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EDUCAÇÃO SOMÁTICA E FISIOLOGIA DA VOZ INTEGRADAS: UM CAMINHO PEDAGÓGICO PARA OS FUNDAMENTOS DA TÉCNICA VOCAL por ANDRÉ FORNACIARI GRABOIS Monografia submetida ao Curso de Licenciatura em Música do Instituto Villa- Lobos do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Música, sob a orientação da Profa. Me. Doriana Mendes. Rio de Janeiro, 2016

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EDUCAÇÃO SOMÁTICA E FISIOLOGIA DA VOZ INTEGRADAS: UM

CAMINHO PEDAGÓGICO PARA OS FUNDAMENTOS DA TÉCNICA VOCAL

por

ANDRÉ FORNACIARI GRABOIS

Monografia submetida ao Curso de

Licenciatura em Música do Instituto Villa-

Lobos do Centro de Letras e Artes da

UNIRIO, como requisito parcial para a

obtenção do grau de Licenciado em Música,

sob a orientação da Profa. Me. Doriana

Mendes.

Rio de Janeiro, 2016

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EDUCAÇÃO SOMÁTICA E FISIOLOGIA DA VOZ INTEGRADAS: UM

CAMINHO PEDAGÓGICO PARA OS FUNDAMENTOS DA TÉCNICA VOCAL

por

ANDRÉ FORNACIARI GRABOIS

Monografia submetida ao Curso de

Licenciatura em Música do Instituto Villa-

Lobos do Centro de Letras e Artes da

UNIRIO, como requisito parcial para a

obtenção do grau de Licenciado em Música,

sob a orientação da Profa. Me. Doriana

Mendes.

Rio de Janeiro, 2016

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Dedico esta pesquisa ao coração do mundo: que ele siga sempre batendo, irradiando

amor incondicional e luz nas mentes da humanidade, sempre tão necessitada.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço profundamente:

a Doriana Mendes, minha mestra-pioneira e orientadora nesta jornada de transformação

vocal e pessoal, por todo o carinho e empenho na nossa troca pedagógica e humana, e

por ter-me apresentado pela primeira vez os “bastidores técnicos” do universo do canto

lírico;

a Gabriela Geluda, pelos preciosos ensinamentos, pelas liberações corporais e vocais

proporcionadas em aula e por ter me mostrado o quão radicalmente somática pode ser

uma aula de canto;

a Joana Azevêdo pela generosidade e pelo convite sempre constante ao

desenvolvimento pleno e natural da técnica vocal ancorada no corpo;

a Felipe Abreu, pelo ponto de mutação que o seu feedback representou na minha vida;

a Cecilia Spyer, pela paciência, investimento, trabalho sério, carinho e bom humor;

a Carol McDavit, por ter-me acolhido de braços abertos na Oficina de Ópera, onde pude

pela primeira vez vislumbrar uma voz com mais espaço;

a Angel Vianna, por tudo o que representa, pela pioneira que é em nos mostrar

SEMPRE que o corpo é quem sabe das coisas;

a todos os meus professores de canto, dança, educação somática, meditação, música e

técnicas corporais e cênicas, que me mostram novas possibilidades de afeto, percepção e

movimento;

aos meus pais, Marília e Victor, pelo dom da vida, por acreditarem em mim e me

ajudarem MUITO na missão de ser artista no mundo;

à minha avó Dinah (in memoriam), por tudo o que ela fez por mim e todo o amor que

me transmitiu;

aos meus irmãos Pedro e Gabriel, cúmplices de vida, música e pensamento crítico;

ao amigo querido Carioca Freitas, por tantas iniciações e aberturas de portais, na música

e na vida espiritual;

a TODAS as minhas amigas e TODOS os meus amigos, que são tudo o que eu tenho

nessa vida (seria impossível mencionar cada um aqui);

a todos os colegas, amigos, professores e funcionários da comunidade UNIRIO, pra

sempre no meu coração;

aos meus ídolos Elis Regina, Ilessi, Mônica Salmaso, Milton Nascimento, Thiago

Amud, Tom Jobim, Marcos Sacramento, Renato Braz, Beth Dau e tantos outros...!

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à força criadora de Eros, que nos dá a vida e nos faz amar, bailar e cantar por esse

mundo afora;

ao Mestre interior.

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"O fato de cada pessoa ser, em síntese, o próprio mundo, um microcosmo, permite que

ela encontre respostas para suas dúvidas, paixões e ansiedades quando mergulha com

coragem e técnica em seu universo interior"

Klauss Vianna

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GRABOIS, André. Educação Somática e Fisiologia da Voz integradas: um caminho

pedagógico para os fundamentos da Técnica Vocal. Monografia (Licenciatura em

Música) – Curso de Licenciatura em Música. Instituto Villa-Lobos, Centro de Letras e

Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Esta monografia propõe a interação entre educação somática e fisiologia da voz como

um caminho pedagógico para o reconhecimento e a prática de fundamentos da técnica

vocal. Tal articulação é tecida através do relato dos insights da minha vivência pessoal,

iluminado pelo arcabouço conceitual do referencial teórico, que inclui prioritariamente

especialistas dos dois campos abordados. As fisiologias das estruturas motoras e vocais

se unem quando enxergamos o corpo como a verdadeira base da emissão vocal. Temas

como apoio, regulação tônica, uso e controle primordial são esmiuçados, revelando

princípios estruturantes em comum, como o fator estabilidade-mobilidade, que dá

acesso ao fundamento mais essencial evidenciado neste estudo: a coordenação corpo-

voz como meio para uma produção vocal de excelência, uma ação vocal eutônica.

Palavras-chave: educação somática. fisiologia da voz. técnica vocal. consciência

corporal. coordenação corpo-voz.

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GRABOIS, André. Integrated Somatic Education and Voice Physiology: a pedagogical

path to the fundamentals of Vocal Technique. Monograph (Graduate degree in Music) –

Music Graduation Course. Instituto Villa-Lobos, Centro de Letras e Artes, Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

This paper proposes the interaction between somatic education and voice physiology as

a pedagogical path for the recognition and practice of vocal technique fundamentals.

This articulation is woven through the report of the insights of my personal experience,

illuminated by the conceptual framework of the theoretical referential, which includes,

as a priority, specialists from the two fields covered. The motor and vocal structures’

physiologies come together when we approach the body as the true basis of vocal

emission. Themes such as support, tonic regulation, use and primordial control are

discussed, revealing structuring principles in common, such as the stability-mobility

factor, which gives access to the most essential fundamental disclosed in this study:

body-voice coordination as a means for an excellent vocal production, an eutonic vocal

action.

Key-words: somatic education. voice physiology. vocal technique. body awareness.

body-voice coordination.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................... ......13

CAPÍTULO 1 – FORMAÇÃO SOMÁTICA ..............................................................16

1.1. Contextualização da Educação Somática...................................................16

1.2. Iniciação em Educação Somática: Escola Angel Vianna e

o contato com algumas técnicas........................................................................18

1.2.1. O legado dos Vianna....................................................................19

1.2.2. Bartenieff Fundamentals.............................................................24

1.2.3. Eutonia........................................................................................26

1.2.4. Técnica Alexander......................................................................29

1.3. Princípios em comum................................................................................32

CAPÍTULO 2 – CANTO NÃO-FUNCIONAL: A EMISSÃO VOCAL SEM O

CONHECIMENTO FISIOLÓGICO OU OS PERIGOS DE CANTAR SEM

CONSCIÊNCIA...........................................................................................................33

2.1. Iniciação em canto popular........................................................................33

2.2. Classificação vocal equivocada.................................................................35

2.3. Necessidade de mudança...........................................................................37

2.3.1. Diagnóstico de uma disfonia: o nódulo nas pregas vocais.........38

2.3.2. Causas da disfonia: mau uso, má coordenação...........................40

2.4. Primeira fase de reeducação da voz: fonoterapia, nova pedagogia

de canto, tratamento ortodôntico e cirurgia ortognática...................................42

CAPÍTULO 3 – CONECTANDO OS ELOS PERDIDOS: ABORDAGENS

SOMÁTICAS E FISIOLOGIA DA VOZ FACILITANDO O

RECONHECIMENTO DOS FUNDAMENTOS DA TÉCNICA VOCAL.................47

3.1. Iniciação à técnica lírica com Doriana Mendes: o primeiro fundamento

é o corpo............................................................................................................48

3.1.1. Apoiando a voz............................................................................48

3.1.2. Cantando com as sensações.........................................................52

3.1.3. Pensando na voz enquanto a relação fonte-filtro.........................56

3.1.4. Estabilizando a língua..................................................................57

3.2. Aula somática de canto, aula de canto somático: Gabriela Geluda e a

Técnica Alexander.............................................................................................59

3.2.1. Deitar, liberar, integrar: cuidar do corpo é cuidar da voz............59

3.2.2. Diálogo interior: convidando o corpo a aprender........................63

3.2.3. Descansando os ouvidos..............................................................65

3.3. Amadurecendo a técnica com Joana Azevêdo............................................67

3.3.1. Estabilizando para mobilizar........................................................67

3.3.2. Colocando a voz: processo de palatização e elevação do véu

palatino...................................................................................................70

3.3.3. O corpo atravessado pelo espaço e a equalização das vogais.......73

3.4. Síntese do aprendizado................................................................................78

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................80

REFERÊNCIAS............................................................................................................85

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INTRODUÇÃO

Esta monografia é fruto da experiência viva do cantor que eu sou. Não vejo outra

escolha a não ser escrever em primeira pessoa, pois a dimensão biográfica e a vivência

pessoal e singular ocupam um lugar central neste processo de reflexão e escrita. Todo o

meu diálogo com o referencial teórico neste trabalho se dá a partir do reconhecimento,

dentro da literatura, de conceitos e temas que eu vivenciei previamente no meu fazer.

Aqui não existe teoria sem embasamento prático: tudo é vivenciado pelo corpo que

canta. Meu critério de escolha dos autores, de cada conceito e de cada citação se pautou

na conexão que tinham com os insights da memória viva, gravada no meu corpo, da

experiência de determinado procedimento, mesmo que eu ainda não soubesse o seu

nome ou que o conhecesse por outro. Sem entrar em detalhes agora, mas apenas em

caráter de contextualização do terreno que gerou minhas hipóteses, preciso fornecer

uma informação crucial: eu vivi um processo de reeducação vocal.

Isto quer dizer que eu exercia uma determinada prática vocal (que começou mais

formalmente com aulas de canto popular em 2006), determinados hábitos de emissão

que equivaliam a um determinado uso do meu aparelho fonador (que é o meu corpo

inteiro!), das musculaturas responsáveis pela fonação que geravam um tipo de som

específico. Num certo momento da minha jornada, pude ver-me e ouvir-me “de fora”

pela filmagem de um show, em que não gostei do que vi nem do que ouvi: não me

reconheci. Esta experiência mudou o rumo da minha história, gerando questionamentos

e a busca por suas respostas. Este é o percurso registrado neste trabalho de conclusão de

curso.

Meu processo de tomada de consciência se fortaleceu e se aprofundou com o

tempo, e está longe de terminar. Creio que encontrarei novas respostas e formularei

novas perguntas até meu último dia de vida, posto que não há saber estático. Considero

que o maior diferencial do novo paradigma vocal em que me encontro é a possibilidade

de cantar pela via das sensações, da escuta das informações sensíveis, sensoriais,

cinestésicas e proprioceptivas que circulam enquanto sinapses nervosas pelo meu corpo

todo o tempo inteiro, e a possibilidade que estas me proporcionam de melhor coordenar

minhas estruturas corporais-vocais. Descobri, ao longo do processo de reflexão e

escrita, ser este o maior saber, o saber mais estruturante e funcional para uma

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vocalização organizada, natural e saudável. Algumas perguntas-geradoras me guiaram

no caminho:

O que foi fundamental para a minha reeducação vocal? Quais os procedimentos,

as instruções internas, os insights, os ajustes, os princípios estruturantes que

modificaram meu som no sentido de uma produção vocal mais flexível, saudável,

equilibrada? Que práticas prepararam meu corpo, sensibilizaram-me para aprender com

mais eficiência? O que cada exercício promoveu enquanto registro interno que

modificou meu fazer, que plasmou novos e mais satisfatórios usos, que mais

estruturaram minha técnica vocal? Pode o pensar sobre esses fundamentos e a sua

sistematização ser útil para outros cantores em formação (todos somos!), no sentido de

uma otimização de sua prática e maior clareza da função e portanto, fisiologia, de cada

elemento constituinte da emissão vocal? Em suma: quais seriam os reais parâmetros que

conceituam o “cantar bem”?

Procuro responder a cada uma destas hipóteses ao longo desta monografia,

gerando assim mais reflexão e investigação sobre a prática vocal fisiológica e

somaticamente embasada, interdisciplinar, articulando técnicas corporais e vocais,

valorizando e estimulando esta interface na formação de um cantor, seja ele popular ou

lírico. Este é o meu maior objetivo: contribuir para a inclusão da educação somática e da

consciência do corpo na prática vocal e no seu ensino.

Respondo às hipóteses a partir do profundo respaldo e do diálogo teórico

travado, a partir da minha narrativa pessoal, com autores dos dois campos do saber

implicados nesta discussão: o da Educação Somática, que é justamente aquele que

abarca as técnicas de consciência, integração e reequilíbrio corporais através do

movimento, com autores como Klauss Vianna, Letícia Teixeira, Gerda Alexander,

Ciane Fernandes e Regina Miranda, dentre outros; e o que articula Técnica Vocal e

Fisiologia da Voz, com autores como Richard Miller, Claire Dinville, Eladio Pérez-

González e Felipe Abreu, dentre outros. As referências autobiográficas servirão como

estudo de caso, relatos de vivência para articulação com os conceitos esmiuçados na

revisão bibliográfica da literatura. Os capítulos se sucedem, portanto, acompanhando a

cronologia da minha trajetória: no primeiro, refiro-me à minha formação corporal em

dança contemporânea e recuperação motora e terapia através da dança (antes de

começar meus estudos formais em canto), em que tive contato com inúmeras técnicas de

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educação somática, aproveitando para contextualizar e fundamentar este campo prático-

teórico. No segundo capítulo, abordo minha primeira fase de prática formal de canto, o

contexto que culminou no diagnóstico de uma disfonia e o início do meu processo de

reeducação vocal. O terceiro capítulo abarca o meu encontro consecutivo, em três

diferentes períodos, com três diferentes professoras de canto lírico e suas pedagogias

embasadas em fisiologia da voz e educação somática, e todo o processo de “solução

acelerada de problemas crônicos” que isso essa interação promoveu. Ao longo da

descrição dos procedimentos pedagógicos mais marcantes, através dos meus insights

correspondentes, eu reconheço fundamentos da técnica vocal.

Para atingir o objetivo de estimular a conjugação educação somática/técnica

vocal, acredito na importância da divulgação de experiências e processos pessoais que

encarnem essa interação bem-sucedida. Logo, um objetivo secundário desta monografia

é contribuir para a legitimação da vivência pessoal como possível dado de pesquisa.

Neste sentido, celebro uma feliz coincidência: tenho o hábito de registrar por escrito

todas as aulas que faço como estudante, portanto possuo um diário de bordo das minhas

vivências tanto nas práticas somáticas quanto nas aulas de canto. Deste registro surgem

memórias, descrições de procedimentos e reflexões que interagem com o referencial

teórico, na formulação do saber aqui proposto.

É importante frisar que esta monografia não se pretende um tratado de educação

somática ou de técnica vocal, mas um relato sintético dos insights e procedimentos

práticos que mais reeducaram e estruturaram o meu cantar, dando forma a um corpo de

fundamentos.

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CAPÍTULO 1

FORMAÇÃO SOMÁTICA

Apresento, na primeira seção deste capítulo, uma breve contextualização do

campo da Educação Somática, principalmente a partir dos estudos de Sylvie Fortin e

Márcia Strazzacappa. Na segunda seção, contextualizo a minha inserção no universo

das práticas somáticas a partir do ingresso na Escola Angel Vianna e relato algumas

experiências marcantes com quatro destas práticas e alguns de seus fundamentos, numa

revisão da literatura produzida por seus próprios criadores e/ou

pesquisadores/especialistas.

1.1. Contextualização da Educação Somática

Sylvie Fortin (1999) nos explica, em seu artigo denominado Educação

Somática: Novo Ingrediente da Formação Prática em Dança, que é a partir de 1989 que

o termo Educação Somática passa a ser gradualmente aplicado, em virtude do primeiro

simpósio bianual Science and Somatics for Dance da National Dance Association, e

mais recentemente generalizado pela formação do International Somatic Movement

Education and Therapy Association, dos Estados Unidos, e do Regroupement pour

l’Éducation Somatique, do Québec. Fortin (1999) ainda nos revela que foi Thomas

Hanna, editor e fundador da revista Somatics, quem conceituou o termo Educação

Somática pela primeira vez, numa definição de dicionário publicada em 1983. Márcia

Strazzacappa, em seu artigo Educação Somática: seus princípios e possíveis

desdobramentos também cita o referido artigo de Hanna (1983) e nos fornece um trecho

do verbete: Educação Somática seria então “a arte e a ciência de um processo relacional

interno entre a consciência, o biológico e o meio-ambiente. Estes três fatores vistos

como um todo agindo em sinergia” (apud STRAZZACAPPA, 2009, p.48).

O termo foi, portanto, associado a metodologias de trabalho corporal que já

vinham sendo desenvolvidas desde o início do século XX, como a Eutonia, de Gerda

Alexander, o Método Feldenkrais de Educação Somática, de MosheFeldenkrais, os

Bartenieff Fundamentals, de Irmgard Bartenieff, a Técnica Alexander, de F. M.

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Alexander, e, no Brasil, o trabalho proposto por Angel e Klauss Vianna, atualmente

sistematizados independentemente enquanto Metodologia Angel Vianna e Técnica

Klauss Vianna. Obviamente, estes não são os únicos métodos de Educação Somática

existentes, e nem tampouco é minha pretensão abordar todos eles. Strazzacappa (2009,

p.48), nos informa que a Educação Somática “já está presente em território nacional há,

pelo menos, quatro décadas, porém mais conhecida sob outros títulos, como técnicas

corporais alternativas, técnicas de release, técnicas de consciência corporal”.

Estas técnicas fornecem, em seu arcabouço pratico-teórico, as próprias

definições empíricas do que seja a Educação Somática: “[...] os educadores somáticos

compartilham de uma visão de organização corporal e de aprendizagem do movimento

que leva em conta o papel determinante do sistema sensitivo-motor”. (FORTIN, 1999,

p.43) e ainda: “Trata-se de desenvolver nas pessoas uma grande capacidade sensível que

está unida [...] em um sentido amplo, ao conceito de inteligência. [...] uma espécie de

inteligência do corpo”. (GAINZA, 1997, p.38-39). Strazzacappa (2009, p.50) revela-

nos, ainda, que todos os criadores destas principais técnicas “partiram do vivido, do

concreto, de suas experiências sensoriais, de suas vivências. Desenvolveram pesquisas

fundamentalmente empíricas. A teorização foi posterior”.

A busca por solução de um problema funcional pessoal parece ter sido a mola

propulsora para a criação de quase todas as técnicas de educação somática. Maria de

Fátima Barros, em sua tese de doutorado pela UNICAMP Canto como expressão de

uma individualidade, nos elucida a este respeito:

Boa parte das práticas em Educação Somática surgiu a partir de problemas físicos de seus criadores, para os quais a medicina não

oferecia solução adequada, como no caso dos problemas vocais de

Mathias Alexander (criador da técnica Alexander), os problemas

de joelho de Moshe Feldenkrais (criador do Método Feldenkrais) e a febre reumática seguida de problemas cardíacos de Gerda

Alexander (criadora da Eutonia), o que quase a condenou à cadeira

de rodas. Esses fundadores, a partir da pesquisa de seus próprios corpos, chegaram a procedimentos que depois foram aplicados a

outras pessoas e acabaram por se estabelecer como metodologias

de abordagem corporal (BARROS, 2012, p.54).

Segundo Michele Mangione (1993), pode-se identificar três períodos no

desenvolvimento da educação somática no século XX:

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da virada do século aos anos 30, quando os pioneiros

desenvolviam seus métodos, geralmente à partir de uma questão

de auto-cura;

1930-1970, período que conheceu uma disseminação dos métodos

graças aos estudantes formados por estes pioneiros;

e dos anos 70 até hoje onde vemos diferentes aplicações se

integrarem às práticas e estudos terapêuticos, psicológicos,

educativos e artísticos (apud FORTIN, 1999, p.41).

A prática da Educação Somática entre intérpretes, coréografos e professores, na

área de dança, segundo Fortin (1999), vem atender a três motivações principais: a busca

por um aprimoramento técnico, a prevenção e cura de lesões, e o desenvolvimento das

capacidades expressivas. Pretendo mostrar, ao longo deste trabalho, que estes podem e

devem ser os mesmos motivos a estimular instrumentistas e, especificamente, cantores

(por serem o público-alvo desta pesquisa) a praticarem alguma técnica de Educação

Somática. No terceiro capítulo darei atenção especifica a este tópico.

1.2. Iniciação em Educação Somática: Escola Angel Vianna e o contato com

algumas técnicas

No início do ano de 2002, recém-oriundo do ensino médio, aos dezoito anos de

idade, ingressei formalmente no universo somático ao me matricular na Escola e

Faculdade Angel Vianna - EFAV, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Até julho

de 2005, cursei e concluí os dois cursos de nível técnico da casa: o Curso de Formação

em Dança Contemporânea (o famoso “Curso Técnico”) e o Curso de Formação em

Recuperação Motora e Terapia através da Dança (mais conhecido simplesmente como a

“Recuperação Motora”). A dança e a expressão singulares através do movimento

sensível são as grandes premissas de ambos os cursos, fundados pela bailarina e

pedagoga do movimento Angel Vianna, que dá nome à instituição e, atualmente,

também a uma metodologia própria de trabalho corporal, a MAV – Metodologia Angel

Vianna. Esta ainda não havia sido conceituada enquanto tal à época de minha passagem

pela Escola. O processo de fundamentação e conceituação da MAV vem se dando nos

últimos dez anos.

