem filhos -, também, po~s o tamanho pequeno do local, o fato de todo mundo se conhec~r ~ a p~ova~el inflac;ao de parentes adultos em casa permitem urna socmhzac;ao nao­institucionalizada dos cidadaos infantis: dao de comer a eles nas horas certas _ ou nem sequer isso - e deixam-nos soltos o resto do dia. Essas férias retro, tao pouco atratívas em muitos outros a~pectos, t~n:· a ~~rte as várias func;oes,z a espetacular virtude de reproduztr as .condtc;oes J.a .desa­parecidas de socializac;ao e controle das crianc;as na soctedade trad1cwnal.

'N. de T. Repartimiento: sistema mediante o qual se repartía um determin~do número de índios entre os colonizadores espanhóis. A atribuíc;ii.o era fe1ta em encomtenda, o u seJa, em urna rela<;ii.o de encomenaación ou patrocínio, pela qual os índios ficavam deve~do obe­diencia ao encomendero. Diccionario de la Lengua Española. Real Academia Espanola.

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Por um lado, urna comunidade pequena, na qua! todos se conhecem direta ou indiretamente ao longo de gerac;oes - toda pessoa é o filho de ... - e sabem a que família pertence cada crian~a, permite um controle difuso de todas as criam;:as por toda a gerac;ao adulta. Além disso, os limites sao reduzidos e acessíveis, nao há estranhos, os veículos motorizados nao tem alternativa a nao ser andar devagar; etc. Por outro lado, numa família ex­tensa na qual se reúnem várias gerac;oes de adultos e ramos contemporane­os do mesmo tronco que no resto do ano vivem separadas, os jovens tam­bém estao livres de escala e trabalho e podem cooperar em algumas tarefas domésticas - deveríamos dizer as jovens -, os rapazes adultos estao em casa ou perto dela - como no tempo em que iam apenas até a horta ou a pequena oficina artesanal-, etc. Nesse ambiente, o controle das crianc;as e dos adolescentes é urna carga relativamente leve e compartilhada.

Para o bem e para o mal, essa forma de vida tradicional se foi para nao voltar, embora reaparec;a de maneira folclórica nas férias. Praticamente, nao existem mais famílias extensas, com mais de dois adultos (avós, ir­maos ou primos dos pais, etc.), com um rosário de irmaos entre os quais os maiores cuidam dos menores e com urna mae permanentemente em casa, a par de tudo. Em lugar disso, ternos famílias nucleares, sem mais adultos que o casal de progenitores, ou talvez com apenas um deles (geralmente a mae, embora hoje as famílias com pai e filhos sejam as que crescem mais rapidamente), nas quais todos tem um emprego remunerado fora de casa, ainda que em tempo parcial e com urna média de menos de dois filhos, isto é, a maioria com um ou dois filhos - e, mesmo nesse caso ou no caso de ter mais, com idades tao próximas que nenhum está em condic;oes de cuidar de outro. A mudanc;a mais importante, sem dúvida, é a ida da mulher para o mercado de trabalho, mesmo quando isso acorre em condic;oes precárias ou em tempo parcial. O próprio magistério, com seu notável nível de feminizac;ao, é o melhor testemunho disso, mas as professoras nao deve­riam esquecer-se de que nem todas as mulheres conseguem trabalhos de jornadas curtas e férias langas e, menos ainda, que coincidam exatamente com os horários e calendários escolares de seus filhos.

Por outro lado, também desapareceram as pequenas comunidades tra­dicionais (aldeias, vilarejos, inclusive bairros urbanos nos quais as mesmas famílias viviam por várias gerac;oes), nas quais o conhecimento era geral e as crianc;as podiam sentir-se protegidas- e controladas- por todos os adul­tos. Elas foram "varridas" do mapa pelas grandes cidades, nas quais ninguém conhece riinguém, primeiro pelo número de pessoas e, segundo, pela intensa mobilidade geográfica, social e profissional, o que constituí um obstáculo

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a mais para as relat;ües entre os vizinhos, que podem nao ter em comum nada além da residencia -, tanto ínter como intrageracional. Ela trouxe consigo as vantagens da densidade demográfica, a multiplicat;ao das opt;ües e das oportunidades, a liberdade do anonimato, mas também a ausencia de regras, o risco, a violencia, etc. Para as famílias com filhos, a rua deixa de ser a extensao da casa para se converter em um lugar mais temido do que qualquer outra coisa.

Nao estou lamentando nada, nem mesmo sugerindo que qualquer tempo passado tenha sido melhor. Poderíamos fazer urna extensa lista das vantagens trazidas por essa evolut;ao: maior liberdade pessoal, maior diversidad e social, maior riqueza cultural, desaparecimento do angustian te controle das pequenas comunidades, emancipat;ao progressiva da mu­lher, etc. Mas também é evidente que a custódia das criant;as, antes assu­mida sem problemas pelos muitos parentes e pela pequena comunidade, e que nao era um problema, passou a ser a grande preocupat;ao de mui­tas famílias. Cidades inacessíveis e hostis e habita<;oes exíguas já sao par­te do problema, pelo menos tanto como parte da solut;ao. Nessas circuns­tancias, a sociedade se volta para o que tem mais a mao, e em particular para essa institui<;ao mais próxima a medida das criant;as, muitas vezes ajardinada e que dispoe de um quadro de pessoal profissionalizado na educat;ao: a escola.

Ainda que sejam freqüentes entre os professores as críticas a "transfe­rencia" de responsabilidades por parte da família ( querem ficar livres das criant;as o maior tempo possível; veem na escola urna creche ou um alber­gue; etc.), nao há nada de surpreendente nesse processo. Trata-se, em que pese a redundancia, de urna socializat;ao da custódia análoga a de qual­quer outra atividade para a cobertura de nossas necessidades. As residen­cias sao cada vez menos auto-suficientes, e todos consumimos o que nao produzimos e produzimos o que nao consumimos, como cabe a urna socie­dade baseada no intercambio. Além disso, a maior parte do que produzi­mos é feíto em cooperat;ao, o que gera significativas economías de escala e garante certa normalizat;ao, isto é, certa qualídade. Confia-se (em parte) a custódia a escola como se confía a produt;ao do pao ao padeiro, a do leite ao leiteiro, etc. Seria simplesmente impensável as mulheres saírem para a esfera pública (ou aos homens, se já nao tivessem deixado as mulheres para trás) sem essa socializat;ao, isto é, sem essa maneira coletiva de assu­mir a custódia. Hoje, a escola complementa a família como fazia antes a pequena comunidade a sua volta.

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Lamentar-se por tal deslocamento das funt;5es de custódia das crian­t;as para a escola é um absurdo. Se os pais tivessem mais tempo para estar com seus filhos a todo momento, muitos deles poderiam simplesmente dispensar a institui<;ao e os que trabalham neJa. Nao é tanta nem tao óbvia a superioridade dos professores em relat;ao as famílias quando se trata da educat;ao infantil e fundamental. É certo que já proliferam os movimentos desescolarizadores, ou por urna educat;ao sem escolas, em que basta, por exemplo, o acordo de cinco famílias afins e com filhos da mesma idade para substituir por turnos a escoJa, com vantagens evidentes e com des­vantagens nao tao evidentes. A escolarizat;ao é um todo que compreende, além do ensino, a custódia e outras funt;5es, que antes nunca tinham sido oferecidas separadamente. De fato, quando os professores reclamam o apoio do público geral ou de sua clientela particular para obter das administra­t;5es meios que, ao mesmo tempo, signifiquem melhorias de suas perspec­tivas profissionais (a ampliat;ao da escolaridade obrigatória ou de oferta assegurada, a cria<;ao ou o financiamento de mais classes, etc.), nao en­tram nessas considerat;5es, que só vem posteriormente, depois de terem conseguido tudo o que queriam. A questao é, simplesmente, estudar como combinar ensino e custódia, assegurando que ambos sejam formativos.

A SOCIALIZA~O DA SOCIALIZA~ÁO E O IMPERIALISMO ESCOLAR3

A crise da família e da comunidade como instituit;oes de custódia é também, em parte, sua crise como instituit;5es socializadoras. E aquí con­fluem outros processos similares, como os que afetam a aprendizagem e a religiao. Em todos os casos, instituit;oes que antes compartilhavam a socia­lizat;ao (a domesticat;ao, o disciplinamento e a moralizat;ao, para ser mais preciso) das criant;as, agora desaparecem, retraem-se, inibem-se ou, sim­plesmente, perdem a eficácia a esse respeito, fazendo com que aumentem, por mera exclusao, a necessidade e a carga relativas a escola.

A aprendizagem dos ofícios desaparecen na prática. Quando urna pro­port;ao significativa de famílias vi vi a e m economías de subsistencia e como parte do campesinato) ou do trabalho por conta própria (campesinato, artesanato, pequeno comércio), quando a lei permitía urna incorporat;ao mais precoce ao trabalho assalariado, a escolarizat;ao era menos difundi­da, e diversos grupos ocupacionais controlavam as condit;oes de acesso ao ofício o u a profissao. Em funt;ao disso, os adolescentes e os jovens logo se

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convertiam em aprendizes, ajudantes, assistentes, pagens, auxiliares de comércio, mensageiros e similares (ou em ajudas familiares), permanecen­do sob urna tutela difusa dos trabalhadores adultos. Os estatutos de apren­dizes refletiam muito bem essa rela~ao dual: transmissao das qualifica­~oes, por um lado, e forma~ao moral, por outro (e, em troca disso, o apren­diz trabalhava de gra~a. ou quase, e servía o mestre).4 Hoje, o trabalho por conta própria é minoritário e, em urna elevada propor~ao, profissional (o que excluí a incorpora~ao a ele se nao se possui um diploma superior); as empresas familiares sao poucas e, muitas vezes, seus proprietários nao querem ser sucedidos por seus filhos, ou, entao, sao estes que nao o dese­jam; de maneira geral, os gremios perderam o controle sobre a forma~ao e o acesso aos ofícios. A forma~ao profissional hoje tem sua sede no sistema educacional formal. 5

Algreja passou de urna forte integra~ao a urna rela~ao superficial com a comunidade local e de um lugar principal a um papel secundário na socializa~ao de crian~as e adultos. Se preserva um peso significativo é, em boa medida, pela escola e através dela, pela capacidade desta de promover e de manter centros privados, por seus privilégios nos públicos e por sua influencia sobre o magistério. É a religiao que está em dívida com a escolariza~ao, e nao o contrário. As práticas e as cren~as religiosas foram privatizadas e amenizadas, passando de urna submissao a um poder onipo­tente (o temor a Deus) a urna simples sublima~ao da moral. Embora eu nao alimente a menor dúvida de que ganhamos muito mais do que perdemos (e assim continuará sendo) com a seculariza~ao da sociedade, urna das coisas perdidas, para nao mais voltar, é esse comodo mecanismo vigilante do Deus onipresente que ve tudo e castiga quase tudo, 6 insubstituível para conseguir um comportamento conforme as normas na clandestinidade (a solidao), em todo caso, e no anonimato da grande cidade, tanto mais a medida que a comunidade difusa nao cumpre essa fun~ao.

A escala, por sua vez, também mudou. Se antes ocupava apenas um lugar discreto na vida das pessoas ( 4 a 6 anos para a maioria, menos o u nada para muitos, e mais do que isso apenas para alguns poucos encami­nhados as profissoes liberais e burocráticas), passou a absorver pratica­mente a infancia, a adolescencia e boa parte dajuventude; 10 anos obriga­tórios por lei (fundamental e ensino médio), mais S ou 6 anos obrigatórios de fato (infantil e médio superior).· É desnecessário dizer que es se tempo a

'N. de R. Dados referentes a realidad e da Espanha.

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mais na escola é tempo a menos na família, na comunidade e no trabalho o ~ue, por si só, já justifica um papel maior da escola na moraliza~ao da~ cnan~as .

. Assim, progressivamente, a escala varreu todas as institui~oes extra­fami~Iares antes encarregadas da socializa~ao da infáncia, da adolescencia e da J~Vent~de e foi acua~do a própria família. É importante assinalar que os ~atores znteressados msso foram os professores, que viram na expansao ~o ~1ste~a educacional formal e informal urna fonte de oportunidades pro­flsswnais. A esc~lariza~ao, ,e ainda mais a pública, foi sempre apresentada como a alternativa necessaria a doutrina~ao religiosa, a urna aprendiza­~em s~postamente ineficaz e limitada pelo conservadmismo dos gremios e as desigualdades sociais e culturais de origem. Mas tais demandas eram a presentadas como se bastasse pedir e obter mais (mais tempo de escolari­dade e para mais gente) para chegar a solu~ao de todos os males, enguan­to agora se reclamam meios adicionais para que nao sejam alteradas as velhas condi~6es de trabalho (a velhafalta de recursos).

A escoJa é a primeira institui~éio pública (pública versus doméstica seja estatal ou privada) a qua! as crian~as tem acesso de modo sistemátic~ e prolongado. I_ss?, ~or si só, indica-a como o lugar de aprendizagem de formas de COnVIVencia que nao cabe aprender na família, na qua! elas sao estrutura~as pelos la~os de afeto e de dependencia pesso_al. A família pode educar eficazmente para a convivencia doméstica, mas é constitucional­mente incapaz de faze-lo para a convivencia civil, visto que nao pode ofe­recer um marco de experiencia. Nisso, pode cooperar com a escola mas nao pode entregar-lhe o trabalho feíto. No mais, a escola pode con~tatar que a sociedade mais ampla e sua própria lógica institucional empurram­na em d!re~oes distintas as da família, ou as de algumas famílias, inclusive :m t_errenos nos quais a socializa~ao doméstica é eficaz (por exemplo, no amb1to das rela~6es de genero, no qua! aquela tende a ser mais igualitária do que esta).

_ Além di~so, ~ escola é, para a maioria, o primeiro lugar de aproxima­~ao com a dzverszdade existente e crescente na sociedade global. Nela a cr~an~a é levada a conviver de forma sistemática com crian~as de outras ongens, ra~as, culturas, classes e capacidades comas quais, fora da escola, tem urna rela~ao nula ou restrita- algo que inclusive se aplica, em muitos casos, a alunos de outro sexo e de outros grupos etários. Embora 0 respeito para com o outro ou a igualdade de direitos de todos os cidadaos possam ser pregados pela família, de maneira alguma podem ter nela a materiali-

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dade prática e continuada que encontram na escola. Essa experiencia, es­sencial para a convivencia civilizada, nao pode ser oferecida pela família, pois é exatamente o contrário desta: a convivencia buscada, criada, cons­ciente, com os outros, em oposic;ao a comunidade natural com os nossos.

A escola é, ao mesmo tempo, a primeira experiencia com a coerféíO e coma autoridade impessoais. Nao falo da clássica denúncia da "escola-pri­sao", "escola-quartel" ou "escola-jaula", mas da autoridade e da coen;ao necessárias e inevitáveis que toda sociedade exerce sobre todos seus mem­bros, ao exigir que se adaptem a normas de convivencia independente­mente de suas afinidades e de sua fobias. O reverso disso é que a atitude do indivíduo em face da autoridade tende a ser menos efetiva e tradicional e mais instrumental (relac;ao meios-fins) e racional (cálculo custo-benefí­cio) do que no contexto familiar, como possível questionamento aberto da autoridade do professor e das exigencias da instituir;ao, aberto a qualquer tipo de manifestac;ao, ainda que nao necessariamente atentatória contra a convivencia.

A principal funféÍO da es cola nunca foi ensinar, mas si m educar. Para o bem ou para o mal, o objetivo da instituir;ao escolar, como de qualquer forma de educac;ao, sempre foi mais o de modelar a conduta, as atitudes, as disposic;oes, etc., do que o conhecimento teórico ou as atividades práti­cas. Algumas vezes de maneira explícita e outras de maneira implícita (me­diante as atitudes e as práticas associadas a aquisir;ao de saberes e destre­zas), a escola sempre serviu para formar súditos ou cidadaos, trabalhado­res subordinados ou profissionais autonomos, mentes submissas ou críti­cas, etc. De fato, professores de nível fundamental e médio sempre reivin­dicaram seu papel de educadores em oposir;ao ao de simples professores,* mas só agora, pela primeira vez, podemos encontrar o oposto ("Sou um geógrafo, nao um trabalhador social"). Essa é a idéia latente por trás das fórmulas tao velhas, como educaféío integral, multilateral, completa, etc., de que o indivíduo é um todo, e a escola nao pode pretender ocupar-se apenas de urna parte.

A socializaféío da socializaféÍO (a coletivizar;ao da educac;ao, para en­tendermos) que supoe o papel crescente da escola em face da família e da comunidade e o caráter peremptório das demandas dirigidas aquela nao sao mais do que outro aspecto da socializar;ao galopante da vida. Depen-

'N. de T. No original em espanhol, o termo é enseñantes, de enseñar (ensinar).

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de-se mais das es colas para a educar;ao da infancia e da juventude como se depende mais dos hospitais para atender aos doentes, dos asilos para aten­der aos idosos, da polícia e do judf.ciário para a manutenr;ao da ordem social ou do mercado e do Estado para a provisao de bens e de servir;os. Ocorre coma educac;ao o mesmo que coma comida, mas ao contrário: esta nós compramos semipronta no comércio e acabamos de faze-la em casa; aquela enviamos com metade por fazer a escoJa. Nesse contexto, a velha crítica de que as famílias nao se interessam pela educar;ao nao faz o menor sentido (como afirmac;ao generalizada).

Ao prolongar-se a escolaridade obrigatória, os professores de ensino médio (e, em particular, os de bachillerato)' recebem em massa alunos que antes estava!ll fora da escola (ou na formac;ao profissional), e o magistério tem de lidar com alguns al unos de idade cada vez mais avanc;ada. Ao mes­mo tempo, a crescente sensibilidade social com respeito as condic;oes da escolarizar;ao, aos direitos e ámbitos da liberdade das crianr;as, etc., leva a urna limitac;ao da autoridade dos professores de todos os níveis, dos funcio­nários e dos profissionais em todos os ámbitos - mas, perante as crianr;as, tudo parece permitido -, ao mesmo tempo em que a retrac;ao de outras instancias de socializac;ao e controle de crianr;as, adolescentes e jovens e as carencias da família possibilitam que os alunos cheguem as salas de aula, por assim dizer, mais domesticados. O crescente alarme sobre a violencia nas salas de aula, ou nas relar;oes com os país, nao passa de urna injustificada e injustificável tempestade em copo d'água, alimentada pelo mal-estar ge­neralizado dos professores e pela avidez de acontecimentos que os direto­res de escolas insistem em dar importancia exagerada o u apresentam como sinal dos tempos que nao pass a de casos excepcionais. 7 Contudo, continua em pé o fato de que, ao mesmo tempo em que se limita e se circunscreve a autoridade dos professores perante os alunos, a diversificac;ao destes colo­ca novos problemas, entre eles alguns de convivencia e disciplina.

