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51 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 51-75, jan./jun. 2002 Educação Física escolar e ditadura militar no Brasil (1968-1984): história e historiografia Marcus Aurélio Taborda de Oliveira Universidade Federal do Paraná Resumo Neste artigo pretende-se indicar um conjunto de procedimentos oficiais, institucionais e profissionais, que produziu uma nova for- ma de conceber a educação física no interior da instituição escolar no Brasil, desde o final dos anos 1960, com base em um diálogo crítico com a recente produção historiográfica da educação e da educação física no Brasil. Aqueles procedimentos foram orientados no sentido de dotar essa prática escolar de uma maior legitimidade acadêmica por meio de um amplo programa de massificação de seus conceitos e práticas, de maciços investimentos estatais em pesquisa nessa área, da ne- cessidade de formação de especialistas mediante a expansão dos cursos de formação superior, e de um aparato legislativo que de- finia com rigor padrões de referência para a sua prática escolar. Para tanto, suas fontes principais são: a série total da Revista Bra- sileira de Educação Física e Desportos (1968-1984), editada pela Divisão de Educação Física do MEC, os Programas de Educação Física da Prefeitura Municipal de Curitiba entre 1970 e 1984 e os depoimentos de professores da rede municipal de ensino de Curitiba. Partindo do pressuposto de que o processo histórico se define como uma síntese de continuidade e ruptura, recorre à obra de Edward Palmer Thompson para demonstrar como aquele se desen- volve a partir da experiência dos agentes da história e do diálogo entre o ser social e a consciência social, sem negligenciar a análise da influência dos fatores estruturais sobre esse mesmo processo, aspecto privilegiado pela historiografia criticada. Palavras-chave História da educação física escolar – Ditadura militar – Disciplinas escolares. Correspondência: Marcus Aurélio Taborda de Oliveira Universidade Federal do Paraná / Setor de Educação Dep to de Teoria e Prática de Ensino Rua General Carneiro, 460 5º andar, sl. 501 82940-150 – Curitiba – PR E-mail : [email protected]

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Educação Física escolar e ditadura militar no Brasil(1968-1984): h i s t ó r i a e h i s t o r i og ra f i a

Marcus Aurélio Taborda de OliveiraUniversidade Federal do Paraná

Resumo

Neste artigo pretende-se indicar um conjunto de procedimentosoficiais, institucionais e profissionais, que produziu uma nova for-ma de conceber a educação física no interior da instituição escolarno Brasil, desde o final dos anos 1960, com base em um diálogocrítico com a recente produção historiográfica da educação e daeducação física no Brasil.Aqueles procedimentos foram orientados no sentido de dotar essaprática escolar de uma maior legitimidade acadêmica por meio deum amplo programa de massificação de seus conceitos e práticas,de maciços investimentos estatais em pesquisa nessa área, da ne-cessidade de formação de especialistas mediante a expansão doscursos de formação superior, e de um aparato legislativo que de-finia com rigor padrões de referência para a sua prática escolar.Para tanto, suas fontes principais são: a série total da Revista Bra-sileira de Educação Física e Desportos (1968-1984), editada pelaDivisão de Educação Física do MEC, os Programas de EducaçãoFísica da Prefeitura Municipal de Curitiba entre 1970 e 1984 e osdepoimentos de professores da rede municipal de ensino deCuritiba.Partindo do pressuposto de que o processo histórico se definecomo uma síntese de continuidade e ruptura, recorre à obra deEdward Palmer Thompson para demonstrar como aquele se desen-volve a partir da experiência dos agentes da história e do diálogoentre o ser social e a consciência social, sem negligenciar a análiseda influência dos fatores estruturais sobre esse mesmo processo,aspecto privilegiado pela historiografia criticada.

Palavras-chave

História da educação física escolar – Ditadura militar – Disciplinasescolares.

Correspondência:Marcus Aurélio Taborda de OliveiraUniversidade Federal do Paraná /Setor de EducaçãoDept o de Teoria e Prática de EnsinoRua General Carneiro, 4605º andar, sl. 50182940-150 – Curitiba – PRE-mail: [email protected]

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E d u c a ç ã o e P e s q u i s a , S ã o P a u l o , v . 2 8 , n . 1 , p . 5 1 - 7 5 , j a n . / j u n .5 2

Physical education at school and the militarydictatorship in Brazil (1968-1984): h i s t o r y a n d h i s t o r i o g r a p h y

Marcus Aurélio Taborda de OliveiraUniversidade Federal do Paraná

Abstract

This paper describes a set of official, institutional andprofessional procedures that, since the late sixties, produced anew way of conceiving the physical education within theschool in Brazil; to this end, a critical dialogue is effected withthe recent historiography literature on education and physicaleducation in Brazil.The aforementioned procedures were geared towards endowingthe physical education with greater academic legitimacythrough a series of measures: a wide program of massificationof its concepts and practices, massive state investments inresearch in this field, the need to train specialists through theexpansion of higher education courses, and the creation of alegal apparatus that defined rigorously the standards of itspractice at school. To such effect, the paper’s main sources arethe complete series of the Revista Brasileira de Educação Físicae Desportos (Brazilian Journal of Physical Education and Sports(1968-1984), edited by the Physical Education Division of theMinistry of Education (MEC), the Programas de Educação Física(Programs of Phys ical Educat ion) f rom the Munic ipalGovernment of Curit iba between 1970 and 1984, andstatements given by teachers of the municipal school system ofCuritba.Considering that the historical process is defined as a synthesisof continuity and rupture, the work of Edward PalmerThompson is drawn upon to show how this process developsfrom the experience of history’s agents and from the dialoguebetween the social being and the social conscience, withoutoverlooking the analysis of the influence of structural factors,an aspect privileged by the historiography criticized.

Keywords

History of Education – Physical Education – Military dictatorship– School disciplines.

Correspondence:Marcus AurélioTaborda de OliveiraUniversidade Federal do Paraná /Setor de EducaçãoDept o de Teoria e Prática de EnsinoRua General Carneiro, 4605º andar, sl. 50182940-150 – Curitiba – PRE-mail: [email protected]

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Educação física escolar editadura militar no Brasil: o quenos fala a historiografia?