Nestas duas formações técnicas que vivenciei na Escola Angel Vianna, fui

apresentado, através de aulas regulares com professores especializados, a várias técnicas

de educação somática: a já citada Metodologia Angel Vianna (que respondia então pelo

nome de Conscientização do Movimento e Jogos Corporais, nome que segue como

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subtítulo do trabalho proposto por Angel), Eutonia, Feldenkrais, Bartenieff

Fundamentals (ou Fundamentos Corporais Bartenieff) e Técnica Alexander. Segundo

Barros (2012, p.54), estas técnicas visam o “desenvolvimento da consciência da

indissociabilidade entre percepção e movimento” e caracterizam “uma determinada

corrente tanto prática como filosófica de retomada do corpo”.

Enumero a seguir alguns fundamentos de quatro destas cinco técnicas de

educação somática a que tive acesso dentro da Escola. O percurso escolhido segue a

trilha do que mais me marcou e também do que mais tarde reconheci como elemento

precioso para a articulação com técnica vocal, articulação esta que é o próprio objeto

desta monografia. Estas são as abordagens que experimentei por mais tempo seguido,

nas quais pude me aprofundar mais e que compõem o meu repertório de vivências e

memórias de acesso às experiências de integração somática. Por questões de foco

metodológico, o método Feldenkrais ficou de fora do presente estudo.

Minha descrição será necessariamente sintética e possivelmente não dará conta

de toda a complexidade destas abordagens, posto que são trabalhos de toda uma vida e

seguem sendo aperfeiçoadas por tantos discípulos formados diretamente pelos próprios

criadores das técnicas e pelas várias gerações de discípulos indiretos já formados, seja

através do convívio em cursos livres e aulas individuais, seja pelo cumprimento dos

programas oficiais de formação de cada linha ou pelos cursos de nível técnico, de

graduação e de pós-graduação que investem nas abordagens somáticas em seu currículo.

Inclusive no Brasil, conforme corrobora Strazzacappa (2009, p.53):

[...] destaco que na atualidade temos em território nacional uma gama de técnicas somáticas sendo praticadas e ensinadas e um

número considerável de profissionais atuando nos campos da arte,

da saúde e da educação, formando, inclusive, praticantes e outros

profissionais. Já há nos cursos superiores de dança brasileiros pessoas que trabalham na interface entre dança e Educação

Somática. Há igualmente cursos de pós-graduação (especialização)

sobre a temática e pós-graduandos em diferentes programas (educação, saúde e arte) desenvolvendo pesquisas sobre Educação

Somática.

1.2.1. O legado dos Vianna

O trabalho desta dupla de pioneiros tem origem e desenvolvimento comuns,

porém com alguma diferenciação ao longo do caminho, especialmente no processo de

sistematização. Hoje em dia existe a Técnica Klauss Vianna e a Metodologia Angel

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Vianna. Não me aterei à fundamentação precisa das duas abordagens, mas sim em

dialogar com a literatura produzida a respeito de cada uma, a partir da minha vivência

do trabalho corporal de Angel.

No livro A escuta do corpo, que é a publicação adaptada da sua dissertação de

mestrado pela UNICAMP, Jussara Miller (2007), discípula de Klauss Vianna,

sistematiza a Técnica que recebe seu nome e afirma que ele foi, no Brasil, o pioneiro na

pesquisa em educação somática e que, em sua época, essa expressão ainda não era

utilizada.

É interessante notar que os trabalhos de Klauss e Angel talvez sejam os únicos

dentre as técnicas somáticas mais difundidas a não terem sido criados motivados

estritamente pela necessidade de recuperação de um quadro de lesão ou doença, e sim

pela curiosidade por integrar melhor expressão e função na prática da dança. Nas

palavras do próprio Klauss, publicadas em seu livro A Dança, em colaboração com

Marco Antônio de Carvalho:

Ninguém melhor do que você pode questionar sua postura, suas

ações. Não são as sequencias de postura dadas por uma pessoa à

sua frente que vão fazer de você um bailarino ou uma pessoa de movimentação harmônica. A dança começa no conhecimento dos

processos internos. Você é estimulado a adquirir a compreensão de

cada músculo e do que acontece quando você se movimenta

(VIANNA, 1990, p.87).

Letícia Teixeira, discípula de Angel e professora do curso técnico desde a sua

fundação, no início dos anos 80, e da faculdade, desde a sua fundação no início dos anos

2000, defendeu seu mestrado na área de artes cênicas pela UNIRIO, em 2008, com uma

pesquisa sobre o legado de Angel, a partir da sua perspectiva singular de discípula e

também professora do caminho corporal aprendido com sua mestra. Na dissertação

Inscrito em meu corpo: uma abordagem reflexiva do trabalho corporal proposto por

Angel Vianna, Teixeira (2008) afirma que Angel procurou, desde a década de 1950, na

intenção de melhor entender o funcionamento motor do movimento, aulas de anatomia,

cinesiologia e fisiologia, o que comprova, segundo Fortin (1999, p.51), uma tendência

comum a todos os pioneiros da Educação Somática, quando afirma que “[...] a

experimentação sensível era, para eles, de primeira importância. Por esta razão, eles

encorajaram seus estudantes a estudar rigorosamente a anatomia funcional levando em

conta sua experiência interior e sensível”.

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As abordagens dos Vianna comungam de muitos procedimentos e princípios em

comum: o chão como aliado, como território primeiro, elemento primordial e mais

concreta referência para que se perceba o grande contraste: o reconhecimento da

gravidade (MILLER, 2007). Temos um corpo, este corpo está apoiado no chão, ele tem

um peso. A partir destas constatações táteis, começa o processo de sensibilização e

reeducação corporal: “No corpo este fenômeno se inicia no momento em que descubro a

importância do solo e a ele me entrego e respeito” (VIANNA, 1990, p.78) e ainda: “Só

quando descubro a gravidade, o chão, abre-se espaço para que o movimento crie raízes,

seja mais profundo, como uma planta que só cresce a partir do contato íntimo com o

solo”. (VIANNA, 1990, p.78).

Este procedimento aparentemente simples de deitar no chão e constatar, no

momento presente, que o corpo está apoiado e tem um peso, é talvez a mudança de

paradigma mais radical que as pedagogias somáticas trazem: somos matéria viva e

pulsante aqui agora, sempre, a cada instante, e nascemos com o dom de nos darmos

conta disso. E, ao nos darmos conta desta dimensão, ao integrarmos a percepção

corporal à consciência (ou a consciência à percepção corporal) podemos experimentar

uma nova presença, um novo estar no mundo. Muitos frutos se podem colher do cultivo

de um corpo aberto e sensibilizado:

Minha energia vital cresce na mesma medida que o meu trabalho corporal se torna consciente. Quanto mais presente em mim mesmo eu

estiver, quanto mais atento a cada gesto ou deslocamento, maior

poderá ser a minha produção e concentração de energia vital

(VIANNA, 1990, p.106).

Posso afirmar, por experiência própria, que vivi muitos processos de insights

psicofísicos profundos ao mergulhar na percepção do meu corpo deitado e na sensação

do movimento iniciado a partir deste procedimento. O chão e os apoios como elementos

sensibilizadores potencializaram minha expressão no espaço. Palavras de Barros (2012,

p.67) que fundamentam meu depoimento:

A metodologia que tanto desejava chegou-me às mãos através de

um curso de extensão realizado na Unicamp, o qual era baseado na técnica Klauss Vianna, sob a orientação das professoras Eliana

Kefalás e Jussara Miller. Esse foi meu primeiro contato com a

técnica Klauss Vianna. Já durante o curso de extensão pude ver o

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quanto era uma técnica que trazia muito do que eu estava

buscando, muito focada na autopercepção, na consciência corporal, fazendo com que o sujeito se apropriasse do seu próprio corpo. Ao

mesmo tempo em que promovia uma reestruturação corporal,

despertava o sentido e a criatividade, expandia a liberdade e a expressão.

Sobre a sensibilização corporal, Teixeira (2008, p.27) nos diz: “A

experimentação corporal estimula a sensibilidade, a afetividade e a sensação através do

movimento, que é geradora de forças e fluxos de energias”. A partir de perguntas

objetivas como “Como estou? Em que posição me encontro? Onde me encontro no

espaço da sala de aula? O que meu corpo deseja?” (TEIXEIRA, 2008, p. 62) vai se

desenrolando um processo de pesquisa: tornamo-nos pesquisadores do corpo, não

reprodutores de movimento (MILLER, 2007). Pode-se adotar várias óticas de análise

dos procedimentos pedagógicos, e eles serão sempre baseados na percepção de

contrastes: a alternância entre estar em pausa corporal ou estar em movimento; estar em

postura (com tônus sustentado) ou estar em relaxamento; estar voltado para fora

(movendo-se em relação ao exterior) ou voltado para dentro (movendo-se em relação a

impulsos internos) (TEIXEIRA, 2008).

Na abordagem dos Vianna, o orientador usa basicamente o recurso verbal para

provocar o estudante a pôr seu corpo em evidência, levando sua atenção para

determinados parâmetros físicos, constatando, por exemplo, distâncias e alinhamentos

entre as partes, demarcando o seu entorno, sentindo as partes que tocam e as que não

tocam a superfície do chão, ativando os apoios bem evidentes e estimulando a

percepção do contraste entre partes que chamam mais atenção e partes que são menos

sentidas (TEIXEIRA, 2008). Palavras de Angel: “Antes da dança e do próprio

movimento, vem a tomada de consciência do corpo. Esta é a filosofia de meu trabalho

porque cada ser humano é único e precisa saber se colocar no mundo de forma bem

presente” (POLO, 2005, apud TEXEIRA, 2008, p.63). Estes procedimentos de tomada

de consciência vão nos mostrando o quanto de movimento interno existe na aparente

pausa corporal, e o quanto este movimento interno pode ser experimentado enquanto

micro-movimento:

Relembrando: o movimento interior, ou micro-movimento, só é possível quando se atinge um nível de descontração muscular

necessária e suficiente para que ele aconteça, ou quando podemos

deixar-nos levar pela transferência de um contato contínuo com corpos, superfícies e objetos. Relembrando: um estado de fluxo e

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amplitude de movimento só aflora quando não há encurtamento

muscular, esforço e falta de maleabilidade articular (TEIXEIRA, 2008, p.47).

Após uma primeira etapa de sensibilização e preparação do corpo, através da

lubrificação das articulações e regulação tônica para o movimento, começa-se a explorar

movimentos mais amplos, alcançando-se a verticalidade, e até saltos e giros. As

atividades também podem “ocorrer em grupos [...] através do contato entre as partes do

corpo ou em percursos livres na sala, explorando planos [...], direções [...], e ritmos [...]”

(TEIXEIRA, 2008, p.64).

A exploração do movimento livre no espaço é, portanto, uma prática de

improvisação, sempre iniciada por um mote preciso por parte do orientador, como, por

exemplo, a liderança de determinada parte do corpo, como se esta desenhasse no

espaço, e a atenção para o sequenciamento, a forma como o corpo inteiro se engaja

gradualmente numa corrente de movimento; ou mover-se atentando para a transferência

de peso. O próprio fluxo de movimento e o prazer de se movimentar a partir de uma

experiência de integração profunda costumam proporcionar momentos muito autênticos

de pura dança: uma dança de afirmação do momento presente e da existência encarnada,

posto que é preenchida por descobertas sensoriais, motoras, emocionais, cognitivas,

relacionais e até espirituais, constituindo-se numa experiência de integração somática

genuína. Uma experiência recorrente para mim, ao me mover dentro deste “ritual de

consciência”, é a sensação de que o movimento ganha vida própria: ao mover, vou

descobrindo novas sensações e motivações que vão gerando os instantes e movimentos

seguintes. Não sei onde vou parar: me percebo completamente absorto na experiência

presente, na vivência do instante. No processo, e não no fim.

Sobre este tema do mergulho no movimento, Teixeira (2008, p.68) nos diz: “A

consciência pelo movimento emerge, exatamente porque as defesas da consciência

foram atenuadas ou dissipadas. É um momento raro de envolvimento, muitas vezes

parecido com um transe”.

Como último ponto-chave desta breve síntese, quero destacar a importância dada

para a consciência dos ossos, tanto para Angel quanto para Klauss Vianna. Nas palavras

do próprio: “A questão é descobrir os ossos. Ou mais do que isso: é verificar os espaços

que existem entre eles, porque é aí que estão baseadas as alavancas do corpo”

(VIANNA, 1990, p.123).

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1.2.2. Bartenieff Fundamentals

Peggy Hackney (1999) é discípula direta de Irmgard Bartenieff e, em seu livro

Making Connections - Total Body Integration through Bartenieff Fundamentals, nos

diz, a respeito do legado pratico-teórico de sua mentora, que este é “uma abordagem ao

treinamento corporal básico que lida com a criação de conexões no corpo, de acordo

com princípios de funcionamento eficiente do movimento, em um contexto que encoraja

a expressão pessoal e o envolvimento psico-físico total ” (apud FERNANDES, 2002,

p.58). Os Fundamentals são considerados o conhecimento estruturante do aspecto

Corpo no Sistema Laban de Análise do Movimento, formado ainda pelas seções

Esforço, Espaço e Forma, e é por isso, por essa contribuição literalmente central para a

fundamentação do referido Sistema, que os especialistas e a comunidade praticante

passaram a chamá-lo de Sistema Laban-Bartenieff de Análise do Movimento. É o que

explica Hackney:

Mas até que sua discípula Irmgard Bartenieff trouxesse a

perspectiva do seu próprio trabalho com fisioterapia para o

paradigma Laban, este carecia de um elemento de corpo integral. Enfatizar a importância da conectividade intra-corpo para

estimular o nascimento do movimento dentro do indivíduo e de

dentro para fora no mundo: esta foi a contribuição singular de Irmgard para este trabalho (HACKNEY, 1999, p.1, tradução

minha)1.

Hackney (1999) alega também que o campo Laban de estudos do movimento já

se desenvolveu muito a partir das contribuições pioneiras de Bartenieff, mas que foi

com certeza ela a didata responsável por inserir o fator proprioceptivo ou cinestésico na

motivação para o movimento conectado.

O Fundamentos Corporais Bartenieff são, portanto, os exercícios (nas primeiras

décadas chamados de Corretivos) responsáveis pela organização e preparação do corpo

para o movimento conectado e expressivo no espaço. São realizados a partir do chão e

vão gradualmente se complexificando, em termos de relações intra-corpo e corpo-

espaço, acompanhando os estágios de desenvolvimento neurocinesiológico dos bebês

1 “But until his student, Irmgard Bartenieff, brought the perspective of her own work from physical

therapy to the Laban framework, the Laban work lacked a full body component. Emphasizing the

importance of internal body connectivity in making movement come alive both within the individual

and out in the world was Irmgard’s unique contribution to this work”.

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(HACKNEY, 1999). Regina Miranda, coreógrafa brasileira e especialista do campo

Laban, reconhecida internacionalmente, foi quem trouxe os Bartenieff Fundamentals

para o Brasil e assim os define em seu livro Corpo-Espaço: aspectos de uma

geofilosofia do movimento:

Abordagem corporal enraizada na progressão do desenvolvimento

humano, que enfatiza a total conectividade do corpo, aponta para seus ritmos e fraseados e encoraja a percepção das relações

interno/externas do corpo em movimento (MIRANDA, 2008, p.15,

nota de rodapé).

E ainda:

A contribuição da abordagem corporal relacional de Bartenieff

suscita diversas questões, entre as quais a relativa ao suporte corporal, em geral percebido pelas abordagens corporais mais

tradicionais como uma região específica do corpo que dá

sustentação ao movimento. Na nossa releitura de Bartenieff, como

o conceito de corpo que desenvolvemos não o entende como uma entidade isolada do espaço e, sim, como um corpo espacial móvel e

em relação, propomos como suporte principal do movimento algo

que no corpo é profundamente móvel, relacional e impregnado de espaço: sua respiração (MIRANDA, 2008, p.32-33, grifos do

autor).

Os conceitos de suporte corporal e suporte respiratório serão cruciais para a

aproximação e articulação dos princípios estruturantes do movimento e da técnica vocal,

processo que se dá no terceiro capítulo deste estudo.

É preciso ressaltar que os Bartenieff Fundamentals sempre estiveram presentes

nos Cursos Técnicos da Escola Angel Vianna devido à cadeira de Dança

Contemporânea /Sistema Laban, quase sempre ministrada por bailarinos formados pelo

convívio com Regina Miranda em sua Companhia de Atores-Bailarinos, fundada nos

anos 70. Foram meus professores: Henrique Schuller, Simone Gomes, Luciana Bicalho

e Paulo Trajano.

A seguir, transcrevo algumas anotações do meu diário de bordo da época em que

cursei a Recuperação Motora, que descrevem alguns componentes da prática dos

Fundamentals:

Rio, 02/06/2004

Conscientização do Movimento/Sistema Laban-Bartenieff

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Professor Paulo Trajano

Estamos trabalhando seguindo as etapas de desenvolvimento neuro cinesiológico. É impressionante a qualidade do trabalho, e como

ele é sempre vivenciado de maneira diferente. As conexões ósseas

estão sempre presentes. Respiração celular, mover a partir da respiração, inspirar, expirar, respiração total, corpo inteiro, tronco,

extremidades. Irradiação central, derramar para fora, fluxo de

percepção, intenção espacial, alcançar. Homolateralidade,

consciência de cada lado do corpo, direito e esquerdo, um se estabiliza para que o outro mova (abrir, fechar). Contralateralidade,

caminho cruzado do movimento, andar, engatinhar, x, diagonais

cruzadas do corpo, escápulas-cristas ilíacas. Homologia, partes inferior e superior do corpo, uma se estabiliza para que a outra

mova, deslizamentos, conexão, idéia de base. Conexão cabeça-

cóccix, Alexander, me expando, subo e desço ao mesmo tempo, sempre alongando-me pelo desequilíbrio, não-fazendo, permitindo

o diálogo entre o Céu e a Terra, serpenteando, adaptando,

polimorfando, em movimento. Sistema poroso [...]. Esses padrões

de movimento estarão sempre presentes. Bartenieff Fundamentals → possibilidade de estabelecer contato com o esqueleto, e fazer

contato a partir dele [...]. Conexão escápulas-mãos, ísquios-

calcanhares, rotação externa da cabeça do fêmur e do trocânter, conexão trocânter-trocanter, joelho-cotovelo, costelas-cristas,

escápulas-cristas, olhos-mãos, cabeça-mãos, mover olhos, mover

rosto, mover cabeça, embocaduras[...] (manuscrito).

Gostaria de destacar, nesta última parte da citação acima, quando enumero

conexões corporais, o fato das mesmas serem nomeadas segundo estruturas ósseas,

tomadas como referência para o movimento. Conforme nos indica a especialista e

professora da UFBA Ciane Fernandes em seu livro O corpo em movimento – o Sistema

Laban-Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas (2002, p.51): “As conexões

ósseas são linhas imaginárias entre diferentes Marcos Ósseos [...], conectando áreas do

corpo, simultaneamente concedendo suporte (estabilidade) e facilitando o movimento

do corpo no espaço (mobilidade)”. Os conceitos de marcos ósseos e conexões ósseas

são, como se pode ver, fundamentais na terminologia aplicada desta técnica de educação

somática, que reflete a importância da percepção do esqueleto enquanto estrutura

tridimensional que alterna as funções de estabilizar e mobilizar. Voltarei a abordar este

tema no capítulo 3.

1.2.3. Eutonia

A pianista e pedagoga musical argentina Violeta Hemsy de Gainza (1997) é

praticante de Eutonia, e publicou um livro chamado Conversas com Gerda Alexander –

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vida e pensamento da criadora da Eutonia, em que ela explica que a palavra eutonia

vem do grego: eu = bom, justo, harmonioso e do latim: tônus = tensão, e que foi

concebida em 1957 para expressar “a ideia de tonicidade muscular harmoniosamente

equilibrada e em constante adaptação, em justa relação com a situação que se vive ou

atividade que se desenvolve” (GAINZA, 1997, p.129).

Também aqui o procedimento básico é deitar no chão, sentir os apoios, perceber

toda a pele como um grande envoltório, soltar o peso dos ossos e dos tecidos a eles

conectados. Ouvir o próprio corpo: como está meu tônus? Baixo (hipotonia) ou elevado

(hipertonia)? Para que se regule, preciso relaxar mais ou tonificar? Em meu diário de

bordo, no dia 14 de março de 2005, anotei algo a esse respeito: “impressionante como

empurrar o chão com algum apoio já pode modificar rapidamente o tônus”

(manuscrito). Empurrar o chão com diferentes apoios, sustentar a pressão e depois

afrouxá-la é outro procedimento que traz uma grande riqueza de estímulos para o

periósteo (a membrana que reveste os ossos), que ativa o sentido proprioceptivo,

cinestésico, que é a própria percepção do corpo enquanto volume tridimensional.

Segundo Gainza (1997, p.39), já que “a eutonia se propõe um equilíbrio de tensões, a

pessoa deveria adquirir maior consciência proprioceptiva de seu estado corporal”.