Nessas circunstancias, nao creio que tenha sentido ficar se perguntan­do sobre se os pais abdicaram de controlar a conduta de seus filhos ou se foram os professores que fizeram isso, se as famílias exigem demais da escoJa ou se é esta que oferece muito pouco, e assim sucessivamente. O que importa é compreender que a família e a escoJa ficaram sozinhas nessa tarefa, que nenhuma outra instituir;ao virá nem pode vir socorr~-las, a nao

'N. de R.T. Na Espanha, o bachillerato é urna modalidade de ensino de nível médio, poste­rior ao ensino médio. Sua dura<;iio é de dois anos.

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ser em fun<;oes secundárias e que, portanto, cabe a elas buscar urna nova divisao de tarefas adequada, suficiente e eficaz.

A DERROCADA DA HIERARQUIA ESCOLA-FAMÍLIA

A redistribui<;ao das fun<;oes de custódia e de socializa<;ao e controle soma-se a mudan<;a nas posi<;oes relativas de família e escola, pais e pro­fessores. Quando já parecía que a escolariza<;ao fundamental era parte in­dispensável da própria vida, tao inevitável, como se costuma dizer, como sao apenas os impostos e a morte; quanJo já parecia que o conjunto da popula<;ao nao precisava ser convencido ou for<;ado a recorrer a escola, mas que ele próprio reivindica va isso e nao podia pensar de outro modo (a escolariza<;ao como direito e, em consonancia com isso, como demanda), constatou-se que nao, que alguns grupos nao-incorporados ou incorpora­dos de forma tardía, de má vontade e de maneira inadequada, podem ser suficientes para romper a aparente calma. É o caso, sem ir mais longe, de imp01tantes grupos de ciganos que foram embutidos nas salas de aula por pressao dos trabalhadores sociais, das políticas de erradica<;ao da miséria social e dos subsídios mínimos de integra<;ao, os quais costumam exigir a escolariza<;ao das crian<;as em troca de seus servi<;os e transferencias aos adultos; e também o de alguns grupos de imigrantes procedentes das zo­nas rurais e dos bolsoes de pobreza pouco modernizados. Quando a esco­lariza<;ao era apenas nominalmente universal, a desescolariza<;ao de fato e o absenteísmo eram a válvula de escape que livrava a escola da pressao interna dos grupos mais resistentes. Quando a universalidade se tomou efetiva, problemas que antes estavam fora das salas de aula passaram a estar dentro . Nao quero dizer que se deveria prolongar a situa<;ao anterior, com grupos excluídos ou segregados de fato como houve até os anos 80, embora talvez se devesse ter abordado sua incorpora<;ao de outro modo, buscando um maior consenso de suas famílias e de suas comunidades.8

Quero dizer apenas que o problema está aí, sornando-se a outros que a institui<;ao enfrenta.

No outro extremo, no qua! o professor encontrava típicamente pais e maes com um nível académico e profissional muito inferior ao seu, sempre dispostos a aceitar sua autoridade como legítima e indiscutível, apoiada em sua condi<;ao de funcionário público ou eclesiástico e em sua qualifica­<;ao profissional, agora encontrou todo tipo de interlocutores, entre eles

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muitos com níveis académicos iguais ou superiores aos seus, sempre dispos­tos a conceder um período de gra<;a, mas nunca um cheque em branco ao e?uca~or. Sua palavra já nao é urna revela<;ao, suas decisoes podem ser dtscuttdas, sua capacidade e seu desempenho profissional chegam a ser ques~10nados. Em poucas palavras, o status- ou, se preferirem, 0 prestígio _ relattvo do professor, sobretudo do ensino fundamental , perante seu públi­co, de_tenorou-se, e nao po_rque sua fonna<;ao tenha piorado, mas sim por­que nao melhorou, em me10 de um processo de democratiza<;ao do acesso a o ensino universitário. E isso a pesar das melhorias enormes na remunera­<;ao e nas condi<;6es de trabalho nos tres últimos decenios.

No e_r:sino médio, com a universaliza~ao (particularmente agora, com a Educa_cw~ . Secundari~ Obligatoria, embora a implanta~ao do EGB. já tenha s~gntftca~o ~ ~mversaliza<;ao do que em muitos outros países _ seus dms, ou tres ult1mos anos - tenha sido considerado nível médio) chegam as salas de aula alunos que já nao sao incondicionais e mais freqüentemente do que o desejável nao muito convencidos da co~venien­cia de fic~r tanto te~~o na escola, ou pelo menos nesse tipo de escola academtc!sta e de utthdade duvidosa ou pouco visível para eles; nesses g!upos, sao ~omuns os chamados opositores escolares (um qualificativo tao t~ndencw_so _como engenhoso, pois esquece o quanto é freqüente, ta~be~, a obje~ao escolar- essa sim imprevista- entre os professores). Alem dtsso, urna parte desse público, ao atingir a maioridade, já vem só, sem parentes a quem os professores possam recorrer para pedir ajuda toda vez que algo escapa a seu controle. Tudo o que acontece com os professores de ensino médio já tinha acontecido antes com os de ensino fundame~tal, mas certamente o desinteresse dos alunos pela escola eres­ce coma tdade, como cresce também a difículdade de mante-los sob con­trole nessas circunstancias.

. Em ~m ambito ~ais propriamente político, a transi<;ao espanhola da dttadura a democracia trouxe consigo importantes mudan~as nas rela~6es entre a profissao e seu público. Do dever de oferecer, por parte da adminis­tra~ao, das institui~o:s dos profissionais, e do direito a recebet; por parte dos a!unos, Uffi serv1~0, paSSOU-Se a idéia do direito de todos OS setores envolvidos de participar na gestao do sistema e das escolas. Embora em

·N. de T. EGB: Educación General Básica.

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princípio todos parecessem estar de acordo quanto a essa proposta de co­gestao, o que permitiu que fosse incluída na Constitui<;ao Espanhola de 1978 e em urna série de leis organicas posteriores, logo se viu que nao era essa a idéia que os professores tinham sobre quem deveria gerir as escolas nem sobre quais deveriam ser suas rela¡;oes com os alunos e com os país. Desde entao, ternos assistido a um progressivo afastamento dos professo­res dos conselhos escolares e a um empenho sistemático em burocratizá­los, convertendo-os, em vez de órgaos de gestao colegiada e bipartida pro­fissao-público, em meras instancias de controle pro forma das decisoes que sa(} tomadas na assembléia de professores e - menos - pela direc;ao, mas também em instrumentos para a mobiliza¡;ao ocasional dos pais em apoio as decisoes e as reivindica¡;oes dos professores. E, como conseqüéncia, te­rnos presenciado também um progressivo desencanto de pais e al unos com quaisquer mecanismos de participa<;ao. 9 Isso, no entanto, nos leva a recon­siderar a fundo a organizac;ao escolar e suas relac;oes com o meio, assim como a dinamica da profissao docente, que trataremos mais detalhada­mente em capítulos posteriores.

NOTAS

l. Ele, porque a boa selvagem Sophie é mantida e confinada em seu jardim, na natureza (bela e ingenua, naturalmente). A cadeia dualista cultura/nature­za, civilizado/ selvagem, homem/ crian<;a, acrescenta-se outro par: masculi­no/feminino.

2. Miguel Delibes atribuí a elas, por exemplo, a de permitir mostrar aos campo­neses ou fazé-los pensar na quantidade de dinheiro que urna pessoa ganhou desde que deixou o pueblo (La hoje roja).

3. Este item é urna versiio modificada de urna parte de Fernández Enguita, 200la.

4. A aprendizagem também cumpria outra fun<;iio: retardar a incorpora<;iio a condi<;iio de oficial e, sobretudo, de mestre artesiio, mantendo assim urna escassez artificial e, com isso, condi<;6es de vida e de trabalho amea~adas pela concorrencia.

5. Contudo, ainda subsistem formas e vestígios da aprendizagem, paradoxal­mente informais, na indústria (como a simples designa<;iio do novo trabalha­dor a tutela e a supervisiio de outro mais velho e experiente), e formais em algumas profissoes (como o sistema de médicos internos e residentes). Mas pressupoem um diploma escolar, ocorrem em urna idade mais avan<;ada e nao incluem urna dimensao moral.

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6. Recorde-se a inefável imagem daquele triángulo com olho- ou invertido­colocado em urna árvore para repreender por seus pecados Caim, Saulo ou quem incorresse em falta.

7. Dá-se urna importáncia exagerada a qualquer incidente em que a vítima seja um professor e minimizam-se ou ignoram-se aqueles em que vítima e agressor sao alunos (isso para nao falar daqueles em que o agressor é o professor). Contudo, antes de provocar um professor, um aluno normal­mente treinou vigorosamente com seus colegas. Deste pó, aquele lodo.

8. Analisei detidamente a escolariza<;iio dos ciganos em Femández Enguita, 1999. 9. Ver Fernández Enguita, 1993.

5 Educa~óo e Justi~a Social

A expansao da escola e dos programas e as políticas educacionais sem­pre estiveram estreitamente ligadas a demanda de igualdade social. Embo­ra nao seja difícil encontrar diversas variantes de um discurso legitimador das diferen~as mediante a educa~ao (por exemplo, na defesa de urna edu­ca~ao elitista por parte de personagens tao distintos como Voltaire, Nietzsche ou Jensen), o discurso dominante sobre a educa~ao- pelo menos o discur­so público, pois outra coisa sao os raciocínios e os cálculos privados- sem­pre esteve impregnado pela idéia de que a educa~ao deveria ser urna mani­festa~ao e um instrumento da igualdade social. Manifesta~ao da igualdade por ser ela própria distribuída de maneira-igual, e instrumento para sua consecu~ao por ser considerada um dos principais determinantes das opor­tunidades sociais e, sobretudo, económicas das pessoas.

Tal vincula~ao, contudo, ainda que onipresente, recorrente e até ob­sessiva, nao se pode dizer que alguma vez tenha sido clara nem em seu ambito, nem em seus objetivos, nem em seus métodos. Em seu ambito, porque foi variando o coletivo considerado com direito a um tratamento igual; em seus objetivos, porque oscilou entre a igualdade de oportunida­des e a igualdade de resultados e colocou-se metas mutáveis, em geral crescentes, mas nao sem vacila~oes, resistencias ou retrocessos; em seus métodos, porque passou por políticas segregadoras, uniformes, compensa­tórias e diferenciadoras, mais ou menos nessa seqüencia.

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DESIGUALDADE SOCIAL E IGUALDADE TERRITORIAL

Na primeira fase da expansao da escola, determinou-se que diferentes grupos sociais deviam receber diferentes tipos de educa<;ao, ou que uns deviam recebé-la e outros nao. Voltaire, o príncipe da luz, nao vacilou em protestar contra os freres des petites écoles que alfabetizavam alguns po­bres, o que considerava um perigo, e Rousseau, o des~,:obridor da especifici­dade da infancia e inspirador da pedagogía moderna, nao levou suas preo­cupa<;é:ies com a educa<;ao além dos limites da pequena nobreza. Os mes­mos autores e outros ainda poderiam ser invocados como defensores da nao-educa<;ao ou de urna educa<;ao plenamente distinta, e claramente in­ferior para a mulher. Nos povos colonizados e em outros considerados in­feriores ou primitivos nem sequer pensaram, mas fez isso por eles, mais de um século depois, Jules Feny, o criador de l'école unique para a metrópole, que sempre afirmou que os direitos humanos- e, com maior razao, os civis e os políticos - nao eram feítos para as colonias.

Depois viria o estabelecimento de urna dupla rede separada entre as duas divisé:ies mencionadas: ricos e pobres, homens e mulheres, maioria e minorías (nas colonias, numericamente, seria o oposto: minoría e maio­ria). As classes populares foram confinadas as escolas elementares, popu­lares, petites écoles, escolas alemds (como eram chamadas na Itália renascentista), enquanto os setores favorecidos iam para os ginásios, para os liceus ou para os institutos. Essa divisao entre dois sistemas indepen­dentes se converteu mais tarde em um ensino médio bifurcado: Centres d'En.seignement Technique em oposi<;ao a Lycées, Hauptschulen em oposi<;ao a Gymnasia, secondary modern em oposi<;ao a grammar schools, continua­~ao de estudos o u forma<;ao profissional em oposi<;ao a bacharelato, e assim sucessivamente. As mulheres foram escolarizadas separadamente, em cen­tros específicos nos quais a quantidade e a densidade da popula<;ao toma­va isso possível ou, onde nao era, em grupos específicos dentro da mesma escola, e apenas nos mesmos grupos que os homens quando nao havia outra forma a nao ser esta (em pequenas escolas rurais, se possível a cargo de professoras, enquanto os professores se ocupavam dos alunos, e sempre com um programa de estudos formal e informalmente diferenciados). As minorías, enfim, foram escolarizadas separadamente, em alguns casos em urna rede completamente segregada, com planos de estudo próprios e pro­fessores de seu grupo social (como se fez com os negros nos Estados Uni­dos), o que devia ser entendido como urna mensagem em si mesma sobre

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sua segrega<;ao, e em outros casos sob os planos e a batuta dos agentes do grupo dominante (como nas escolas-ponte para os ciganos espanhóis), o que devia ser lido como urna mensagem de assimila<;ao.

Essa aceita<;ao de urna hierarquia escolar, que mais ou menos corresponde a hierarquia economica, social e política (mas sem se esque­cer de que a escola é hoje, como a Igreja foi ontem, a única fonte de mobi­lidade social de alguns setores, enquanto que para outros é um acréscimo, um acompanhamento e urna fonte de legitimidade), era compatível com demandas igualitárias de caráter territorial. Demandas, por exemplo, de equipara<;ao das províncias com a capital, das regié:ies mais atrasadas com as mais avan<;adas, do interior pobre com a periferia próspera ou do cam­po com a cidade. Durante muito tempo, as desigualdades em matéria esco­lar identificaram-se em grande medida com as desigualdades tenitoriais -entre outras coisas, porque havia urna segrega<;ao residencial entre as das­se sociais mais onipresente e visível, e porque a escassa informa<;ao admi­nistrativa disponível era apenas territorial - e, por isso, as propostas se limitavam a dotar por igual as províncias, as cidades ou as aldeias (um instituto em cada capital de província, urna escala em cada pueblo, etc.). As políticas igualitárias, seja como for, apresentavam-se como um proble­ma de provisao de infra-estruturas públicas: ande havia ou nao escalas suficientes e ande deviam ser criadas.

As desigualdades sociais nao-territoriais, porém, logo entraram em cena. Primeiro, foram as desigualdades de classe, que dominaram o de­bate sobre a política educacional praticamente até os anos 60 do século XX; depois, e mais ou menos a partir dessa década e da seguinte, as desi­gualdades de género; por fim, a partir dos anos 80 - embora antes nos países de imigra<;ao em massa, como os Estados Unidos -, as desigualda­des étnicas. Ainda que toda desigualdade seja, em última instancia, urna desigualdade entre indivíduos, nem todas sao percebidas da mesma ma­neira. A aten<;ao prioritária as desigualdades territoriais pode ser consi­derada como o efeito de urna dinamica política elitista, mas nao atenta, ou nao necessariamente, as desigualdades individuais como tais. Pode-se reclamar um instituto o u urna universidade em cada província, por exem­plo, ao mesmo tempo em que se descuidam dos níveis educativos inferi­ores. Essa costuma ser, de fato, a dinamica do nacionalismo e, de forma atenuada, de todo regionalismo ou localismo: mobiliza-se a todos sob a demanda e a promessa de obter melhoras gerais, mas os únicos que, se­guramente, melhoram as posi<;:é:ies sao os membros das elites; os outros

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raramente melhoram e, muitas vezes, pioram. Algo assim pode acorrer, embora em menor medida, com as reivindica~oes feministas e étnicas . Pode-se reivindicar a elimina~ao de qualquer mecanismo discriminatório de genero , por exemplo, ao mesmo tempo em que se defende um darwinismo extremo. Ou pode-se reivindicar um lugar ao sol para as eli­tes deste ou daquele grupo étnico sem que isso signifique que se queira a igualdade dentro dele (por exemplo, entre homens e mulheres) - algo que será tanto mais provável quanto mais fechado for o grupo em si , quanto mais constituir por si mesmo urna comunidade, um espa~o auto­nomo de convivencia. Mas, em todo caso, enguanto as demandas de igual­dade interterritorial sao demandas de igualdade entre pessoas que nao convivem no dia-a-dia, as demandas de igualdade entre os indivíduos, isto é, contra as desigualdades de classe, genero ou etnia, sao demandas de igualdade intraterritorial, ou seja, entre aqueJes que convivem ordina­riamente: é isso, sua rela~ao com a experiencia vivida, e nao seus efeitos últimos, que !hes confere um caráter individual.

Ao mesmo tempo, as demandas de igualdade genérica ou étnica re­presentam algo diferente das demandas de igualdade entre as classes. Quan­do pensamos na igualdade entre mulheres e homens ou entre ciganos e aldeoes, ternos em mente a elimina~ao de qualquer forma de desigualdade ligada a origem, a tra~os atribuídos, a características que as pessoas nao podem nem necessitam mudar; ao contrário, quando criticamos as desigual­dades de classe, se é que o fazemos, opomo-nos as conseqüencias, ou a a!gumas deJas, de atos que as pessoas fazem por si mesmas e livremente­ao menos em um sentido formal, que é muito importante: trabalhat mais ou menos, melhor ou pior, nisto ou naquilo, gastar muito ou pouco, inves­tir aquí ou ali , com a conseqüencia de empobrecer ou enriquecer- pois, por mais que relacionemos o empobrecimento de alguns com o enriquecí­mento de outros, o que é bastante sensato, continua-se tratando de atos pessoais, nao obrigatótios. Quando faJamos das desigualdades de classe em face da educa~ao nao nos referimos aos efeitos da classe sobre quem se convetteu em parte deJa por meio de sua própria a~ao - mais ou menos condicionada, porém livre - , mas sim a seus efeitos sobre quem faz parte deJa sem ter a ver com isso; nao nos referimos, na realidade, ao operátio ou ao patrao, ao rico ou ao pobre, ao autónomo ou ao assalariado ou ao rentista, mas a seus filhos. Trata-se também, como nos casos do genero e da etnia, das oportunidades iniciais das pessoas , nao de seus destinos fi­nais. Pode-se afim1ar que a sensibilidade social diminuiu consideravelmente em rela~ao as desigualdades adquiridas (aqueJas baseadas , inteiramente

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ou em parte, na própria a~ao) , enquanto aumentou enormemente em rela­~ao comas atribuídas (aqueJas baseadas em tra~os de nascimento, ou nao­modificáveis) . Portanto, isso significa que perderam relevo as desigualda­des de classe e ganharam as de genero e as de etnia.