Segundo uma determinada produçãoacadêmica da área da educação física a partirda década de 1980, de forte acento crítico,com a qual discutirei ao longo desse trabalho,a educação física escolar foi conformada deforma autoritária pelo Estado no Brasil, a partirdas reformas educacionais de 1968 (Lei 5.540)e 1971 (Lei 5.692 e decreto 69.450). Segundoas análises oriundas desses estudos, no interes-se do desenvolvimento de um maior grau deeficiência produtiva no mundo do trabalho e,pressupondo a importância da educaçãoesco la r izada para se at ing i r es te f im, atecnicização do ensino patrocinada pelo gover-no teria como premissa básica a discipli-narização, a normatização, o alto rendimentoe a eficácia pedagógica. Esse pressuposto se-ria orientado pelo alinhamento do país a umaordem mundial calcada no desenvolvimentoassociado ao capital internacional, mais expli-citamente, ao norte-americano. Segundo talconcepção, é irrefutável a tese da dependênciaestrutural, o que implica necessariamente adependência cultural, aí incluída a educaçãoem geral e, no âmbito deste trabalho, a edu-cação física escolar em particular.

Dentro dessa perspectiva os intelectu-ais a serviço do governo teriam gestado aspolíticas públicas para a educação no períodoaqui abordado. Para a educação física escolara Lei 5.692/71 reserva, em seu artigo 7º, umespaço de obrigatoriedade nos currículos esco-lares. Essa obrigatoriedade foi regulamentadacom o Decreto 69.450/71, que impôs padrõesde referência para a prática de educação físi-ca no interior da escola, caracterizada comoatividade, ainda que a educação física passas-se a ter todos os pressupostos característicosda configuração de uma disciplina escolar(Chervel, 1990).

Segundo uma interpretação correntena historiografia, o esporte, aliado à interfe-

rência governamental no desenvolvimento daeducação física escolar, tornava-se referênciapraticamente exclusiva para a prática de ativi-dades corporais no plano mundial, seja dentroou fora da escola. Isso teria ocorrido, em par-te, porque numa certa perspectiva o esportecodificado, normatizado e institucionalizadopode responder de forma bastante significati-va aos anseios de controle por parte do poder,uma vez que tende a padronizar a ação dosagentes educacionais, tanto do professorquanto do aluno; noutra, porque o esporte seafirmava como fenômeno cultural de massacontemporâneo e universal, afirmando-se, por-tanto, como possibilidade educacional privile-giada. Assim, o conjunto de práticas corporaispassíveis de serem abordadas e desenvolvidasno interior da escola resumiu-se à prática dealgumas modalidades esportivas. As práticasescolares de educação física passaram a tercomo fundamento primeiro a técnica esporti-va, o gesto técnico, a repetição, enfim, a redu-ção das possibilidades corporais a algumaspoucas técnicas estereotipadas.

E s s a s s ão a l gumas da s t e s e s dahistoriografia. Mas teriam os professores deeducação física adotado passivamente os pres-supostos teóricos e metodológicos para a edu-cação física escolar difundidos pelo Estado edivulgados pela Revista Brasileira de educaçãof í s i ca e Desportos (periódico do MEC comampla circulação nacional), ou a prática coti-diana da educação física escolar desenvolveu-se com uma autonomia relativa ante as orien-tações de um governo autoritário? As evidên-cias empíricas, a serem exploradas ao longodeste artigo, não permitem respostas esquemá-ticas para essa questão.

Tais suposições, ainda que não sejamde todo descartadas, carecem freqüentementede uma análise empírica mais acurada. Se, porum lado, a partir de meados da década de1970, a produção acadêmica em educação fí-sica começava a se desenvolver com critérioscientíficos, principalmente pelo início de umprocesso de titulação (mestrado e doutorado)

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1. A pesquisa que deu origem a este trabalho resultou na minha tesede doutorado em História e Filosofia da Educação, defendida em mar-ço de 2001 junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Educa-ção: História, Política, Sociedade, da PUC/SP, sob a orientação do prof.dr. Kazumi Munakata. Para um maior aprofundamento dos pressu-postos e procedimentos por mim adotados ver Oliveira (2001).

de seus profissionais e pela emergência dosprimeiros cursos de pós-graduação no Brasil,por outro lado, já estava sendo produzida ediscutida no âmbito educacional uma literaturabaseada nas teorias críticas, com as quais osprofissionais da educação física travaram con-tato tardio, uma vez que essas teorias só fo-ram apropriadas pela teoria da educação físi-ca no início dos anos 1980. Esses dois movi-mentos infirmam a tese de um transplantepuro e simples de teorias estrangeiras. As evi-dências mostram que havia embates bastantesignificativos em torno da questionável impor-tância do esporte como prática pedagógica, oque ocorria até mesmo no interior de um perió-dico do MEC.

A historiografia desenvolveu uma es-treita interpretação que imputa à educaçãofísica escolar uma função de reprodução doideário oficial, calcado na ideologia da segu-rança nacional e do Brasil grande. Além disso,a tecnicização das práticas corporais represen-taria melhoria das condições da força de tra-balho, no sentido de torná-la mais eficiente eeficaz no processo de produção; a raciona-lidade e o planejamento da economia da edu-cação conformavam, então, as políticas públi-cas e, conseqüentemente, as práticas escolares,deixando pouco ou nenhum espaço para a in-tervenção dos sujeitos na história.

Essa visão está fortemente influenciadapela perspectiva de um a p r i o r i estrutural-economicista nas relações do governo com a so-ciedade civil, atuando aquele como mediador dosinteresses entre o capital e o trabalho, para ga-rantir a acumulação ampliada do primeiro. O “Es-tado” é concebido como uma instância que pairaacima dos conflitos e dos consensos e determi-na a prática e os interesses cotidianos dos sujei-tos na história. Essa perspectiva marca ainda umaprofunda crença na última instância da estrutu-ra econômica como orientadora da organizaçãoda cultura e das práticas culturais em particular,como é o caso da educação escolarizada.