Teixeira (2008, p.39) complementa: “[...] lembremos dos locais no corpo onde se

instalam a propriocepção: na pele, no periósteo [...], nos tendões e ligamentos (nas

articulações) – áreas internas e externas do corpo que possibilitam [...] a emergência de

sensações e percepções [...]”. Nas palavras da própria Gerda Alexander (1997):

A eutonia desenvolve o corpo e a imagem corporal até alcançar uma consciência mais plena e um conhecimento mais completo do

corpo. Inclui não somente o controle da postura, a distribuição do

peso, o controle do tônus e das funções musculares como também a consciência e controle de processos semiconscientes e

inconscientes como a circulação e a regularização do sistema

neurovegetativo autônomo (apud GAINZA, 1997, p.129).

O aspecto holístico e global desta abordagem é ressaltado quando Gainza (1997,

p.110) afirma que “[...] a eutonia não é só um método de ensino corporal, mas um

caminho para o autoconhecimento; um método pedagógico e também uma filosofia de

vida”.

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A regulação tônica é o grande propósito da Eutonia, conforme o nome já indica.

Para isso, são utilizados diferentes procedimentos como a permeabilidade, o contato e o

prolongamento, que são todas qualidades, atitudes físicas que indicam um “como tocar”

e um “como trocar” com diferentes superfícies e objetos (sentindo por exemplo as

texturas, temperaturas, pulsações e sensações oriundas do chão, das paredes, de

castanhas, de bambus ou do toque de colegas) e posteriormente um “como mover” mais

equilibrado, culminando na possibilidade de um movimento eutônico, um movimento

com tônus perfeitamente regulado, flexível para as mudanças expressivas que se queira

empreender ao mover e agir no mundo. Este dado de regulação tônica do corpo ao agir

também é central na interface com a emissão vocal, aspecto sobre o qual discorrerei no

terceiro capítulo.

Sobre a visão do corpo como um meio de passagem de vibrações, Gerda afirma:

Começamos sentindo a distância de um lado a outro do corpo,

procurando perceber o que está dentro. Trata-se de adquirir

consciência das três dimensões do corpo, por meio do próprio corpo. De um limite da pele até o oposto nos diferentes setores: no

tórax, nas pernas, etc. Isso permite a liberação das fixações ou

bloqueios no tônus e estimula sobretudo a circulação devido ao ‘espaço’ que se cria. (ALEXANDER apud GAINZA, 1997, p.100).

Ainda sobre o corpo enquanto um meio permeável às vibrações, relatei uma

vivência em meu diário de bordo:

Rio, 14/03/2005

[...].

Tive hoje na aula de eutonia uma experiência cinestésica muito

profunda [...]. Pusemos uma bola de espuma sob a coluna, passando

sequencialmente por várias regiões, da fronteira da lombar com a torácica até o topo da torácica. A sensação de permitir que a bola e a

sensação da bola fizessem contato, se irradiassem até à cervical foi de

uma intensidade enorme, como se a comporta de uma represa se

tivesse aberto: senti um rio anti-gravitacional que subiu do centro do meu corpo e chegou até à cabeça [...] (manuscrito).

As três dimensões do corpo de que fala Gerda Alexander são: altura, largura e

profundidade. A percepção simultânea das três me instiga a vivência sempre presente de

um corpo tridimensional, um volume que ocupa um espaço, volume este que sou eu

mesmo: estou no centro deste volume que inaugura a vivência do espaço externo ao

meu redor, a partir do meu auto-reconhecimento enquanto espaço interno, da pele pra

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dentro. Este habitar nas dimensões do corpo é muito presente no meu trabalho técnico

corporal-vocal diário, e foi fundamental para a conjugação de princípios estruturantes

em comum da educação somática e da técnica vocal. O processo de reconhecer e ocupar

o próprio corpo, no instante mesmo em que as sensações são sentidas e informam e

atualizam uma imagem corporal (sempre em movimento), é o gigantesco e ao mesmo

tempo simples procedimento fundamental com que as práticas somáticas nos

presenteiam nesta era em que vivemos: parar para sentir e, a partir daí, reinventar e

melhorar o agir. É o que nos diz Fortin, sobre o diferencial dos procedimentos de uma

prática somática:

[...] os conhecimentos somáticos propõem [...] a adoção de

situações pedagógicas privilegiando um trabalho em lentidão, uma exploração atenta da amplitude articular, uma variação minuciosa

do esforço, etc. Ser capaz de sentir para agir, tal é um leitmotiv da

educação somática. Agir no intuito de aumentar as possibilidades de escolha, logo, aumentar sua liberdade (FORTIN, 1999, p.43-44,

grifo do autor).

1.2.4. Técnica Alexander

F. M. Alexander foi um declamador australiano que, a partir de problemas crônicos

de rouquidão, desenvolveu uma técnica prática de auto-observação e “reprogramação”

postural. Escreveu vários livros e difundiu sua Técnica em programas de formação

oficiais. O professor da Técnica Alexander Reinaldo Salvador Renzo, na apresentação à

segunda edição brasileira do livro O Uso de Si Mesmo - a direção consciente em

relação com o diagnóstico, o funcionamento e o controle da reação, escrito pelo

próprio Alexander, nos informa:

[...] seu trabalho foi reconhecido, aclamado e incentivado por diversas

personalidades do mundo intelectual, artístico e científico, como o

dramaturgo George Bernard Shaw, o escritor Aldous Huxley, o educador e filósofo americano John Dewey, o médico Prêmio Nobel

de Fisiologia ou Medicina de 1932 Sir Charles Sherrington, o

anatomista George Coghill, o antropologista e anatomista australiano

Raymond Dart, o etologista e Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1973 Nickolaas Tinbergen, além de vários membros da Associação

Britânica de Médicos” (RENZO apud ALEXANDER, 2010, p.X,

apresentação à nova edição).

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O artigo de Strazzacappa e Costa (2015) A quem possa interessar: a Educação

Somática nas pesquisas acadêmicas destaca que a técnica de educação somática mais

presente historicamente na área de Música é a Técnica Alexander. Barros nos fornece

um dado esclarecedor a respeito da presença internacional desta técnica na formação de

cantores:

Especificamente no trabalho com o canto, as práticas de Educação

Somática, nos Estados Unidos e Europa, já estão presentes em

conceituados centros de estudo de música há bastante tempo, como por exemplo, na Royal College of Music, que oferece a seus alunos

desde 1950 aulas regulares da Técnica Alexander (BARROS,

2012, p. 58).

Renzo conta também que, no início do seu processo de investigação pessoal,

“Alexander notou que a maneira como ele usava seu organismo o impedia de utilizar,

satisfatoriamente, a ferramenta básica para sua profissão original de declamador: sua

voz” (RENZO apud ALEXANDER, 2010, p.IX, apresentação à nova edição). O

conceito de uso (uso de si mesmo, uso do organismo) é central na pedagogia de

Alexander. Wilfred Barlow relata que o que havia de novo em seu método de

observação, em primeiro lugar, era o reconhecimento da extrema importância que o uso

da região cabeça/pescoço tinha para o funcionamento psicofísico (BARLOW apud

ALEXANDER, p.XIV, introdução à edição de 1985) e que ele “não só descreveu com

acuidade a natureza do mau uso do corpo, mas [...] concebeu um método extremamente

refinado através do qual podemos reeducar nossos hábitos condenáveis” (BARLOW

apud ALEXANDER, p.XV, introdução à edição de 1985). À relação entre cabeça,

pescoço e costas, Alexander dá o nome de controle primordial (ALEXANDER, 2010).

A partir do seu problema pessoal, que de fato o afligia constantemente,

Alexander perguntou-se, em relação a uma récita em específico, para a qual tinha se

preparado e resguardado aplicadamente seguindo orientação médica: “Não é razoável –

perguntei – concluir então que alguma coisa que eu estava fazendo naquela noite, ao

usar a voz, é que era a causa do problema?” (ALEXANDER, 2010, p.16, grifo do

autor). Tal suposição orientou sua obstinada prática pessoal por meses e anos, inclusive

com uso de um espelho (ALEXANDER, 2010). A partir daí, um longo e profundo

processo de descobertas foi se desenrolando, e revelando os fundamentos da

metodologia que ele veio a consolidar. Ele encontrou respostas: “Vi que, tão logo

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começava a declamar, eu tendia a inclinar a cabeça para trás, comprimir a laringe e

sorver o ar através da boca de tal modo que produzia um som ofegante”

(ALEXANDER, 2010, p.17), ou seja, ele fazia algo inconsciente (até então) que

comprometia o seu controle primordial e todo o uso do seu organismo, prejudicando o

seu desempenho.

Também nesta técnica reconhecemos o uso do chão como procedimento

pedagógico básico: a posição semi-supina como referência para o reconhecimento da

estrutura corporal e a experiência de liberação de padrões posturais nocivos. Semi-

supina é a posição de máximo repouso da coluna, em que se deita de costas no chão

com as solas dos pés apoiadas (joelhos flexionados), mãos apoiadas no peito (cotovelos

flexionados) e a cabeça apoiada num livro de espessura média-fina. Sobre os benefícios

colhidos pela duração do deitar, Gerda Alexander afirma:

Recostei-me sobre o solo e verifiquei que podia experimentar essa espécie de relaxamento. [...] Depois dessa prática de relaxamento

senti-me muito descansada. [...] Intuí que me ajudaria muitíssimo

praticar novas formas de recriar meu organismo (apud GAINZA,

1997, p.35).

É muito interessante notar que, a partir da sua necessidade pessoal de superação

de uma disfonia, Alexander descobriu uma tecnologia aplicável a qualquer atividade

humana, ampliando assim o espectro de sua influência. O filósofo e educador americano

John Dewey, fiel praticante dos ensinos de Alexander, afirma que:

[...] Alexander criou o que poderíamos denominar uma fisiologia do organismo vivo. Suas observações e seus experimentos tratam do

funcionamento real do corpo, com o organismo em operação, e em

operação sob as condições do cotidiano – levantar, sentar, andar, ficar

parado, usar braços, mãos, voz, ferramentas, instrumentos de todos os tipos (DEWEY apud ALEXANDER, 2010, p.XVIII, introdução, grifo

do autor).

1.3. Princípios em comum

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Ao fim deste primeiro capítulo de revisão de literatura do campo da educação

somática, enriquecida pela exposição de algumas das minhas vivências pessoais das

técnicas, gostaria de propor uma síntese de princípios em comum. Todas as quatro

técnicas revistas se estruturam com foco nos seguintes princípios que fundamentam e

reeducam o movimento e integram função e expressão:

uso do chão, vivência da gravidade no corpo e contato com o seu peso;

escuta das sensações, estímulo à propriocepção e atualização de uma imagem

corporal;

consciência dos ossos e seu papel central na eficiência do movimento;

intenção que precede o movimento;

conexões ósseas facilitando estabilização e mobilização do corpo no espaço;

regulação tônica, equilíbrio da tensão muscular, movimento eutônico;

pausa também é movimento;

liberação e abertura de espaços dentro do corpo, afetando a vivência do espaço

externo;

uso de si mesmo, condicionando o funcionamento geral do organismo, com

especial importância da relação cabeça/pescoço/costas: controle primordial.

Estes princípios servirão de base para a interação que proponho entre educação

somática e técnica vocal, esmiuçada no capítulo 3.

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CAPÍTULO 2

CANTO NÃO-FUNCIONAL: A EMISSÃO VOCAL SEM O CONHECIMENTO

FISIOLÓGICO

OU

OS PERIGOS DE CANTAR SEM CONSCIÊNCIA

2.1. Iniciação em canto popular

Em 2002, comecei a fazer aulas de canto individuais, numa linha bastante

eclética de contato com várias tradições musicais do mundo, conectadas pelo foco na

cultura popular e em cânticos oriundos de rituais, de práticas espirituais. Estudei cantos

indianos, tibetanos, africanos, pontos de umbanda, hinos do Daime. A abordagem era

pouco técnica e mais meditativa. Sou muito grato por este primeiro trabalho de

sensibilização, de despertar da voz, apesar de, nesta ocasião, ainda não ter podido de

fato conscientizar e dominar os fundamentos de uma boa emissão vocal. Prossegui até o

fim de 2004 com estas aulas, quando fiz uma pausa.

Em outubro de 2005, assisti ao show do projeto Outros Cantos, na antiga

Comuna do Semente, hoje Bar Semente, na Lapa, Rio de Janeiro. A banda era integrada

por Ajurinã Zwarg (bateria), Bruno Aguilar (contrabaixo), Vitor Gonçalves (piano

elétrico), Bernardo Ramos (guitarra, direção musical e arranjos) e pela cantora Beth

Dau. Eu havia acabado de terminar minha formação técnica em dança contemporânea e

recuperação motora na Escola Angel Vianna, estava cursando o Bacharelado em

Interpretação da Escola de Teatro da UNIRIO (desde 2003) e, pelo visto, estava no

limiar de levar mais uma flechada das musas das artes: ouvir Beth cantando foi um

divisor de águas na minha vida. Ali eu tive a certeza de que eu queria fazer aquilo

também: gostaria de me tornar um cantor profissional.

À época, eu só saberia comentar da afinação de Beth, da escolha de repertório

(canções de consagrados compositores como Cartola, Tom Jobim, Joyce, Toninho Horta

e Ivan Lins, dentre outros) e do seu alto grau de expressividade e interação com os

outros músicos. Um maravilhoso show de jovens jazzistas brasileiros, firmados na nossa

estirpe de grandes e virtuosos instrumentistas, e todos de certa forma herdeiros de

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Hermeto Pascoal e de Itiberê Zwarg, posto que colaboraram com ambos, especialmente

com o último, na Itiberê Orquestra Família. Hoje, passados onze anos desta epifania,

depois de muitos percalços até “encontrar” a minha voz, posso acrescentar que Beth tem

das melhores qualidades que um cantor pode ter: a flexibilidade da voz, a capacidade de

transitar com leveza e desenvoltura ao longo de toda a tessitura, e de manter o timbre

uniforme neste processo. Eu não saberia reconhecer nem nomear isso naquela época,

mas agora percebo o quanto a habilidade dessa voz foi importante para me cativar: sua

capacidade de mobilizar seu som (e com ele, minha escuta e minha emoção) de forma

firme, estável, bem colocada e sustentada. O duplo estabilidade/mobilidade aparecerá

no terceiro capítulo desta monografia, associado à discussão sobre a estrutura e os

fundamentos da técnica vocal.

O uso da voz ainda é um tema bastante misterioso e desconhecido para a maioria

da população e, mesmo entre a comunidade dita “especializada”, há muita polêmica

envolvendo qual seria um padrão “certo” de vocalização. Existem preconceitos em

relação ao canto lírico, o que considero uma opinião superficial da coisa, alegando que

não se entende o que é cantado, que os cantores cantam com um “ovo na boca”, etc. Por

experiência própria, afirmo que esse tipo de crença não leva ninguém a lugar nenhum e,

pelo contrário, pode representar um sério empecilho para a exploração de todo o nosso

potencial vocal. Isto faz sentido para mim pois, somente ao tomar contato com

professoras de canto lírico (a partir de 2013), eu pude me sentir conscientizando,

compreendendo e dominando os fundamentos de uma boa produção vocal.

Esta polêmica foi, inclusive, bastante levada em conta no meu processo de

investigação da hipótese desta monografia. Eu tendia a generalizar, afirmando que tal

clareza didática para a transmissão dos fundamentos da técnica vocal era um atributo

intrínseco da pedagogia vocal da tradição lírica. Minha orientadora, a cantora (soprano)

e professora de canto da UNIRIO Doriana Mendes me ajudou a entender que eu havia

tido sorte em ter três professoras que possuíam rica fundamentação em fisiologia da voz

e/ou em educação somática. O capítulo 3 contém a narrativa dos insights que tive a

partir do meu encontro com as propostas pedagógicas destas três professoras.

Fiz uma espécie de parêntese para mostrar o meu estágio atual de reflexão, mas

voltemos à época da minha iniciação em canto popular, que é o foco central do presente

capítulo. Iniciei o estudo em aulas individuais em 2006, seguindo indicações de amigos

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cantores e permaneci por quatro anos com o mesmo professor. Vivi muitas descobertas

em relação ao cantar, à interpretação das letras, ao brilho da voz, à colocação muito

frontal, com o uso quase fixo de um formato de sorriso na musculatura facial. Não tenho

lembrança dos padrões melódicos cantados, mas isto, a princípio, pode ser apenas

devido à minha inexperiência, à época, em percepção musical, coisa que fui adquirindo

especialmente no processo de preparação para ingresso na Licenciatura em Música da

UNIRIO, a partir de 2011 (ingressei no primeiro semestre de 2012). Lembro-me de usar

sempre muita força para cantar e da minha voz quebrar constantemente na região aguda.

2.2. Classificação vocal equivocada

Fui classificado, nesse período, como tenor. Tomo como referência as palavras

do cantor lírico e professor de canto Eladio Pérez-González (2007), de seu livro

Iniciação à técnica vocal, que poderiam ser exatamente minhas:

[...] fui classificado como tenor, o que me deixou muito feliz, pois eu

queria ser tenor e me ouvia como tal. Essa foi a minha primeira e

infelizmente muito séria falha de autopercepção. Muita gente me disse: ‘Você tenor, com essa fala grave?...’ [...] (PÉREZ-

GONZÁLEZ, 2007, p.x da apresentação).

Minha voz falada também era grave, pesada, enterrada, e eu sentia

constantemente desconforto para falar: não havia entendido ainda o que era colocar a

voz, produzí-la sem esforço nem sobrecarga do trato vocal, projetá-la a partir das

propriedades ressonantais da minha anatomia. Para agravar a situação, eu fumava

constantemente e, a partir de 2008, passei a dar aulas de teatro algumas vezes por

semana para turmas de crianças e adolescentes, o que afetou meu desempenho vocal,

pois usava uma voz com muito tônus. Não era disciplinado, não aquecia minha voz para

dar aula nem praticava uma rotina de exercícios.

Continuemos conhecendo o depoimento de Pérez-González:

[...] mas a tenoricidade me fugia sempre, e o meu rendimento vocal apresentava frequentemente suspeita irregularidade.

Essa irregularidade se manifestava mais ou menos assim: um

dia eu amanhecia com a voz muito fácil e então cantava bastante. Aproveitando a ‘dádiva dos deuses’, atacava árias e canções difíceis,

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dentro dos limites mencionados, e terminava muito cansado.

No dia seguinte, mesmo tendo dormido bem, a voz estava com pouca vontade de colaborar. No meu bem intencionado anseio, eu

tinha passado por cima da diferença entre extensão e tessitura, e

aquilo que seria relativamente fácil para qualquer tenor tornava-se extenuante para a minha voz. Sentia aperto na garganta e dificuldade

progressiva do mi3 para acima, bastando uma pequena fadiga para

que as notas, a partir do sol3, quebrassem. Naturalmente que eu,

valente como poucos, insistia em achar soluções, convicto que estava de que os problemas só podiam ser de ordem técnica, e nunca o

resultado de alguma limitação somática (PÉREZ-GONZÁLEZ, 2007,

p.x da apresentação, grifos do autor).

Não tenho como comprovar, pois na época eu não conectava meu canto ao

conhecimento das alturas no teclado, mas estimo que minha voz começava a quebrar a

partir do ré3, ou até um pouco antes, e o sol3 no registro de peito era uma nota

totalmente impossível para mim. Eu, assim como o professor Pérez-González,

acreditava que o problema era apenas meu, que eu não era virtuoso ou corajoso o

suficiente. Não possuía recursos nem uma diversidade de pontos de vista que me

permitissem olhar objetivamente para as questões que minha prática vocal denotava.

Não sabia o que era fisiologia da voz nem conhecia as classificações vocais e sua

determinação genética.

Fisiologia da Voz é o campo do saber que vai esmiuçar o funcionamento das

estruturas envolvidas na fonação, a nível fisiológico. Uma notória especialista deste

campo é a fonoaudióloga francesa Claire Dinville, também professora de técnica vocal.

Em seu livro Os distúrbios da voz e sua reeducação, ela fornece uma definição do que

seria a voz:

Visto (sic) que a voz falada é antes de tudo ar sonorizado, é a

respiração que deve fornecer a pressão expiratória necessária para dar origem ao som da laringe, ser capaz de mantê-lo e permitir sua

propagação nas cavidades de ressonância. Neste nível a voz é

percebida como um tremor provocado pelas sensações vibratórias transmitidas às paredes das cavidades e ao esqueleto. É realizada pelo

tensionamento da musculatura respiratória, no sentido de trabalho

muscular, flexível e firme, e não de esforço, da laringe, e da cavidade buco-faríngea. É o resultado da coordenação harmoniosa destes três

órgãos (DINVILLE, 2001, p.4).

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Veremos que a classificação vocal equivocada tem efeitos danosos para o som e

para o aparelho fonador do cantor. Minha voz apresentava as mesmas características

descritas por Pérez-González no trecho a seguir:

Como consequência do esforço de cantar durante tantos anos na

tessitura de tenor, ou seja, um tom e meio acima do que deveria, instalaram-se na minha voz um tremelicar rapidíssimo e irregular, uma

espécie de cintilação, perceptível principalmente nas notas longas

(PÉREZ-GONZÁLEZ, 2007, p. xix da apresentação).

Dinville (2001) afirma também que a desclassificação, voluntária ou não, pode

ser a causa de tais distúrbios funcionais, assim como a classificação prematura, que

apresenta risco de ser uma má classificação; e que, “tanto uma quanto outra terão

inconvenientes, visto (sic) que torna-se impossível falar ou cantar sem sofrer danos,

numa categoria vocal que não corresponda à voz real da pessoa” (DINVILLE, 2001, p.

70).