AS POLÍTICAS JGUALITÁRIAS E SEUS RESULTADOS DESJGUAJS

Até os anos 70, na Espanha, fa lar de desigualdades sociais equivalía a falar de desigualdades de classe, pois estas eram tomadas como o conjunto daquelas; contudo, na literatura dos inícios da reforma inclusiva dos anos 80 se ve urna identifica~ao do todo - o social - com a parte - a classe - , e sempre com essa mesma parte - isso para nao faJar da literatura pró e contra a Ley General de Educación das décadas anteriores. 1 O objetivo das reformas inclusivas, na Espanha e em outros países, nos anos 70 (a LGE) e nos anos 80 (a futura LOGSE) era o combate aos efeitos de urna série de desigualdades de origem que se identificavam com os recursos econ6mi­cos, com as expectativas sociais, com o capital cultural familiar, com o domínio originário da linguagem, com a atitude em rela~ao aos estudos, etc., isto é, desigualdades entre famílias- e nao dentro das famílias, o que excluía as desigualdades de genero- e dentro de urna mesma cultura, sem considerar a possibilidade de discrimina~ao por motivo de ra~a, de nacio­nalidade, etc. -, o que excluía as desigualdades étnicas. Nao que essas outras fontes de desigualdade, de genero e de etnia fossem inteiramente ignoradas, mas eram consideradas secundánas, acidentais, incorporadas nas divisoes de classe ou coisa de filme americano.

As desigualdades de classe ocuparam, portanto, o centro da política e dos debates escolares, do mesmo modo que - na Europa, mas nao nos Estados Unidos - ocupavam o centro da cena econ6mica, social e política em geral. Assim correspondía ao papel central e poderoso da classe operá­ria, dos sindicatos e dos partidos de esquerda tradicionais - poderosos e centrais, certamente, embora nao tanto como a burguesía, as organiza~oes patronais e os partidos de direita, quando nao nos regimes políticos ditato­riais. Pouco a pouco, porém, foi se abrindo o caminho para a preocupa~ao com outro tipo de desigualdades, específicamente as de genero, primeiro, e as étnicas, depois . O primeiro foi mais silencioso, a pesar de- talvez por­que- tratar-se da metade da popula<;:ao, embora sempre tenha sido assim, e provavelmente se viu favorecido pela feminiza~ao galopante dos profes­sores. O segundo tem-se mostrado mais complexo, visto que, por um lado,

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tambem já estava presente, mas era visto de outra forma- os ciganos, por exemplo, do ponto de vista da escala, eram simplesmente pobres, ou tal­vez algo piar, mas em nenhum caso eram considerados como outra cultura - e, por outro, tratava-se aqui de urna realidade inteiramente nova - a Espanha passava da condic;ao de país de emigrac;ao a país de imigrac;ao, coma itTUp<;ao acelerada de urna segunda gerac;ao imigrante concentrada em certas áreas escolares e sempre na escala pública.

O paradoxo reside na falta de correspondencia entre meios e resulta­dos . Apesar da centralidade, da prioridade e da ambigüidade da !uta con­tra as desigualdades de classe perante a educac;ao, estas, embora se te­nham atenuado de forma significativa - a classe já nao é um obstáculo intransponível para quase ninguém, e todo mundo tem assegurado um nível mínimo relativamente alto de educac;ao, pelo menos no que se refere a provisao -, continuam tendo um peso bastante importante, como revela vez ou outra qualquer aproximac;ao nao-anedótica, mas sim estatística -embora esses efeitos se situem cada vez mais acima, isto é, dizem respeito a planos cada vez mais elevados da educac;ao. As reformas foram invaria­velmente seguidas por diversos movimentos reativos, tais como o prolon­gamento dos estudos e a conseqüente transferencia das desigualdades mais para cima, a diferenciac;ao social deles ou o recurso a escala privada, razao pela qua! os setores min01itários privilegiados em geral, ou que confiam seus privilégios a educac;ao em particular, trataram de manter distancia com relac;ao a maioria que ia em se u encalc;o. 2

Com menos tempo, menos meios e menos ruído, no entanto, a igual­dade entre homens e mulheres já é algo praticamente conquistado dentro do sistema educacional. As mulheres atingem os mesmos níveis que os homens e os superam de maneira sensível no acesso, na aprovac;ao e no éxito escolares, ainda que persistam alguns bastii5es masculinos (como certas especialidades de engenharia e de formac;ao profissional, porém, sem dú­vida, cairao, como já aconteceu com outros) . O porém aqui nao está na esca la, mesmo que reste algum porém, mas fora dela, na esfera doméstica e no mercado de trabalho. Neste, porque um mesmo diploma nao conse­gue o mesmo reconhecimento, nem produz os mesmos efeitos debaixo do brac;o de urna mulher e do de um homem e, com isso, as mulheres se vol­tam a urna estratégia de titulac;ao para rebater suas desvantagens de géne­ro. 3 Na esfera doméstica, porque a divisao interna do trabalho resiste mui­to mais a mudanc;a do que a externa, como resultado da chamada (quase) dupla jornada das mulheres trabalhadoras.

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Menos promissor, naturalmente, é o panorama das desigualdades ét­nicas. E também, como tuda indica, menos homogéneo. É claro que há grupos de fácil integrac;ao a escoJa , seja por urna tradic;ao cultural desen­volvida e pela impültancia atribuída a educac;ao (como os judeus em toda parte e os asiáticos na América), seja porque provém de urna mesma cultu­ra e nao encontram uma barreira no idioma (como os latino-americanos na Es pan ha). Outros, no en tanto, justamente os mais numerosos e piar situados económica e socialmente, parecem topar com batTeiras.intrans­poníveis, ou quase, como os negros e os hispanices nos Estados Unidos ou os ciganos na Espanha.

lsso pode ser explicado pelo papel de diversos fato res, alguns dos quais estao fora do alcance da instituic;ao escolar, mas outros nao. Em primeiro lugar, as desigualdades económicas (a capacidade de pagar pelos estudos e de prescindir do trabalho e de rendimentos enquanto estuda), que sao irrelevantes para a divisao de género (supondo que as famílias estejam dispostas a investir em suas filhas os mesmos recursos que em seus filhos, o que requer uma verdadeira revoluc;ao cultural) . As desigualdades econó­micas sao, porém, o centro das divisoes de classe (as classes sao, antes de mais nada, isto : agregados de posic;oes económicas, independentemente de serem também ou nao estilos de vida, comunidades ou atores sociais), e comumente acompanham, as vezes com muita intensidade, as divisi5es ét­nicas (alguns grupos étnicos sao também verdadeiros bolsoes de pobreza). Enfrentar essa dimensao económica da desigualdade está apenas parcial­mente ao alcance da escala, por meio de urna provisao igual para todos e, em certas circunstancias, maior para aqueles que partem de posic;oes ini­ciais particularmente desvantajosas e urna política compensatória).

Em segundo lugar, as desigualdades culturais, isto é, a maior ou a menor proximidade entre a cultura de origem e a cultura escolar, e as relac;oes harmónicas ou conflituosas entre ambas, ou entre alguns de seus componentes. Aquí, mais urna vez, a divisao de género parece irrelevante, ou muito pouco relevante, pois os papéis de género sáo distintos dentro de urna mesma e única cultura. O domínio da linguagem e seus usos, o consu­mo artístico e cultural, o ócio, a valorizac;ao geral da educac;ao, etc. , tuda o que costumamos chamar de capital lingüístico, constituí um contexto úni­co, em cada família, para homens e mulheres. Entre as classes, no en tanto, pode haver importantes diferenc;as culturais. Embora pertenc;am a urna mesma cultura - as classes sáo classes dentro de urna nac;ao e urna nac;áo é sempre, em si mesma, urna cultura, embora possa combinar-se com outras -,

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usam a linguagem de modo diferente, percebem de forma distinta asocie­dade, organizam de maneira diversa suas vidas; ou seja, constituem o que costumamos chamar de subculturas, ou variantes fortes dentro de ou em torno de urna cultura com um. 4 A cultura escolar nao pode chegar a ser inteiramente alheia a elas, mas pode mante-las a certa distancia; de fato, a escolariza¡;;ao da classe operária foi e é o instrumento de sua incorpora¡;;ao a comunidade nacional, oferecendo-lhe certas oportunidades sociais em troca de neutralizar sua oposi¡;;ao radical a ordem social existente. Final­mente, os grupos étnicos costumam ser precisamente isto: culturas, em sentido estrito (digo "costumam" porque isso também deve ser relativizado, já que a etnicidade pode ser constituída sobre a base de qualquer combi­na¡;;ao de fatores, como a língua, a ra<;a, a aparencia, a origem nacional ou as cren¡;;as religiosas, que, embora normalmente fa¡;;am, ou farao, parte de um todo cultural específico, podem separar-se dele). Por isso é que a esco­Ja pode ser para eles algo particularmente distante e hostil, a ponto de suscitar sua recusa ou de gerar um compromisso claramente limitado e instrumental.

Em terceiro lugar, as mulheres, as classes trabalhadoras e populares, as minorías étnicas ou os indivíduos que comp6em tais coletivos nao sao, naturalmente, meras criaturas passivas da economía ou da cultura. De for­ma individual, grupal e coletiva podem adotar e adotam diversas rea¡;;6es, atitudes, táticas e estratégias, conforme se identifiquem mais ou menos com o conteúdo da cultura escolar e com a experiencia da escolaridade e vejam ou nao neJas um meio para obter outros bens economicos, sociais, políticos ou culturais. Assim, a rapidez com que as mulheres alcan<;aram e superaram os homens na escoJa pode ser explicada, junto com os fatores economicos e culturais antes assinalados, como a resposta razoável quando, primeiro, a escoJa !hes proporciona na ida de escolar urna experiencia mais igualitária e gratificante do que qualquer das alternativas disponíveis - a casa e o trabalho - e, segundo, os diplomas escolares sao para elas o ins­trumento mais acessível e eficaz para compensar suas desvantagens de origem no mercado de trabalho e na atividade economica em geral. No extremo oposto, as minorías étnicas podem encontrar-se a todas as distan­cias imagináveis da cultura escolar- e em todas as rela<;6es com el a -, por isso, podem elaborar tanto estratégias de incorpora<;ao social através deJa, quando a educa<;ao aparece como o recurso social mais acessível a elas -como no caso dos judeus, dos palestinos ou dos asiáticos orientais fora de suas respectivas pátrias, por exemplo -, quanto estratégias de recusa, quando

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é vivida como urna agressao contra sua cultura e se mostra pouco funcio­nal para seu modo de vida - como é o caso dos ciganos.

O DIFÍCIL EQUILÍBRIO ENTRE IGUALDADE, LIBERDADE E DIVERSIDADE

A escoJa foi e continua sendo um importante instrumento de equipa­ra<;ao social, ao contrário do que, muitas vezes, de forma unilateral, é afir­mado sobre seu pretenso papel exclusivamente reprodutivo. Nao há con­tradi<;ao entre proclamar, ao mesmo tempo, o papel reprodutor e transfor­mador da institui<;ao escolar, e nao porque as coisas possam ser pretas e brancas ao me.smo tempo, nem porque vale tudo, mas porque se requerem afirma¡;;6es mais precisas do que esses juízos sumários quando se trata de analisar urna institui¡;;ao social em toda sua complexidade. É verdade que a escoJa refletiu e reflete em grande medida as desigualdades sociais exis­tentes (ri~ueza, propriedade, nacionalidade, cultura familiar, etc.) e que, ao recobn-las com um verniz académico e meritocrático, legitima-as, e também que cría por si mesma novas desigualdades (aqueJas vinculadas justamente a o éxito escolar); mas também é verdad e que, a o ser concebida como cenário da realiza¡;;ao de um direito social igual para todos- o direito a educa¡;;ao -, cujas concretiza<;6es foram ampliadas, além disso, a um rit­mo galopante (período de escolaliza<;ao obligatólia, período de oferta obri­gatória, provisao pública por aluno), foi gerada urna dinámica igualitária de proje¡;;6es sociais mais amplas. Seria difícil nao ver, por exemplo, a in­fluencia que a igualdade escolar alcan¡;;ada pelas mulheres teve e tem so­bre suas demandas nos ámbitos político, trabalhista e doméstico, ao estimulá-las a que as apresentem e combatam os argumentos patliarcais tradicionais.

Mas esse tipo de igualdad e é, por assim dizer, fácil; consiste essencial­mente em nao fazer nenhuma distin¡;;ao, em tratar todos de forma burocra­ticamente igual. Como, em geral, consistiu apenas e m escolarizar mais gente, por mais tempo e com mais meios, encontrou apoio inequívoco em alguns professores- e em alguns aspirantes a professores- para os quais era sino­nimo de melhorias trabalhistas e maiores oportunidades profissionais. O problema ocorre quando, por um lado, é preciso compatibilizar a igualda­de com a liberdade e a responsabilidade; por outro, quando, ao passar das palavras aos fatos, esbarra-se, dentro e fora da institui¡;;ao, com a diversi­dade do público potencial e real.

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É possível que educar seja dar- o u, como con·esponde a sua etimología, extrair -, mas aprender requer fazer. A educac;ao, em outras palavras, nao depende apenas do professor, mas também do aluno. lsso leva a conclusao imediata de que a igualdade de op01tunidades - incluídas as dotac;oes em seu sentido mais amplo, isto é, os recursos materiais e a dedicac;ao de re­cursos humanos - e a igualdade de resultados nao sao compatíveis. A úni­ca maneira de igualar os resultados seria reduzir as oportunidades claque­les que estejam mais dispostos a aproveitá-las (urna coisa diferente é ten­tar garantir a todos resultados mínimos, ainda quando requeiram recursos extraordinários; isto é, urna igualdade básica). Nossa organizac;ao social global, no mais, nao se baseia em que todo o mundo fac;a o mesmo e o que !he dizem - o que exigiría, além disso, um imenso aparato totalitário de controle -, e sim em que cada um fac;a o que pode e quer, mas que, ao mesmo tempo, pague ou se beneficie das conseqüencias de fazer ou náo fazer. A outra face da liberdade, dito de outro modo, é a responsabilidade. Ao contrário do que alguns acreditam, essa idéia igualitário-meritocrática da ordem social, que combina igualdade e eqüidade é, em termos mais gerais, comum a modelos sociais muito distintos, tao distintos como o libe­ralismo e o socialismo (incluído o marxismo). 5 O liberalismo propoe que o mercado distribua as recompensas de acordo com a demanda pelos outros daquilo que cada um oferece; o marxismo, se nos atemos a definic;ao mar­xista do socialismo (outra coisa seria o comunismo), pretendía fazé-lo de acordo com o trabalho de cada um; ambos sao, entao, critérios de eqüida­de, nao de igualdad e em sentido estrito. 6 O problema da es cola nao é, . portanto, inventar novos critérios de justic;a para opor aos da sociedade, mas sim aplicar os que esta considera legítimos. O professor, como cidadao, pode apoiar qualquer outra coisa, mas, como profrssional, e mais ainda como funcionário, deve aplicar o que a sociedade quer; e se, por alguma razao, considera que os critérios desta devem mudar, 01.!- nao sao aplicáveis a esco­Ja, deve, em todo caso, ater-se aos procedimentos democráticos- incluindo que a escola é um servic;o público, nao dos professores -, e cabe a ele, no debate, o onus da prova. E, se a escoJa deve ser um pequeno microcosmo da convivencia ciclada, ainda que seja amenizado como convém a pouca idade dos cidadaozinhos e evitando qualquer forma de exclusao, desqualificac;ao, estigma, efeito Pigmaleao, profecía auto-satisfatória, etc., a eqüidade deve ter nela um lugar importante. Por isso, é difícil combinar universalizac;ao e meritocracia, que se manifesta, por exemplo, no debate sobre a promoc;ao de ano na ESO. Sem dúvida, é extremamente difícil en­contrar o equilíbrio e a fórmula adequados, mas se equivocam tanto aque-

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les que querem a igualdade a qualquer prec;o (igualdade de resultados, inevitavelmente fictícia) , como aqueles que querem impor acima de tudo a eqüidade (meritocracia) ou aceitam qualquer distribuic;ao desigual como eqüitativa, desde que esteja ligada a contribuic;oes desiguais.?

E o problema nao termina aí, pois a desigualdade como produto das opc;oes livres de pessoas potencialmente iguais acrescentam-se as desigual­dades naturais de certa relevancia. Refiro-me as incapacidades e as capaci­dades excepcionais. Com relac;ao as primeiras, coloca-se o problema da­queles que, em circunstancias iguais, nao poderiam conseguir os mesmos resultados, talvez nem os mais elementares, nem com o maior esforc;o: aqueJas pessoas com as quais, por assim dizer~ a própria natureza foi injus­ta. Diante delas, coloca-se o dever da so1idariedade, isto é, o dever de com­pensar de maneira suficiente sua desvantagem de origem. E suficiente signi­fica aqui até o ponto que obtenham os resultados mínimos que queremos para todos - por exemplo, que um cego curse a educac;ao obrigatória - e também que possam participar no jogo da eqüidade com probabilidades similares as de todos - por exemplo, que um cego possa fazer um curso universitário. Nem é necessário esclarecer que, para equiparar as probabi­lidades, e para que cada um dependa apenas de seu esforc;o, devem-se multiplicar os recursos para aqueJes que, abandonados a própria sorte, nao poderiam de antemao realizar o mesmo esforc;o ou nao poderiam faze­lo com os mesmos resultados. E a isso vale acrescentar urna pergunta: que fazer com aqueJes com quem a natureza foi injusta, senao a história, que está tao fora de seu alcance como aqueJa? Por exemplo, os locais de imi­grantes, de minorías étnicas ou de grupos em situac;ao de grave pobreza, cujo entorno imediato dificulta enormemente um desempenho escolar norc mal, e perante os quais se coloca também, portanto, o dever de urna ac;ao educativa compensatória, isto é, solidália.