Ora, como conceber os sujeitos histór i -cos como indivíduos incapazes de gerir o seu

cotidiano ou, de forma ainda mais radical,como massa de manobra apenas e sempre? Issoeqüivaleria a extrair do sujeito toda a sua au-tonomia, ainda que relativa, em face das vicis-situdes da vida social e toda sua capacidade deindignação e resistência diante dos modelospreconcebidos de organização da cultura. As-sim, ao operar com as evidências não foi difí-cil refutar uma leitura determinista e economi-cista do materialismo histórico, característicade uma determinada leitura da história, queextrai dos sujeitos toda sua potência criadorae os reduz a pouco mais que simples insumosculturais. Nessa perspectiva os agentes histó-ricos não teriam qualquer possibilidade de mo-ver-se com autonomia diante das rígidas estru-turas ideológicas determinadas pelo Estado.Moldar-se a determinados modelos culturaisimpostos de forma imperativa seria então tudoo que restaria aos mais diversos sujeitos.1

Essa perspectiva da história da educaçãofísica foi marcada por uma visão linear, um tantomecânica, desenvolvida no âmbito da pesquisaem história da educação no Brasil a partir dadécada de 1970 a qual, por sua vez, se alimen-tou das discussões desenvolvidas no interior dasCiências Sociais. Assim, um dos objetivos desteartigo é evidenciar os limites desse tipo de abor-dagem, tendo como referência para análise umadeterminada produção teórica da história daeducação no Brasil a partir da década de 1970e a influência desta produção mais ampla sobrea pesquisa em educação física no Brasil a partirda década de 1980. Já existe um acumulo sig-nificativo de estudos que fazem a crítica da pro-dução historiográfica da educação brasileira, mo-tivo pelo qual resolvi deter-me exclusivamente naprodução historiográfica da educação física es-colar. Mas trabalhei sempre tendo no horizonteas obras de Vieira (1983), Libâneo (1989),

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Freitag (1986), Saviani (1987, 1988, 1989),Buffa e Nosela (1991), Germano (1993), Cunhae Góes (1994) e Guiraldelli Jr. (1994). Na pers-pectiva de crítica a essa produção, bem comoa outros estudos aqui não referidos, o leitortem à disposição os trabalhos de Rashi (1990),Aranha (1992), Azanha (1992), Vieira (1994) eBarreira (1995).

A escolha de obras e autores da edu-cação física deu-se pela conjugação de dois fa-tores distintos: a) a crítica aos modelos (polí-ticas) gestados pelo Estado naquele período eb) a utilização de um referencial de análise quetenha como objeto privilegiado a educaçãoescolar. Esse recorte se faz necessário para pre-cisar o alcance e os limites do trabalho ao qualme proponho: primeiro, traçar um quadro doquanto foi restrita a análise da dimensão so-cial, política, econômica e cultural brasileira,sob a ótica de uma tradição de pesquisa com-prometida com a transformação da educaçãoescolar brasileira em geral e a educação físicaescolar em particular, a partir da década de1980. E, segundo, buscar recolocar a questãodas análises das práticas escolares, particular-mente da educação física, na nossa históriarecente, a partir de um olhar para dentro daescola, devolvendo aos sujeitos o seu lugar nahistória da educação física escolar no Brasil.

Leituras sobre a história daeducação física brasileira.

Ao caracterizar esse tópico como leitu-ras pretendo deixar claro que não foi meu in-t e n t o e s g o t a r a a n á l i s e d a p r o d u ç ã ohistoriográfica referente ao período em ques-tão. Trata-se antes de uma leitura possível deobras datadas e situadas. Com isso pretendoalertar o leitor que não é a minha intençãoabarcar o conjunto da obra dos autores aosquais me reporto, mas apenas debater com al-gumas obras escolhidas, seja pelo seu forteimpacto na área da educação física escolar, seja

pela sua característica fundamentalmente his-tórica. Assim é que os textos escolhidos, an-tes de se configurarem como um todo homo-gêneo, caracterizam-se mais como entradaspossíveis de leitura na história recente da edu-cação física no Brasil, a partir de uma orien-tação crítica. Em comum esses trabalhos tra-zem um determinado olhar sobre a história ea produção humana com algumas nuanças,mas caracterizados basicamente por uma for-ma vertical de conceber a relação entre os su-jeitos históricos e as estruturas sociais, políti-cas e econômicas. Muitos desses trabalhos nãose caracterizam sequer como estudos históri-cos. Mas fazem inserções nesse campo, o quepermite leituras e interpretações de caráter his-tórico. Esse foi o meu intento: com base nasindicações históricas dadas por esses autoresque freqüentam com assiduidade os cursos deformação de professores e a produção acadê-mica da área – motivos mais do que suficien-tes para o estabelecimento de um diálogo crí-tico – procurei captar e indicar um determina-do esquema interpretativo das relações entre oideário oficial e as práticas cotidianas dosagentes educacionais, presente na produçãoacadêmica da educação física no Brasil a par-tir do início da década de 1980.

Desde a chegada das teorias críticaseducacionais à área de educação física no Bra-sil na década de 1980, seus pesquisadores têmafirmado que ela se encontra em crise (Medina,1983; Carmo, 1985; Guiraldelli Jr, 1988; Marizde Oliveira, 1988; Bracht, 1992; Tani, 1998).Mais notadamente no âmbito escolar, a edu-cação física tem sido considerada como umadisciplina sem um lugar muito claro na esco-la. Muitos pesquisadores caracterizam-na comouma atividade sem legitimidade (Bracht, 1992),sem função social (Betti, 1991; Coletivo de Au-tores, 1992), sem função política (Guiraldelli Jr,1988) e até mesmo sem função educativa(Mariz de Oliveira, 1988) no interior da esco-la. Todos esses estudos caracterizam-se por

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uma visão estrutural extremamente ampla eum tanto arbitrária: a educação física estariaem crise porque – dentre outras razões – o go-verno autoritário instalado no Brasil após1964, na tentativa de consolidar sua ideologia,fez uso das atividades desportivas (e da edu-cação física em geral) com a finalidade deanestesiar a consciência e amainar a participa-ção popular nos processos reivindicatórios edecisórios. Então, teria o governo produzido edivulgado uma certa abordagem de educaçãofísica que se consolidou de forma incontestá-vel, sem que os profissionais da área pudessemcontrapor-se às suas medidas arbitrárias eautoritárias.