O fato é que, para mim, cantar nesse período representava um terreno

desconhecido, que me atraía muito e que me proporcionava algum prazer, mas que

também trazia à tona um padrão de empregar muito esforço para alcançar determinadas

notas agudas, esforço este que era acompanhado de emoções incômodas, como o medo

do que poderia acontecer com a minha voz (e com o julgamento de quem me ouvisse)

ao me aproximar destas notas.

2.3. Necessidade de mudança

Depois de quatro anos de aulas de canto popular com o mesmo professor, eu

ainda não fazia ideia de quais eram os fundamentos de uma produção vocal saudável,

sem esforço, equilibrada, talvez porque eu ainda não houvesse pensado sobre isso com o

afinco necessário e procedido num caminho de maior auto-observação, como o fez

Alexander. Não sabia qual o próximo passo, mas sentia que precisava interromper meus

estudos com o professor de então, tomar um pouco de distância para me conhecer

melhor por mim mesmo, para checar se, por falta de experiência e de conhecimento de

outros caminhos pedagógicos, eu não estava seguindo cegamente uma orientação que eu

não podia nem avaliar se era realmente boa e consistente. Era como se eu estivesse

pressentindo o seguinte ponto de vista de Alexander: “Por ser habitual, esse uso errôneo

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exercia uma influência inevitavelmente forte, acentuada em meu caso porque, durante

os últimos anos, eu sem dúvida o estivera cultivando com meus esforços de cumprir as

instruções de meu professor [...]” (ALEXANDER, 2010, p.26).

Realizei um show nesse período de entressafra, no dia do meu aniversário de 27

anos: 1 de abril de 2010. Assisti à filmagem desse show e fiquei estarrecido: eu não me

reconheci. Achei minha voz comprimida, infantil, sem corpo, sem escuridão

(harmônicos graves), sem espaço, sem fundo, sem maciez, sem reverberação. Passei a

chamar este de “o dia do não-reconhecimento”. Esse insight foi crucial para minha

mudança de rumo e para o início do meu processo de reeducação vocal.

2.3.1. Diagnóstico de uma disfonia: o nódulo nas pregas vocais

A partir deste não-reconhecimento, procurei a ajuda especializada de Felipe

Abreu, notório preparador vocal carioca, que me recebeu para uma aula de canto e me

recomendou o exame de videolaringoestroboscopia, que fiz dias depois com o médico

otorrinolaringologista Doutor Marcos Sarvat. Este diagnosticou que eu havia

desenvolvido uma lesão, uma disfonia: um nódulo nas pregas vocais. Dinville nos dá a

seguinte definição de nódulo:

O nódulo, que é um tipo de tumor benigno, situa-se no primeiro

terço anterior das pregas vocais. A glote em forma de ampulheta e o

aspecto côncavo das pregas vocais determinam um vazamento de ar.

Elas estão hipotônicas, e vibram de maneira desigual. Esta disfonia faz parte das patologias traumáticas, vista que ela

ocorre entre os que abusam da voz, como crianças, professores,

cantores, advogados, etc., naqueles que forçam ou que falam muito tempo seguido, ou em más condições, como ambulantes e vendedores,

e que maltratam e estafam sua laringe.

É portanto um traumatismo vocal, uma fonação forçada e também uma técnica defeituosa, uma simples rouquidão, uma má

classificação vocal, que pode provocar seja uma tendência nodular,

um nódulo, ou nódulos de kissing. A voz torna-se sem timbre e

debilitada, havendo vazamento de ar. O cantor fica cheio de dificuldades nos agudos, nos médios e nos sons sequenciais e doces

(DINVILLE, 2001, p.34).

Minha capacidade de amplificação natural, a partir da minha própria caixa

acústica, ficara muito prejudicada, como nos mostra Pérez-González: “A ‘tenorização’

era obtida cantando com a laringe bem mais alta do que na sua posição de repouso e, em

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consequência, a voz apresentava pouca amplitude ou volume” (PÉREZ-GONZÁLEZ,

2007, p.xi da apresentação, grifo do autor). Lembro-me de Felipe tocar e tentar

mobilizar minha laringe lateralmente, e comentar que esta estava alta e rígida. A relação

entre laringe alta e perda de harmônicos graves (percepção que tive no “dia do não-

reconhecimento”) é explicitada no seguinte trecho: “De nada valiam os avisos do

incômodo na garganta ou das notas quebradas: minha laringe, subindo desde o lá2,

cerceava os harmônicos graves de cada nota ascendente [...]” (PÉREZ-GONZÁLEZ,

2007, p.xi da apresentação).

A minha lesão, portanto, era a prova viva e contundente de que o meu não-

reconhecimento, a minha não-aprovação da minha própria emissão vocal vista e ouvida

de fora, tinha razão de ser: meu som e minha expressão não estavam embasados

fisiologicamente em princípios de saúde vocal, de tensão equilibrada e de conforto. Essa

não-aprovação também vinha confirmar algo que eu podia sentir mas que não conseguia

elaborar conscientemente (e que percebia no feedback de pessoas próximas a mim, ou

justamente no que o silêncio delas poderia querer dizer): eu fazia força demais para

cantar, não tinha domínio do que fazia, não sabia administrar meu fluxo vocálico no

sentido de um conforto e de uma estabilidade. Meu canto era deficiente, revelava uma

técnica bastante limitada. Eu ainda não havia “encontrado a minha voz”, posto que não

percebia a relação sutil entre postura pré-fonatória e desempenho fonatório.

Nesta minha única aula com Felipe Abreu (em que ele, muito sensivelmente,

“ouviu” a minha lesão), também foi ele mais um a comentar sobre o meu prognatismo2

e sobre o quanto um tratamento ortodôntico e a cirurgia ortognática3 fariam bem para a

minha respiração e para a minha emissão. Foi quase um oráculo que muda o destino de

uma pessoa! Junto com o diagnóstico de nódulo pelo Doutor Sarvat, esta aula

representou um ponto de mutação na minha trajetória, um marco fundador de uma nova

e tenaz caminhada de aperfeiçoamento técnico e de busca por consciência e integração

corporal-vocal para o canto. Chamo este, carinhosamente e com humor, de “o dia em

que Felipe Abreu ‘ouviu’ a minha lesão”. Daí em diante, a partir de um certo susto, eu

2 Prognatismo: anomalia congênita de ordem anatômica, em que a mandíbula se desenvolve

desproporcionalmente em relação ao maxilar, projetando-se à frente e gerando um queixo protuberante.

No meu caso, eu apresentava também uma atresia maxilar: um hipodesenvolvimento das dimensões do

maxilar, agravando ainda mais o contraste entre os dois ossos. 3 Cirurgia ortognática: a cirurgia que corrige a gnase, a mordida, harmonizando as dimensões de maxilar

e mandíbula.

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tomei as rédeas do meu processo de reeducação, e tive a minha prática vocal lenta e

gradualmente reformulada, com a ajuda de fonoterapia e de novas pedagogias de canto

que encontrei sucessivamente a partir de então.

Antes de abordarmos a reeducação propriamente dita, analisemos os principais

fatores que causaram a disfonia.

2.3.2. Causas da disfonia: mau uso, má coordenação

Recordando o meu antigo padrão de empregar muita força para vocalizar (o que

revelava um trabalho pobre de regulação tônica na emissão vocal e, portanto, de

coordenação do uso de mim mesmo), podemos observá-lo à luz do que diz Klauss

Vianna no seguinte trecho:

Se quisermos aprofundar mais essa observação, encontraremos

claramente um dos fatores dessa desarmonia na debilidade da coordenação. É como se as diferentes partes do aparelho motor

perdessem a ligação que fazem do corpo uma unidade. O outro

elemento que chama a atenção é o emprego defeituoso da força [...] (VIANNA, 1990, p.133).

Podemos entender, então, que um processo de vocalização bem coordenado é

praticamente um sinônimo de boa técnica vocal, seja ela adquirida ou nata, já que ela

preveniria justamente o quadro patológico que descreve Dinville (2001) quando afirma

que disfunções vocais e lesões e alterações laríngeas podem provir da ausência de

técnica vocal ou de má técnica, voluntária ou involuntariamente imposta por um

professor; da classificação equivocada, que obriga a pessoa a falar ou a cantar num

âmbito não correspondente à sua categoria vocal; e de uma respiração mal empregada,

que pode levar à fadiga vocal seguida de dificuldades da voz. Ela afirma ainda que:

Acontecerá o mesmo quando a ausência de técnica vocal e

respiratória, ou uma técnica defeituosa, vierem, cedo ou tarde, a

provocar dificuldades que se agravarão, sobretudo porque, muito frequentemente, as pessoas não sabem como remediá-las, sendo

estimuladas a utilizar mecanismos de compensação para tentar

reencontrar a mesma qualidade de timbre e o mesmo rendimento vocal (DINVILLE, 2001, p.70).

Estes mecanismos de compensação aparecem citados por outros autores:

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Assim, seguindo instruções de ‘pessoas competentes’, eu cantava levantando ou abaixando a cabeça, chupando a barriga para ‘apoiar’,

abrindo a boca na ‘posição de sorriso’, abaixando o dorso da língua ou

levantando sua ponta, abaixando o queixo ao máximo, ou muito pouco, inclinando a cabeça e apoiando-a contra a parede, vocalizando

só com a, com i, ou com qualquer outra vogal, ou só ‘boccachiusa’,

etc. ad nauseam (PÉREZ-GONZÁLEZ, 2007, p.xi da apresentação,

grifos do autor).

Klauss Vianna expande essa visão para o nosso desempenho nas atividades mais

triviais: “No entanto, andamos em cima dos ombros, corremos com a língua: a força

está sempre concentrada nas partes erradas” (VIANNA, 1990, p.79); e na dança: “[...]

quando se pede um grand-jeté a uma bailarina, é comum descobrir que elas costumam

colocar a tensão no pescoço. Não percebem que, com o pé bem colocado, sentindo o

chão, essa energia se distribui” (VIANNA, 1990, p.79).

Não seriam estes mecanismos de compensação exatamente o que Alexander

observou em seus experimentos na descoberta do controle primordial? Ele identificou

especialmente três tendências: inclinar a cabeça para trás, comprimir a laringe e puxar o

ar pela boca (ALEXANDER, 2010). Por experiência própria, sei que estes mecanismos

se agravam conforme o registro agudo vai se aproximando e os hábitos de uma emissão

hipertônica vão prevalecendo. O tônus muscular predomina sobre a ossatura e distorce a

liberdade do esqueleto e das articulações. Nas palavras do próprio Alexander (2010,

p.18): “Declamei várias vezes diante do espelho e descobri que as três tendências já

observadas por mim acentuavam-se de modo especial quando eu estava declamando

trechos que exigiam demais da minha voz”. E Dinville arremata, descrevendo os efeitos

deste padrão nocivo de uso incoordenado nos órgãos responsáveis pela fonação:

Entre os cantores aparecem a dificuldade dos meio-tons, os sons finos, a falta de homogeneidade da voz. Depois o surgimento dos registros e

passagens, sinais das doenças da ressonância que denotam uma

incoordenação motora seguida de uma má utilização dos órgãos

faringo-laríngeos, que vão levar, pouco a pouco, a lesões orgânicas, a inflamações mais ou menos graves, e deformações das pregas vocais

e, portanto, a distúrbios da ressonância cada vez maiores

(DINVILLE, 2001, p.70, grifos meus).

Esta má utilização dos órgãos faringo-laríngeos a que se refere Dinville pode ser

identificada de forma visual e tátil pelo que ela chama de hipercinesia: “[...] o pescoço

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se congestionará, se inflará, as veias aparecerão. Os esforços ininterruptos da

musculatura glótica e perilaríngea traumatizarão a laringe e o timbre da voz se alterará

cada vez mais” (DINVILLE, 2001, p. 67). Enriquecendo a minha própria afirmação

sobre Felipe Abreu ter “ouvido” a minha lesão, suponho que ele também a tenha “visto”

e “sentido” (através do toque), quando identificou a posição e o tônus elevados de

minha laringe e de toda a sua musculatura extrínseca.

A maioria dos fatores listados como causa da disfonia que desenvolvi (como

debilidade na coordenação, uso exagerado da força e hipercinesia) também podem ser

analisados à luz da Eutonia, abrangendo aqui a prática vocal como movimento do

corpo: são sintomas que revelam a necessidade de um movimento eutônico, no caso,

uma vocalização eutônica, com tônus justo e harmonioso, coordenando com estrutura,

liberdade e função a ação de ossos e músculos, adaptada à expressão (e altura!) que se

quer atingir.

2.4. Primeira fase de reeducação da voz: fonoterapia, nova pedagogia de canto,

tratamento ortodôntico e cirurgia ortognática

Constato, através do processo de escrita deste texto, que o meu processo de

busca por ferramentas pedagógicas para uma reeducação vocal tem bastante afinidade

com a biografia de alguns dos criadores de técnicas de educação somática mencionadas

neste estudo. Eu também precisei me reinventar, questionar meus hábitos, assim como

F. M. Alexander e Gerda Alexander. A grande diferença é que eu pude ter acesso direto

à fonte de metodologias práticas já muito bem fundamentadas, e não precisei inventar

meu próprio método de auto-observação e reabilitação.

Decidi-me de vez pela cirurgia ortognática e pelo tratamento ortodôntico que a

acompanhava, sob orientação do renomado cirurgião ortopedista de cabeça e pescoço,

Doutor Ricardo Cruz, e do ortodontista José Augusto Miguel. A cirurgia foi realizada

com sucesso em novembro de 2012 no Hospital Estadual Pedro Ernesto, sob a

coordenação geral do cirurgião bucomaxilofacial Eduardo Martins. Sou muito grato a

todos estes competentes profissionais da saúde por todo o carinho e profissionalismo

com que sempre fui tratado.

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Notei ao longo do tempo o enorme impacto positivo que a correção anatômica

trouxe para o meu som, chegando a perguntar-me se, caso eu não tivesse desenvolvido o

prognatismo, eu apresentaria uma técnica vocal “nata” mais eficiente e coordenada, ou

se a minha prática prévia de canto popular sem base fisiológica teria tido um efeito tão

nocivo.

Comecei também, em 2010, a fazer sessões de fonoterapia com a fonoaudióloga

especialista em voz cantada Luciana Oliveira, dentro do estúdio da cantora e professora

Mirna Rubim, antigo Estúdio Voz Plena, atual Estudio VOCE. A fonoterapia me trouxe

a consciência da necessidade de exercícios pré-fonatórios: para trabalhar, colocar e

corrigir a emissão vocal, não precisamos usar a voz o tempo inteiro! Há muito o que se

fazer liberando a respiração e treinando o fôlego, reeducando postura, tonificando ou

relaxando e alongando musculaturas extrínsecas fundamentais na produção vocal

(sempre conectadas em última instância à laringe, fonte primeira do som) como: língua,

lábios, maçãs do rosto, véu palatino, pescoço.

Concomitante com o início da fonoterapia, passei a ter aulas de canto com

Cecilia Spyer, vocalista experiente da área de música popular, a quem sou muito grato

por ter-me iniciado em padrões mais gentis de emissão, convidando a observação do

corpo para a prática vocal. Com Cecilia, vivi um importante período de transição, de

“preparação do terreno” para o processo de tomada de consciência que catalisaria a

“solução acelerada de problemas crônicos”, nos anos seguintes, a partir do meu

encontro com o canto lírico.

Seis meses depois de iniciadas fonoterapia e aulas com Cecilia Spyer, fiz novo

exame, que denotou o desaparecimento do nódulo. Alexander fala por mim: “E mais:

quando, depois dessas experiências, minha garganta foi examinada de novo por meus

amigos médicos, observou-se grande melhora das condições gerais da laringe e das

cordas vocais” (ALEXANDER, 2010, p.19).

Sobre o processo de reeducação do movimento e transformação pessoal, Klauss

Vianna afirma:

Mas essa transformação é um processo que exige tempo, mesmo

quando se dá por etapas. E o tempo será inútil se cada humano não tiver por método um trabalho profundo e correto, centrado na

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conscientização e na continuidade, que são ainda mais importantes do

que a força e quantidade (VIANNA, 1990, p.133, grifo meu).

Esta etapa de técnica corretiva para a cura do nódulo, associada à correção

anatômica através da cirurgia, representou um primeiro grande passo no processo de

reeducação vocal. A consciência e a consistência se aprofundaram com o tempo. Posso

afirmar que este processo é infinito, que ele continua se dando constantemente, posto

que percepção é movimento, corpo é movimento, voz é corpo, portanto voz é

percepção: podemos abordar o fazer técnico sempre com uma riqueza de pontos de vista

que torna todo o processo bastante diversificado, lúdico e prazeroso.

Eladio Pérez-González segue presenteando-nos com seu depoimento:

[...] eu resolvi seguir a minha autopercepção e reformular inteiramente a minha emissão. Naturalmente haveria muito o que

fazer, pois eu não conseguiria facilmente apagar da memória auditiva

aquela voz que tinha direitos por causa dos reflexos adquiridos. Por outra parte, as novas atitudes iriam certamente produzir novas

sensações e novos resultados sonoros, com os quais eu teria de

aprender a lidar (PÉREZ-GONZÁLEZ, p.xii da apresentação, grifo

meu).

Alexander enriquece a perspectiva:

[...] no processo de aquisição da direção consciente do uso do

organismo humano, desvenda-se um ‘território desconhecido’ até então, onde o campo de desenvolvimento das potencialidades

humanas é praticamente ilimitado. Qualquer um que resolva dedicar

tempo e trabalho à execução dos procedimentos necessários poderá comprovar isso (ALEXANDER, 2010, p.3).

E acrescenta:

A expressão ‘meios pelos quais’ será usada [...] para representar os meios racionais para a conquista de um objetivo. Esses meios

compreendem a inibição do uso habitual dos mecanismos do

organismo e a projeção consciente das novas orientações necessárias à

realização dos diferentes atos envolvidos num uso novo e mais satisfatório desses mecanismos (ALEXANDER, 2010, p.33, nota de

rodapé, grifo meu).

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Vemos aqui, na diversidade de autores, o quanto estes concordam em relação à

atitude interna, à disponibilidade para a mudança profunda que envolve rever seus

hábitos corporais e vocais. Alexander, Vianna e Pérez-González timbram em afinado

uníssono quando falam em meios pelos quais, conscientização e autopercepção,

respectivamente. É o reconhecimento de novos parâmetros, de novas possibilidades, que

permite a reformulação do uso do corpo: para se vivenciar uma direção consciente, faz-

se necessária a inibição dos padrões posturais nocivos e a aplicação de novos usos de si.

Dinville (2001, p.74-75) também agrega valor a tais conceitos, com detalhes no nível

fisiológico, quando escreve:

As doenças da ressonância são muito diferentes em sua etiologia,

modalidade e consequências, que determinarão, numa certa medida, o

gênero da reeducação, que será longa e difícil. Ela será psicomotora

pois trata-se de suprimir as incoordenações motoras, e de substituir os distúrbios ressonanciais pela utilização correta da faringe e da

laringe, uma interagindo com a outra, pelo fenômeno de acoplamento.

Desta maneira será possível não somente restituir o funcionamento

fisiológico dos órgãos vocais mas também o colorido normal da voz

própria a cada indivíduo (DINVILLE, 2001, p. 74-75, grifos meus).

O trecho acima me permite afirmar que Dinville e Alexander estão em profunda

sintonia: “[...] as mudanças que eu fora capaz de realizar no uso [...] haviam produzido

um efeito notável sobre o funcionamento de meus mecanismos vocais e respiratórios”

(ALEXANDER, 2010, p.19, grifos do autor).

Dando um salto não-cronológico, porém dentro da temática da reeducação e da

reformulação vocais, é importante destacar que estas se deram inclusive no âmbito da

minha classificação vocal: finalmente fui encontrando mais conforto e organização na

tessitura de barítono, e não mais na de tenor. Assim como Pérez-González:

A reformulação [...] – laringe baixa e focalização no palato duro – já

reduzira bastante essa instabilidade, mas agora, como barítono, a voz,

poupada de um desgaste absolutamente desnecessário, ficou mais calma e maleável, e também ganhou em amplitude e resistência. E,

felizmente, a velha irregularidade foi-se embora de vez (PÉREZ-

GONZÁLEZ, 2007, p.xix da apresentação).

Entendo, pela leitura dos contundentes depoimentos de Pérez-González, que este

faz referência a uma longa época de sua vida e prática profissional em que ele não

dominava os fundamentos da técnica, não estava estabelecido em parâmetros de

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conforto, saúde vocal, fisiologia e emissão eficiente e funcional. Ele não havia, ainda,

encontrado a sua voz, a sua verdadeira natureza vocal. Faltava a conexão com a

propriocepção: a autopercepção de que ele fala, e que ele veio a desenvolver

posteriormente, ao se reeducar, a partir da constatação de seu mau uso crônico e de sua

classificação vocal equivocada.

O que me aconteceu, portanto, não foi apenas uma reeducação da emissão, mas

também uma reeducação do meu entendimento da tessitura, da classificação vocal.

Como já dito anteriormente, eu, assim como Pérez-González, havia sido classificado e

me considerava como tenor e cantava meu repertório em tonalidades muitas vezes

agudas demais para a minha voz, ignorando que eu poderia estar mal classificado e que

cantar mais grave não seria nenhum pecado, nenhuma vergonha. Pelo contrário...

Este capítulo percorreu um período da minha biografia de iniciação à prática do

canto, com um uso pouco consciente e não-funcional da voz, que trouxe

comprometimentos fisiológicos a ponto de gerar uma lesão. Levantei algumas

possibilidades, embasadas na literatura especializada, sobre as possíveis causas da

disfonia que apresentei e pude enumerar os marcos fundadores do início do meu

processo de reeducação vocal.

No capítulo a seguir, descrevo em detalhes e em ordem cronológica, sempre

iluminado pelos especialistas em voz e educação somática, os processos de insight que

me trouxeram alguma clareza em relação ao que estou chamando de fundamentos da

técnica vocal.