Por outro lado, há aqueJes que possuem capacidades excepcionais. Assim como os incapacitados nao tem culpa nenhuma por sua incapacida­de, os superdotados nao tem qualquer mérito por sua capacidade excepcio­nal. Por um mero critério de justic;a, a coletividade poderia tranqüilamente afirmar que os resultados dessas capacidades excepcionais em sociedade (isto é, os que se podem obter, por exemplo, escrevendo, cantando, inven­tando, pintando, empreendendo ou fabricando para outros, portanto, se e apenas se há outros para apreciá-lo) nao sao urna propliedade do indiví­duo, ou nao só. Contudo, essa questao se coloca mais em tennos de efrcá­cia. Se desejamos que os indivíduos com capacidades excepcionais que podem beneficiar a todos nós as utilizem ao máximo, urna maneira de

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fazer isso- a que se mostrou mais eficaz- é incentivá-los com recompen­sas excepcionais; outra questao é se isso deve ser feíto por meio do merca­do, deixar-se ao mecenato dos ricos ou recomendar-se a urna oficina nacio­nal de méritos excepcionais designada ou eleita sabe-se !á como, mas toda civilizac;ao desenvolvida utiliza-se de algum mecanismo. Vejamos: se a es­cola deve ir antecipando para os alunos a organizac;ao social adulta e se deve ser o lugar em que comec;am a se revelar e cultivar essas capacidades excepcionais, deve haver nela um lugar importante para a excelencia. Con­tuda, um problema visível hoje é que tanto a instituic;ao como seus agen­tes, que incorporaram até certo ponto a idéia de solidariedade e articulam com maior ou menor perspicácia fórmulas para implementá-la, nem de longe da o a mesma atenc;ao a excelencia. 8

A outra parte do problema é como conciliar a igualdade e a diversida­de, entendida agora como diversidade coletiva. As políticas igualitárias em face das desigualdades de classe e de genero já esbarraram na crítica de que nao faziam outra coisa senao incorporar seus supostos beneficiários (trabalhadores e mulheres) a urna escoJa feíta pela medida aos outros (a burguesía ou os homens), submetendo-os a seus valores e interesses e fa­zendo-os embarcar em umjogo de cartas marcadas, no qua! estavam inevi­tavelmente destinados a perder ( é possível, contudo, compartilhar algu­mas das premissas de tal raciocínio, mas nao outras, nem suas conseqüen­cias, por exemplo, se consideramos que foram de fato incorporados a esco­Ja do outro, com toda a assimetria que isso acarreta, mas que também a modificaram em benefício próprio e que, seja como for, os benefícios pe­sam mais do que os prejuízos). Em consonancia com essa crítica, susten­tou-se, por exemplo, que o melhor para a classe operária nao seriam as reformas inclusivas, que a afastavam da consciencia e da defesa coletiva de seus interesses, infundido-lhes falsas esperanc;as de promoc;ao indivi­dual, mas sim a melhoria da formac;ao profissional dentro de um sistema que se mantivesse segregado. 9 Ao mesmo tempo, sustentou-se que as me­ninas sao prejudicadas pela co-educac;ao, dado que os professores (de ambos os sexos) prestam mais atenc;ao nos meninos e que estes tem urna atitude hostil com suas colegas, razao pela qua! se deveria restabelecer a educac;ao separada, mas com um currículo comum. 10 Mas nao há por que se escan­dalizar, pois as classes cultas sustentam a todo momento que seus filhos nao deveriam ser misturados com a "gentalha". 11 Contudo, a defesa de urna (boa) educac;ao separada da classe operária nunca encontrou muito eco (fora o movimento de auto-instruc;ao do século XIX e início do século

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XX, quando era a única opc;ao) e foi desaparecendo a medida que se esten­deu a universalizac;ao.

Outra questao é a que se coloca diante das divisoes étnicas. A deman­da inicial de igualdade foi sendo mesclada progressivamente como a de­manda de reconhecimento da diversidade. Mas nao um mero reconheci­me?to passivo ("Voce também é legal"), mas sim ativo, isto é, apoiado nos mews e nos recursos do sistema escolar. Deve a escoJa servir de veículo a ?u;ra~ culturas? Urna coisa é, por exemplo, expor a cultura cigana ou Islamica, mas outra bem diferente é pregar a submissao e a reclusao da m~lher ou as excelencias da guerra santa. E como conseguir tempo? ou, ate que ponto se pode forc;ar a pressao incluindo objetivos adicionais? Mais ~ma vez, nos .~ncontramos diante de dilemas que nao tem urna soluc;ao SI~ples, qu~ colocam a necessidade de busca de equilíbrio e de compro­missos medwn~e aproximac;oes sucessivas; mas que, seja como for, ressal­tan: a complexida~e da instituic;ao escolar, as dificuldades da política edu­caciOnal e a magmtude dos problemas que ainda estao por se resolver.

NOTAS

l. ~ssa metonímia, que toma a parte pelo todo (a classe pelo social), nao é um Simples erro nem um preconceito ideológico: etnocentrico e androcentrico. Visto que o social se ve reduzido a classe, o resto se converte por contraste em natural; por exemplo, quando se deixa escapar expressóes como "desi­gualdades sociais e de genero". Parafraseando um bom título de um mau filme, poderíam?s nos perguntar por que dize:m genero quando querem di­zer sexo, ou etma quando querem dizer rac;a.

2. Contra urna idéia bastante difundida, a educac;ao nao é parte essencial da :;stratégia d: repr~?u<;iio do vínculo de classe dos "ricos", do "capital" ou da cl~s.se d~mman~e em geral - embora jogue um papel muito útil em sua

leg¡t1ma<;~o _-, pms :sta ?aseia-se na propriedade. Mas é, a o contrário, para as classes medias fun:w~rus, sobretudo para os profissionais (e, entre eles, para os ~ro~essores). Nao e a velha burguesía, nem grande, nem pequena (nem cap~talistas, ~ero pequen os comerciantes, artesiicis, etc.), que confia seu desti­no a educa<;ao, mas a nova. A "nova burguesía" seria agora a chamada classe "profissional-diretiva" (Ehrenreich e Ehrenreich, 1979), e a "nova pequena bu~guesia", as profissóes de menos importancia (Baudelot e Establet, 1974).

3. Alero d~ tudo, deve-se recordar algo bem simples: que empregos e outras oportum~ades econ6micas e sociais sao o fim, e a educa<;iio é antes um meio (ero rela<;ao a eles, e apenas um: outros sao a heran<;a, a sorte, a ambi<;iio, as

! 'i

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rela<;oes, o delito, etc.), e por isso urna redistribui<;fw dos meios pode tradu­zir-se em urna redistribui<;ao dos fins (que é o que desejam e prometem os reformadores da educa<;ao). Nao digo que seja este o caso (recorde-se o que foi dito no Capítulo 2), mas simplesmente que a eficácia igualitária da edu-ca<;ao nao pode ser considerada já as sentada. . . .

4. O termo subcultura nao implica, portanto, urna attibui<;ao de valor mfenor, embora se fale comumente da cultura escolar e da subcultura da sala de aula. Quer destacar, simplesmente, que, dentro de urna cultura (nacional) existem ou podem existir diversas variantes classistas, profissionais, locais, etc. Nes­se sentido, a cultura escolar é também urna subcultura, embora o problema nao resida aí, mas sim em que seja a subcultura de um grupo determinado, prevalecendo assim sobre esta e colocando em desvantagem os demais.

S. Ainda que se excluam dela seus extremos, por exemplo, o liberalismo selva­gem ou o capitalismo manchesteriano, de um lado, que negam qualquer igualdade básica, tachando-a de socialismo rampante, ou o maoísmo da Re­volu<;ao Cultural e o comunismo a albanesa ou a combojana, de outro, que denunciavam como desvío pequeno burgues qualquer forma de eqüidade.

6. Na realidade, se acrescentamos, com Marx, que o trabalho deve ser social­mente necessário ternos que marxistas e liberais dizem a mesma coisa, pois a necessidade social se expressa por meio da demanda. É verdade que, no mercado, só contam as necessidades solúveis; mas é verdade também que, sem mercado, o capricho se equipara a necessidade, pois todo o mundo quer o que é gratuito. Mas essa é urna outra história.

7. Um problema óbvio da escala, mesmo que se aceite seu caráter meritocrático, é a falta de correspondencia entre as diferen<;as nas contribui<;oes (os esfor­<;os ou os resultados) e as diferen<;as entre as recompensas. A rela<;ao escola­emprego, específicamente, funciona em muitos aspectos como um jogo no qua! o ganhador leva tudo, ainda que ganhe por muito pouco.

8. Desenvolví mais amplamente os conceitos de igualdade, eqüidade, solídarie­dade e excelencia, assim como suas diferen<;as e rela<;oes, em Femández Enguita, 2000c, 2002.

9. Quem sustentava isso há alguns anos era, por exemplo, Christian Baudelot, perante um público espanhol um tanto quanto at6nito, que nao imaginava que pudesse ser essa a conseqüencia de sua denúncia- com Roger Establet­da dupla rede.

10. Essa é uma postura que alguém sempre mantém, talvez por dar a nota. Nao faz muito, participei da banca de urna tese em que a doutoranda tentava demonstrar, comparando dois colégios, que quando as meninas sao educadas junto com os meninos obtem pi ores resultados do que quando sao educadas sem eles, do que decorreria a recomenda<;ao corresponden te. Mas, eis que as meninas educadas sozinhas eram todas filhas de famílias de profissionais, enquanto as outras eram das classes populares. Quase toda a literatura sobre a boa educa<;ao segregada das mulheres consiste nisto: em comparar a co-

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educa<;ao de todas com a educa<;ao a parte de algumas poucas e seletas. Ou seja, urna compara<;ao totalmente inadequada.

11. Dispostos a sustentar, e como há gente para rudo, em 2000, pude assistir a um curioso debate no Reino Unido. Pela primeira vez acontecía ali o que na Espanha vinha acontecendo desde há muito tempo: que as mulheres tinham superado os exitos escolares dos homens. Alguns pensaram entao que os resultados dos meninos estavam caindo porque a presen<;a das meninas, prin­cipalmente na adolescencia, distraía-os das preocupa<;oes mais nobres e pro­puseram o restabelecimento da escala segregada por sexos, em benefício deles. As mulheres que tao penosamente tinham conseguido a co-educa<;ao devem ter pensado coisas muito pouco agradáveis nesse momento sobre suas companheiras partidárias da segrega<;ao.

6 As Escolas, sua

Organiza~ao e seu Entorno

Embora a literatura e o cinema costumem comprazer-se e comprazer­nos com a imagem do professor individual e individualista, capaz por si mes m o de marcar a diferenc;a, 1 o certo é que a educac;ao depende cada vez menos dos indivíduos e cada vez mais das organizac;oes. Nao quero dizer que o indivíduo tenha sido digerido pela organizac;ao, cumprindo-se os de­sígnios de tantos e tantos agourentos, mas que, embora o indivíduo, o profis­sional, continue sendo decisivo, o decisivo já nao é tanto, ou nao é apenas, sua atitude em relac;ao a seu "produto" - o aluno -, por assim dizer, ou em rela<;:ao a seu "processo" - seu próprio trabalho -, como sua atitude, que continua sendo sua, em relac;ao a organizac;ao, a escola, a equipe com a qua! deve trabalhar e a os fins atribuídos pela sociedad e a essa organizac;ao e a essa equipe. Isso simplesmente porque quase toda pequena ou grande mudan<;:a no ensino ou em seu entorno significou para o aluno entrar em contato com mais e mais pessoas encarregadas de sua educac;ao, entendi­da em um sentido amplo.

Nao creio que seja necessário argumentar que o ensino médio pode converter-se em um caos se nao houver urna certa unidade de propósito e se assegurarem mecanismos de coordenac;ao entre as disciplinas ou maté­rías; ou que o baixo perfil destes mecanismos de ac;ao sao sentidos na bai­xa qualidade das disciplinas, nao importa muito qua! e quanto seja o valor de seus elementos isolados, considerados em si mesmos. Tal problema che­gou também ao ensino fundamental, em que, ao lado do professor-tutor,

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desfilam agora, para todos os alunos, tres ou quatro professores especialis­tas e, para urna minoría significativa deles, outros.professore~ compleme.n­tares e/ou alternativos (de compensa<;ao, de apo10, logoped1stas, especia­listas em certas minorías). Ao lado de todos eles, é preciso considerar ain­da responsáveis por refeitórios ou cafés da manha, monitores de ativi~a­des extra-escolares, especialistas aos quais se solicitam atividades ocasw­nais etc. E tudo isso sem contar com a confusao devido a distribui<;ao de gru~os e horários, destinos e interinidades, ause.ncias e sub~t~tui<;oes, tare­fas de dire<;ao e cursinhos, etc. O professor, no smgular, dec1~1v? ~a forma­<;ao de gera<;oes anteriores, simplesmente passou para a h1stona. Ago~a, mesmo em condi<;oes normais, urna boa educa<;ao depende da coopera<;ao horizontal e da coordena<;ao vertical de um conjunto de pessoas, o que nao pode ser obtido por vía esponüinea, mas apenas por me~o de mecanismos organizacionais. Além disso, o direito a urna boa educa<;ao deve ser prote­gido contra a eventualidade de um mau professor. . .

Toda escola é urna organiza<;ao e, como tal, um s1stema. Urna orgam­za<;ao é a ordena<;ao de certo número de atividades pessoais e ~ei~s rr;-ate­riais para a obten<;ao de certos fins. Nesse sentido, toda orgamza<;ao e um sistema racional, o que nao significa que seja necessariamente urna orde­na<;ao correta dos meios, a melhor possível ou simplesmente boa, n:m muito menos que os fins sejam bons ou desejáveis em si mesmos, mas tao­somente que consiste na sujei¡;ao de certos meios a certos fins. A racional~­dade nao é mais do que essa rela<;ao instrumental entre recursos e propo­sitos. Mas, ao mesmo tempo, toda organiza<;ao é também um sistema natu­ral, o que significa que procura sobreviver permanecendo mais ou ~enos igual a si mesma, independentemente do que isso implique para os fms em virtude dos quais foi criada nem para o ambiente no qual se desenvolve; logicamente, o que a leva a tentar sobreviver nao sao seus próprios desejos ou interesses, pois a organiza<;ao como tal nao é urna entidade de causa própria que possa te-los, mas sim os interesses e desejos de seus membros, que nasceram da- ou ajustaram-se a- existencia da organiza<;ao em geral e de- o u para- alguma forma de exístencia em particular. Por último, toda organiza<;ao é também um sistema aberto em um duplo sentido: primeiro, porque processa algo que recebe de seu ambiente e que o devolve transfor­mado a ele, que no caso da escala sao pessoas, específicamente alunos; segundo, porque nao pode funcionar, nem para alcan¡;ar seus .fins con:o sistema racional nem para satisfazer seus membros, como um s1mples SIS­

tema natural, sem utilizar os recursos que lhe proporciona seu ambiente -e inclusive explorá-lo. Nos próximos itens trataremos, respectivamente,

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destes tres aspectos da organiza<;ao escolar: sua crise como sistemas racio­nais, sua tendencia a atuar como sistemas naturais e sua necessidade de faze-lo como sistemas abertos.

Aproveitando a terminología da análise de sistemas de comunica<;ao, poderíamos dizer isso de outro modo. As organiza<;oes, incluídas as escola­res, sao um conjunto de elementos materiais e humanos destinados a um fim ou a um conjunto de fins. Em si mesmos, tais elementos apenas consti­tuem um agregado, urna cole<;ao de singularidades, mas, unidos por urna série de rela<;oes que, alcan<;ando um nível maior de complexidade, consti­tuem urna estrutura e, visto que perseguem fins e podem transformar-se em fun<;ao deles, formam um sistema. 2 '

A CRISE DA ORGANIZA~ÁO ESCOLAR OU A QUEBRADO SISTEMA RACIONAL

As escolas de ensino fundamental foram concebidas como mecanis­mos de transforma<;ao do meio, nao de adapta<;ao a ele, e os institutos, para atuar de modo seletivo com e sobre apenas urna parte previamente aceita e adaptada dele. Como tais, sao apenas sistemas racionais e unifor­mes, projetados com caráter geral para obter, por meio de um mesmo e único processo, os mesmos ou diferentes resultados conforme recebam os mesmos ou diferentes insumos. Assim, por exemplo, a antiga Educación General Básica da Lei de 1970, ou as escolas de ensino fundamental ante­riores a esta, produziam fracasso escolar em massa, mas nao se sentiam muito aflitas com isso, pois, sendo o ensino o mesmo para todos, os resul­tados distintos eram atribuídos a características ou a condutas diferentes por parte dos alunos. No outro extremo, o bacharelato (ou, com mais ra­zao, a universidade)- muito mais antes da massificaréío acorrida as véspe­ras e no período da LGE - funcionavam com base na suposi<;ao de que todos os alunos deveriam ter exito, pois se nao tivessem seria simplesmen­te porque nao haviam sido selecionados antes de maneira adequada. Isso era perfeitamente resumido nas velhas expressoes: presta ou néío presta para os estudos. Sob o sistema da Ley General de Educación, os que presta­vam obtinham o diploma de gradua<;ao escolar e podiam ter acesso ao bacharelato; os outros tinham de se conformar como certificado de escola­ridade - de ter estado ali - e podiam ir para a rua ou para a forma<;ao profissional conforme sua idade, e sem muito empenho em urna coisa nem em outra. Antes da LGE, ainda sob o regime herdado da Ley Moyano de 1857 e suas sucessivas reformas parciais, o ensino fundamental nao levava

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a parte alguma por si mesmo, e os al unos do ensino médio eram seleciona­dos mediante um exame chamado exame de admissao: os que prestavam conseguiam entrar, e os outros ficavam de fora.

Por outro lado, as organizat;6es escolares foram pro jetadas típicamen­te para a obtent;ao de alguns poucos fins sólidos e certos e por procedi­mentos homogéneos, simples, amplamente aceitos e largamente estabele­cidos. Foi isso que permitiu montar a escola de ensino fundamental com base em um corpo profissional com urna formac;ao curta e superficial, e a de ensino médio em estudos especializados sem nenhuma orientat;ao es­pecífica para o ensino. Recorde-se de que o magistério é apenas urna diplomac;ao recente e mal-integrada na universidade e com níveis de exi­gencia, tanto para o acesso como para a promoc;ao académica e profissio­nal, sensivelmente infetiores aos de outros cursos, 3 ainda que os professo­res de ensino médio possam chegar as salas de aula sem terem recebido como educadores nenhuma formac;ao além dos caóticos e inúteis Cader­nos de Aptidao Pedagógica e equivalentes.4 O caráter imposto e homo­geneizador do ensino fundamental seletivo e auto-reprodutivo do ensino médio é que tomou possível, além das convuls6es devido ao empenho em usar o magistério e os professores como instrumentos de penetrac;ao políti­ca (que se podía trad uzir tanto e m demissoes e m massa como e m expurgos ideológicos ou promoc;oes patrióticas) ou das premencias associadas as pretensoes doutrinadoras dos regimes da vez (que se supria com mudan­c;as em planos, programas e textos e recorrendo a doutrinários especializa­dos, como padres ou falangistas na Espanha), a mesma estrutura organiza­dona! sobreviver, quase idéntica, durante mais de um século e meio.