A primeira dificuldade que apareceu aotentar recortar a história da educação física noperíodo aqui proposto diz respeito à limitadaprodução historiográfica da área, principalmen-te sobre o período por mim estudado: é pratica-mente inexistente na historiografia qualquer tra-balho que faça referência ao período aqui pro-posto. À exceção do estudo de Lima (1992), des-conheço trabalhos de maior densidade sobre essatemática. Já existe na historiografia da educaçãofísica brasileira um grande número de estudos emtorno da influência militar sobre a educação fí-sica (Goellner, 1996; Bercito, 1996; Castro, 1997;Ferreira Neto, 1999). Mas ainda não foram pro-duzidos trabalhos que se refiram especificamenteao período da ditadura militar. Assim, a aproxi-mação histórica deu-se por recortes feitos a partirde outras obras consagradas na área, mas quenão se caracterizam por serem estudos histó-ricos, necessariamente. No seu conjunto taisestudos dizem respeito muito mais às práticasescolares do que à história propriamente dita.Mas todos eles, de uma maneira ou de outra,recorrem à história para justificar posições,construir interpretações e alguns até mesmoestabelecer prescrições.

Nesse sentido é importante destacarque esse conjunto de obras analisado perfaz ocaminho já apontado por Warde (1990), umavez que, ainda que não sejam trabalhos pró-prios de história da educação física, neles “a

história é chamada para justificar algo” (p. 9).Segundo a autora, um traço característico detrabalhos dessa natureza é “o recuo a períodoshistóricos passados [que] serve para mostrarque o presente é do jeito que é porque o pas-sado foi o que foi” (1990, p. 9). A minha op-ção por tal operação poderia representar riscos,não fosse a grande influência que essas obraslograram conquistar junto à comunidade aca-dêmica e, em muitos casos, junto aos currícu-los oficiais e aos professores. Ora, essa influ-ência acaba por reforçar leituras históricas desegunda mão, mesmo que os estudos de cará-ter histórico não fossem o interesse primeirodos autores das obras arroladas. Assim, paracriticar as práticas escolares de educação físi-ca, vários autores recorreram a um mergulhona sua história, indicando linhas de continui-dade entre o que foi e o que tem sido a edu-cação física escolar neste país.

Certamente a obra de Castellani Filho(1988) marca uma ruptura com as leituras an-teriores da história da educação física no Bra-sil, mas pouco inova no sentido do método.Com uma base teórica marcadamente avança-da para a época em que fo i p roduz ido ,Castellani Filho reescreve a história, porém, nosvelhos moldes lineares, causais. Ainda assim,sua análise traz para a cena o conflito inerentea uma sociedade de classes, o que representaum avanço re la t i vo perante uma formaasséptica de conceber a relação da educaçãofísica com a cultura. Traçando um paraleloconstante entre educação e educação físicaescolar, Castellani Filho procura demonstrar ocaráter marcadamente reprodutivista da educa-ção física escolar brasileira (p. 124). Fiel àsteorizações críticas baseadas na relação de cau-sa e efeito entre a estrutura e a superestru-tura, o autor denuncia também o caráter decontinuidade das propostas educacionais doEstado nas décadas de 1960 e 1970 e atecnicização da educação em geral e da edu-cação física escolar em particular, como ade-quação ao modelo de desenvolvimento eco-nômico adotado pelo Brasil. Faz críticas à

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caracterização da disciplina escolar educaçãofísica como atividade e não como campo deconhecimento (p. 108). Critica também ospressupostos da educação do f ís ico e daesportivização como afeitos a um modelohegemônico no plano das relações interna-cionais de dependência aos quais o Brasil sesubmete (p. 114). Em linhas gerais, então, otexto de Castel lani Fi lho tem sua tônicabaseada na denúncia , na cr í t ica , em ummergulho nos documentos legais e em pou-ca ou nenhuma preocupação em torno dareal consolidação das políticas públicas nointerior da escola. Sua obra se caracterizapor uma visão da gestação conspiratória depolíticas públicas nos interesses escusos docapitalismo dependente.

Fruto de uma mesma tradição críti-ca, embora não se caracterize como um tra-balho histórico, o trabalho de Bracht (1992)faz incursões por esse campo. Segundo mi-nha interpretação, a obra de Bracht signifi-ca mais uma reedição de categorizaçõesmacroes-truturais, descarnadas da concre-tude histórica, segundo sua própria formu-l ação . B rach t pa r t e de uma aná l i s e davinculação da educação física escolar com asinstituições médica, militar e esportiva paratecer considerações acerca de uma possívelautonomia pedagógica da área. Seus apon-tamentos indicam a indefinição do papel doprofessor de educação física escolar, bastan-te útil para a consolidação do modelo peda-gógico prevalecente nos anos da ditaduramilitar:

Essa orientação parece, mais uma vez, ade-quar-se bem à orientação tecnicista que,principalmente nas décadas de 60 e 70, pre-dominam no sistema educacional brasileiro,sob a égide da ditadura militar, do projeto“Brasil-Grande”. (Bracht, 1992, p 23-24)

A crítica de Bracht avança ao apon-tar a redução das possibilidades educativasda educação física na escola. Contudo, al-

guns aspectos chamam a atenção. Em pri-meiro lugar é útil destacar a recorrência àsteorizações de Saviani no seu trabalho, oque marca claramente uma tendência depesquisa na educação física brasileira; emsegundo lugar, a vinculação até certo pon-to mecânica da educação física escolar comum projeto nacional de desenvolvimento;finalmente, a afirmação de que o lúdico per-deu espaço para as “tarefas mecânicas”. Essainterpretação apresenta problemas, uma vezque me parece inexato falar em substituiçãodo lúdico pelo mecânico nesse período, amenos que a pesquisa histórica pudesse in-dicar sobre que bases – lúdicas ou mecâni-cas – se assentava a educação física no pe-ríodo anterior à ditadura militar. Hoje come-çam a despontar trabalhos que podem lan-çar algumas luzes sobre esse debate (Sousae Vago, 1997; Vago, 1999) . Mas Soares(1998) já demonstrou que a educação físi-ca nasceu sob o signo da técnica e do ren-dimento, mesmo em solo europeu. E o pró-prio autor aponta que a história da educa-ção física brasileira está marcada por umavisão funcional e utilitarista (saúde, adestra-mento físico, etc.). Então soa como exage-ro imputar à ditadura militar a substituiçãona escola de uma prática lúdica por outrabaseada na técnica. Para Bracht, para que aeducação física escolar possa autonomizar-se em relação ao esporte faz-se necessáriauma “reflexão crítica do próprio papel daEscola em nossa sociedade de classes” (p.24), o que parece exato. Em sua perspecti-va a educação física escolar acaba por ser“fator de reprodução das relações sociaisdominantes, e assim, somente serão – osobjetivos e conteúdos da educação física –radicalmente questionados quando as pró-pr iasrelações sociais vigentes o forem” (p. 24).