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CAPÍTULO 3

CONECTANDO OS ELOS PERDIDOS: ABORDAGENS SOMÁTICAS E

FISIOLOGIA DA VOZ FACILITANDO O RECONHECIMENTO DOS

FUNDAMENTOS DA TÉCNICA VOCAL

Meu processo de reeducação vocal teve seu marco inicial descrito no capítulo

anterior. No presente capítulo, eu abordo o objeto principal desta monografia:

fundamentos de técnica vocal à luz de noções de fisiologia da voz e/ou de conceitos e

procedimentos oriundos de técnicas de educação somática. Relato na sequência a minha

experiência com três diferentes professoras de técnica vocal e canto lírico na cidade do

Rio de Janeiro, de setembro de 2013 até o presente momento, dezembro de 2016.

Minha experiência técnica na interação fisiológico-somática tem me mostrado

que tudo o que pode ser dito sobre o corpo pode ser estendido para a voz, posto que esta

é uma manifestação daquele, e os princípios que estruturam ambos são os mesmos.

Como já vimos, as práticas de educação somática pressupõem a consciência do

movimento sob o viés da própria fisiologia do movimento. Acredito, portanto, que

experimentar o movimento somático é “encarnar” a fisiologia do movimento. Logo,

vocalizar com o respaldo somático é “encarnar na voz”, “verbalizar”, “invocar”,

“evocar” a fisiologia do movimento. Os conhecimentos específicos de fisiologia da voz

nada mais seriam, então, do que especificidades no sentido de um refinamento desta

fisiologia do movimento no nível vocal. São campos irmãos, como salientam Hodgson e

Preston-Dunlop (1990), especialistas no Sistema Laban-Bartenieff:

Esta percepção abrangente de movimento está presente em todo o

Sistema Laban, permeando cada termo, cada exercício, cada símbolo e expressão corporal-vocal. Sob esta perspectiva, a voz é uma

manifestação do movimento corporal, seja na fala, no canto, ou na

emissão de sons pré-verbais, e todos os termos Laban podem ser aplicados em uma aula de dicção ou de canto (apud FERNANDES,

2002, p.20).

Abordarei em detalhes esta noção de princípios estruturantes (ou fundamentos)

ao longo do capítulo, conforme a cronologia dos insights. A razão pela qual eu

praticamente não menciono os padrões melódicos, vocálicos e fonéticos usados nas

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aulas é simples: isso tornaria o trabalho extenso e específico demais. Preferi ater-me

justamente ao que identifiquei como princípios organizadores da execução de todo e

qualquer vocalize. Trata-se mais de reflexões sobre o como cantar do que sobre o que

cantar. Posso, no entanto, enfatizar que todas as três professoras primam pela “potência

do simples” e pela consistência do foco no domínio dos fundamentos básicos da técnica

vocal. O uso de graus conjuntos, a execução sempre sensível e alerta para as

inconsciências e os automatismos, e um olhar privilegiado para as vogais como vias de

acesso à ressonância sem esforço na região médio-grave da voz me parecem ser uma

premissa comum às três pedagogias, condições sine qua non para a expansão das

habilidades relacionadas à desenvoltura e uniformidade da voz na região aguda e suas

passagens.

3.1. Iniciação à técnica lírica com Doriana Mendes: o primeiro fundamento é o

corpo

Em setembro de 2013, iniciei meus estudos com Doriana Mendes, soprano e

também bailarina, na grade curricular do curso de Licenciatura em Música da UNIRIO,

através da disciplina optativa Canto Complementar. Cursei dois semestres consecutivos

desta disciplina, sendo que no primeiro eu compartilhava a aula com mais dois colegas e

no segundo eu tive aulas individuais, o que permitiu um maior aprofundamento. À

época, eu não dimensionava o impacto que estas aulas teriam sobre o meu fazer técnico

e artístico. A partir de minhas reflexões recentes, que conduziram ao presente trabalho

de conclusão de curso, constato que tais aulas representaram a confirmação do meu

processo de reeducação vocal e a descoberta de uma nova esfera da prática vocal, uma

verdadeira iniciação ao canto ressonante, estável, flexível: eu estava, finalmente,

“encontrando a minha voz”.

3.1.1. Apoiando a voz

Doriana costumava iniciar suas aulas sempre com um momento de aquecimento

pré-fonatório em que privilegiava o acesso à respiração enquanto válvula de ativação da

ação corporal. Ela nos convidava a experimentar a inspiração como uma

descompressão, uma experiência de alívio em toda a estrutura do tronco e das costas,

que se alternava com um sopro, suave ou vigoroso, que podia também servir como base

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para movimentos e algumas vocalizações iniciais, ainda em caráter de aquecimento. Ela

nos estimulava a mobilizar nossas articulações através de sequencias simples de

movimento, que evidenciavam a relação do ar com o movimento do corpo e com a

fonação. Este era um primeiro trabalho de autopercepção (PÉREZ-GONZÁLEZ, 2007)

do instrumento e que tinha também um objetivo de aprimorar a coordenação corpo-ar-

voz. Ciane Fernandes evidencia a centralidade da respiração como iniciação e suporte

para um movimento coordenado e eficiente, na perspectiva do Sistema Laban-

Bartenieff:

A respiração como suporte para o movimento corporal é fundamental

no treinamento corporal do ator-dançarino, estabelecendo uma

sincronia para a expressão simultaneamente corporal e vocal [...]. A grande maioria dos movimentos ocorre na expiração, aproveitando-se

o impulso do músculo Iliopsoas para desencadear movimento e

conectar diferentes partes do corpo. Bartenieff denominou essa continuidade de Correntes de Movimento ou Correntes Cinésicas [...]

a partir do Suporte Muscular Interno [...]. Todo exercício dos

Fundamentos Corporais Bartenieff inicia-se de acordo com a

respiração (FERNANDES, 2002, p.41).

Toda a estrutura do tronco trabalha nesse sentido, a fisiologia da respiração está

profundamente enraizada nesta região do corpo, em três “andares” principais: no andar

superior, os pulmões, “hospedados” dentro do gradil costal; no andar intermediário, o

músculo diafragma, em forma de abóbada, que é a válvula de contração involuntária

responsável pela entrada do ar; e, no andar inferior, a musculatura coordenada de todo o

abdômen, com ênfase do musculo Iliopsoas, no processo expiratório. Miller (1996)

destaca a potência da musculatura abdominal e a sua posição de comando sobre o

mecanismo respiratório. Dinville (2001, p.7) considera a respiração “o elemento motor

da voz [...], pois fornece a pressão necessária para manter a vibração das pregas vocais”

(grifo da autora). Ela prossegue:

Na fala, assim como no canto, a respiração deve ser costo-abdominal,

porque é a única que realiza uma ventilação completa – e, portanto,

um aumento da capacidade pulmonar, pois também permite a

ventilação do alto da caixa torácica sem que para isso haja movimentos aparentes – impedindo ao mesmo tempo movimentos

intempestivos do pescoço, dos ombros, e sua repercussão sobre a

laringe (DINVILLE, 2001, p.8).

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Lembro-me especialmente de um dia, em algum momento do primeiro semestre

de 2014, em que Doriana comentou algo a respeito de sentir, ouvindo meu som e vendo

minha postura, que o meu centro não estava ativado o quanto poderia para apoiar o som.

Na realidade, ela me proporcionou um insight muito interessante, pois me fez uma

pergunta: “– O quanto o seu centro está participando da sua ação vocal?”, e eu mesmo

pude concluir que a resposta era “– Muito pouco” ou “– Não estou nem percebendo a

conexão do meu centro com minha voz”, ao que ela replicou “– Estou percebendo”.

Este feedback veio a ter um impacto profundo na minha prática vocal subsequente:

atuou como um choque de realidade, mostrando-me que eu não estava aplicando ao

canto toda a bagagem de consciência corporal e educação somática que eu havia

agregado na minha formação anterior. A partir daquele momento, eu acessei o meu

hardware de memórias corporais (Angel diz que tudo fica gravado no corpo), num

insight comparado a um download das informações sobre atitudes, procedimentos e

auto-instruções (resquícios das minhas práticas prévias) para o desempenho técnico.

Informações estas que me permitiriam ativar mais efetivamente meu centro e

experimentá-lo enquanto centro de conexão da globalidade do corpo, gerando assim a

sensibilização e a tonificação de toda a musculatura do meu cinturão abdominal. Batizei

este de “o dia da reconexão”.

Um detalhe interessante, que evidencia a especificidade de cada pedagogia de

educação somática: nesse insight carnal, eu acessei uma via de ativação do centro via

percepção do espaço entre os ossos. Explico-me: num primeiro momento, percebi meu

centro desabado, como se o espaço entre minhas últimas costelas e minhas cristas ilíacas

(o ponto mais alto do quadril, lateralmente) estivesse colapsado, relaxado (hipotônico)

demais, e, por isso, encurtado. Experimentei, então, o meu centro enquanto o espaço

entre estas últimas costelas e as cristas, e pensei em afastá-las umas das outras, em

aumentar este espaço, resgatando assim uma sensação de centro enquanto faixa,

cinturão abdominal. Reconheço este procedimento como diretamente oriundo de minhas

vivências com Eutonia, em que observava demoradamente o espaço entre partes do

corpo e a permeabilidade, a sensação de passagem, contato e conexão estabelecida entre

elas. Com a constatação dos espaços, surgia a possibilidade de modificar estes espaços,

via mobilização dos ossos. Como os músculos se inserem nos ossos, estes assumem

sobre aqueles uma soberania: é via osso (que é a estrutura mais profunda do

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movimento) que eu posso acionar minha musculatura e regular meu tônus. Isso está

totalmente de acordo com o que dizem Klauss Vianna (1990), Angel Vianna

(TEIXEIRA, 2008) e Gerda Alexander (GAINZA, 1997) sobre a centralidade dos ossos

no processo de sensibilização corporal, regulação tônica e otimização do movimento.

Este questionamento e suas reverberações tiveram imediatas consequências no

meu desempenho sonoro: eu pude entender mais uma virtude da emissão vocal

coordenada com e apoiada pela “casa de força” do corpo. Ao abrandar o peso e a tensão

excessiva da laringe e do trato vocal (direcionando a tensão para o lugar adequado),

encontrei maior flexibilidade na minha voz. Não por acaso, o Sistema Laban-Bartenieff

considera o abdômen e o quadril como parte do centro de peso do corpo, e a caixa

torácica (e tudo o que está acima dela) como o centro de leveza (FERNANDES, 2002).

Sobre o abandono, a não-inclusão de determinada parte do corpo na imagem

corporal solicitada para a ação, Regina Miranda afirma:

[...] é frequente observarmos que algumas partes do corpo tendem a

ser esquecidas: são partes que não se conectam à ação, seja porque

não são percebidas como diretamente necessárias à sua execução, ou por serem regiões inconscientemente negligenciadas na construção do

mapa corporal individual [...] (MIRANDA, 2008, p.30, grifo do

autor).

A relação do cinturão abdominal ativo com a leveza, a facilidade e a liberdade

da ressonância da voz (desde a pressão subglótica, passando pela vibração das pregas

vocais na laringe e sua propagação via faringe, boca e cavidades superiores do crânio),

me parece ser exatamente do que consiste o conceito de apoio, ou appoggio, conforme

observa Richard Miller:

Appoggio não pode ser reduzido a ‘suporte respiratório’, como se

pensa com frequência, porque appoggio inclui fatores de ressonância,

assim como a gestão do ar [...]. A histórica Escola Italiana não separou as características motoras e ressonantais da fonação como outras

pedagogias fizeram. Appoggio é um sistema de combinação e

equilíbrio de músculos e órgãos do tronco e do pescoço, regulando suas relações com os ressonadores supraglóticos, para que nenhuma

função exagerada de qualquer um deles comprometa o todo

(MILLER, 1996, p.23, grifos do autor, tradução minha)4.

4“Appoggio cannot narrowly be defined as ‘breath support’, as is sometimes thought, because appoggio

includes resonance factors as well as breath management [...]. The historic Italian School did not

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Dinville enriquece o embasamento do conceito de appoggio, ao relatar um

tratamento indicado para uma cliente de 26 anos, professora de maternal:

Para dar a esta cliente um rendimento vocal satisfatório, era necessário

ensinar-lhe a utilizar sua respiração corretamente, e depois, fazê-la tomar consciência de que, para obter uma voz de intensidade e timbre

normais, seria necessário que aprendesse a se servir da capacidade de

ressonância das vias aéreas superiores, exigindo mais firmeza dos

músculos abdominais. Os exercícios de voz cantada permitiram que

se desse conta, mais facilmente, da maneira de colocar sua voz [...]

(DINVILLE, 2001, p.76, grifos meus).

Esta conexão do que Dinville chama de capacidade de ressonância com firmeza

da musculatura abdominal foi o que pude começar a perceber a partir do “dia da

reconexão”. Integrando conceitos de técnica vocal e educação somática, a partir das

evidências do diálogo com o referencial teórico até aqui, posso concluir que uma boa

técnica de appoggio pressupõe um bom suporte muscular interno, e vai além,

penetrando o reino da ressonância, que será esmiuçado mais adiante. O trabalho de

ativação do centro regulou o tônus do trato vocal e otimizou as tensões de todo o

sistema de válvula do aparelho fonador no tronco: considero isto um processo de

eutonia vocal, caminhos para o encontro de uma voz eutônica, segundo a definição do

termo: uma voz com tônus justo e harmonioso.

3.1.2. Cantando com as sensações

Um dos procedimentos mais marcantes que pude observar na pedagogia de

Doriana Mendes é o seu convite para a consciência das sensações físicas durante o ato

de vocalizar. Ao longo de determinado exercício, num breve momento de pausa, ela me

perguntava: “Quais as sensações presentes?”. Este procedimento constitui o que Eladio

Pérez-González (2007), professor citado com frequência como referência por Doriana,

considera como o cerne da aprendizagem: a autopercepção, através do exame

separate the motor and resonance facets of phonation as have some other pedagogies. Apoggio is a

system for combining and balancing muscles and organs of the trunk and neck, controlling their

relationships to the supraglottal resonators, so that no exaggerated function of any one of them upsets

the whole”.

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minucioso dos processos internos no ato de cantar. Essa atenção para as sensações

passa, inclusive, a ser um parâmetro fundamental para a emissão vocal, tanto quanto o

parâmetro auditivo. Ele revela:

Na minha desesperada procura, eu voltava cada vez mais a atenção

para a minha sensação interior durante a emissão e menos para a sensação auditiva. E aconteceu que em diversas aulas consegui emitir

a voz sem qualquer incômodo na garganta, projetando-a diretamente

contra o palato duro. Sentia a boca cheia de voz, não mais o ouvido

cheio de voz (PÉREZ-GONZÁLEZ, 2007, p.xii da apresentação, grifo

do autor).

Ciane Fernandes afirma, em relação ao movimento, algo que se aplica

perfeitamente à vocalização, e que ela também elege como fator estruturante do

aprendizado: “Em todas suas ações em cena ou em treinamento nas aulas, ensaios e no

cotidiano, o ator-dançarino está consciente de suas sensações enquanto interage com o

meio. É a partir deste diálogo Interno/Externo que ocorre o aprendizado corporal”

(FERNANDES, 2002, p.247). O mesmo se pode dizer do cantor que está o tempo

inteiro consciente de suas sensações enquanto vocaliza (e também enquanto se prepara

para vocalizar – onset – e assim que finaliza – release) (MILLER, 1996).

Ainda sobre as sensações como matéria efetiva e imprescindível para o

aprendizado, Bonnie Bainbridge-Cohen, a criadora da técnica de educação somática

Body-Mind Centering, afirma: “O motivo da minha lentidão na aprendizagem se dava

[...] à minha absoluta falta de consciência cinestésica das minhas estruturas vocais. [...]

Eu comecei a reconhecer diferentes sensações na minha garganta e a, lentamente,

entender conceitos básicos [...]” (BAINBRIDGE-COHEN, 1985, p.xii, introdução, grifo

do autor, tradução minha)5.

Esta nova forma de abordar a prática vocal, incluindo a experiência cinestésica

(ou proprioceptiva) como fator de escuta, encontra embasamento na seguinte afirmação

de Felipe Abreu:

5 “The reason for my slowness in learning was that I had [...] absolutely no kinesthetic awareness of my

vocal structures. [...]. I began to recognize different sensations in my throat and to slowly [...] understand

basic concepts [...]”.

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O ‘ouvido externo’ que o preparador vocal representa tem uma razão

de ser absolutamente prática, baseada na psicoacústica: quando você ouve sua própria voz, SÓ VOCÊ a ouve daquela maneira, com aquele

timbre, cor, harmônicos, intensidade, vibração, porque você ouve a

COMBINAÇÃO entre audição/vibração interna – ou seja, a ressonância conduzida pelos ossos do crânio, com reforço dos

ressonadores faciais (boca, cavidades nasais) e da ressonância

simpática subglótica (vibração no peito, na traquéia, etc) – e audição

externa (ou seja, pela propagação aérea do som no espaço). Todas as outras pessoas – o mundo inteiro menos você – ouvem sua voz apenas

pela audição externa. É por isso que todo mundo estranha quando

ouve sua voz gravada pela primeira vez, reagindo: ‘Mas a minha voz não é assim!’. Sim, ela é assim para TODAS as outras pessoas,

MENOS para você [...] (ABREU, 2008, p.127, grifos do autor).

Békésy acrescenta: “[..] a escuta da própria voz via condução óssea é da mesma

ordem de grandeza do que via condução do ar. As vibrações do crânio são causadas não

só pela vibração das pregas vocais, mas também pela pressão do som na boca”

(BÉKÉSY, 1960, apud MILLER, 1996, p.57, tradução minha)6.

Estamos constatando na prática que a consciência dos ossos, suas conexões e

propriedades de condutores de vibração, como estimuladas pelos trabalhos somáticos de

Klauss e Angel Vianna, Irmgard Bartenieff e Gerda Alexander, por exemplo, se aplicam

diretamente à prática vocal. Práticas de educação somática podem, destarte, ser

consideradas importantes ferramentas de sensibilização pré-fonatória, com o poder de

prevenir maus usos e facilitar usos mais saudáveis do corpo inteiro coordenado para a

fonação:

Levando em conta a tendência a forçar a voz deste cliente, e sua concepção de intensidade vocal, insistimos bastante sobre as

sensações internas de vibração, mas também sobre a sensação de

tonicidade muscular, que não deve jamais chegar até o esforço. Nós o fizemos compreender e perceber que, para evitar de “forçar” a voz

adiante, era necessário, ao contrário, se concentrar nas sensações

proprioceptivas, e que somente o ajuste entre os dois órgãos mais importantes, a laringe e a faringe, daria à voz todas as suas qualidades

(DINVILLE, 2001, p.76).

6 “[...] the hearing of one´s own voice by bone conduction is of the same order of magnitude as by air

conduction. Vibrations of the skull are caused not only by the vibrating vocal bands but also by the sound

pressure in the mouth”.

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Este processo de sensibilização nos dá acesso ao que Campos chama de sentido

cinestésico:

Para o cantor, a voz é em grande parte uma experiência sensorial não

palpável nem materializável, uma sensação acústica percebida pelo

ouvido e pelo tremor vibratório e também pela sensação de maior ou de menor tônus muscular. A esta percepção chamamos de sentido

cinestésico (CAMPOS, 2007, p.48).

Letícia Teixeira (2008) nos mostra que o ato de perguntar ao estudante sobre

suas sensações, inclusive convidando-o a verbalizá-las, é um importante procedimento

pedagógico, posto que promove o contato dele consigo mesmo, com seu corpo: uma

escuta de si. Acessamos, assim, o pensamento do corpo, tornando-nos espectadores

deste, inclusive quando estamos em pausa: sempre vivos e atentos (MILLER, 2007).

O sentido cinestésico na produção vocal (seja cantada ou falada) tem relação

direta com o timbre: “Diferenças no timbre correspondem a locais de sensação da

ressonância” (MILLER, 1996, p. 57, tradução minha)7. Está à nossa disposição uma via

de acesso ao timbre não só pelo ouvido externo, mas também pelo ouvido interno, na

forma como sentimos esse timbre percorrendo e habitando o corpo enquanto locais e

qualidades de vibração e ressonância. Neste sentido, descobri mais riquezas do ouvido

interno quando experimentei cantar com um daqueles fones que inserimos no ouvido

(porém mudos, sem reprodução de música gravada). Percebi que estes amenizaram

bastante a participação do meu ouvido externo no ato de ouvir a mim mesmo, deixando

minhas próprias sensações ao cantar em primeiro plano: pude perceber de forma

totalmente nova a vibração dos ossos do crânio e das estruturas laríngeas e faríngeas, e o

quão próximas estão entre si. Pude, devido a essa percepção de proximidade e

delicadeza das estruturas, experimentar a articulação do meu som de forma muito mais

estável e sutil, sentindo tudo mais interno, mais conectado. Pude quase perceber o pré-

som, o lugar de fronteira, quando o som passa da intenção, do impulso interno, para a

manifestação enquanto fenômeno acústico no meu corpo e no espaço. Esta experiência

de cantar com o sentido cinestésico em primeiro plano me marcou e modificou minha

forma de lidar com o ouvido interno ao cantar, proporcionando-me ainda mais prazer,

conforto e facilidade. Dinville reitera o papel fundamental do sentido cinestésico na

produção vocal, ao comentar um estudo de caso de um estudante de teatro de 24 anos:

7 “Differences in timbre have corresponding locations of resonance sensation”.