O problema dessas organizac;oes é que poderiam ter continuado fun­cionando bem ou medianamente bem, como ao menos o faziam e pelo menos como o faziam, durante mais de mil anos, se seu entorno nao tivesse mudado de fotma radical. Esse processo de mudanc;a teria lugar, seja como for, fora da escola, como reestruturac;ao das classes sociais, da piramide do emprego, do acesso a cultura e das aspirac;oes sociais e educacionais da populac;ao, o que supunha um contexto geral distinto. Mas também, logicamente, na articulac;ao entre a estrutura social e a escola. Por um lado, no acesso e na permanencia, ao ampliar-se a educac;ao básica obriga­tória e comum (como nome de primária, básica ou secundáría obrigatória, nao importa), o que produziria urna explosao da diversidade entre os alu­nos que, logicamente, mostram-se tanto mais distintos individualmente quanto mais velhos sao; e também ao ampliar-se, democratizar-se ou

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massificar-se - como se preferir, embora a escolha nao seja inocente - o ensino médio nao-obrigatório, e a o chegar a o obrigatório (como o ensino médio comum) até os institutos e m que antes só entra va u m público ( em­bora cada vez menos selecionado). Por outro lado, na ida para o mercado de trabalho, no qual importam apenas os éxitos escolares absolutos, os éxitos relativos, comparativos, com os quais, em meio a urna expansao generalizada da educac;ao, nenhum ciclo ou diploma pode valer o que va­lía antes por si mesmo, mas em func;ao de sua escassez agora menor, o que possibilita essa estranha mistura de urna titulac;ao crescente com o descré­dito geral dos diplomas escolares que se assinala nos recorrentes lamentos sobre o desemprego das pessoas formadas, o subemprego, a sobrequalifica¡¡,éio ou a conversaJ) da universidade em umafábrica de desocupados. 5

O processo de mudanc;a longitudinal, temporal e diacrónico, em con­seqüencia disso, manifestou-se, ao mesmo tempo, como diversidade trans­versal, espacial e sincrónica nas escalas e nas salas de aula. Em urna mes­ma turma podem coexistir e coexistem - embora nem sempre convivam -os filhos de profissionais com um alto nível cultural e académico que ba­seiam sua estratégia de reproduc;ao social- seu esforc;o pelo futuro de seus filhos - em !hes garantir urna trajetória escolar frutífera e bem-sucedida, os dos trabalhadores manuais inseridos em urna cultural tradicional e para quema escola é apenas urna passagem obrigatória antes da incorporac;ao a labuta, os das famílias marginais que veem na sala de aula apenas um albergue e/ou urna imposic;ao associada a obtenc;ao de certas ajudas públi­cas o u apenas urna forma de evitar problemas com as autoridades e os pais imigrantes com urna atitude dual em relac;ao a escola, para eles ao mesmo tempo imposic;ao e oportunidade, meio de incorporac;ao a sociedade que os acolhe e instrumento de negac;ao de sua cultura de origem.6

Finalmente, as reiteradas reformas gerais e parciais da educac;ao pu­seram a prova os hábitos das organizac;oes escolares. A confusao de atri­buic;oes entre professores e licenciados (e professores licenciados) nos li­mites do ensino fundamental e do ensino médio, a substituic;ao dos perío­dos por ciclos como unidades do planejamento docente, a segregac;ao dos professores especialistas, o aparecimento de outros profissionais em fun­c;oes transversais ou auxiliares (psicólogos, orientadores, terapeutas, etc.), as adequac;oes e as afinidades, e outras fotmas de mobilidade dos profes­sores entre matérias e áreas, a compressao do tempo de permanencia com a jornada contínua ou matinal, criaram tensao entre organizac;oes baseadas tradicionalmente na estrita e simples divisao por escolas (nas escolas fun-

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damentais unitárias), por períodos (nas escolas fundamentais graduadas) ou por matérias (no ensino médio).

Como sistemas racíonaís, as escolas sao estruturas, conjuntos de rela­c;oes estáveis, voltadas a obtenc;ao de um fim implícito ou imposto de fora. Sua resposta a mudanc;a é sempre negativa, reativa. Sao capazes de repor as relac;oes ro m pidas, de voltar ao estado anterior a alguma alterac;ao, de retar­dar a desordem que as ameac;a, isto é, de manter um equilíbrio. Sua relac;ao com o ambiente é altamente seletiva, cuidadosa em manter limites definidos com o exterior. Em urna escola, esse funcionamento estruturado pode mani­festar-se particularmente na forc;a da divisao do trabalho herdada, na qual cada um tem urna func;ao claramente definida, e todos estao unidos por diretrizes de coordenac;ao estabelecidas de forma mais ou menos precisa. Nas coordenadas atuais, isso poderia expressar-se em um bom projeto curricular de escola, isto é, em urna boa coordenac;ao interna, mas alheia as condic;oes externas. Do ponto de vista administrativo, pode significar um centro nuclear em tomo do corpo docente como expressao coletiva e da direc;ao como instancia representativa dos professores, em face dos demais setores envolvidos. Isso também gera um modelo de profissionalizac;ao e um tipo de profissional: o professor que se atém as suas tarefas, fortemente delimitadas, mas a quem se pode recorrer caso exista algum desequilíbrio organizacional (o que explica, por exemplo, a paradoxal combinac;ao de urna especializac;ao extrema por matérias com urna disponibilidade para tudo que se reivindica, por parte da administrac;ao - a quem cabe, em última instancia, zelar por manter e m funcionamento a estrutura com meios limita­dos- mediante figuras como adequac;oes, afinidades e outras).

Quando a organizac;ao sobrevive sem variac;oes substanciais aos fins que devia perseguir ou ao contexto para o qua! foi projetada, podemos dizer que os meios se sobrepoem aos fins. Essa confusao, ou inversao da relac;ao meíos-fíns, é o que Merton (1957) chamava de ritualismo burocrá­tico, como conduta, que tem sua expressao na personalidade burocrática, como caráter. Poderíamos considerá-la também como a derrocada do siste­ma (as metarrelac;oes, as relac;oes entre as relac;oes, ou a articulac;ao das relac;oes em func;ao dos fins) na estrutura (as relac;oes em si, independen­temente dos fins que as originaram). Nessas circunstancias, a combinac;ao da condi<;ao funcional dos professores- funcional na escola pública e qua­se funcional na escola privada, dadas as condic;oes de contratac;ao, os usos nas relac;oes trabalhistas do setor e a elevada proporc;ao de religiosos -com a notável indefensibilidade do público objeto de seu trabalho - as

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crianc;as e os adolescentes, se m condic;oes de fazerem valer seus direitos, e os país, com pouca informac;ao e parco conhecimento a respeito e apanha­dos por onde mais lhes dói -, coloca urna situac;ao claramente distinta tanto daquela da maioria das empresas privadas como da dos demais ser­vic;os públicos, na qua! se abrem duas perspectivas de conseqüencias muito díspares. Por um lado, a apropriac;ao das organízac;oes pelos participantes, isto é, sua subordinac;ao, dentro de certos limites, aos interesses de seus membros. Podemos considerar isso, também, como o predomínio do siste­ma natural sobre o sistema racional ou o desmoronamento da estrutura organizacional em um agregado de elementos pouco coordenados. Por outro lado, a garantía da func;ao da organizac;ao escolar para com a sociedade que a criou e que a financia mediante sua abertura ao público e ao meio, subordinando tanto os interesses dos membros como tais como a própria organizac;ao - mais urna vez, dentro de certos limites - a suas func;oes sociais, isto é, aos fins da educac;ao. Em sentido contrário, isso poderia ser considerado a conversao do sistema racional em um sistema aberto ou a evoluc;ao da estrutura em sistema, na acepc;ao plena do termo.

A ORGANIZA~ÁO ESCOLAR COMO SISTEMA NATURAL OU A DISSOLU~ÁO EM SEUS ELEMENTOS

Toda organizac;ao está ameac;ada de decomposic;ao nos elementos que a compoem. Poderia entender-se como o princípio de entropía, pelo qual todos os sistemas tendem a desorganizac;ao e a morte, ou como a tenden­cia do sistema racional a ser envolvido pelo sistema natural. No extremo, a organizac;ao pode se ver submetida aos interesses, opostos a ela ou a seus fins expressos, dos elementos que a constituem, como é o caso quando um grupo de diretores devora os benefícios da empresa, urna burocracia sindi­cal coloca seu próprio bem-estar acima dos desejos e dos interesses dos filiados ou um grupo profissional situa seus interesses trabalhistas acima das finalidades da instituic;ao que o abriga. Sem ir tao longe, a decomposi­c;ao da organizac;ao pode limitar-se a sua incapacidade para responder as mudanc;as no entorno, inclusive a manter a próp1ia regularidade de suas func;oes, pelo enclausuramento dos membros nos compartimentos herda­dos da divisao do trabalho, as rotinas, os direitos adquiridos, as definic;oes corporativas de direitos e obrigac;oes ou a simples falta de compromisso com a organizac;ao.

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Nas empresas e nas associa<;oes existem mecanismos que se contra­poem com mais ou menos exito a essa tendencia. As empresas devem sub­meter-se ao veredicto do mercado, que as impede de descer abaixo de certo limite de eficácia, a menos que sejam monopólios ou que desfrutem de fundos limitados procedentes de outro lugar. As associa<;oes também estao submetidas, de maneira geral, a algum tipo de concorrencia, como mostra a pluralidade de partidos, sindicatos, organiza<;oes de consumido­res, etc. Seja como for, os outros membros da organiza<;ao sao típicamente adultos coro plenos direitos dentro e fora da organiza<;ao e coro instrumen­tos de poder específicos (por exemplo, os chefes dos partidos, as correntes

.dos sindicatos, os proprietários ou os trabalhadores nas empresas), embo­ra muito desiguais por sua natureza e por sua potencia. Contudo, nas ins­titui<;oes, há sempre algum tipo de assimetria essencial entre o quadro de pessoal, geralmente uro grupo profissional (médicos, professores, vigilan­tes, etc.), e os institucionalizados, típicamente diminuídos de fato ou de direito em suas capacidades (internos, doentes, alunos).

A escola nao é urna exce<;ao a isso. De fato, nela se dao as condi<;oes mais favoráveis para a derrubada do sistema na estrutura e de ambos em seus elementos. A institui<;ao conta coro um público cativo, pois, além da escolariza<;ao ser obrigatótia, a liberdade de escolha de escola, por um lado, é urna fic<;ao (ero muitos casos é impossível, em outros nao existe informa<;ao, em outros requer a renúncia de fato e/ ou de direito a gratuidade) e, por outro, significa elevados ou enormes custos (nao ape­nas economicos, mas também sociais e pessoais: mudan<;a de ambiente e de amizades das crian<;as, distancia da casa, etc.). Além disso, os resulta­dos tanto do trabalho individual como do processo coletivo sao, por sua própria natureza - urna forma de processamento de pessoas: os alunos -, de difícil avalia<;ao, mas nao impossível, e os próprios atores envolvidos costumam ocupar-se de tornar a escola ainda mais enfadonha mediante urna estrita delimita<;ao de esferas, o estabelecimento de barreiras a visibi­lidade, o estabelecimento de objetivos imprecisos, o manejo de jargoes intencionalmente confusos, etc. Que as escalas mostram fortes síntomas desse processo é algo que fica patente em quatro conjuntos de fenomenos: a erosao do tempo de trabalho, a indiferen<;a coro a organiza<;ao e a dire­<;ao, a hostilidade coma participa<;ao da comunidade e a resistencia a ino­va<;iío . Digamos, brevemente, algo sobre cada uro peles.

Por erosáo do tempo de trabalho refiro-me a dois processos só até certo ponto distinguíveis. Por um lado, a tendencia irrefreável a reduzir e a con­centrar o horário e o calendário escolares e a submete-los aos interesses dos

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professores mais do que aos dos alunos ou das famílias . Entre os 210 días legais e os 160 e tantos reais de docencia da Espanha- que, como sabemos, nao sao os únicos de trabalho, mas também nao sao muitos mais - medeia urna constante pressao dos professores - as vezes, iniciada ou secundada pelos país - para reduzir o calendário, estendendo os períodos de férias, inventando pontes, suspendendo as aulas por motivos diversos, etc. Acres­cente-se a isso a jornada contínua - também as vezes, mas poucas vezes, promovidas pelos país por motivos diversos -, imposta pela vía de fato no ensino médio e por procedimentos pseudodemocráticos no ensino funda­mental em diversas comunidades autónomas, que serve claramente aos in­teresses de professores que querem a tarde livre, mas tero efeitos muito va­riados sobr~ alunos muito desiguais, efeitos que podem ir desde a libera<;ao da tarde para atividades mais o u menos essenciais que a escola nao é capaz de oferecer, até levá-los para diante da televisao ou para a rua em detrimento de seu rendimento academico e de sua forma<;ao .7 Por outro lado, o tempo fora da sala de aula que os professores conseguiram para suas atividades de prepara<;ao da docencia, forma<;ao contínua, entre outras - nao apenas nas horas trabalhistas em que nao sao docentes , mas também nos días que nao sao de férias -, é, para dizer de forma branda, utilizado de forma diversificada pelo coletivo, que se distribuí entre todas as variedades inimagináveis, des­de aqueles que sempre necessitam e usam mais tempo para seu trabalho até aqueles que estao convencidos de que este termina ao deixar a sala de aula.

A indiferen~a coma organizaráo manifesta-se na falta de compromisso coro qualquer problema ou oportunidade que exceda totalmente ou em parte os limites da própria sala de aula ou da própria matéria ou área. Significa que o professor se adapta a defini<;ao recebida de sua incumben­cia, mas nao quer saber de nada além deJa. Urna clara expressao dessa indiferen<;a é a renúncia a participar de fun<;oes diretivas e de coordena<;ao e a nega<;ao de que estas, simplesmente, superem os níveis mínimos. O diretor ideal é, para muitos, um diretor invisível, um emissário entre a escola e a administra<;ao- para pedir recursos, normalmente o trabalho de outros - e nao da administra<;ao para a escola, o que poderia supor pedir presta<;oes de contas adicionais sobre o habitual trabalho próprio. Outra manifesta<;ao é a forte disposi<;ao a evitar todas as fun<;oes que nao a de instru<;ao, desde que singularizada pela política educacional ou inclusive pelos próprios professores, tal como ocorre coro a orienta<;ao e as tutorías no ensino médio ou coro a aten<;ao aos alunos com necessidades especiais no ensino fundamental. Outra, enfim, é a tendencia a deixar de lado todos os problemas de conduta e disciplina, ou de convivencia e forma<;ao em

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geral, desde que ocorram fora do recinto da sala de aula, do horário de docencia e discencia ou do ambito da turma: isto é, a tendencia a se desin­teressar de tudo que nao seja estritamente próprio.

A hostilidade com a participa~éío da comunidade se faz notar particu­larmente na atitude em rela¡;ao aos país, em suas associa¡;6es e nos conse­lhos escolares. Preferem-se os país sob convoca~éío, isto é, um a um e só quando o professor reclama sua colabora¡;ao. Curiosamente, a constante cantilena em torno da falta de apoio e de colabora¡;ao das famílias - por outro lado plenamente justificada no caso de um setor destas - coexiste com rea¡;6es puramente defensivas em rela¡;ao a sua aproxima¡;ao indivi­dual e francamente hostis a sua mobiliza¡;ao coletiva, a nao ser como linha de frente das reivindica¡;6es dos professores perante a administra¡;ao. As associa¡;6es de pais sao vistas, mais comumente do que o contrário, com receio; e os conselhos escolares, como um obstáculo imposto pela adminis­tra¡;ao. Resta acrescentar que, quando se imp6e essa atitude de reserva em rela¡;ao ao público direto, nao cabe sequer pensar em urna abertura mais ampla para a comunidade, como quer que se entenda esta, pelo menos que nao vá além de declara¡;oes puramente retóricas.

Por último, a resistencia a inova~éío deve ser entendida, antes de tudo, como resistencia a mudan¡;a, independentemente do conteúdo desta, e ao compromisso com os fins organizacionais. Certamente, urna parcela consi­derável dos professores mostra-se aberta as propostas de inova¡;ao ou as promovem ou aplicam por si mesmos, na medida de suas possibilidades. Outra, sem dúvida, milita a favor de métodos mais tradicionais, as vezes inclusive ultramontanos.' Mas, provavelmente, a mais ampla é a que, sem ter urna postura de princípio a favor destas ou daquelas formas de ensinar e de aprender, apenas nao quer que mudem sua metodología de trabalho, nem suas rotinas aprendidas, nem está disposta a se ver envolvida em mudan¡;as de resultado duvidoso. lsso se traduz em desconfian¡;a e hostili­dade nao só em rela¡;ao as autoridades educativas externas a escola, mas também em rela¡;ao a dire¡;ao ou aos colegas que se envolvem nas propos­tas daquelas ou mostram o que se considera excessiva iniciativa pessoal.

'N . de R.T. O adjetivo "ultramontano", usado aqui em sentido extensivo, refere-se aquele que apóia e defende 11 autoridade e o poder absoluto [do papa] (cf. Dicionário Houaiss).

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A NECESSÁRJA PRIMAZJA DO SISTEMA OU A ABERTURA PARA O ENTORNO

Em um contexto diverso, mutável, incerto e, como gostam de dizer os teóricos dos sistemas, turbulento, urna organiza¡;ao nao tem outra solu¡;ao para sobreviver, prosperar e desenvolver suas fun¡;6es a nao ser compor­tar-se como um sistema flexível e aberto. Ou seja, atuar como um sistema aberto, e nao simplesmente racional ou natural; ou como um sistema em sentido amplo (como um conjunto de metarrela¡;6es, ou de rela¡;6es entre as rela¡;6es) e nao como urna simples estrutura (rela¡;6es entre os elemen­tos) ou um mero agregado (soma de elementos) .

Flexibilidade quer dizer capacidade de transformar a si mesmo, de se reorganizar~ se for preciso, para alcan<;ar os fins propostos, inclusive de articular, de outra maneira, os fins parciais, ou de substituir os fins gerais para sobreviver como organiza¡;ao. Urna escola faz isso, por exemplo, quan­do passa do trabalho por matérias ao trabalho por projetos, do agrupa­mento rígido ao agrupamento flexível de seus alunos, do horário fixo e dividido em partes iguais para o horário desigual e variável ou dos progra­mas únicos as adapta¡;oes e flexibiliza¡;6es curriculares. Com isso, nao que­ro dizer que o novo ou aquilo que ainda nao se pos em prática seja sempre melhor, mas sim que a organiza¡;ao em si é melhor quando é capaz de decidir sobre a manuten¡;ao ou a modifica¡;ao de sua estrutura, em vez de simplesmente recebe-la e considerá-la irremovível.

Isso requer urna certa rela¡;ao entre a organiza¡;ao e seus elementos ou, mais exatamente, urna certa atitude destes em rela¡;ao aqueJa. Se cada elemento da organiza¡;ao, específicamente cada elemento humano, cada membro, fecha-se na fun¡;ao recebida e nao está disponível para nenhuma outra, entao nao haverá reorganiza¡;ao possível, por mais evidente que seja a necessidade. Por trás da eterna demanda de mais recursos as vezes está latente essa atitude, mas também pode ler-se do seguinte ~odo: na~ pretendam que se fa¡;a outra coisa nem adicional, nem diferente, se nao mandarem outra pessoa para fazer isso. Ao contrário, a flexibilidade orga­nizacional só é possível se os membros tem urna atitude de compromisso com o conjunto da organiza¡;ao e com seus fins, nao com sua incumbencia nela tal como um dia foi definida ou como eles entendem ou querem en­tender que foi.