Os esforços do autor para desenvolveruma teoria (crítica) da educação física, no meuentender, esbarram em algumas contradições.Ao apontar que a “verdadeira educação físicaé aquela que acontece concretamente, e não

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uma entidade metafísica que estaria hibernan-do em algum recanto à espera de sua desco-berta” (p. 35), e ao afirmar em seguida que aeducação física “está relacionada, direta ou in-diretamente, com as necessidades do projetoeducacional hegemônico em determinada épo-ca, e com a importância daquela manifestaçãono plano da cultura e política em geral” (p.36), parece-me que Bracht não contrapõe a re-alidade efetiva do cotidiano escolar e as con-figurações das políticas educacionais. Ora, a“verdadeira educação física”, aquela que efeti-vamente acontecia (ou não acontecia) em nos-sas escolas, não era a mesma propugnada pe-las políticas públicas dos governos de plantão.Ou seja, não existia a “verdadeira” educaçãofísica, assim como continua a não existir, masdiferentes práticas escolares de educação físi-ca. O autor abstrai ainda a experiência concretados agentes sociais ao discutir a dimensão doesporte na escola e do trabalho como catego-ria não fundante da prática pedagógica.

Relativizando o conceito de trabalho,Bracht vai indicar que a “utilidade da educa-ção física advém do seu caráter inútil” (p. 51).Tenho dúvidas quanto à efetividade desse pos-tulado. Os limites dessa assertiva não serãoanalisados aqui, uma vez que requer um outroângulo de compreensão. Apenas chama a aten-ção a incoerência da relativização do conceitode trabalho efetuada por Bracht, uma vez quefaz uma opção clara pelo suporte teórico-conceitual do materialismo-histórico-dialéticoem suas análises. Ocorre que Bracht acaba portentar conformar o cotidiano da escola a umasérie de categorizações estabelecidas a priori.Ainda que o autor visualize e critique a edu-cação física em sua inegável negatividade, eleacaba por incorrer numa análise por demaisa b s t r a t a q u a n d o f a l a d e u m a e s c o l atransformadora, de mudança social, de escolade classes. Assim, se aproxima de concepçõesmuito difundidas nas teorias críticas da edu-cação no Brasil, que estabelecem críticas de ca-ráter marcadamente estrutural: a escola repro-duz a sociedade burguesa (p. 74), a escola é

autoritária (p. 79), a tecnicização da educaçãofísica escolar tem o sentido estreito de prepa-rar para o trabalho (p. 61). Nessa perspectiva,parece não haver nenhuma possibilidade deuma cultura produzida a partir da escola, umavez que a escola seria conformada a partir dosinteresses da “classe burguesa”.

De forma bastante fecunda os estudi-osos da história das disciplinas escolares têmmostrado o quão infrutífera é uma análise ba-seada somente nas determinações que a escolasofre de fora para dentro. A escola tem sidocada vez mais reconhecida como um espaço decontradição, capaz de produzir práticas singu-lares a partir da experiência dos seus agentes,o que não confirma a tese de possíveis trans-posições mecânicas para o seu interior. Ou seja,esses estudos têm enfatizado que a instituiçãoescolar não existe em abstrato; cada escola,uma realidade; cada realidade, diversas formasde conceber os embates e conflitos reais. Aescola produz uma cultura muito própria, fil-trando as determinações extra-escolares ouassimilando-as conforme suas necessidades econveniências (Chervel, 1990; Goodson, 1990,1991, 1995a, 1995b, 1995c; Belhoste, 1995;Chevallard, 1998).

Na mesma l inha de rac ioc ín io deBracht, Coletivo de Autores (1992) tambémapontam para uma perspectiva de denúncia demodelos reprodutivistas de educação físicaatravés da história:

A perspectiva da educação física escolar, quetem como objeto de estudo o desenvolvi-mento da aptidão física do homem, temcontribuído historicamente para a defesa dosinteresses da classe no poder, mantendo aestrutura da sociedade capitalista.Apoia-se nos fundamentos sociológicos, fi-losóficos, antropológicos, psicológicos e,enfaticamente, nos biológicos para educar ohomem forte, ágil, apto, empreendedor, quedisputa uma situação social privilegiada nasociedade competitiva de livre concorrência:a capitalista. Procura, através da educação,

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adaptar o homem à sociedade, alienando-oda sua condição de sujeito histórico, capazde interferir na transformação da mesma.Recorre à filosofia liberal para a formaçãodo caráter do indivíduo, valorizando a obe-diência, o respeito às normas e à hierarquia.Apoia-se na pedagogia tradicional influenci-ada pela tendência biologicista para adestrá-lo. Essas concepções e fundamentos infor-mam um dado tratamento do conhecimento.Nessa linha de raciocínio pode-se constatarque o objetivo é desenvolver a aptidão físi-ca. O conhecimento que se pretende que oaluno apreenda é o exercício de atividadescorporais que lhe permitam atingir o máxi-mo rendimento de sua capacidade física. Osconteúdos são selecionados de acordo coma perspectiva do conhecimento que a escolaelege para apresentar ao aluno. (Coletivo deAutores, 1992, p. 36)

Esta citação traz elementos fun-damentais daquilo que estou identificandocomo generalizações e abstrações. Em primei-ro lugar, parte da constatação de que existeuma sociedade capitalista e, não, manifesta-ções particulares do modo de produção capi-talista. Afinal, uma tese genérica de conforma-ção ao capitalismo corre o risco de incorrer emequívocos básicos: primeiro, abstrair o que viriaa ser o capitalismo, concebido de forma indis-tinta para toda e qualquer formação social, oque implica abrir mão de matizes culturaispróprios; segundo, transplantando, bem aogosto das “camisas de força” teóricas, umaexplicação universal que, contraditoriamenteno interior da obra analisada, nega uma expli-cação própria para o processo de formação eorganização da cultura brasileira. Assim, a ex-plicação macroestrutural para o que viria a sera vinculação da educação física escolar aosditames do capitalismo parece-me uma formaprofunda de redução da compreensão da orga-nização da cultura. Mas, além desse aspectopor si só limitador, o texto também permitecriticar sua desvinculação com o processo de