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Porém, se tiver a possibilidade de recorrer a uma avaliação baseada

nas sensações proprioceptivas e cinestésicas, que são invariáveis, conservará a qualidade e a facilidade da emissão de sua voz,

podendo controlar-se e dominar seu temor, tanto ao falar quando ao

cantar (DINVILLE, 2001, p.85, grifos meus).

Com base na literatura revisada, afirmo que o conceito de sentido cinestésico

responde por uma importante parcela do que chamamos de ouvido interno, e que aquele

sintetiza uma série de pressupostos somáticos abordados no primeiro capítulo:

propriocepção, imagem corporal, conexões ósseas; e no segundo: autopercepção,

conscientização, ‘meios pelos quais’. Considero o desenvolvimento do sentido

cinestésico, portanto, um exemplo concreto de fundamento para a técnica vocal, fruto de

uma interação com o campo somático, com função de facilitação e equilíbrio da

emissão.

3.1.3. Pensando na voz enquanto a relação fonte-filtro

Outro procedimento riquíssimo que Doriana Mendes compartilhou em aula e

que afetou profundamente meu modo de cantar foi analisar a experiência vocal sob o

prisma do duplo fonte-filtro. A fonte é a raíz do som, a laringe, e o filtro é o espaço

dentro do corpo que vai tratar este som até a sua saída. Dinville (2001) conceitua a

laringe, que hospeda as pregas vocais, como o elemento vibrante da voz e a faringe

como o elemento ressonador, constituída pela hipofaringe, a orofaringe e a rinofaringe

(nasofaringe). Sobre o trabalho coordenado de fonte e filtro, ela afirma: “[...] é inegável

que a verdadeira cavidade a ser considerada como importante ressonadora seja a faringe

na sua totalidade, como ressonador associado à vibração laríngea” (DINVILLE, 2001,

p.13).

O cantor e professor Marconi Araújo (2013), em seu livro Belting

Contemporâneo, utiliza os termos fonte e filtro, assim como Aronson (1985), citado por

Pinho, Korn e Pontes (2014, p.12) no livro Músculos Intrínsecos da Laringe e Dinâmica

Vocal: “A fonação é um ‘ato físico de produção do som por meio da interação das

pregas vocais com a corrente de ar exalada. Os puffs de ar são liberados em frequência

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audível (fonte glótica), ressoando nas cavidades supraglóticas do trato vocal (filtro)”

(grifos do autor).

Doriana com frequência me dizia: “Tente produzir uma voz mais sistêmica, que

traga mais qualidades do espaço e da leveza da ressonância, uma voz mais de filtro do

que de fonte, menos laríngea”. É claro que toda voz é laríngea, por definição. Mas eu

entendia perfeitamente o que ela queria dizer com produzir uma voz que falasse mais do

filtro que da fonte: uma voz sem sobrecarga da laringe e do trato vocal como um todo,

que não estivesse hipertônica, sem golpe de glote e sem ruídos ou leves pigarros que

denotassem ênfase do apoio na garganta. Aprendi a ser gentil com meu trato vocal e a

perceber que toda dinâmica forte tem uma semente de leveza, que meu som pode

crescer em potência a partir da gestão dos seus espaços de ressonância e projeção, e não

de tensão excessiva na laringe.

Como se pode ver, o organismo e sua fisiologia são muito refinados. Tudo se

conecta. Os temas aqui começam a se interseccionar, e o presente assunto dialoga

diretamente com o que acabou de ser dito na seção anterior sobre a importância do

sentido cinestésico para a realização desse ajuste (amenizar o peso da fonte); dialoga

também com a primeira seção: tal ajuste pode ser entendido como uma forma de

produzir um som com mais appoggio.

Tudo está coordenado numa ação vocal eutônica, que começa dentro do corpo,

no impulso para o som. Gosto de enxergar a voz como a ponta de um iceberg, ou como

uma erupção vulcânica (não enfatizando o vigor e a fúria do vulcão, nem a dureza do

gelo do iceberg, mas apenas o aspecto de serem mais conhecidos pela parte visível, que

pressupõe todo um processo interno, anterior): o que acontece antes, dentro, em termos

de organização corporal, respiratória, pré-fonatória, para que o som saia de determinada

maneira?

3.1.4. Estabilizando a língua

Doriana me ajudou, também, a compreender a necessidade da consciência da

língua para o canto, posto que a sua posição afeta diretamente o espaço da boca e a

propagação do som e o seu direcionamento contra o palato duro, por exemplo. Dinville

fundamenta:

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A língua é um órgão ativo que, de acordo com sua posição, facilita ou

impede os movimentos dos outros órgãos. Qualquer deslocamento anormal, qualquer posição articulatória inexata, qualquer esforço

exagerado da base da língua, dificultará os movimentos do véu

palatino, da laringe e da faringe, e modificará o colorido vocal

(DINVILLE, 2001, p.12).

Pude incorporar a percepção da língua ao meu sentido cinestésico, e observar o

seu comportamento a qualquer momento, fonando ou não. Entendi que existe uma

posição de descanso da língua, e que tal posição deve ser a referência de estabilidade a

partir da qual pequenas mobilizações acontecerão, de acordo com a fisiologia da vogal

ou consoante que se vai produzir. Doriana usava a imagem da língua como um “tapete

no chão da boca”. Sobre esta posição de referência, Miller postula: “Quando se está em

repouso, sem atividade respiratória exagerada, a língua está relaxada dentro da boca,

com a sua lâmina (tanto a ponta quanto as laterais anteriores) em contato suave com os

dentes inferiores” (MILLER, 1996, p. 69, tradução minha)8.

Klauss Vianna (1990) alerta-nos sobre a necessidade de uma atenção especial

para língua, devido à sua estreita relação com a respiração: ele diz que ela acompanha

todo o ciclo de entrada e saída do ar, através de micro-movimentos internos quase

imperceptíveis.

Para mim, esta atenção para a estabilização da língua (que não significa

enrijecimento) foi um detalhe bem importante, pois observei uma repercussão enorme

na direção e liberdade da minha ressonância. Pude ver que, dentro do meu processo de

mau uso e quebra da voz, a língua exercia um papel importante, enquanto uma estrutura

cujo funcionamento era inconsciente e que atuava como um corpo que atrapalhava os

caminhos de projeção da voz em direção ao palato duro, que “tirava a voz do lugar”.

Começar a percebê-la foi um primeiro passo para estabilizá-la. A língua passou, então,

assim como a minha musculatura abdominal (vide 3.1.1.), a fazer parte consciente do

uso coordenado do meu sistema para o desencadeamento do processo de fonação.

Abordarei mais adiante esta questão do uso em relação ao “lugar da voz”, à colocação

da voz, assim como também abordarei o duplo estabilidade-mobilidade: a consciência

8 “When one is in a state of repose, without exaggerated respiratory activity, the tongue is relaxed in the

mouth, with its blade (both the tip and the forward sides) in easy contact with the lower teeth”.

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de estruturas físicas que se estabilizam para facilitar a mobilidade de outras estruturas

e/ou do sopro e do som.

Sobre o grande impacto de pequenas mudanças, Jussara Miller (2007, p.28) nos

brinda com a seguinte afirmação: “É de importância substancial reconhecer, por outro

prisma, que o menos pode ser mais e que na pesquisa corporal um pequeno detalhe faz a

grande diferença”.

3.2. Aula somática de canto, aula de canto somático: Gabriela Geluda e a Técnica

Alexander

A partir de julho de 2014, devido a questões logísticas em relação a vagas do

curso de Canto Complementar, passei a fazer aulas particulares fora da UNIRIO, por

indicação da professora Doriana Mendes, com Gabriela Geluda, soprano e também

professora da Técnica Alexander. Com esta nova mestra, continuei percebendo um

processo de superação veloz de limitações corporais-vocais e pude, devido à

especificidade de sua didática de canto baseada na Técnica Alexander, refletir de forma

mais objetiva sobre o efeito e a importância da interação de abordagens somáticas com a

prática do canto.

3.2.1. Deitar, liberar, integrar: cuidar do corpo é cuidar da voz

O procedimento básico das primeiras aulas com Gabriela era eu começar a aula

deitado no chão, em posição semi-supina. Já comprovamos, no primeiro capítulo, que a

posição semi-supina, muito utilizada na pedagogia da Técnica Alexander (e que o uso

do chão em geral em todas as pedagogias somáticas), é um poderoso recurso para o

despertar da propriocepção, a liberação de tensões excessivas, a inibição de maus usos e

o cultivo de direções conscientes para usos mais benéficos do organismo. O seguinte

trecho do meu diário refere-se à minha primeira aula com Gabriela, datada de 21 de

junho de 2014:

Começamos no chão, na posição semi-supina. Memória de liberação,

integração sacro-cervical, soltura na bacia, coluna quis espichar

para cima [...]. Soltura articular: ela manipulou minhas pernas,

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estimulou conexões e liberações. Liberação foi a grande palavra da

aula [...]. Produzi voz deitado: o tempo inteiro soltando a cabeça, a mandíbula e a língua. Respiração natural e involuntária. Sensação de

equilíbrio tônico e uniformidade da tessitura. A grave, Ó médio e Uh

agudo, glissando de oitava ascendente e descendente, sempre verificando a liberação. [...] enquanto me tocava, ela sentia meu

corpo inteiro e valorizava mais as instruções através do toque do que

através da palavra. [...] Lembro demais das memórias das aulas de

Alexander na Angel: permitir, liberar, deixar. Verbos de “desação”, desfazer. [...] Ela me deu uma dica de trabalhar todos os vocalizes,

frases melódicas, canções sob essa perspectiva da conexão global das

liberações (deitado, sentado, em pé, etc). Fizemos também um percurso de liberações: cervical – mandíbula – língua – laringe –

estômago – diafragma [...] (manuscrito).

Creio ser fundamental ressaltar a novidade deste procedimento: iniciar uma aula

de canto deitado no chão? Cito uma frase de Barros (2012, p. 62) que pode dar

fundamento a esta “radicalidade”: “Muito diferente de se ter uma prática em Educação

Somática apenas margeando a prática do canto é ter uma prática do canto alicerçada nos

princípios da Educação Somática”. Ou seja, por que não explicitamente adotar

operações oriundas diretamente de práticas somáticas, que subvertam os padrões

instituídos do que seria uma aula de canto “normal”? Neste exemplo, vemos o quanto

uma técnica específica de educação somática pode ser conciliada com a prática vocal,

atuando como uma ferramenta de ativação do sentido cinestésico e da regulação tônica

para um controle primordial, para uma otimização e melhor compreensão dos

fundamentos da voz.

No segmento transcrito do meu diário, é importante observar um percurso

cronológico do início ao fim do parágrafo. A expressão “respiração natural e

involuntária” já é fruto das liberações mencionadas anteriormente no início do

segmento. Nesta minha afirmação sobre respiração sem esforço, identifico relação com

o que a cantora e professora de canto e da Técnica Alexander Sônia Dumont diz a

Campos numa das cinco entrevistas que este transcreve em seu trabalho:

Sônia: Só o fato de respirar melhor, a minha voz já ‘soltou’. Eu já

libertei a voz, bastante. Só na respiração. Porque se eu paro de fazer força para respirar eu vou permitir que todo o sistema de apoio, todo

mecanismo de apoio da minha voz se ative. Sozinho. A vivência do

apoio vocal é facilitada se o cantor não interfere no uso do organismo

(DUMONT apud CAMPOS, 2007, p. 102).

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Ou seja, a posição semi-supina e os benefícios que ela gera em relação à melhora

do controle primordial (assim como todos os procedimentos oriundos da Técnica

Alexander em geral) estimulam o sentido cinestésico, que facilita a regulação tônica,

que em suma acarreta uma melhora da técnica de apoio (appoggio). Tudo isso pode ser

tomado como uma melhora do uso do próprio organismo do cantor, que passa a se ver

cada vez mais enquanto um todo conectado, em que relações entre partes reverberam no

corpo inteiro. O controle primordial nos mostra a centralidade do descansar da cabeça

em relação à coluna, conexão fundamental, cuja harmonia vai afetar toda a globalidade

do corpo. Nas palavras do próprio criador da Técnica: “Esse novo indício sugeria que o

funcionamento dos órgãos da fonação era influenciado pela minha maneira de usar todo

o tronco [...]” (ALEXANDER, 2010, p.20).

Esta é a riqueza de poder incluir um consistente trabalho somático como base

para a aula de canto: se deitamos e descansamos nossos ossos, acessamos as sensações

(propriocepção) e liberamos espaços no corpo e nas articulações. Descansar é, então,

uma forma de regular o tônus das musculaturas intrínsecas e extrínsecas da laringe, ou

seja, de descansar e recuperar a fonte; e de deixar mais maleáveis e sensibilizados os

espaços da conexão cabeça-pescoço-costas, incluídos aí os espaços faríngeos e do

crânio: estamos também descansando e recuperando o filtro (trato vocal e ressonadores

supraglóticos). Podemos então enxergar o corpo inteiro enquanto fonte e filtro. Cantar

em aula a partir deste estado de descanso foi muito marcante (cantava deitado,

inclusive). Eu tive a nítida sensação, ao longo de todo o ano de aulas com Gabriela, que

o timbre, a liberdade de ressonância e a flexibilidade da minha voz passaram a ter

relação direta e mais clara com o estado do meu tônus em geral, com a minha percepção

proprioceptiva de volume corporal tridimensional no instante presente (a partir da

sensação de peso do corpo no contato com o chão e com a gravidade), e com a forma

com que deixo meu corpo ser um todo integrado, conectado, permeável.

O impacto de um trabalho somático “indireto”, sentido numa parte do corpo a

partir da mobilização de outra parte, pode ser verificado nas seguintes afirmações de

Klauss Vianna: “[...] se exercitamos os pés procurando abrir os espaços entre os dedos,

massageando-os, o corpo inteiro responde a esse estímulo e o resultado pode ser sentido

até o ápice da cabeça [...]” (VIANNA, 1990, p.110) e ainda:

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A musculatura é tão complexa e articulada que é possível partir de

qualquer parte do corpo e mexer com a totalidade: se mexo um dedo da mão mexo também com todos os ossos do corpo. As articulações

estão interligadas e qualquer movimento em um determinado osso ou

músculo leva informações para o resto do corpo (VIANNA, 1990,

p.128).

Regina Miranda, a respeito do trabalho de sua mentora Irmgard Bartenieff (de

quem foi assistente direta), também nos mostra os benefícios e reverberações que se

pode verificar numa parte do corpo sem necessariamente trabalhá-la diretamente:

Irmgard havia percebido que o enfoque usual da fisioterapia vigente

era o de localizar exercícios repetitivos na parte lesada e suas

adjacências. Ela, no entanto, preferia desenvolver exercícios não repetitivos, que enfatizassem a tridimensionalidade do corpo e

estimulassem as conexões neuromusculares. Seu conjunto de ações se

organizava em frases de movimento, não necessariamente lineares,

que procuravam conectar o corpo como um todo, inclusive a parte lesada, como um elemento dessa integridade corporal. Irmgard

acreditava que, ao trabalhar a conectividade total do corpo e o

estímulo ao movimento, no sentido de estabelecer mudanças e perceber as transformações em curso, a cadeia energética conectiva

estimulava a parte lesada, assim como a parte lesada influenciava o

todo, criando uma cadeia de tensões inter-relacionadas (MIRANDA,

2008, p.28-29).

Estes argumentos, aliados à minha verificação prática pessoal, são, para mim,

uma evidência do quanto podemos ganhar em termos de resultados vocais ao cuidarmos

da “casa” da voz: o corpo. Cuidado este que pode acontecer inclusive sem fonação. As

possibilidades são múltiplas, e o impacto se expande para outras áreas da vida. Isto fica

bastante evidente com o impacto que uma boa atividade física (em seus aspectos

aeróbicos, tonificantes e de flexibilidade) pode ter sobre o rendimento sonoro: o

organismo inteiro se vasculariza mais, a circulação e o metabolismo se elevam;

hormônios de prazer, alívio e prontidão para a ação são secretados na corrente

sanguínea; a propriocepção geral e, portanto, das estruturas vocais, são estimuladas. A

válvula trabalhou: a voz está praticamente aquecida, sem que se tenha vibrado as pregas

vocais uma única vez.

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3.2.2. Diálogo interior: convidando o corpo a aprender

Este descansar do corpo está conectado a atitudes psicofísicas, direções que

damos ao organismo, através de verbos como: “permitir”, “deixar”, “solicitar”; e até de

instruções verbais “negativas”, como: “não-fazer”, “não-comprometer”, “não-inteferir”.

Segundo Campos, “a não interferência é descrita aqui como ‘não puxar o ar’. Para Sônia

[Dumont, cantora e professora entrevistada por ele em sua dissertação], o processo de

não puxar, faz com que a inspiração ocorra da maneira mais eficiente” (CAMPOS,

2007, p. 102). Isso está totalmente de acordo com a instrução da professora Doriana

Mendes, quando me convidava a vivenciar a inspiração enquanto uma experiência de

descompressão, de soltura, de permissão, ao invés de pensá-la enquanto a ação de pegar

o ar. Era tão verdade para Gabriela essa vivência da respiração como o ato de

simplesmente deixar o corpo respirar sem interferências, que esta me dizia que

simplesmente não fazia nenhum trabalho em aula com ênfase em habilidades

respiratórias, mas apenas constatava e confiava nos efeitos que os procedimentos da

Técnica Alexander traziam para tal desempenho.

A respeito da relação com os verbos na Técnica Alexander, escrevi o seguinte,

no dia 23 de março de 2004: “Como é encarnar um verbo de ação? Como é encarnar um

verbo de estado, ou uma qualidade, um adjetivo? Como é levar isto para a voz?”

(manuscrito). E no dia 19 de agosto do mesmo ano, eu escrevi:

Em semi-supina: deixar que o pescoço se solte, permitindo que a cabeça se dirija para a frente e para o alto. Deixar que os joelhos

desejem fora (na linha em que apontam), que os ísquios e o cóccix

desejem embaixo, permitindo que a coluna se alongue. Deixar que o espaço entre as escápulas se amplie. Aceitar a ausência do chão,

fazer contato com ele. Deixar que qualquer vontade de fazer se

dissipe. Não-fazer. Pescoço solto. Ir para as costas, deixar que o pescoço se acomode nas costas, deixando que as clavículas se

projetem para fora [...]. Voz com essa atitude → DEIXAR

(manuscrito, grifos meus).

O que Alexander descobriu de muito potente, e que poucos de nós fomos

educados a perceber ao longo da vida, é que o como se faz determinada coisa é parte

fundamental desta coisa que se faz. Quando estamos levantando de uma cadeira ou

cantando uma melodia, podemos dizer grosseiramente o que se passa: esta descrição

será correspondente à forma como percebemos o que estamos fazendo. Se olharmos

com mais profundidade todos os mecanismos de uso que atuam para a realização de

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qualquer destas ações, veremos que se trata de um campo mais complexo, em que atuam

fortes padrões nocivos de uso inconsciente, que geram má postura e mau desempenho:

excesso de tensão em determinadas partes do corpo equivalentes a déficit de tônus em

outras (má regulação tônica), pouca noção de alinhamento e liberdade da estrutura

óssea, comprometimento da respiração. Em suma, podemos, sempre e a todo instante,

ao invés de ficarmos obcecados com a realização de determinada tarefa, usufruirmos de

uma atitude de consciência, integração e liberdade durante o processo de realização de

tal tarefa.

Tal atitude vai sendo cultivada, enquanto memória no corpo, através de

experiências de liberação. Sobre a intensa sensação de liberação vivenciada na minha

primeira aula com Gabriela (registro mencionado na seção anterior), lembro-me dela

comentar o seguinte: “Aprendemos muito com as experiências de contraste”

(informação verbal). Para mim foi tão contundente a sensação de liberação porque

provavelmente eu pude experimentar naquele momento um alívio muito grande em

relação a uma tensão constante que tinha se tornado meu padrão habitual. Nas palavras

da própria Gabriela, que também é uma das entrevistadas do trabalho de Campos:

Gabriela: Mas, que elas [as tensões] vão ficando inconscientes

e você não tem mais um motivo e ela continua sendo repetida e

desfavoravelmente. Representando desgaste de energia, enfim, acúmulo de tensão. Que depois vão virar, no caso de um cantor,

uma disfonia, uma dificuldade (GELUDA apud CAMPOS,

2007, p. 115).

Por isso a importância de fazer pausas, de se observar para inibir usos nocivos

que comprometam a liberdade e a integração do organismo no seu desempenho. Por

isso a importância de verificar a soltura da cabeça e a sua relação harmoniosa com o

pescoço e as costas a todo instante, andando, cantando, comendo, dançando: por isso

Alexander batizou esta relação de controle primordial. É uma engrenagem muito

importante da coordenação corporal, é uma tecnologia avançada!

Para o refinamento das experiências de liberação e descanso, é necessário

aprender a de fato soltar o peso do corpo no chão ou na mão de um profissional

especializado, como é o caso dos professores da Técnica Alexander. Como descrito no

trecho do meu diário referente à minha primeira aula com Geluda, era muito frequente,

a partir da posição semi-supina, ela realizar alguns toques e manobras articulares em

mim, sempre com a finalidade de transmitir, via toque, direções de liberação e conexão.

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E isso acontecia, inclusive, conjugado com vocalizações minhas. Eu era convidado,

portanto, a constatar empiricamente a relação da liberdade e soltura dos ossos com as

estruturas envolvidas no processo de fonação. O interessante é constatar que tais

impressões são sempre únicas: nossa sensibilidade sempre pode nos mostrar novos

caminhos e novas percepções. Em momentos como estes, em que o meu corpo realizava

movimentos passivos (posto que estava sendo mobilizado pela professora) eu tive,

recorrentemente, a sensação de um “destampar” da ressonância e a percepção de todo o

meu volume corporal harmoniosamente engajado para a produção vocal. Experiências

como essas foram, para mim, profundamente reestruturantes e aliviantes, e inauguraram

uma nova forma de cantar.