Nas escalas, tal como evoluiu até hoje a cultura da profissao, isso implica urna mudan¡;a radical no papel de dire¡;ao. Por mais que doa aos partidários da democracia de base - geralmente tao de base como inope-

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rante e inexistente -, que na realidade, e salvo efémeras experiencias, cos­tuma identificar-se com um corpo docente capaz de parar tudo, nenhuma organiza<;ao pode ser flexível nem eficaz sem urna din!<;ao que dirija, isto é, nesse caso, que seja capaz de subordinar as partes ao todo e os meios aos fins. Embora nao soubesse dizer qual é a via para alcan<;ar isso, com os necessários contrapesos de participa¡;:ao democrática- interna e externa- e autonomía profissional individual e colegiada, nao tenho a menor dúvida de que é incompatível com a inadequadamente hoje chamada "dire<;ao participativa", que costuma consistir em urna mera subordina<;ao da dire­

<;ao ao corpo docente . Visto que a escala funciona como um sistema e, portanto, como urna

organiza¡;:ao flexível, pode-se buscar o grau de realidad e e de relevancia de seu projeto educacional de escala. A urna escala-agregada, preocupada apenas com sua sobrevivéncia, corresponde normalmente um tipo de pro­jeto que nao é mais do que um brinde ao Sol, um conjunto de banalidades sem nenhuma conseqüéncia sobre as práticas cotidianas nem sobre a es­trutura da organiza<;ao. A urna escola-estrutura apegada a si mesma acima das mudan<;as e das necessidades e oportunidades do ambiente, corres­ponde típicamente um projeto educacional que é a extensao do projeto curricular, isto é, que dá como supostas a virtude da organiza<;ao e das práticas herdadas. Urna escala-sistema, que seja realmente urna organiza­¡;:ao flexível, terá no projeto educacional um referente a partir do qua\ seja possível avahar periodicamente ou em momentos-chave qualquer ativida­de da organiza¡;:ao.

Perante o exterior, um sistema aberto manifesta-se na variabilidade e na permeabilidade de suas fronteiras. Variabilidade porque está disposto a incorporar como próprios elementos que, de urna perspectiva fechada, se­riam apenas do ambiente. Permeabilidade porque entra em um constante intercambio de recursos com o exterior. Em urna escala, a questao pode colocar-se, por exemplo, quando se trata de decidir se os pais devem ou nao ser considerados parte da escala. Infelizmente, é possível desenvolver a mais vazia e pretensiosa retórica sobre a colabora<;ao família-escola, os interesses partilhados, a comunidade escolar ou a grande família ao mes­mo tempo que se estabelece um limite intransponível para as famílias (an­tes para a comunidade e depois para os al unos, para os trabalhadores nao­educadores e para os educadores nao-professores ... ). Os limites da organi­za¡;:ao como sistema sao algo bastante mais complexo do que pode parecer a primeira vista- e, naturalmente, nao se resolve lendo os estatutos. Para urna empresa, por exemplo, pode ser mais importante a opiniao de alguns

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poucos provedores ou clientes do que a de muitos trabalhadores e inclusi­ve acionistas, e as análises organizacionais costumam considerá-los como parte real da organiza<;ao, embora formalmente nao o sejam. Na escala, no entanto , a imensa maioria dos professores nao vacilaría em afirmar que os pais sao alheios a organiza¡;:ao, apesar de toda a verborragia sobre a parti­cipa<;ao das famílias ou sobre o supremo interesse das crian<;as - cujos representantes legais sao os pais.

Quanto ao intercambio de recursos, este pode e deve ir atualmente muito além do velho intercambio baseado na divisao do trabalho: asocie­dade entra com as crian<;as e o dinheiro, e os professores entram com o trabalho e o conhecimento. Hoje em dia, é impensável que urna escola possa, por si só, manter-se a par do desenvolvimento das necessidades e das oportunidades do desenvolvimento economico, social e cultural. Muí­tos dos recursos que se requer para urna educa<;ao apenas carreta, a altura das circunstancias, nao estao nem podem estar na escola - a nao ser que fa<;amos desta urna duplica<;ao da sociedade, urna proposta que encanta alguns, mas que está fora de lugar-, porém esta o e pode m ser obtidos no entorno das escalas . Aí se encontramos saberes profissionais, os conheci­mentos técnicos, as destrezas práticas e as experiencias sociais de que a escola necessita como apoio a seu trabalho; ou, se prefe1irmos, os grupos, as organiza<;óes e as institui<;óes que os possuem, e com os quais pode entrar em rela¡;:óes cooperativas. Que sentido tem, por exemplo, que um professor tente formular por si mesmo um discurso sobre a solidariedade como Terceiro Mundo se, virando a esquina, há urna ONG com cem vezes mais experiencia e disposi<;ao para relatá-la? O filao disponível para as escolas entre os grupos de interesses, as associa<;óes voluntárias, as insti­tui¡;:óes públicas, as organiza<;oes sociais, as empresas privadas e os grupos profissionais presentes em seu entorno é simplesmente ilimitado, e renun­ciar a tirar proveito dele para nao alterar o sonho dos que se acostumaram aos velhos limites pode ser muito comodo, mas promete pouco e amea<;a deixar a institui<;áo escolar a margem da corrente principal.

O primeiro instrumento dessa abe1tura para o entorno já existe: é o conselho escolar. Mas, para que desempenhe esse papel, é necessário entendé-lo como um órgao efetivo da comunidade e da gestáo da escola, nao como um lugar em que, por infelicidade, é preciso ratificar as decisóes que o corpo docente já tomou e que preferiría tomar completamente só. Entretanto, na maioria das escolas, o conselho é pouco mais do que um órgao informativo (consultivo e de controle na melhor das hipóteses) 11 e apenas exerce urna parte de suas competencias, sendo composto por pro-

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fessores que atuam de forma corporativa e com pressa de voltar ao colegia­do, e por país que aprendem logo o que se espera deles: que nao devem se meter onde nao sao chamados pelos professores. A dire<;ao, por outro lado, caberia um importante papel na colabora<;ao entre a escola e a comunida­de, mas para isso seria preciso que deixasse de ser a dire<;ao dos professo­res para ser a dire<;ao da comunidade e sobre os professores, embora res­peitando sua autonomía profissional relativa.

Quando a organiza<;ao escolar abre-se a si mesma (torna-se flexível) e flexibiliza sua rela<;ao como entorno (torna-se aberta), passamos do nível da estrutura ao do sistema em sentido pleno. Seu equilíbrio já nao é mera­mente homeostático, mas sim, por assim dizer, dinamico, mutável. Nao se empenha em manter configura<;oes próprias nem rela<;ües com o entorno que já caducaram, ou que nao respondem nem aos fins, nem ao contexto, mas busca e consegue novos estágios de equilíbrio. Entao, a organiza<;ao se desenvolve, evolui para responder a necessidades e oportunidades mutáveis. Para isso, requer de seus membros, naturalmente, urna atitude de disposi<;ao a coopera<;ao (em vez de puramente individualista ou ri­tual), proativa (em vez de estática ou reativa) e de compromisso com seus fins (nao de apego as suas posi<;oes ou as suas rotinas).

NOTAS

l. Pense-se, por exemplo, em dois sucessos cinematográficos recentes, particu­larmente aplaudidos pelos professores: La lengua de las mariposas e Tout commence aujourd'hui. Além do herói solitário magisterial, eles tem em co­mum ressaltar .a idéia do ambiente hostil e ingrato, seja do fascismo da guer­ra civil espanhola ou da desagregac;ao do velho norte industrial franck

2. Tomo essa terminología de Wilden (1972). Na Espanha, foi muito utilizada por Ibañez (1985). De minha parte, desenvolví essa idéia em Fernández Enguita (2000d).

3. A contrapartida está no penoso périplo geográfico, hoje consideravelmente reduzido pela fragmentac;ao autonomica e amenizado pelo desenvolvimento das comunicac;óes, as concentrac;oes escolares e a jornada continua.

4. Naturalmente, todos podem fazer mais e muitos fazem, mas a ordenac;ao da carreira docente nao abriga a isso e, embora as vezes o incentive, o faz com muita timidez e pouca eficácia.

5. Con tu do, e como procurei explicar no Capítulo 2, a educac;ao conta, e muito. Como quer que sejam vistos, os dados disponíveis indicam que as pessoas com mais educac;ao obtem melhores empregos, maiores rendimentos, etc., mesmo controlando outras variáveis relevantes. As afirmac;oes alarmistas ou

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sensacionalistas sobre a inutilidade dos estudos- quando nao sao meramen­te gratuitas - costumam basear-se na escolha inadequada das faixas de ida­de comparadas. Se alguém compara, por exemplo, o nível de atividade eco­nomica e de emprego de jovens de 20 a 24 anos, pode constatar que os que tem menos estudos apresentam taxas de atividade e/ou ocupac;ao superio­res, mas isso se deve a que os outros ainda estao estudando, as vezes, nessa trama informal de masters e similares, ou que nao aceitam os primeiros em­pregos que !hes sao oferecidos (ou que o analista nao conhece bem o que analisa). A educac;ao sempre paga, a questao é saber quanto.

6. Embora seja verdade que coexistem cada vez menos, pois se está produzindo urna white jlight: a fuga dos pais de classe média que nao querem que seus filhos compartilhem a sala de aula com outros que consideram problemáti­cos ou acham que farao baixar o nível.

7. o prob1ema nao é que a jornada contínua ou matinal nao possa ser adequa­da e útil para urna parcela maior ou menor de alunos e de suas famílias; o problema é que, seja ou nao, !hes é proposta ou é imposta. Ver Fernández Enguita, 200lb.

8. Sao numerosos os conselhos nos quais professores e pais se limitam a relatat~ de maneira superficial, o que cada um fez ou fará em seu ambito preten­samente exclusivo. Para ser exatos, os professores fiscalizam por cima as atividades extra-escolares organizadas pelos país, e os país sao informados pelos professores daquilo que escapa a rotina. Pura informac;ao, ainda que assimétrica. Em outros, os país chegam a conseguir urna informac;ao um pouco melhor sobre as cantas, os resultados gerais, etc., mas nao se espera deles senao que aprovem ou, quando muito, que se mostrem preocupados: esse é um trabalho puramente de controle, embora muito limitado. Finalmente, é possível que se estabelec;a um bom clima no qual os país possam perguntar ou falar sobre o que quiserem, mas cabe exclusivamente aos professores decidir se levarao isso em conta: sao func;oes consultivas. Há conselhos que gerem seus centros, mas sao poucas excec;oes.

7 As Transforma~oes da Profissao

Nao apenas a sociedade a sua volta, a institui¡;ao escolar ou as políti­cas educacionais mudam; naturalmente, isso também ocorreu, acorre ou acorrerá com os professores. Basta nos distanciarmos um pouco da expe­riéncia imediata para abarcar um, dois ou mais decénios no transcurso da profissao para constatarmos importantes transforma¡;oes em sua composi­<;ao, suas estratégias coletivas e sua idéia de si mesma, todas elas prenhes de conseqüéncias nao apenas para a profissao em si, mas também, se nao mais, para a institui<;ao escolar, para a educa¡;ao cori:w servi<;o público e, em última instancia, para a sociedade a que servem.

É preciso assinalar que existem poucas profissoes, se é que existe al­guma, nas quais a atividade realizada pelo profissional e o servi<;o recebi­do pelo cliente mostrem-se tao coextensivas, sejam no mesmo grau urna mesma coisa, como na educa¡;ao. Primeiro, pela coextensao, no tempo, de docéncia e discéncia: o tempo de aprendizagem do aluno é, sobretudo, o que passa com o professor, e o tempo de trabalho do professor é, antes de mais nada, o que passa com os alunos, tanto mais quanto mais precoce for o ciclo de ensino considerado. Urna pessoa nao passa esse tempo, é claro, nem com o médico, nem com o juiz, nem com o advogado, nem com a polícia, nem mesmo nesses tempos em que as turbuléncias da vida levam a urna rela<;ao mais intensa e prolongada com eles.

Segundo, porque na rela<;ao educador-educando estao envolvidas to­das as facetas do educador. Em um sentido pouco exigente, isso é algo que poderia ser dito de qualquer profissao, mas difícilmente terá o mesmo sig­nificado que para a docéncia. É claro que a atividade docente nao apenas

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conta com o maior ou menor domínio dos conhecimentos a dar e a avahar, mas também, e normalmente mais, com aspectos como a capacidade de empatia, a fé no próprio trabalho ou o exemplo pessoal. Por isso, é particu­larmente importante nao apenas o que os professores aprenderam, mas que tipo de pessoas sao, qual seu modo predominante de vida fora das salas de aula, de que meio cultural procedem, que concep<;oes do mundo acalentam. Nao me refiro, naturalmente, as características pessoais deste ou daquele professor específico, mas simas características gerais do coleti­vo ou de setores importantes dele.

Terceiro, os professores constituem nao a totalidade, mas o essencial dos recursos da atividade escolar. Em certo aspecto, nao resta senao lamen­tar isso, pois implica certa incapacidade de aproveitar os recursos materiais e humanos do meio e, as vezes, inclusive os da própria escala, mas nem por isso podemos deixar de constatá-lo. Nos servit:;os oferecidos por um dentista o u por um sacerdote, por exemplo, entram em jogo recursos materiais (se­jam os instrumentos de consulta do primeiro ou a parafemália nas instala­<;Ües do segundo) em urna propor<;ao muito mais elevada. Nos do professor há pouco mais do que a palavra, o papel e o giz, e, quando há, procede-se as vezes como se nao existisse, sem com isso acrescentar nada de novo. A docencia é urna atividade intensiva em trabalho, que requer por si mesma pouco capital, e isso é tanto mais certo nas primeiras etapas do percurso escolar do aluno, sobretudo nas de ensino obrigatório.

Quarto e último, a rela<;ao professor-aluno baseia-se em um perma­nente face a face entre ambos, o que multiplica a importancia de toda espécie de detalhes e incidentes, dos estados de ánimo dos participantes, etc. Já se disse que há poneos lugares como a sala de aula - salvo talvez os transportes públicos - em que se pode chegar a viver em tanta proximida­de com os outros e, para isso, entram emjogo com uma for<;a particular na convivencia e no conjunto de atividades próprias da institui<;ao todas as pe<;as de que se compoe a pessoa, diferentemente de outras rela<;oes mais especializadas, nas quais é fácil envolver-se de maneira parcial e limitada. Isso se aplica a todos os presentes na sala de aula, incluindo o professor, mas, nesse caso, com efeitos ampliados, já que se trata do participante com maior significat:;ao, influencia e poder.

Por tudo isso, é possível que nao importem muito a classe, o genero, a nacionalidade ou a biografía dos arquitetos ou dos inspetores fiscais, mas importam os dos professores, pelo menos suas características mais amplas e as mudan<;as acorridas nelas. Tais mudan<;as, entretanto, nem sempre sao perceptíveis, particularmente para aqueles que estao imersos na expe-

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riencia cotidiana da educat:;ao ou se incorporaram recentemente a ela. Jus­tamente por isso, costuma faltar aos envolvidos na educa<;ao a distancia necessária para perceber o que se passa no seu entorno e, com mais moti­vo, em sua profissao. Mas isso nao reduz em nada sua importancia, de n:aneira que dedicaremos algum espa<;o a examiná-lo na ordem quemen­cwnamos no início: composi<;ao, estratégia e modelo.

NATUREZA E COMPOSI~ÁO SOCIAL DA PROFISSÁO

Antes do início da expansao da escala de massas, os professores nao eram muit~s, e sua situa<;ao nao era das mais afortunadas. Por um lado, estavam os monges, pois a Igreja, que fechou para si mesma aviada repro­du<;ao biológica, sempre precisou de algum tipo de escala na qual, ao mes­mo tempo em que transmitía sua doutrina, podía cooptar seus novos mem­bros. Por outro lado, um elenco variado de autodenominados professores, geralmente sem nenhuma outra credencial a nao ser a de ter passado certo tempo na universidade o u por suas el as ses preparatórias (como as do Dómine Cabra), saber latim (isto é, ter uma vaga not:;ao de latim talvez macarronico) ou tao-somente ler e escrever precariamente, que exerciam uma ampla gama de fun<;oes, desde encarregados de escalas que mal mereciam o no me (aquelas que Erasmo qualificava de ergástulos') até como preceptores pri­vados dos filhos das famílias endinheiradas, sem esquecer os operários incapacitados o u já inválidos para o trabalho, normalmente analfabetos, que exerciam o papel de instrutores nas escolas-creche, junto as fábricas dos novos bairros industriais. O estatuto desses professores era simples­mente servil, ou quase (como também era, por exemplo, o dos músicos), quando trabalhavam para as ordens religiosas, para os nobres ou para os burgueses, e precário e mal-retribuído quando o faziam para os municípios ou para as fábricas. Seria preciso surgir a escala pública de massas para que, de maneira progressiva, fossem dando lugar aos funcionários do Esta­do, nao sem um longo período de transi<;ao no qua! estes atuavam nas cidades e nos municípios mais ricos, enquanto que nos lugares mais distan­tes e pobres podía exercer a fun<;ao qualquer pessoa com a educat:;ao mais rudimentar, se é que alguém fazia isso.

A expansao da escala pública - e da escala privada sujeita a regula­menta<;ao pública e com requisitos similares para o exercício da docencia-

'N. de R. Segundo o Dicionário Aurélio, "cárcere, calabou~o. masmorra".

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implica o desenvolvimento do magistério como o que Etzioni chamou de semiprofissional. lsto é, um grupo profissional com urna forma<;ao supe­rior curta, mas que nao exerce seu trabalho por conta própria, no merca­do, como as profissoes liberais clássicas - médicos , advogados, etc. -, mas em regime assalariado, dentro dos servi<;:os públicos, e que tem seu trabalho submetido a supervisao por parte de autoridades nao-profissio­nais ou por parte de outros profissionais . Os exemplos clássicos seriam a enfermagem, o trabalho social e, naturalmente, o magistério . Outra ca­racterística seria, segundo outros autores, seu alto grau de feminiza<;:ao. 1

Um aspecto comum aos chamados protoprofessores e aos primeiros pro­fessores da escola pública parece ter sido urna origem de classe humilde e ser de sexo masculino. O primeiro, porque se trata normalmente de filhos nao -primogenitos de pequenos camponeses , possivelmente com alguns anos de seminário nas costas, ou de filhos das camadas humildes que descobriam na escola , como alunos, um mundo novo e, com ele, urna voca<;:ao pessoal. O segundo, porque o surgimento da mulher no magisté­rio é posterior e em urna posi<;ao freqüentemente subordinada a do ho­mem- as escalas, muitas vezes mistas por necessidade, eram administra­das por professores do sexo masculino, ou compreendiam doís grupos a cargo de um matrimonio pedagógico, e as meninas eram escolarizadas em menor medida que os meninos.