interação e produção que se dá no interior daescola. Teria mesmo o esporte todo o poten-cial descrito acima para conformar de manei-ra tão acintosa os sujeitos a um determinadomodo de produção, nesse caso, o capitalista?Ou isto é uma outra forma de abstração aca-dêmica? Em que medida a escola (e o profes-sor) tem poderes para definir como se forma-rá, enfim, o caráter do educando por intermé-dio do esporte? O esporte que acontece den-tro da escola (se acontece!) é o mesmo regidopela indústria de entretenimento, pelos mass-media? Teria o professor que atua no cotidia-no da escola consciência ou mesmo intençãode adestrar os alunos? Dividiria ele essa afir-mação de que sua perspectiva de educação fí-sica escolar se baseia em uma filosofia liberal?Ora, quando no texto os autores afirmam queo sistema capitalista recorre à filosofia liberalpara formar o caráter do indivíduo valorizan-do a obediência, o respeito às normas e à hi-erarquia, esquecem de matizar as teses básicasdo próprio liberalismo ao longo do seu desen-volvimento histórico. São muitas as questões,e a minha intenção aqui não é respondê-las,mas questionar a validade de averbações tãoperemptórias. No trato com as fontes históri-cas, mais notadamente a Revista e depoimen-tos de professores, ficam patentes as diversasimpressões acerca do fenômeno esportivo e desua utilização com fins pedagógicos, comopoderemos ver mais adiante.

Mas voltando às considerações do Co-letivo de Autores (1992), não é precipitadoadvogar que o objetivo dessa concepção (doEstado) seria o “máximo rendimento”, aindamais quando temos claro que render bem nãosignifica necessariamente fazer o jogo do ca-pital? Ora, a exigência de render de maneiraprodutiva e eficaz implica a necessidade decompetência na produção das condições deexistência humana mais dignas para o conjun-to dos homens e mulheres, num mundo menosopressivo. Atuarmos nessa perspectiva e exigir-mos do educando que faça o mesmo, não re-presenta fazer o jogo do capitalismo ou do li-

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2. O Co légio Bras i le i ro de C iênc ias do Espor te é a maior e maissignificativa entidade de cunho acadêmico-científico da área de Edu-cação F ísica no Brasil. O leitor encontrará uma aná l ise rigorosa dacriação e consolidação do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte,inclusive no sentido de infirmar algumas das considerações de Palafox,no trabalho de Paiva (1994).

beralismo. Se a aptidão física é um reducio-nismo canhestro, a justificativa do texto cita-do para sua superação soa um tanto quantoexagerada.

O Coletivo de Autores (1992) instaura-ra uma ruptura com uma determinada manei-ra de pensar a educação física escolar no Bra-sil, a partir, principalmente, da radicalidadecom que aponta para o conflito como catego-ria fundante da prática pedagógica. Mas esbar-ra nos limites da denúncia, da abstração e dageneralização. Suas proposições metodológicaspouco avançam no sentido daquilo que é tra-dicionalmente concebido como organizaçãoescolar; falta-lhe a concretude da sala de aulana sua análise, e, sobretudo, acredito que oespaço que reserva aos sujeitos históricos nãose encontra na realidade, mas antes na teoria.Por outro lado, analisando ainda esse mesmotexto e recorrendo ao pensamento gramsciano,algumas afirmações e constatações apontampara a negação de próprio suporte teórico daobra referida. Se considerarmos o processo his-tórico como dialético e a sociedade civil (e aescola aparece como aparelho privado dehegemonia) como campo de correlação de for-ças, a escola não apenas atuaria mantendo aestrutura da sociedade capitalista como tam-bém representaria uma possibilidade de con-fronto e cr í t ica e construção da contra-hegemonia. Além disso, o Coletivo de Autoresabre mão da historicidade para operar uma crí-tica histórica.

Outro trabalho que aponta na mesmadireção é o de Gabrie l Humberto MuñozPalafox. Traçando críticas ferinas à configura-ção da política nacional de ciência e tecnologiapara a área de educação física no período daditadura militar, o autor refaz o percurso jádelineado pelos autores precedentes, no quediz respeito a uma total subserviência da so-ciedade civil à sociedade política. Sua leitura daconstituição do CBCE2 parece-me um exercí-cio de análise trans-histórica. Palafox caracte-riza a entidade como

Uma entidade ligada à ideologia gerada edifundida pelo aparato estatal pós-64, ondeo “novo” racionalismo teria (...) ”um colori-do mais técnico, atuando, de um lado, comoelemento de desmobilização política da so-ciedade civil e, de outro, como fundamentodas medidas estatais de estabilidade políticae crescimento econômico” (...). Isto devido,entre outras razões, ao fato de que desde1967, (através da Doutrina MacNamara) foiestipulado que a estabilidade (segurança)dos países latino-americanos seria garantidapelo seu desenvolvimento econômico apoia-do, invariavelmente, no seu potencial decrescimento científico e tecnológico (...).Reforçando estes fatos podemos constatar atendência inicial, da linha de pensamentocientífico de origem positivista provenientedos Estados Unidos, com o que o CBCE sefundara no início de suas atividades, umavez que seus fundadores estabeleceram,como metodologia de trabalho (veja, porexemplo, suas normas de publicação cientí-fica), as especificações de uma entidade decunho eminentemente racionalista, o deno-m inado Ame r i c an Co l l e g e o s Spo r t sMedicine. (Palafox, 1990, p. 44-45)

Nas suas considerações Palafox abremão de historicizar suas análises, o que impli-ca formular uma interpretação da história sema devida contextualização histórica. No campoespecífico da educação física, a análise e as crí-ticas em torno da fundação do CBCE tambémreclamam uma maior historicidade. Ora, o CBCEcomo entidade científica só poderia se consti-tuir dentro dos cânones da ciência. Acusar umaentidade científica de ser racionalista só podesoar como equívoco: como poderia uma entida-

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de científica abrir mão da racionalidade naconstrução do conhecimento científico?