Quando sinto que preciso atualizar estas experiências, eu utilizo perguntas

silenciosas para mim mesmo como procedimento, por exemplo: “Como se comportam

meus ossos e a liberdade da minha estrutura AGORA, enquanto faço determinada

atividade? E enquanto canto? Como está determinada articulação neste momento

enquanto eu canto? Estou sentindo o peso dos ossos? Sinto o espaço entre determinadas

partes? Por exemplo: o que sinto ao levar minha atenção para o espaço entre minhas

escápulas? Ou entre minha cintura escapular e minha cintura pélvica?”.

O corpo é uma paisagem que está sempre presente conosco, e que, ao mesmo

tempo, para ser desvendado e habitado, precisa de expedições de reconhecimento

diárias, de mergulhos, precisa ser questionado regularmente.

3.2.3. Descansando os ouvidos

A partir do trabalho com Gabriela Geluda, o contraste gerado pela experiência

de liberação na cabeça me fez sentir, além do “destampar” da ressonância, uma espécie

de “destampar” dos próprios ouvidos, da audição: espaços do crânio foram

sensibilizados, sensações dentro dos ouvidos foram despertas e se refletiram na própria

experiência de escuta: eu estava ouvindo melhor. Minha audição estava mais conectada

às minhas sensações, à minha propriocepção, e eu podia perceber a sensação que cada

timbre ouvido gerava no meu corpo: experimentava a música chegando aos meus

ouvidos como uma corrente elétrica, e podia também associar a escuta com a vivência

da gravidade. Era como se eu, assim como sou capaz de sentir o peso da minha cabeça e

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dos meus braços, pudesse sentir o peso dos sons! E é isso mesmo: ondas se propagam

no ar e entram em contato com glândulas no ouvido que se traduzem em sinapses

elétricas no sistema nervoso. Se o som não tem peso, pelo menos as estruturas

responsáveis pela sua recepção têm, logo, o aguçamento da minha escuta teve relação

direta com o fato de eu estar entregando meu peso com mais consciência para o chão.

Sobre esta relação audição-peso, Klauss Vianna (1990, p.99) afirma: "O aparelho

auditivo, por exemplo, também pode ser um foco de tensão que age de forma mais

direta sobre a cabeça". Bonnie Bainbridge-Cohen (1985) nos diz que, quando nosso

nível de tônus muscular está muito elevado, ou seja, quando estamos negando a

gravidade e a liberdade da estrutura óssea, o nosso feedback sensorial fica reduzido.

Entendo este feedback sensorial como sinônimo de sentido cinestésico, segundo a

concepção de Campos (2007): a capacidade de variar o tônus corporal está diretamente

associada à propriocepção, que é a própria consciência corporal vivida a partir do

estímulo do periósteo (a membrana que reveste os ossos), tanto através do movimento

(produção de líquido sinovial nas articulações), quanto através da atenção dada aos

apoios e suas variações de pressão sobre o chão. Esta propriocepção vai irrigando o

corpo, irradiando-se, conforme o conceito de permeabilidade em Eutonia (HEMSY DE

GAINZA, 1997). É importante lembrar que o feedback sensorial não é apenas em

relação à interioridade do corpo, mas também em relação à consciência das sensações

oriundas de contatos com o mundo exterior, através de todos os sentidos. Se

mencionamos a importância do sentido cinestésico na vivência do ouvido interno (vide

seção 3.1.2.), agora estamos verificando um exemplo em que tal sentido facilita a

vivência do ouvido externo. A permeabilidade se torna, portanto, uma qualidade

comum tanto do ouvido interno quanto do ouvido externo: ambos se conectam e se

permeiam.

Indo além da recepção do som exclusivamente pelas sinapses nervosas do

aparelho auditivo, se o som consiste em ondas que se propagam pelo espaço, posso

tentar acessá-lo também via pele, via tato, via percepção de vibrações percorrendo meu

corpo (e tudo isso enriquece a minha propriocepção, minha regulação tônica, o meu

uso de mim mesmo): como seu meu ouvido externo pudesse se estender para o meu

corpo inteiro, estimulando novas capacidades de escuta.

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Esta experiência permeável proprioceptiva me mostra o quanto os sentidos estão

incluídos na imagem corporal enquanto dimensão tátil: a partir da sensibilização do

sentido cinestésico, posso entrar em contato, com mais sutileza e detalhamento, com as

sensações geradas a partir dos outros sentidos como: audição, visão, olfato e paladar; e

sentir também a abundância de estímulos nervosos que uma boa respiração pode

proporcionar, por exemplo.

3.3. Amadurecendo a técnica com Joana Azevêdo

No primeiro semestre de 2015, cursei a disciplina obrigatória Técnica Vocal,

ministrada pela cantora soprano, regente e doutoranda da UNIRIO, Joana Azevêdo,

vinda de Goiânia. No semestre seguinte, continuei recebendo suas orientações na

disciplina temática PROM – Processos de Musicalização, cujo foco era a Canção de

Câmara Brasileira. Este contato acadêmico se estendeu para aulas particulares fora da

universidade. Com Joana pude experimentar o amadurecimento e um domínio maior de

várias habilidades técnicas, sempre enquanto um desenvolvimento do meu percurso

prévio: sua didática também agrega muito embasamento de fisiologia da voz e uma boa

atenção para o corpo que se organiza para cantar.

3.3.1. Estabilizando para mobilizar

Um dos primeiros grandes insights que tive neste período foi descobrir um

padrão inconsciente recorrente de variar a abertura da boca ao longo de uma frase

melódica. Normalmente essa variação vinha na hora de passar por uma nota na região

aguda da tessitura, na segunda zona de passagem (MILLER, 1996), do dó#3 em diante

e, invariavelmente, o resultado era uma quebra da voz ou um comprometimento do

timbre, com sensação de aperto na laringe.

A partir da conscientização do que acontecia, portanto, com a minha mandíbula

ao passar por essa zona limítrofe, Joana me convidou a experimentar a possibilidade de

estabilizar a mandíbula nessa hora (estabilizar não é enrijecer). Ou seja, usando um

termo da Técnica Alexander, eu pude inibir o padrão de variar o espaço entre maxilar e

mandíbula após iniciada a frase melódica. O que eu experimentei foi a sensação de

unidade timbríca, de inteireza da frase, de voz colocada e de uma articulação que

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passava a acontecer mais internamente: ao estabilizar a mandíbula eu descobri outros

espaços articulatórios dentro da faringe e da boca. Descobri também novas atitudes

internas em relação à preparação e à visualização da frase melódica antes dela soar.

Como se eu agora estivesse mais alerta para os ajustes necessários à execução de

determinado trecho e, prevendo os desafios adiante, estabelecesse, antes de vibrar as

pregas vocais, uma configuração interna “imexível” (o que mais uma vez não significa

hipertonicidade). Este experimento me trouxe o seguinte resultado: a sensação de cada

vez mais facilidade na execução de tais trechos, de superação desta que até então era

uma dificuldade crônica. Esta facilidade conquistada me trouxe o prazer de sentir e

ouvir apenas a própria voz de fato articular o fraseado (e não mais as pequenas

instabilidades inconscientes da relação maxilar-mandíbula), numa experiência que me

remete a termos como o “timbre uniforme”, a “pureza” da minha voz, a minha

“verdadeira” voz, a minha “natureza vocal”.

Esta possibilidade de inibição de um padrão postural que não me ajudava a

cantar me trouxe uma importante reflexão: como lidar com os ajustes vocais no canto?

Encontrei muitas respostas ao me debruçar sobre o tema estabilidade-mobilidade, na

forma como é conceituado no Sistema Laban-Bartenieff.

Ciane Fernandes (2002) nos mostra que todo movimento, para acontecer, sempre

precisará de uma parte do corpo que se estabiliza para que a outra seja mobilizada,

como quando caminhamos, em que uma perna pressiona o chão, servindo de base para

que a outra se eleve do chão, permitindo que um passo aconteça e exista a transferência

de peso para a locomoção. Este fenômeno também é facilmente observado numa aula de

dança em que, para realizar um rond de jambe en l´air9, sou convidado a, ao invés de

pensar apenas na perna que será mobilizada no ar, pensar mais ainda na perna de base,

que vai empurrar o chão e servir de sustentação para o movimento. É como enxergar

mais fundo a origem das coisas, o mecanismo que estrutura e permite que o movimento

aconteça de fato com mais plenitude de função e expressão. Mais um exemplo, muito

presente na vida cotidiana: ao comermos, para cortar um bife, a mão que segura o garfo

atua como estabilizadora para que a mão que segura a faca se mobilize e realize assim a

ação de cortar.

9 Rond de jambe en l´air: passo oriundo da tradição do ballet clássico em que uma perna descreve um

semi-círculo no ar, no plano horizontal, paralelo ao chão.

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Na técnica de educação somática Body-Mind Centering, o estudo dos padrões de

Organização Corporal (Desenvolvimento Neurocinesiológico), desenvolvido por sua

criadora Bonnie Bainbridge-Cohen, foi incorporado ao Sistema Laban-Bartenieff. Três

dos padrões referem-se diretamente à relação estabilização-mobilização:

Homólogo – O corpo estabiliza a parte de baixo e mobiliza a parte

de cima, ou vice-versa.

Homolateral – O corpo estabiliza o lado direito do corpo e

mobiliza o esquerdo, ou vice-versa.

Contralateral – O corpo estabiliza os lados direito superior e

esquerdo inferior e mobiliza os lados esquerdo superior e direito

inferior, ou vice-versa (FERNANDES, 2002, p.250).

O reconhecimento deste tema enquanto princípio estruturante e funcional tanto

para o corpo quanto para a voz muito me estimulou no processo de reflexão sobre a

interação educação somática-técnica vocal. Este mecanismo de estabilidade-mobilidade

se faz presente com clareza no processo de sensibilização corporal, posto que este

desperta as sensações a partir dos apoios com o chão, dos micro-movimentos, tornando

o tema da pausa e do movimento (e sua inter-relação e geração mútua) um importante

parâmetro para a educação somática. Descobrir que este mesmo processo tem igual

importância na produção vocal me trouxe o insight de que mover e cantar seguem as

mesmas leis mecânicas, os mesmos parâmetros de funcionamento fisiológico.

Voltando ao termo ajuste vocal: ajustar seria mudar algo na estrutura para

permitir a execução de determinada ação. Ora, o que eu percebi é que, estando meus

ossos livres, meu tônus bem regulado, meu controle primordial bem coordenado,

quanto menos ajustes eu fizer, melhor. Explico-me: a partir do entendimento desse

“continuum” entre os “opostos” estabilidade-mobilidade em estruturas mais “macro” do

corpo (pela minha vivência em educação somática e dança), pude refinar essa percepção

em relação às estruturas mais “micro” do tronco e da cabeça envolvidas na fonação. Por

exemplo, a já mencionada estabilização da língua, a estabilização da laringe (não

confundir com enrijecimento), e agora da mandíbula, para que o sopro e a própria voz

pudessem ser mobilizados sem interferências, com precisão e constância do local de

ressonância, sem ajustes involuntários por falta de controle. Pude entender que uma voz

que percorre uniformemente e com leveza os registros é uma voz profundamente móvel,

flexível, que, para tal, conta com um mecanismo de propriocepção regulando as

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estruturas ósseas (cabeça-pescoço-costas, espaço entre maxilar e mandíbula, espaço

entre costelas e cristas ilíacas) e musculares (cinturão abdominal, língua, músculos das

maçãs do rosto, fôrma dos lábios) no sentido de sua estabilização. É claro que pequenos

ajustes podem acontecer, mas verifico, na prática, que o ideal é que aconteçam no

momento de silêncio, durante uma inspiração entre uma frase e outra, e não uma vez a

frase vocal iniciada, sob pena de prejuízo do fluxo vocálico. A frase vocal deve ser

iniciada e finalizada com a mesma configuração óssea, com o mesmo espaço faríngeo e

com a mesma atitude interna, para que o que precisa ser mobilizado (musculatura da

fonação resultando em voz) seja mobilizado com eficiciência, com eutonia.

A atenção a este tema estabilidade-mobilidade tornou-se uma constante no meu

fazer técnico, e está sempre se aprimorando e aprofundando. Associo a uniformidade do

timbre e a saúde das pregas vocais à capacidade de percorrer toda a tessitura

(mobilidade) com a mesma atitude firme e apoiada da estrutura óssea, da musculatura

abdominal e dos espaços do filtro que organizam a vocalização (estabilidade). Acredito

que na compreensão da relação estabilidade das estruturas vocais-mobilidade do som

reside um importante fundamento da técnica vocal.

3.3.2. Colocando a voz: processo de palatização e elevação do véu palatino

A conscientização da estabilização da mandíbula trouxe à tona o presente tema:

o lugar de colocação da voz. Joana sempre trazia imagens como: “cantar acima da

boca”, “cantar com os juros da voz”, “abrir a boca para cima e para trás, mais do que

para baixo”. Passei a compreender melhor e a finalmente experimentar mais

concretamente que a parte protagonista do ato de cantar não é a boca, mas o palato duro

(informação que Doriana Mendes sempre me deu, mas que à época eu ainda não

conseguia aplicar com domínio). Pensar na boca como engrenagem principal da fonação

sempre me trouxe uma voz pesada e laríngea demais. Este pensar “um andar acima” me

parece perfeitamente em sintonia com a voz de filtro, mais sistêmica, igualmente

solicitada por Doriana Mendes. Sobre o palato duro enquanto lugar de melhor colocação

para amplificação da voz, Pérez-González elucida-nos: “Além da restrição nos agudos,

a voz não se projetava como devia, isto é, não era focalizada contra o palato duro”

(PÉREZ-GONZÁLEZ, 2007, p. xi da apresentação, grifo do autor). Palato duro é o céu

da boca, na sua porção óssea anterior, que chega até os dentes da frente. Richard Miller

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também menciona a importância da utilização de imagens como auxílios para “ajudar o

cantor a encontrar um timbre vocal adequado (ressonância) através da sensação”

(MILLER, 1996, p.60, tradução minha)10.

Joana sempre enfatizou em aula a importância do trabalho de colocação da voz

como primeiro e fundamental procedimento de qualquer aquecimento vocal. De que

adiantaria trabalhar a musculatura vocal com a voz fora de lugar, com um trabalho de

ressonância limitado e mal apoiado? A produção vocal é um mecanismo tão rico, tão

complexo, tão somático, que a verdade é que tudo se interliga. Colocar bem a voz,

pressupõe, portanto, um bom trabalho de apoio, até porque a colocação é um aspecto do

apoio, é um dos elementos que definem tal conceito (vide 3.1.1). É a partir da colocação

sem esforço que a voz pode encontrar seu timbre pleno e potente em harmônicos, e fluir

com flexibilidade e equilíbrio. Miller (1996) define colocação da voz (impostazione

della voce) como o equilíbrio da ressonância resultante de uma boa técnica de apoio, e

não um lugar específico para onde essa voz necessariamente estará direcionada. Mais

uma vez nos deparamos com o conceito, proposto por mim, de eutonia vocal: sem uma

boa compreensão do resultado ótimo de ressonância do som na estrutura óssea da

cabeça (seus formantes), haverá compensação muscular indevida (com risco de lesão),

pois alguma parte do aparelho fonador estará fazendo tensão de mais ou de menos, e

não a tensão certa, a tensão justa, boa, harmoniosa e saudável. Coordenar a ação dos

músculos via ossos mostra-se mais uma vez como a abordagem mais eficiente para a

função vocal, princípio também compartilhado enquanto fundamento da educação

somática (vide 1.3.).

Projetar minha voz no palato duro tem se mostrado uma direção bastante

eficiente no meu fazer técnico. Pérez-González (2007) chama esse processo de

palatização.

Acoplado ao palato duro, posteriormente, encontra-se o véu palatino, ou palato

mole, um músculo, parte importante do processo de equilíbrio da ressonância, logo, de

uma voz bem colocada. Seus movimentos consistem em elevação e depressão, bastante

conectados com a abóbada do diafragma. O véu palatino é uma espécie de diafragma

10 “Placement imagery is meant to help the singer discover desirable vocal timbre (‘resonance’) through

sensation”.

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também. Na inspiração, este tende a subir, espelhando a descida (contração) do

diafragma respiratório. Na expiração, este último relaxa e sobe, espelhando o véu

palatino que desce, reduzindo o espaço faríngeo.

A manutenção do véu palatino elevado (e mais uma vez isto não quer dizer

enrijecimento) é o que se procura através da prática do conceito de gola aperta

(“garganta aberta”), da histórica Escola Italiana de canto, segundo Miller:

Quando se respira profundamente pelo nariz ao, por exemplo,

encherem-se os pulmões com ar puro e fresco após uma tempestade de raios, ou quando se inala uma fragrância prazerosa, há uma sensação

de abertura considerável na nasofaringe, também na orofaringe e até

na laringofaringe. [...] o véu palatino está elevado, e o canal que

conecta os ressonadores está aberto e livre (MILLER, 1996, p.59,

tradução minha)11.

E ainda:

Respirar como se inalássemos o cheiro de uma rosa é realizar a

posição bucofaríngea de gola aperta [...]. A imagem da rosa é um dispositivo muito usado na escola internacional, uma sensação aberta

acontece durante a inspiração, e tal sensação permanece ao longo da

frase subsequente [...]. A garganta aberta (gola aperta) é eficiente, e

produz timbre vocal que ouvintes reconhecem como plenamente ressonante e equilibrado, sem artificialidade (MILLER,1996, p. 60,

grifos do autor, tradução minha)12.

A manutenção do palato mole elevado, como que evocando a semente de um

bocejo ou de um espirro, ou neste exemplo muito apropriado do ato de “cheirar uma

rosa”, também tem atuado no meu cantar como uma importante intenção para a

11 “When one breathes deeply through the nose, as, for example, when filling the lungs with fresh, clean

air following an electric storm, or when one inhales a pleasant fragrance, there is a feeling of considerable

openness in the nasopharynx, some in the oropharynx, and to some extent in the laringopharynx. [...] the

velum is raised, and the connecting channel between the resonators is open and free”.

12 “To breathe as though inhaling deeply the fragrance of a rose is to accomplish the buccopharyngeal

position of gola aperta [...]. The rubric of the rose is a favorite device of the international school, an open

sensation is present during inspiration, and that sensation remains throughout the subsequent phrase [...].

The open throat (gola aperta) is efficient, and it produces vocal timbre that listeners find fully resonant

and balanced, without artificiality”.

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preparação de uma frase melódica, intenção esta que se mantém durante sua execução e

se prolonga para além de sua finalização. A gola aperta faz parte do processo de onset

(MILLER, 1996): como moldo meu trato vocal instantes antes de vibrar as pregas

vocais? Considero este procedimento um ajuste vocal. Vejamos o que Regina Miranda

nos traz sobre o pré-movimento, citando sua mestra Irmgard Bartenieff:

Com o intuito de ativar a disposição para a mobilidade, Irmgard repetia frequentemente frases gêmeas, que incorporei como uma

espécie de mantra: ‘a intenção precede o movimento’, ‘o suporte

respiratório mantém vivo o movimento’. Quando ela dizia que ‘a intenção precede o movimento’, indicava que a intenção nítida faz

com que o sistema nervoso central envie orientações límpidas para as

partes do corpo que, por sua vez, se engajam mais eficientemente no movimento desejado, com menos ruídos ou desvios. E é claro que

todo esse processo já se constitui numa enorme movimentação não

aparente (MIRANDA, 2008, p.32, grifos do autor).

O que também está de acordo com o pensamento de Angel Vianna quando diz

que o “movimento exterior é o prolongamento de um trajeto interior” (POLO, 2005,

apud TEIXEIRA, 2008, p. 29).

3.3.3. O corpo atravessado pelo espaço e a equalização das vogais

O Sistema Laban-Bartenieff contém uma categoria apenas dedicada aos estudos

do espaço e de suas linhas (eixos), dimensões, planos e formas geométricas, sobre,

dentro e ao redor dos quais se organiza o movimento de tudo o que existe no plano

físico. Nas palavras da especialista Ciane Fernandes (2002, p.42): “Essa dinâmica pode

ser entendida e desenvolvida através de linhas imaginárias de movimento que projetam

o corpo a partir de pontos ósseos em direção ao espaço, como usado também na técnica

Alexander [...]”. Este paradigma de corpo-espaço (MIRANDA, 2008) se difundiu muito

entre as técnicas de educação somática, posto que corresponde a um embasamento

fisiológico para o movimento, e é também uma importante referência em muitas

formações em dança e processos de criação coreográfica. Na Escola Angel Vianna,

pude ter acesso à descoberta desta teoria espacial através da Conscientização do

Movimento e das aulas de Dança Contemporânea com foco nos conteúdos do Sistema

Laban-Bartenieff, conteúdos estes que permeavam praticamente toda a pedagogia da

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Escola, especialmente no que dizia respeito à criação coreográfica pelo viés espacial e

expressivo. Letícia Teixeira (2008, p.23), professora veterana da Escola, afirma: “Uma

questão fundamental para a percepção do corpo no espaço é apreendê-lo como

tridimensional, ou seja, conquistá-lo enquanto corpo que se preenche em todas as

direções (frente, lados, costas, em cima, embaixo)” e que é o sentido proprioceptivo que

nos promove tal percepção simultânea das três dimensões: altura, largura e

profundidade (TEIXEIRA, 2008).