Com o avan<;o da escolariza<;ao universal, porém, o magistério conhe­ceu por toda patte um processo de feminiza<;:ao que, ao mesmo tempo, trouxe urna mudan<;:a em sua composi<;ao de classe. Os homens das classes mais humildes foram progressivamente substituídos pelas mulheres dos estratos sociais intermediários, mais elevados, pois o exercício, geralmente temporário, dessa profissao encaixava-se bem com a visao da mulher nas classes médias da época. Por um lado, podía-se mandar os filhos para se­guir estudos mais longos e onerosos, sempre com urna orientac;:ao mais pragmática, e as filhas ao magistério ou, com o tempo, as diferentes espe­cialidades de filosofía e letras ( exceto filosofía pura, é claro). Por outro, exercer por alguns anos o magistério, ou inclusive a docencia no ensino médio, era algo perfeitamente possível de ser integrado em urna trajetória que fatalmente conduzia ao matrimonio, urna espécie de treinamento com os filhos dos outros.

A feminiza<;ao favoreceu algumas mudan<;:as na educa<;ao. Sem dúvi­da, tornou mais fácil a incorpora<;ao das meninas a escola, e talvez tornas­se mais viável a ado<;:ao de pedagogías flexíveis e nao-diretivas. Parsons argumentou de maneira convincente que a figura da professora, mais pró-

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xima a da mae, facilita a transi<;ao da crian<;a da família a escola.2 Seja como for; o magistério passou a constituir urna das mais importantes alter­nativas de trabalho para as mulheres, e de certo prestígio. Entretanto, sua procedencia de classe distinta significou, em contrapartida, um afastamen­to do mundo do trabalho do qua! procedía urna parcela importante dos alunos. Esse efeito talvez seja mais visível no ensino médio, no qua! as mulheres licenciadas em humanidades, filhas de classes médias que envía­varo seus filhos homens para carreiras científicas ou profissionais e casa­das com outros homens da mesma condi<;ao (que seus irmaos) ensinavam al unos que, em boa medida, procediam de outro mundo. Compreenda-se que nao se trata aquí de oferecer um fiel retrato automático de toda pro­fessora de ~nsino fundamental e médio, mas sim de assinalar que su a das­se social nao é simplesmente a que correspondería a sua ocupa<;ao, por si só já distante daquela de boa parte de seus alunos, mas também de sua família de origem e da família de seu c6njuge, quase sempre mais distantes ainda.

A medida que a incorpora<;ao das mulheres ao trabalho assalariado avan<;:a e vai atingindo todos os grupos profissionais, é de se supor que a docencia passe a ocupar entre elas o mesmo lugar que ocupa entre os ho­mens: um lugar de segunda categoría, inferior a carreiras profissionais de maior prestígio, mais bem-remuneradas ou, simplesmente, com maiores e melhores oportunidades de promo<;:ao para as mais ambiciosas. Assim, as mulheres de dasse média vao deixando de escolher a docencia, enquanto agora as das classes trabalhadoras incorporam-se a ela, mudando de novo a composi<;ao de classe, mas sem interromper o avan<;o da feminiza<;ao do setor. Em suma - e se me permitem simplificar a partir da indiscutível dicotomia homem/mulher e de outra muito discutível classes médias/ clas­ses trabalhadoras -, os professores e o magistério passa1iam por quatro fases sucessivas, segundo as características típicas do professor: primeiro, homens de classe média; segundo, homens da classe trabalhadora; tercei­ro, mulheres de classe média; e quarto, mulheres da classe trabalhadora esta última ainda se iniciando. '

Talvez essas mudan<;as na composi<;iío social tenham algo a ver com a chamada crise vocacional da docencia. Embora os professores sempre afir­mem ter escolhido sua profissao por voca<;ao, esta ni.ío passa de urna res­posta políticamente cerreta para a platéia. 3 O certo é que dois elementos tradicionais da voca<;ao desapareceram: um, o desvío da condi<;ao de reli­gioso devido a seculariza<;iío da sociedade, pois nao se pode ignorar que a docencia sempre foi, para muita gente, urna fórmula intermediária entre

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os hábitos que abandonaram, ou em que pensaram, mas nao chegaram a vestir e os ofícios laicos; outro, a descoberta de um mundo novo e atrativo por meio da escala - com a conseqü€mcia de querer permanecer nele e faze-lo chegar aos demais -, urna experiencia que depende da classe social de origem, pois a escala pode revelar mundos aos filhos dos operários ou dos camponeses, mas nao, evidentemente, aos das classes médias cultas, de cuja cultura é mais urna imita<;ao.4

Nesse ínterim, as condi<;óes de trabalho dos professores mudaram de forma radical. O velho dito sobre passar mais fome do que um professor de escola perdeu por completo seu sentido. Os salários e outros benefícios paralelos de professores de ensinos fundamental e médio melhoraram ra­dicalmente a partir da década de 70, até atingir níveis sem dúvida superá­veis, mas bastante dignos. Dignos e, certamente, muito atrativos se sornar­mas as vantajosas condi<;óes de trabalho (férias, horários, aposentadoria, promo<;ao rápida, embora lago se atinja o teto, mobilidade restrita agora ao ambito das comunidades, etc.), por mais que os cahiers de doléances do setor mais corporativo afirmem obstinadamente o contrário. Em outras palavras, as contrapartidas do trabalho docente estao mais perta de com­pensar urna entrega vocacional - embora, quando ela existe de verdade, como se sabe, niio tenha pre¡;o - e, ao mesmo tempo, já sao mais do que suficientes para atrair alguém sem voca<;ao.

No que diz respeito a composi<;ao étnica, de nao menos importancia, o panorama é mais variado. Para come<;ar, é preciso distinguir entre os grupos étnicos as minorías propriamente ditas (misturadas com o resto da popula<;ao e sem urna base territorial diferenciada) e as comunidades territoriais com um componente étnico, isto é, as nacionalidades. Quanto as min01ias étnicas, na Espanha, é preciso distinguir tres tipos: primeiro, os ciganos, que constituem a minoria autóctone mais importante- ultima­mente também com urna parte imigrante; segundo, alguns pequenos gru­pos muíto localizados territorialmente e ligados a certas ocupa<;óes, como chuetas, pasiegos o u agotes;· terceiro, os imigrantes, e dentro des tes os imi­grantes trabalhadores por necessidade económica. Vou deixar de lado o segundo grupo por sua pouca importancia numérica e porque acredito que

"N. de T. Chueta: nome que se dá, nas ilhas Baleares, aos que se sup6em descendentes de judeus convertidos. Pasiego: natural de Pas, vale da província de Santander. Agote: diz-se de urna linhagem ou pessoa do vale de Baztán, em Navarra. (Diccionario de la Lengua Española. Real Academia Española.)

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eles nao tem nem pretendem ter urna cultura própria -pace os antropólo­gos. No caso dos ciganos, é preciso destacar que a composi<;ao exclusiva e homogeneamente paya· do professorado converteu-o em um poderoso ins­trumento de assimila<;ao e, para eles, em inimigos culturais; no caso dos imigrantes, particularmente os procedentes de culturas que se distinguem de nossa pela religiao e pelo idioma, tres quartos do mesmo. O regime da escala pública facilita a incorpora<;ao de membros desses grupos ao magis­télio e a docencia - mais lenta, ainda que mais avan<;ada no momento, a dos ciganos -, mas toma praticamente impossível que coincidam com alu­nos de suas próprias coletivídades. Medidas como a aposi<;ao de classes sobre suas próprias culturas, como se faz atualmente com os alunos de origem árabe ou portuguesa em algumas escalas e como mais de urna vez se propós fazer com os ciganos, nao significariam apenas urna altera<;ao da composi<;ao do magistério e hipostasiariam os novos professores desses grupos no papel de reprodutores de urna cultura nao menos hipostasiada. Contudo, a medida que continuar aumentando a propor<;iio de escalas pri­vadas e na qual esses grupos assegurem sua posi<;ao económica - ou a medida que, eventualmente, as escalas públicas consigam ter alguma au­tonomía na contrata<;ao dos professores -, é mais do que provável que se produza urna confluencia entre alunos e professores de um mesmo grupo étnico, como acorre, por exemplo, nas escalas norte-americanas.

Há outro fenómeno étnico digno de ser levado em canta, embora nao se costume considerá-lo como tal. A Espanha é urna na<;ao que abriga vá­rias nacionalidades, isto é, coletividades territoriais com urna língua e com algum desenvolvimento cultural próprios e com alguma experiencia de autogovemo como coletividades independentes ou como entidades admi­nistrativas intermediárias que poderiam ter sido, mas nao sao, na<;óes so­beranas com um Estado próprio; é o caso da Catalunha, do País Basca e da Galícia, cada um com sua história e com suas circunstancias particulares. Urna na<;ao é hoje, entre outras coisas, um território pelo qual os nacionais podem circular e estabelecer-se livremente, o que implica necessariamente fluxos recíprocos e, em particular, das zonas mais pobres as mais ricas; ou seja, migra<;óes internas. Os catalaes na Catalunha e os aragoneses em Aragao sao simplesmente duas comunidades territoriais e demográficas, com mais ou menos existencia próp1ia; entretanto, os catalaes em Aragao e os aragoneses na Catalunha sao minorías étnicas, talvez urna delas mino-

*N. de T. Payo: para o cigano, o que niio pertence a sua ra~a. (ldem.)

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ría abastada - como podem ser os norte-americanos que vivem no Haití como dirigentes, profissionais ou funcionários intemacionais, ressalvadas as distfmcias -, mas a outra, sem dúvida, urna minoría mais típica e tópica, isto é, urna minoría que se distingue da maioria por características como a língua e em certa desvantagem com rela~ao a ela no mercado de trabalho, na educa~ao, etc. (Que a minoría sejam os aragoneses, aos lado dos andaluzes, dos castelhanos, etc., ou que entrem todos no saco de gatos dos charnegos,* como os imigrantes for~ados de todos os confins da África para a América do Norte entraram no dos negros, ou no mais politicamente correto dos afro-americanos é, para esses fins, totalmente indiferente.)

Duas vías migratórias interiores relativamente distintas sao os merca­dos e as burocracias de ambito nacional. Através do mercado, migram al­guns capitais produtivos das zonas mais ricas as mais pobres- e com eles os empresários e os dirigentes- e massas de trabalhadores das mais pobres as mais ricas; através das burocracias costuma migrar urna parte dos filhos das famílias de classe média das zonas mais pobres, em busca das oportu­nidades que a economía local nao pode oferecer-lhes. Assim, na Espanha, o acesso ao magistério e a docencia, assim como a fun~ao pública em ge­ral, a milícia o u ao clero, foi sempre mais cobi~ado, rebus sic stantibus,

5 nas zonas pobres do interior e do sul que nas mais ricas da periferia norte. Isso significo u, por exemplo, que juízes, policiais, militares o u professores fos­sem típicamente castelhano-aragoneses, o que possivelmente favorecen a castelhaniza~ao da petiferia através da escola pública. Hoje, no entanto, vivemos exatamente a situa~ao contrária. Urna política agressiva de nacio­naliza~ao da escola por parte dos govemos autónomos, particularmente no País Basco e na Catalunha, trouxe urna mudan~a radical na composi~ao étnica dos professores em cada urna dessas comunidades (e em outras, com menor intensidade, ou em alguns casos, maior- Canárias -,mas aí as diferen~as culturais sao irrelevantes). Nao é necessário para isso pedir cer­tificados de pureza de sangue nem cole~oes de sobrenomes, mas simples­mente outorgar um alto valor nos critérios de sele~ao ao manejo da língua própria, algo em que o nativo sempre levará vantagem sobre o de fora.

6

Como resultado, passa-se de professores que apenas dominavam a cultura comum- espanhola- e ignoravam ou eram hostis a específica, a professo-

'N. de T. Charnegos: Na Catalunha, imigrante de outra regia o espanhola de fala nií.o­

castelhana. (Idem.)

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res ~u~ dominam a cultura específica - local - e talvez ignorem ou sejam hostis a co~um_. Os abus~s, ~o nacionalismo espanhol nós já conhecemos, os dos nacwnahsmos penfencos talvez ainda estejam por vir.

ESTRATÉGJA COLETIVA E JURJSDI~ÁO PROFJSSJONAL

E~ _meados dos anos 70, nos últimos anos do franquismo sem Franco, urna sene de plataformas, como o Ilustre Colégio Oficial de Doutores e Lic:nc~ados, etc., de Madri, a Escola d'Estiu da Catalunha ou o Colégio de Vale~c~a, ~ntre outros, aprovaram um conjunto de documentos nos quais se retvmdi:ava urna transformac;ao profunda do sistema educacional. Ou­tro tanto fizeram os partidos políticos da esquerda e da direita que prefería ser chamada de centro, os incipientes sindicatos, os movimentos de reno­v~c;ao pedagógic~. Todos se antecipavam em dizer como deveria ser orga­mzada a educac;ao. Quando se examinam aqueles documentos, constata­se que alg~mas expressoes se repetem até o ponto de que, as vezes, na fa!ta de m~wres especifica~oes, parece ha ver consenso onde realmente nao ha. Es~e ttpo de expressoes, de pouco significado já por si mesmas, mas assumidas por todos, constituem o que podemos chamar de retórica de uso obrigat~rio para qualquer um que deseje intervir no diálogo e nao ser desquahfi~a~o des~e o início. Do mesmo modo que na Europa medieval qualquer Ideia devta ser defendida em termos da doutrina crista, ou que em _b~a parte do _mundo hoje em linguagem islamica, o u que nos países do socialismo real tmha de ser, há até pouco terripo, no jargao do marxismo, no m~n~o da educa~ao sucedem-se retóricas as quais é preciso prestar reverencia quando se deseja simplesmente ser ouvido. A retórica dos anos 70: que durou até bem depois da metade dos anos 80, falava, entre outras c01sas, de democratiza~éio, gestéio democrática e autonomía das escoJas e carac~erizava ~s _pr~~essores _como ~rabalhadores do ensino. Hoje em dia, essa e urna ret~nc,a Ja esquecida, pois desde finais dos anos 80 foi paulati­namente substitUida por outra que fala de profissionalizaféio, reconheci­me~to, dignifica~éio, etc., e caracteriza os professores como profissionais do enstno.

A mudan~a nao foi, de modo algum, casual. No final da ditadura e nos primei:os anos da ~emocracia, os professores sentiam que sua afirma~ao profisswnal dependia, sobretudo, de adquirir competencias que, na época, est~vam nas maos das administrac;oes públicas, particularmente do Minis­téno da Educac;ao. Visto que tais competencias eram apropriadas legal-

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mente, a maneira de obte-las era a mobiliza<;ao, e esta seria tanto mais efetiva quanto mais gente arrastasse. Por isso, era essencial contar com o concurso dos pais e a simpatía da comunidade em geral, e as reivindica­<;i5es encontrariam tanto mais apoio quanto mais se identificassem com o interesse geral, ou com a soma dos interesses setoriais. Em conseqüencia, nao se pedía mais poder aos professores, mas sim para as escalas, sem ser muito explícitos, ou se propunha a participa<;ao de todos os setores envolvi­dos e outras fórmulas similares, visando a que o máximo de pessoas, e nao apenas os professores - embora estes fossem os porta-vozes -, pudessem ou acreditassem reconhecer-se nelas. Ao mesmo tempo, ao proclamar-se trabalhadores, os professores assinalavam sua identidade de natureza de interesses com os país dos alunos e, em geral, com as for<;as de esquerda que, na época, pareciam ser as protagonistas da transi<;ao política. U m dos resultados desse processo de mobiliza<;ao foi a transforma<;ao radical da gestao do sistema educacional nao-universitário, sobretudo através da LODE e, posteriormente, da LOPEG:

Hoje as coisas mudaram. Se há 20 anos os professores viam I1a admi­nistra<;ao o principal obstáculo a sua autonomía profissional, hoje tendem a ver isso na presen<;a dos pais nos conselhos escolares e nos direitos de suas associa<;i5es, nos direitos dos alunos e nos procedimentos de garantías que os protegem. A retórica da profissionalizafáO, da dignificafáo, etc., nao é mais do que a expressao debilmente sublimada do desejo de se livrar de qualquer controle externo, mas particularmente do controle do público. Perante a administra<;ao, muitos professores desejariam mais autonomía: alguns para poder experimentar ou inovar mais ou para adaptar o funcio­namento das escalas a ambientes altamente específicos, e outros para ter liberdade de atuar a sua maneira. Muitos, no entanto, nao a desejam, já que mais autonomía pode significar também mais responsabilidade, mais incerteza e mais risco de erro- urna renúncia que fica patente na triviali­dade de muitos projetos educacionais e a descarada oficialidade de outros tantos projetos curriculares. As pretensoes sao mais inequívocas quando se trata de manter o público nos limites determinados, sobretudo se ele pre­tende intervir coletivamente na gestao das escolas, para nao dizer no con­trole- por mais leve que seja- do trabalho dos professores. Entao se recor­re a um conjunto de táticas legalistas, geralmente destinadas a convencer

'N. de R. T. LODE: Ley Orgánica 8/1985 Reguladora del Derecho de Educación. LOPEG: Ley Orgánica 9/1985 de la Participación, la Evaluación y el Gobierno de los Centros Docentes.

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os país e os alunos da total inutilidade de tentar qualquer coisa sem a concordancia dos professores ou contra eles. A auto-identifica<;ao como profissionais desempenha aqui a fun<;ao justamente contrária a anterior como trabalhadores: é profissional quem dispoe de um conhecimento ex­clusivo, inclusive esotérico, em um ambito determinado, no qual todos os demais, e em particular o público, ficam relegados a condi<;ao de leigos.

Nao há nada particularmente surpreendente nisso, quase todos ternos algo que queremos conservar e desejamos algo de que carecemos. Se esses algas sao bens sociais escassos (recursos, empregos, competencias, etc.), entao, inevitavelmente, conservar é conservar contra alguém e desejar é desejar o que alguém tem; desejamos coisas que outros querem conservar e queremos conservar coisas que outros desejam. Exigimos urna repartifáo mais justa daquilo que os outros tem e nós nao, mas também exigimos respeito aos direitos adquiridos que nós ternos, mas outros nao. É possível ser; por exemplo, sindicalista e racista (o movimento operário sul-africano até recentemente ou o sindicalismo norte-americano em suas origens), co­munista e machista (quem conheceu a ex-URSS sabe bem disso), ou radi­cal de esquerda para cima e fascista para baixo (Herri Batasuna). Salvo nos extremos superior e inferior da sociedade, nos quais se tem tudo ou nao se tem nada, nos demais espa<;os sociais, em que a maioria das pessoas se encontra (embora se aproxime mais de um extremo do que de outro), vive-se constantemente essa dualidade de interesses e de atitudes, que Parkin chamou de estratégia de fechamento social duaU No caso dos professores, a dualidade sempre existiu, primeiro dominada pela estratégia de usurpa<;ao para cima e agora pela estratégia de exclusao para baixo.