O fato de a entidade que se consti-tuía aliar-se a uma entidade americana “decunho eminentemente racionalista” não im-plica, necessariamente, fazer o jogo da do-minação. Acredito que naquele momentohistórico a criação de uma entidade cientí-fica para a educação física no Brasil impli-cava o avanço técnico e científico da área,aspecto bem afeito à política desenvolvi-mentista do período. Mas a interpretação dePalafox faz identificar um certo reducio-nismo no plano da organização da cultura;afinal, entendida como uma das possibilida-des, a criação daquele colégio não desquali-fica a entidade e seus fundadores como pes-quisadores preocupados com o avanço daárea no Brasil. A sua perspectiva foi a ven-cedora em um campo de tendências. O au-tor parece trabalhar com a idéia de que sóexiste uma única razão “verdadeira”; nessecaso, que razão seria essa?

Porém, mais contundente nas for-mulações teóricas do autor, é sua defesa davit imização dos professores em face dosdesdobramentos das políticas educacionaisdo período: “o docente de educação física,como outros profissionais nesta sociedadede classe, tem sido também vítima das maisdiferentes formas de violência ideológicado sistema capitalista vigente” (p. 101). Jád e s t a q u e i q u e n ã o é m i n h a i n t e n ç ã oabsolutizar as possibil idades dos sujeitosna construção da história; tampouco absol-ver o “Estado” autoritário ou o capitalismodas suas indiscutíveis contribuições para areificação dos sujeitos e da cultura em ge-ral. Mas é possível subestimar a capacida-de, ainda que limitada, de reação dos su-jeitos? Afinal, quem reagiu à repressão, porque motivo o fez? Castellani Filho (1988)bem demonstra que havia resistência, haviareação. Vitimar o professor é tirá-lo da suacondição de sujeito histórico, capaz de tor-nar-se criativo, no sentido mesmo de aqui-

sição de autonomia para superar a condi-ção de classe da sociedade burguesa, nemsempre tão demar-cada (Thompson, 1979).

Diante dessas considerações, outro es-tudo que merece destaque é o de Oliveira(1994). Polarizando a intervenção educativa daeducação física brasileira em torno de umapedagogia do consenso e uma pedagogia doconflito, o autor oferece-nos um balanço daprodução intelectual sobre a educação física apartir dos anos 1980, momento em que con-sidera terem emergido elementos críticos naeducação física brasileira. Sua posição dianteda polarização proposta é bastante emblemá-tica daquilo que aqui denomino de abstracio-nismo. O autor reclama que

A ótica do consenso sustenta-se em princí-pios funcionalistas que só prevêem possibi-lidades para interação, continuidade, conser-vação, harmonia, equilíbrio e ajustamentosociais. A ideologia capitalista tende a tor-nar-se senso comum, restringindo o lequede opções das classes dominadas. Se per-guntarmos a um pobre qual o sonho de suavida, a resposta quase inevitável será: serrico, ou seja, trocar de lado. O papel do pro-fessor, como intelectual orgânico que optapelos desfavorecidos, é abrir o amplo lequede percepção daqueles que o cercam para ascontradições do capitalismo, dando-lhes op-ções. A pedagogia do conflito é um trabalhode persuasão, no sentido gramsciano, para asuperação do conhecimento do senso co-mum, ou seja, a filosofia das classes subal-ternas. Não se pode esperar que, espontane-amente, as massas despertem para as neces-sidades da verdadeira transformação social.Esse foi um dos maiores ensinamentos deLenin. O trabalho pedagógico revolucionárioimplica obstaculizar a veiculação de valoresburgueses, assim como preparar os trabalha-dores para serem dirigentes em uma outrasociedade. A passagem para esse outro nívelde consciência é a catarsis gramsciana. (Oli-veira, 1994, p. 185)

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Parece-me que também Oliveira viti-miza os professores. E bem ao gosto dos inte-lectuais, as classes dominadas aparecem no seutexto como incapazes de gerir suas vidas, ne-cessitando, portanto, serem iluminadas pelosdoutos membros da academia. Observe-se queo professor, nesse texto, também precisa seresclarecido. Caso contrário ele não teria con-dições de conduzir a massa ao esclarecimento.Ocorre que imputar ao professor o papel deintelectual orgânico é simplificar em demasiaa concepção gramsciana que não reduz o in-telectual orgânico a uma pessoa, mas conce-be-o como uma vontade coletiva. E essa von-tade é histórica, ou seja, consciente do seumomento histórico real (Gramsci, 1991, p. 6).É claro que o esclarecimento, ainda que sejaobscuro o que o autor entende por esse ter-mo, não pode ocorrer sem o consórcio dos pro-fessores, se pensarmos nas práticas escolares.Porém, as abstrações em torno do papel doprofessor na transição para uma sociedadesocia l i s ta conforme propõe Oliveira (1994, p.187) desencarnam os ind iv íduos de suamaterialidade concreta e histórica.

Na mesma linha de desenvolvimentode Oliveira, no trabalho de Carmo (1985) tam-bém é possível perceber esse universo abstra-to – não seria autoritário? – das teorizaçõesacadêmicas sobre a prática dos professores:

O competente e o incompetente fundam-sena concepção de mundo e não na formacomo se apresenta este ou aquele indivíduodiante de um fenômeno. Assim, toda açãoteórico-prática em educação física desprovi-da de uma consciência histórico-cultural declasse resultará apenas em mais uma dastantas inócuas ações pedagógicas tão co-muns hoje em dia. Esta inocuidade não égratuita nem fruto do acaso, ela é propositale de alto poder conservador, principalmenteporque, quanto pior for a veiculação do sa-ber, pior será a apreensão pelo aluno e,conseqüentemente, mais fácil será a utiliza-ção do conhecimento como instrumento de

dominação, pois uma ação pedagógica de-senvolvida sem objetividade, sem raízes his-tóricas e perspectivas do como deveria ser,leva a lugar nenhum.Especificamente em educação física, necessi-ta-se de professores com competência técni-ca, cientes do que fazer, como fazer e porque fazer, e conscientes politicamente, sa-bendo a quem estão servindo, quem é bene-ficiado com sua prática, enfim, professoresque consigam ter uma visão de totalidade,na qual o importante é entender a inter-re-lação dinâmica das partes que compõemeste todo, e não a simples justaposição des-sas partes. (...)Quando insistimos em colocar a questão daidentidade social e política do professor deeducação física não o fazemos gratuitamen-te. Agimos assim porque acreditamos sereste o primeiro passo rumo à consciência fi-losófica e de classe. (Carmo, 1985, p. 31)