Estas dimensões imaginárias no espaço se tornam referências de organização do

corpo e do movimento, e é exatamente isto que as técnicas somáticas fazem ao

promover a vivência cinestésica da anatomia: estudamos a forma de cada osso, de suas

articulações e das macro-estruturas que eles formam, para melhor estimular a

propriocepção (a “visualização encarnada”), reconhecendo no corpo seus eixos,

dimensões (planos) e suas possibilidades de movimento, além de várias outras

qualidades, conforme alega Letícia Teixeira (2008, p.18-19): “Então, cada um pode

reconhecer sua constituição física, localizando e visualizando a estrutura (esqueleto) em

si mesmo”.

Um dia, já me calçando para ir embora de uma aula com Gabriela Geluda, ela

me disse algo sobre cantar a partir da minha largura: ela tinha a sensação de que eu não

estava explorando esse potencial. Este conselho teve repercussões tremendas, pois a

partir dele, pude perceber que uma das causas do meu canto comprimido era justamente

eu não estar explorando ao máximo as dimensões do meu corpo enquanto “lastro” de

ressonância. Fiz alguns experimentos em que cantava com e sem essa atenção para a

largura (largura da cabeça, dos ombros, do quadril), e a diferença no resultado era

óbvia: quando estava consciente da minha largura o som era mais gordo, encorpado,

profundo e me causava uma sensação de muito mais integridade, potência e beleza. Eu

podia sentir que estava, mais uma vez, chegando perto de um procedimento que me

auxiliaria a encontrar a minha voz plena.

Com o baixo-barítono e professor Lício Bruno, que ministrou a disciplina

Oficina de Canto, na UNIRIO, no segundo semestre de 2014, entrei em contato com o

que ele chamava de linha de canto: a intenção espacial do fluxo vocálico no eixo

sagital, saindo do rosto e se prolongando infinitamente à frente, independente do sentido

ascendente ou descendente da melodia. Talvez eu já tivesse ouvido algo parecido com

Gabriela Geluda, em relação à configuração interna das vogais, por exemplo com a

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imagem de um funil com o bojo no fundo da boca (a tal largura mencionada no

parágrafo anterior) e o bico na frente, facilitando a atitude de foco e convergência para a

fonação. Mas esta memória já não é tão clara para mim.

Com Joana Azevêdo eu pude de fato incorporar esta imagem do funil, do eixo

sagital e do plano médio do corpo como referências para a produção vocal,

primeiramente das vogais. A minha tendência antiga de cantar com um sorriso na boca

enfatizando a dimensão horizontal promoveu elevação e compressão da laringe e um

resultado de voz comprimida, com poucos harmônicos graves. Pensar no funil

provocou, por um lado, a percepção simultânea da profundidade da minha cabeça (plano

sagital conectando fundo e frente) aliada à da largura (plano vertical conectando lados

esquerdo e direito); por outro lado, a noção de um fundo com espaço (gola aperta)

combinado com uma frente focada, um tubo de saída convergente (palatização), que

não deve ser comprimido, mas que também não precisa ser espalhado pros lados.

Neste processo de sentir as dimensões do meu corpo e de imaginar seus

prolongamentos enquanto linhas e planos como referências para o canto funcional,

naturalmente passei a aplicar os conceitos de conexões e marcos ósseos ― na

concepção do Sistema Laban-Bartenieff ― à estrutura da minha cabeça, gerando novas

sinapses nos caminhos de propriocepção. Tais conceitos, relativos, por definição, apenas

aos tecidos ósseos, serviram de estímulo para o reconhecimento dos marcos relativos a

partes da cabeça “desprovidas” de ossos, como é o caso do véu palatino. Sabemos que o

palato duro é basicamente ósseo, e que o palato mole é um músculo. Não faria sentido

chamar este último de um marco ósseo. Para suprir essa necessidade, sugiro o termo

marco anatômico.

Meu sentido cinestésico se refinou para encontrar sensações inéditas nestes

novos marcos ósseos e anatômicos em geral e em suas possíveis conexões, expandindo

e enriquecendo assim minha imagem corporal e fazendo-me habitar melhor as

dimensões da minha cabeça e “descobrir” novas habilidades vocais relativas a

estabilizar para mobilizar. A partir das conexões ósseas conceituadas nos Bartenieff

Fundamentals (vide 1.2.2.) e/ou presentes nas três pedagogias descritas neste capítulo

(por exemplo, as conexões occipital-sacro e centro das escápulas-esterno, estimuladas

por Doriana Mendes), enumero uma série de conexões que deduzi neste processo (não

apenas restritas à cabeça), e que têm me ajudado a aprimorar minha técnica:

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palato duro-topo (tampo) da cabeça – ALTURA

palato mole-topo (tampo) da cabeça – ALTURA

ponta superior da orelha (topo da orelha)-topo (tampo) da cabeça (uma de

cada lado do crânio) – ALTURA

base do crânio-frente do palato entre o nariz e a boca –

PROFUNDIDADE

boca-nuca – PROFUNDIDADE

nariz-occipital – PROFUNDIDADE

olhos-occipital – PROFUNDIDADE

têmpora-têmpora – LARGURA

ATM (articulação têmporo-mandibular)-ATM – LARGURA

ATM-base do nariz (uma de cada lado do rosto) – PROFUNDIDADE

base do nariz-base do nariz – LARGURA

ouvido-ouvido (Angel Vianna menciona essa conexão) – LARGURA

maçã do rosto-maçã do rosto – LARGURA

bochecha-bochecha – LARGURA

largura do maxilar-largura da base do crânio – PROFUNDIDADE

base do crânio-meio das costas – ALTURA

largura do maxilar-meio das costas – PROFUNDIDADE/ALTURA

largura do maxilar-sacro – PROFUNDIDADE/ALTURA

palato-diafragma – ALTURA

diafragma-assoalho pélvico – ALTURA

palato-assoalho pélvico – ALTURA

axila-axila – LARGURA

crista ilíaca-crista ilíaca – LARGURA

sacro-púbis – PROFUNDIDADE

Sentir o espaço entre estes marcos anatômicos proporciona permeabilidade de

sensações e abertura de espaços, movimentos da percepção que modificam o tônus e a

sensibilidade para a vibração do som, e trazem vida e presença para o meu corpo

enquanto ressonador, meu instrumento. Outras relações entre marcos anatômicos, mais

do que conexões, eu experimento enquanto “espaços entre”:

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o já mencionado espaço entre as cristas ilíacas e as últimas costelas

(percepção responsável pela minha descoberta do apoio);

o espaço entre as arcadas dentárias superior e inferior (maxilar-

mandíbula);

o espaço entre a têmpora e a mandíbula, ou seja a ATM experimentada

enquanto um espaço.

Há, por último, a possibilidade de conexão entre dois “espaços entre”:

o espaço da ATM conectado ao espaço entre as arcadas;

o espaço entre costelas e cristas conectado com o espaço entre as arcadas.

Sinto que existe uma correspondência entre a ativação destes espaços: um afeta

o outro, reverbera no outro, acessa o outro, ativa o outro.

Fiz um longo percurso espacial (literalmente!) para chegar até aqui: a

importância das vogais na técnica vocal e a sua equalização. A fisiologia das vogais é

um campo bastante amplo que não pretendo destrinchar aqui, mas apenas compartilhar a

minha forma funcional de abordá-las, a partir do caminho pedagógico proposto por

Joana Azevêdo. A possibilidade de não variar a abertura da boca (entendida aqui como

o espaço entre as arcadas, vide cap.3.3.1.) já me provoca uma sensação de conexão

entre uma vogal e outra, de que elas podem ter mais aspectos em comum do que se

imagina. Joana foi me convidando ao longo das aulas a experimentar todas as vogais

conectadas pela imagem do funil, da palatização, do fundo aberto com o canal de saída

convergente à frente. Como se a articulação, a mudança entre uma vogal e outra se

desse, na verdade, mais internamente, através de um processo psicofísico que nem

podemos controlar tanto assim: basta pensar na vogal e ela já está lá. O que me caberia,

então, tecnicamente, seria cuidar da estabilidade da transição entre uma vogal e outra,

não deixando o foco espraiar demais para os lados, deixando as bochechas sempre

bastante alongadas, enfatizando a sagitalidade do palato duro, sem afetação, protegendo

os dentes. Para tal, fizemos com frequência o exercício de cantar, com uma nota só, as

vogais na sequência da mais lingual passando pela neutra chegando até a mais labial (I –

Ê – É – A – Ó – Ô – U). Este processo me ajudou a entender melhor a palatização, o

funil como imagem organizadora do fluxo vocálico firme, independentemente da

quantidade de variações de vogais e notas, numa frase falada ou cantada. Trouxe

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também uma calma, uma objetividade para a minha abordagem do canto: o que há são

basicamente consoantes e vogais se alternando. Clareando mentalmente a fisiologia e a

estabilidade do fluxo vocal através das vogais, pude perceber melhor a configuração

específica de cada consoante, os pontos de contato e articulação, os apoios no nível do

filtro.

3.4. Síntese do aprendizado

O caminho pedagógico percorrido sob a orientação de Doriana Mendes, Gabriela

Geluda e Joana Azevêdo, trazendo de volta o corpo para o centro do aprendizado,

trouxe-me o despertar para a interação da técnica vocal com a educação somática. Isto

possibilitou-me o reconhecimento mais preciso das estruturas envolvidas no mecanismo

de fonação e os fundamentos de sua coordenação. Enquanto estudante, eu pude, na

diversidade que as rotinas didáticas promoveram, abordar cada uma destas estruturas

“isoladamente” enquanto protagonistas da vocalização e, aos poucos, experimentar os

seus acoplamentos e coordenações. Esta é uma virtude da prática consciente: há uma

abundância de pontos de vista e vias de acesso a determinado saber prático, e aos

poucos estas operações vão se conjugando, expandindo a percepção e amadurecendo a

técnica. Reconheço cada vez mais que o nosso aparelho fonador é já muito complexo e

perfeito por natureza. Nascemos com o dom da excelência da produção vocal: a

possibilidade de um som natural, livre e bem colocado. O que precisamos entender,

mais do que o que devemos fazer, é o que devemos “não-fazer” para manter esse fluxo

preservado em harmonia. Esta é uma visão bastante influenciada pela Técnica

Alexander: o que preciso inibir (qual ajuste inconsciente devo evitar?) para produzir

voz equilibrada?

A partir da ativação da memória de experiências somáticas ao cantar, eu pude

convidar essa atitude de relação com o corpo para a base da aprendizagem, e isso passou

a me acompanhar, a me guiar nas minhas práticas vocais, sozinho ou com a orientação

de professores, mesmo que não especialistas em abordagens somáticas. Dali em diante,

a escuta do corpo, das sensações que o percorrem e da imagem que formam

(propriocepção) passou a ser a minha principal premissa, meu principal parâmetro para

a produção vocal, sendo inclusive anterior à escuta com os ouvidos, posto que estes

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fazem parte do corpo e passaram a ser sentidos e integrados a partir desta visão com

foco no sensorial.

Este processo me ajudou a enxergar a interação educação somática-fisiologia da

voz como um caminho pedagógico para os fundamentos da técnica vocal: foi quando

senti minha técnica amadurecer. Encontrei minha voz. Este reconhecimento trouxe

imediata confiança para performar e ensinar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando a cronologia dos acontecimentos narrados e analisados cientificamente

neste texto, posso afirmar que o meu processo de reeducação vocal e de

desenvolvimento técnico foi acelerado e otimizado a partir do encontro com a

pedagogia vocal de tradição lírica, enriquecida por conhecimentos fisiológicos e

somáticos, das três professoras com quem estudei a partir de 2013. O meu encantamento

com tal processo de superação pessoal reside na satisfação de constatar na prática a

velocidade, a constância e a consistência com que tais mudanças passaram a ocorrer a

partir desta iniciação. Eu pude trazer para a consciência os mecanismos corporais

envolvidos no processo de cantar. Creio ser este o maior tesouro da técnica, o

fundamento mais essencial, que permite a aplicação com mais eficiência de todos os

outros (e que abarca todos os outros, estrutura tudo): a coordenação. É a partir do meu

sentido cinestésico, sensibilizando, conectando, liberando, ativando e dirigindo meu

corpo-espaço que posso estabilizar e mobilizar (regular) as estruturas necessárias para

a produção vocal de excelência: uma voz eutônica, Este processo constitui um uso

coordenado do meu próprio organismo.

Sinto-me especialmente inspirado e respaldado por Richard Miller (1996) e por

Claire Dinville (2001), quando estes nos mostram a abrangência do conceito de apoio,

coordenando os aspectos de suporte respiratório e suporte muscular interno com a

própria definição de colocação da voz e equilíbrio da ressonância. Tal conceito, o

appoggio, como que sintetiza este fundamento da técnica vocal: a importância de uma

boa coordenação de ossos-músculos-pregas vocais-ressonância ou corpo-fonte-filtro.

Creio ter comprovado a importância do trabalho de sensibilização, integração e

coordenação corporais-vocais para o cantor, pois no processo de ativações musculares

demandadas no canto, muito facilmente corre-se o risco de fazer força demais ou de

menos. Faz-se necessário um refinamento da percepção, uma prática de auto-

observação, que previna e corrija maus usos de si, que promova a regulação tônica

global do organismo, que é exatamente o que as técnicas somáticas nos trazem,

conforme demonstrei a partir de minha trajetória pessoal e do diálogo com o referencial

teórico. Encontro cada vez mais conforto e leveza na minha emissão à medida que ela é

cultivada na perspectiva fisiológico-somática. Sinto minhas estruturas vocais sendo

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ativadas na medida justa, ótima, precisa, sem força demasiada ou insuficiente, numa

ação que é reabilitadora e não desgastante. Tenho a sensação de uma voz fresca e fácil,

que me dá muito prazer de entoar e ouvir. E os comentários dos ouvintes (professoras e

público) têm confirmado esta mesma sensação. Ouvidos interno e externo estão se

harmonizando. Parece-me que incluir as sensações e a consciência

cinestésica/proprioceptiva no processo de emissão vocal é o grande salto técnico que se

pode dar, posto que só podemos coordenar o que podemos sentir. Sinto que, cuidando

disso, o tempo e a própria sensibilidade pessoal cuidam de amadurecer o som rumo a

uma emissão de excelência.

A maestria vem, portanto, do contato consciente. Por isso afirmo com convicção

que o verdadeiro caminho técnico é o caminho da percepção, não o do fazer absoluto. É

o caminho da ação consciente. É o "como" e não "o quê". O professor e regente Carlos

Alberto Figueiredo disse recentemente numa cerimônia de colação de grau do Instituto

Villa-Lobos da UNIRIO que "um cantor não participa de um coro para cantar, mas para

ouvir" (informação verbal). É claro que esta é uma frase radical e um tanto polêmica, já

que um cantor canta e essa é uma das faculdades que se espera que ele domine. Porém,

o que essa frase traz nas entrelinhas é: cantar requer muito mais sensibilidade e

receptividade do que se supõe. Para uma boa execução de qualquer coisa que se faça, é

necessário atentarmos para a relação que a motiva, o contato que a precede, a conexão

que estrutura o seu acontecimento. Precisamos atentar para uma atitude de abertura e

escuta o tempo todo, inclusive quando estamos engajados em ação. Esta afirmação nos

revela o perigo já mencionado de cristalizarmos um tônus alto demais, que nos deixa

obcecados com a realização da tarefa de emitir voz e negligentes com as sutilezas da

tarefa de ouvir. Tarefa esta que, aliás, deve ser realizada tanto com o ouvido externo

quanto com o ouvido interno.

No trabalho de reflexão e elaboração do pensamento expresso neste estudo, eu

pude formular conceitos: marcos anatômicos, em diálogo com o arcabouço teórico do

Sistema Laban-Bartenieff; e ação vocal eutônica, voz eutônica, vocalização eutônica e

eutonia vocal, em diálogo com o referencial da Eutonia de Gerda Alexander.

Destaquei também, ao longo desta monografia, a importância do contato com o

chão e da subversão de padrões convencionais de aulas de canto (que cristalizam um

uso do corpo) como um importante procedimento pedagógico. Se as técnicas de

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educação somática nos ensinam que deitar no chão, soltar o peso do corpo e liberar as

articulações constituem operações concretas para o enriquecimento da nossa experiência

de propriocepção e para a melhoria do nosso desempenho no que quer que seja, que

possamos então aplicar estes ensinamentos, que possamos de fato usar as tecnologias

benéficas que a humanidade desenvolveu.

Faz-se necessário perguntarmo-nos: o quanto esta interação educação somática-

técnica vocal é realizada na prática? Muitos cantores e professores trabalham nesta

perspectiva? Ainda é um paradigma pioneiro? O que se pode fazer para difundir este

conhecimento? Eu desejo contribuir objetivamente para que aulas de canto e a prática

vocal em geral possam acontecer, cada vez mais, dentro de um contexto somático,

alicerçadas em seus princípios e procedimentos. Acredito que esta pesquisa representa

um importante gesto rumo à realização deste desejo sincero, e que a universidade pode

ter um importante papel neste processo. Concordo com a opinião de Barros (2012)

sobre a ainda incipiente associação de práticas de educação somática ao ensino do canto

no Brasil, e sugiro que seminários, oficinas e disciplinas optativas possam começar a

suprir esta necessidade no ambiente universitário, quiçá rumo ao estabelecimento de

disciplinas obrigatórias relativas a esta interação dentro dos próprios bacharelados e dos

cursos de licenciatura em música. Acredito que muito tempo e esforços seriam

poupados e otimizados caso pudéssemos, licenciandos em música, desenvolver uma

prática vocal sistemática que acolhe e cuida do corpo em seu processo orgânico e real

de aprendizado.

Todo este percurso me situa no ponto em que estou agora: sinto que encontrei

minha voz, acessei minha natureza e identidade vocais. Com certeza há muito caminho

a ser trilhado, mas reconheço virtudes e facilidades que antes não percebia. Cantar, para

mim, tornou-se uma atividade mais simples, melhor organizada, objetiva e prazerosa, e

esta percepção com certeza é que me permite agora ser o artista corporal-vocal que sou

e compartilhar meus saberes. A consciência do meu processo de aperfeiçoamento

técnico trouxe-me uma nova confiança na relação com o meu uso artístico da voz,

aplicado a um repertório, e me proporcionou também subsídios para lecionar técnica

vocal, através de aulas individuais.

É importante ressaltar que, como uma manifestação de tal processo, eu pude

colher seus frutos nas minhas performances em concerto ao lado do violonista João

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Brasileiro, executando o cancioneiro popular de câmara do compositor baiano Elomar

Figueira Mello; e ao lado do baterista Lucas Fixel e do violonista e guitarrista Leandro

Cunha (e de outros músicos convidados), com quem inclusive gravei um disco,

Rebentação, executando canções de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro. Tenho muito

orgulho de ter iniciado e desenvolvido ambos os projetos dentro da UNIRIO, sempre

com o apoio e a orientação docentes.

Espero, com este estudo, ter contribuído para a produção de saber a respeito da

interação educação somática-técnica vocal, desejando que tal produção beneficie e

enriqueça as práticas pessoais e as formações nos campos diretamente implicados.

Acredito que esta monografia destina-se prioritariamente aos cantores e professores de

canto em geral, porém com uma especial atenção para os vocalistas da área de música

popular, que muitas vezes carecem de orientação técnica a respeito dos fundamentos de

uma produção vocal saudável e equilibrada. Verifiquei que, para além da escolha

estilística (com suas especificidades tônicas e articulatórias), é importantíssimo

conhecer o potencial da voz que se tem, baseado nos princípios do não-esforço, da boa

coordenação e do acesso à capacidade de ressonância. Por isso chamamos este processo

de técnica vocal, e não de canto lírico. Não tratei aqui em nenhum momento do

repertório de música de concerto, de câmara ou operística: estamos tratando dos

princípios de uma boa emissão, adaptável a qualquer repertório. O domínio da técnica

vocal traz autonomia para o cantor, que passa a ter consciência dos parâmetros que

orientam a qualidade da sua emissão.

Para além do canto, esta monografia pode interessar a todos que se interessam

por e trabalham com voz em geral: atores, dubladores, apresentadores, locutores,

oradores, professores, preparadores vocais, regentes corais e tantos outros profissionais

e estudantes que possam se sentir estimulados a investigar a natureza da voz.

Os exemplos descritos neste trabalho podem, também, inspirar estudantes e

profissionais da área de educação somática e de dança a incluírem cada vez mais a voz

como uma ferramenta de sensibilização, a voz como uma possibilidade de movimento,

uma manifestação do movimento corporal. O processo de vocalização gera sensações e

necessidades de coordenação muito específicas, que não poderiam ser vivenciadas por

outro meio. Ou seja: não conscientizar o uso da voz é não se conhecer plenamente, é

manter adormecido todo um universo de possibilidades. Há fatos e saberes sobre o

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corpo que só descobriremos se permitirmos que ele seja o instrumento sonoro que ele

pode ser: simultaneamente os meios de geração, ressonância e amplificação do som.

Gostaria de agradecer profundamente à UNIRIO, pela oportunidade de ter

cursado a disciplina Canto Complementar, que tantas portas me abriu. Expresso também

meu desejo em prosseguir com esta pesquisa acadêmica no âmbito da pós-graduação, na

intenção de detalhar e contribuir com produção e registro mais específicos de saberes

relacionados à interação interdisciplinar que é o objeto desta monografia. Pretendo

desenvolver, num futuro breve:

pesquisa qualitativa com cantores, professores e preparadores vocais a

respeito dos efeitos da prática vocal à luz do embasamento fisiológico e

somático;

análise aural do desempenho de cantores cujo som vocal eu considere

uma referência em termos de estrutura, equilíbrio e flexibilidade;

uma compilação de exercícios que auxiliem estudantes, cantores e

professores em seus processos de prática e ensino.

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