Urna forma parecida de dualismo, ou de estratégias sucessivas apa­rentemente contraditórias, pode ser vista e m rela<;ao a o horário escolar. Os professores espanhóis sao hoje partidários de forma esmagadora da joma­da contínua, que supoe formalmente a concentra<;ao do mesmo tempo le­tivo em menos tempo natural, eliminando tempos intermediários; e, infor­malmente, a redu<;ao do tempo, pois mais cedo ou mais tarde - mais cedo do que tarde- acaba havendo urna série de pequenos recortes dos tempos reais de aula para evitar que os al unos estourem. Também veem com bons olhos, como nao poderia deixar de ser, qualquer corte no calendário, algo patente no fato de que o calendário real seja apenas quatro quintos do oficial, em que foi preciso ocasionalmente proibir os conselhos escolares de aprovar pontes extra-oficiais e nos discursos inflamados com que os sindicatos recebem qualquer tentativa de ampliar em alguns dias o calen­dário real. Contudo, houve um tempo em que os professores, especifica-

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mente os de ensino fundamental, eram partidários da amplia<;ao do horá­rio: quando urna parte deste nao era obrigatória para os aluno~ e, po.rtan­to nao necessariamente retribuída aos professores, que recebtam dtreta­m~nte deles o pagamento pelas permanencias. Reivindicava-se, entao, e acabou-se conseguindo, que estas fossem integradas no horário (deixan­do, assim, de ser voluntárias), com o conseqüente aumento do salário. Ainda hoje, enquanto os professores espanhóis suspiram pela jornada ma­tinal (que é chamada por eufemismo de contínua ou única), o~ profess~res argentinos ou chilenos desejam a chamada esc.ola em tempo mtegral; 1sto é, que a escola atualmente matinal seja estendtda para as tardes. Sera q~e é porque se trata de outro hemisfério? Nao: é porque ali vincula m a melhona de suas condi<;oes de trabalho, em particular a possibilidade de obter um salário completo e m urna única escola, a o prolongamento da jornada, en­quanto que aquí reclamam a concentra<;ao da jornada sem a!tera5ao, do salário completo que já recebem. O interessante dessa questao nao e se tem razao aquí ou ali - nem, entre nós, agora ou antes -, mas em como se pode defender urna coisa e o contrário, conforme as conveni~ncias das propostas corporativas de determinado setor dos professores, mvocando sempre os sagrados interesses da educa<;ao.

AS MUDAN~AS NO MODELO DE PROFISSIONALISMO

Existem duas maneiras típicas e simétricas, ambas erroneas, de enten­der o termo profissiio. Urna é identificá-lo com qualquer tipo de ocupa<;ao, com 0 que passam a ser profissoes igualmente a diplomacia e o enca~~­mento, 0 sacerdócio e a feitura de pao, a arquitetura e a venda em domtct­lio. Por mais que todas as ocupa<;oes queiram afirmar seu profissionalismo (isto é, por mais que tratem de estabelecer códigos de conduta e im~gens externas que nos levem a confiar a priori em seu trabalho) e por ma1s que

0 observador externo queira fugir de urna categoriza<;ao hierárquica na qual 0 termo "profissao" seria reservado a apenas algumas ocupa<;oes, a identifica<;ao de profissoes e ocupa<;oes só pode causar confusao ao privar­nos de um termo que deve ser reservado para designar as ocupa<;oes que se caracterizam por um alto nível de qualifica<;ao, um elevado grau de con­trole de seu processo de trabalho, um considerável controle sobre seu pró­prio recrutamento e sua promo<;ao, um código deontológico, urna organi­za<;ao colegiada, etc. (embora nao seja necessário que apresentem todas e cada urna dessas características).

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A outra consiste em identificar as profissoes com as chamadas profis­soes liberais, isto é, com aquelas que no geral sao exercidas por conta pró­pria no mercado (mas em um mercado no qual os profissionais monopoli­zam a oferta), embora em parte sejam exercidas em regime de trabalho assalariado para agencias estatais ou para empresas, já que nesse caso o modelo mercantil c.ontinua mantendo seu domínio e dando urna forma especial a rela<;ao assalariada; uma visao típicamente exemplificada na medicina, na advocacia e na arquitetura. Essa identifica<;ao ignora outro tipo de profissoes, das quais poderiam ser exemplos a milícia, o sacerdó­cio, a diplomacia, o judiciário, os professores universitários ou os altos corpos da administra<;ao do Estado. A diferen<;a reside em que estas sao profissoes .organizacionais ou burocráticas. Isso quer dizer que nao sao exercidas por conta própria, ao contrário (embora se pudessem encontrar exce<;6es mais ou menos exóticas: condottieri, seitas religiosas, mediadores em conflitos, Privatdozenten, etc.), mas no seio de burocracias públicas (estatais) ou mais ou menos públicas (como muitas igrejas). Alguém diria que essas profissoes sao menos minoritárias, prestigiosas, poderosas, privi­legiadas ou qualificadas do que as profissoes liberais? Seria um tanto quanto insensato, embora cada tipo, e dentro dele cada caso singular, tenha suas especificidades. O que caracteriza tais profissoes, muitas delas mais anti­gas do que as próprias profissoes liberais, é que elas tem seu cenário pecu­liar, nao no mercado, mas na outra grande forma de produ<;ao e distribui­<;ao supradoméstica que é o Estado, ou em burocracias equiparáveis.

Dentro de qualquer dos dois grandes tipos podem encontrar-se ou­tras profissoes menos qualificadas, nao tao poderosas, menos privilegia­das, com um menor grau de autonomía individual e coletiva em seu tra­balho e talvez subordinada a algumas daquelas já mencionadas o u a o u­tras similares. No ambito das profissoes liberais, poderíamos mencionar os enfermeiros, os encarregados de obras, os procuradores perante os tribunais, os administradores de imóveis, etc.; no das profissoes organi­zacionais, os suboficiais do Exército, os secretários dos juizados, os assis­tentes sociais ou os professores. Pode-se tratar de profissoes claramente subordinadas a outras profissoes, como as enfermeiras aos médicos, os secretários judiciais aos juízes, os encarregados de obras aos arquitetos, etc., ou simplesmente a outro tipo de autoridade, logicamente pública, como os professores ou os assistentes sociais. Podem, ainda, ter um esta­tuto ainda mais ambíguo, como os professores de ensino médio, com urna forma<;ao inicial equivalente a das profissoes principais, mas urna posi<;ao organizacional mais parecida coma das profiss6es subordinadas.

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Pois bem, a docencia é, sem dúvida alguma, por sua origem e por sua configurac;ao, urna profissao organizacional. Sua origem como profissao, para a escola estatal, está na func;ao pública e, para a escola privada, nas ordens religiosas. Fora esses casos, e a partir de certa expansao, o exercício propriamente "liberal" (preceptores privados) foi puramente episódico, ou pelas mesmas pessoas que atuavam dentro de organizac;oes, e de qualquer modo se m um reconhecimento similar e um professor particular, por exem­plo, nao pode dar diplomas, qualquer que seja sua própria titulac;ao e por mais que ensine e que seus alunos aprendam; ao contrário, dentro de urna instituic;ao escolar de qualquer nível, isso pode ser feíto, no que lhe diz respeito, pelo mais inepto dos professores). Os professores cumprem todos os requisitos da caracterizac;ao clássica da burocracia feíta por Max Weber (1922): selec;ao mediante exames, exigencia de fidelidade a finalidade objetiva e impessoal da organizac;ao, existencia assegurada a perpetuida­de, prestígio social estamental (isto é, carisma coletivo e institucional, e nao pessoal), remunerac;ao fixa condicionada pelo nível, promoc;ao mais ou menos automática, etc.

Contudo, difundiu-se entre a profissao urna espécie de desejo genera­lizado de obter o estatuto de urna profissao liberal. Nao que os professores do ensino fundamental ou do médio queiram trabalhar por conta própria, naturalmente- isso nunca-, mas sim que se generalizam demandas inspi­radas no modelo liberal que podem ter efeitos destrutivos em um contexto organizacional. Por exemplo, a pretensao de ter plena autonomía na sala de aula ou a idéia de que, fora das horas na aula, o professor deve dispor de seu tempo a ponto de nao ter de permanecer na escola para nada. As queixas dos professores em tomo de sua relac;ao com seu público (que a maior parte deles ve como urna invasao de suas competencias profissionais por um público leigo) quase sempre tem como contraponto a desejada situac;ao dos médicos: por acaso existem conselhos de pacientes nos hospi­tais ou ambulatórios, como há conselhos escolares nas escoJas? Que mae exige que o pediatra fac;a a consulta em horário de trabalho como se recla­ma para as tutorías? Desde quando se questiona um diagnóstico médico como se discute urna qualificac;ao escolar?, e assim sucessivamente. Nessa retórica dos agravos, sao esquecidas coisas tao elementares como a forma­c;ao mais extensa e intensa dos médicos, sua eventual responsabilidade pelos resultados de sua atuac;ao, a maior facilidade para mudar de médico do que para mudar de escoJa, a subordinac;ao da medicina privada ao dita­me do mercado, a existencia de um código deontológico médico e a inexistencia de qualquer coisa parecida para os professores, como tam-

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bém, e sobretudo, que a atividade docente nao pode ser organizada como urna prática individual (a nao ser que se trate de urna docencia muito especializada: por exemplo, professores de canto, preparadores judiciais, instrutores de xadrez, monitores desportivos, etc.).

Essa retórica liberal, aplicada a urna profissao burocrática, corrói a eficácia das organizac;oes escolares. Amparada nela, urna parcela nada desprezível dos professores desinteressa-se tanto quanto pode pelas orga­nizac;oes nas quais trabalham, como se sua única responsabilidade fosse sua sala de aula, seu grupo, suas horas de aula, sua área ou matéria. Toda coordenac;ao que vá além de assegurar a nao-interferencia, isto é, toda direc;ao efetiva da organizac;ao, tende a ser rejeitada como urna intromis­sao ilegítima na autonomía individual do professor. Essa reac;ao se esten­de, de forma cada vez mais freqüente, as intervenc;oes da administrac;ao­desde a resistencia ou recusa aos trabalhos habituais de inspe<;ao até o ceticismo generalizado, que muitas vezes chega ao cinismo -, com a fun­<;ao de legitimar a redu¡;ao ao mínimo da colabora¡;ao, diante das reformas que afetam as rotinas cotidianas, com relativa independencia de qua! seja seu conteúdo.

O modelo liberal característico do profissional que atua por canta pró­pria nao pode funcionar no ensino, simplesmente porque nao existem os contrapesos do mercado, nem de urna fácil verifica¡;ao dos resultados, nem sequer de um público direto adulto e consciente de seus direitos. Diferente­mente da rela¡;ao do cliente com o médico, com o arquiteto ou com o advo­gado, a rela¡;ao do aluno - e conseqüentemente dos pais - com o professor nao é simplesmente assimétrica, mas nao é sequer urna rela¡;ao livre, que se possa escolher, en tabular ou romper a vontade. O diagnóstico do médico, os argumentos do advogado ou os planos do arquiteto podem ser errados e, como tais, ao ser avaliados por sua autoridade moral profissional, induzir erro ao cliente, o que eventualmente tem conseqüencias negativas para ele (das quais, certamen te, pode tentar ressarcir-se por vía judicial, quando for o caso), mas nao o obrigam; no caso do professor; ao contrário, seus méto­dos sao obrigatórios e indiscutíveis para o aluno, assim como seus diagnósti­cos, e aqueJes nao tem oportunidade de se desligar destes.

O modelo burocrático, por sua vez, é insuficiente, porque a comple­xidade dos contextos e das situac;oes do ensino nao poderiam ser regula­das de cii:na por administrac;ao nenhuma. Nesse ambito, a informac;ao e o conhecimento locais no terreno de que dispoem professores e país nao podem ser substituídos. Daí a importancia da autonomía das organiza­c;oes e, dentro deJas, dos profissionais, mas nao apenas destes. Para sair

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do impasse entre os modelos burocrático e liberal é necessário um mode­lo distinto, no qua! urna autonomía individual do profissional, limitada em seu ambito e em seu alcance , se combine com urna autonomía colegiada e participativa centrada na organizac;ao. Colegiada, porque deve basear-se nao na soma de decisóes individuais , mas na cooperac;ao das equipes de profissionais (fundamentalmente os professores, mas também outros envolvidos , conforme os casos); participativa, porque deve faze-lo em cooperac;ao como público, ou seja, os alunos e seus pais, conforme as idades daqueles. Isso é o que corresponde ao que antes denominamos sistemas, ou organizac;óes, flexíveis e abertos. Mas, para isso, é preciso substituir, na cultura profissional do professor; tanto a passividade obe­diente , porém indiferente, do modelo burocrático como a anarquía indi­vidualista e irresponsável do modelo liberal por um novo tipo de compro­misso: o compromisso com os fins da educac;ao, tal como sao formulados pela sociedade através de sua representac;ao legítima, como objetivo de toda atuac;ao individual ou colegiada, e com a organizac;ao escolar como o instrumento privilegiado da comunidade para conseguir isso . Tal com­promisso deve respeitar a autonomía individual, mas também o compro­misso com a escala como equipe de trabalho e a abertura ao público como titular de direitos e protagonista de necessidades .

NOTAS

l. Sobre o conceito de semiprofissao, ver Etzioni, 1969. Sobre sua relac;ao com a feminizac;ao, Simpson e Simpson, 1969.

2. Parsons, 1968. 3. Sem dúvida, ainda há urna parcela significativa de professores por vocac;ao,

seja originária ou tenha-se manifestado depois, mas apenas urna parcela. Recentemente dirigí urna pesquisa que nada tinha a ver com a educac;ao nem com a docencia, mas na qual entrevistávamos casais sobre sua biografia e sobre as decisoes que a balizavam, e urna parte deles contava com algum professor, presente ou passado. No contexto de urna entrevista em que nao havia razao para pagar tributo ao politicamente correto nem a legitimac;:ao do coletivo, a razao mais mencionada foi , de longe, o tempo livre (Femández Enguita e Gutiérrez Sastre, 2001).

4. De qualquer modo, coro a atual explosao dos meios de comunicac;:ao, hoje é cada vez mais difícil que exista urna pessoa a quem a escola possa ainda reve­lar um mundo. O que se deveria revelaré outra maneira de ve-lo.

5. Mas outros fatores podem operar coro mais forc;:a em sentido contrário. Por exemplo, a forte influencia eclesial e a estratégia de nao dividir a pequena

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propriedade levaram a que quase toda família basca ou navarra contasse com urn amplo quadro de padres e freiras. ·

6. Nao é preciso ser um incondicional das virtudes heurísticas do materialismo grosseiro para compreender que um dos motivos do forte enraizamento do nacionalismo (e de todo regionalismo ou localismo) entre os professores de todo~ os ciclos é o desejo de jogar coro vantagem nas oposic;:oes ao corpo.

7. Parkin destgna como fechamento qualquer tentativa de obter ou conservar oportunidades vi tais , um conceito no qual cabe praticamente tudo. Utilizo-o em uro sentido mais restrit~, para me referir a repartic;:ao de competencias entre as autondades educactonais, os professores e o público.

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Epílogo Prometeu e Epimeteu

Conta Protágoras que, ao criar os seres viventes, os deuses do Olimpo encarregaram Epimeteu e Prometeu de repartir entre eles os dons natu­rais. Epimeteu propos a seu irmao que ele próprio fizesse isso, deixando­lhe a tarefa de comprovar, depois, se tudo funcionava bem, com o que Prometeu concordou. Empenhou-se, entao, em distribuir as faculdades que modo que existisse um equilíbrio entre os seres vivos, dando a um a· fon;a, a outro a velocidade, a outro urna coura<;a protetora, etc., mas, pouco previdente, ao chegar ao homem constatou quejá nao restava nada por repartir, de modo que o deixou desnudo e indefeso. Prometeu, ao comprovar o desastre causado por se u irmao, encontrou urna solu<;ao: foi ao céu e roubou o fogo e outras técnicas para dá-las aos homens, o que enfureceu os deuses e lhe valeu um terrivel castigo: ser acorrentando a um penhasco no Cáucaso e que seu fígado fosse devorado todos os días por urna águia (regenerando-se de noite), até que, depois de 30 mil anos, foi liberado por Hércules. Com o fogo e a técnica, Prometeu aproximou os homens dos deuses e fez deles seres nao-determinados por sua nature­za, mas capazes de se libertarem desta e transcendé-la.

A educa<;ao é o fogo dos deuses que permite aos homens dominar sua vida e seu meio, sem permanecer acorrentados pelos límites de seus dons naturaís; e a escala de massas e os professores foram, no seu tempo, as for<;as prometéicas portadoras desse fogo. Alguns, efetivamente, pagaram um pre<;o alto por fazer isso o u, talvez, por fazer isso além do que se espe-

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rava que fizessem. As vezes com a concordancia dos deuses, as vezes con­tra eles, empenharam-se em difundir um fogo que os alimentava e que julgavam necessário e benéfico para os outros. Tal tarefa, que deve reno­var-se a cada gera<;ao, continua hoje mais atual do que nunca, mas justa­mente por isso atinge dimensoes que em determinados momentos pare­cem situá-la além das for<;as da institui<;ao escolar e de seus agentes.

É quando, entao, eles, as vezes oprimidos pela tarefa, devem escolher entre um dos dois caminhos. Podem seguir Epitemeu, o que olhava para trás, que deixou os seres humanos abandonados a sua sorte, mas nao atraiu para si a ira dos de cima; é o que fazem aqueles para quem qualquer tempo passado foi melhor: quando havia menos alunos, quando nao havia imi­grantes, antes da ESO, quando o nível era mais alto, quando éramos cate­dráticos, quando podíamos suspender, quando nao havia conselhos, etc. Ou podem seguir Prometeu, o que olhava para a frente, e arriscar-se a entregar aos homens o fogo roubado dos deuses; é o que fazem aqueles que apostam na responsabilidade pessoal, na atitude inovadora, no traba­lho em equipe e na colabora<;ao com o meio, empenhados em mobilizar todos os recursos para ajudar a se formarem futuros trabalhadores qualifi­cados, cidadaos livres e indivíduos plenos .

Epitemeu, sem dúvida, poupou-se de problemas, mas nao foi muito apreciado por sua obra (nao, ao menos, pelos homens). Prometeu pagou um alto pre<;o por sua decisao, mas obteve também todo o reconhecimento que os homens podiam dar-lhe.

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