Novamente estamos diante de uma sé-rie de considerações de como deveria se com-portar o professor de educação física, de comodeveria ser a prática pedagógica, enfim, decomo deveria ser a realidade. É importanteobservar que, ainda que inúmeros autores e/ouestudos reivindicassem a histórica como tribu-nal de suas inquietações perante as determina-ções do mundo capitalista, a alternativa seriauma nova ordem social por definição boa, ouseja, a-histórica. Essa ordem social, assim comoa prática real da educação física, pairaria emalgum lugar asséptico, longe da “contamina-ção” humana. Os homens e mulheres capazesde soerguer esse mundo deveriam ser educa-dos, preparados, formados, esclarecidos. E nãoraro alguns desses trabalhos apresentam-secomo porta-vozes do “novo”, como portado-res da potência transformadora, ou seja, comoo s candeeiros capazes de iluminar todos aque-les que permanecem no obscurantismo de prá-ticas reprováveis, uma vez que são práticas de“reprodução social”. Em nome da crítica a ummundo efetivamente desumano e reificador

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estabeleceu-se um protocolo de intenções quedesconsiderou por completo a prática huma-na concreta através da história, aquela queefetivamente se desenvolveu no cotidiano, porhomens e mulheres reais.

Por fim, julgo interessante apontarainda algumas das formulações propostas porGuiraldelli Jr. (1988) e Betti (1991), dois au-tores que estabeleceram, de pontos de vistadiferentes, análises sobre o desenvolvimentohistórico da educação física no Brasil e, maisprecisamente, sobre as influências governa-mentais sobre a sua prática escolar nos anosda ditadura militar. Fiel à tradição críti-ca que abdicou da empiria, Guiraldelli Jr. tececonsiderações sobre os “usos” da educaçãofísica pelos governos militares. Para o autor

É preciso também notar que, se por umlado a educação física Competitivista eraincentivada pela ditadura pós-64, pois talconcepção ia no sentido da proposta de um“Brasil-Grande”, capaz de mostrar sua pu-jança através da conquista internacional,por outro lado, obviamente, esse não era oúnico interesse governamental ao endossartal concepção.Na verdade, o “desporto de alto nível”, di-vulgado pela mídia, tinha o objetivo clarode atuar como analgésico no movimentosocial. A preocupação com a possibilidadedo aumento das horas de folga do traba-lhador, que mesmo um sindicalismo amor-daçado poderia conseguir, incentivava ogoverno a procurar no desporto a fórmulamágica de entretenimento da população.(Guiraldelli Jr., 1988, p. 31-2)

Uma das fontes de Guiraldelli Jr. paraextrair suas conclusões é justamente a RevistaBrasileira de educação física e Desportos, mi-nha fonte escrita privilegiada. E é interessantenotar como o autor opera uma apropriaçãod o s r e g i s t r o s d a R e v i s t a da forma queThompson denominou de autoconfirmadora

(1981, p. 21). Guiraldelli Jr. não faz alusão aorico debate que estava posto nas páginas daRevista, debate que era internacional, e queremetia a uma consolidação do esporte quenão tinha necessariamente a ver com a polí-tica do Brasil-Grande. Outra preocupação queesse autor não teve foi a de verificar o que sepraticava antes desse período nas escolas bra-sileiras. Alguns dos professores por mim en-trevistados criticam não só o governo, mastambém a literatura, pela ênfase dada, porexemplo, ao Esporte para Todos (EPT) no pe-ríodo em questão. Segundo o professor JulioLubachevski, verbi gratia, as atividades que vi-riam a ser denominadas de EPT já eram de-senvolvidas em Curitiba desde meados dosanos 1950, portanto, num período de exercí-cio e vigência da frágil democracia brasileira,no qual o país não estava sob a égide dos mi-litares. Assim, talvez seja exagero considerara tese que afirma que o interesse primeiro dadivulgação das atividades esportivas pelo go-verno fosse de “analgésico social”, como con-clui Guiraldelli Jr. O autor, a partir de algu-mas premissas que são mais ideológicas queepistemológicas, confirma suas inferências apartir de uma leitura apenas parcial dos do-cumentos. Havia um debate na Revista por eleutilizada e havia denúncias da própria orien-tação esportiva para a educação física brasi-leira.

Já o caso de Betti (1991) não é omesmo. Esse autor opera uma c r í t i ca àesportivização da educação física brasileira,no período, com base num profundo mergu-lho na legislação e na documentação oficial.Suas referências principais para tecer críticasàs políticas educacionais do período são ostrabalhos de Fre itag (1986) e Romanel l i(1986), duas obras de referência no campoeducacional. A análise proposta por Betti porsi só limita muito a compreensão do proces-so histórico, uma vez que a efetivação daspolíticas oficiais em práticas escolares não foianalisada. Ainda assim o autor afirma que

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O conteúdo esportivo deu então uma novacoloração aos programas de educação físicano Brasil, centrados na velha ginástica suecae francesa. O esporte pareceu também ir aoencontro da ideologia propagada pelos con-dutores da Revolução de 1964: aptidão físi-ca como sustentáculo do desenvolvimento,espírito de competição, coesão nacional esocial, promoção externa do país, sensomoral e cívico, senso de ordem e disciplina.(Betti, 1991, p. 161)

Julgo ser importante indicar que o au-tor também utiliza alguns números da Revistapor mim aqui estudada. Nesse caso, a críticaanteriormente dirigida a Guiraldelli Jr. permaneceprocedente na análise do estudo de Betti. Ouseja, o autor enxergou nas páginas da Revistaapenas aqueles elementos que referendavam assuas críticas às políticas oficiais do período refe-rido. O seu estudo não é tão incisivo quanto osanteriores naquilo que respeita à organizaçãosocial. Certamente isso se justifica também peloseu suporte teórico diferenciado, senão antagô-nico. Mas ainda assim suas análises não contem-plam o desenrolar das políticas oficiais no pla-no das práticas concretas. Segundo os professo-res por mim entrevistados o esporte apareceucomo uma alternativa ao descaso e à improvisa-ção que então grassavam nas aulas de educaçãofísica. Para a grande maioria desses professoreso esporte era uma atividade educativa por exce-lência. Assim sendo, ele era muito mais uma al-ternativa positiva do que um rebaixamento dovalor formativo da educação física escolar. Ouseja, representava, mesmo, uma “nova coloração”para a educação física escolar. Quanto aos usosideológicos que se podem fazer do esporte nãopodemos falar o mesmo de qualquer outra prá-tica cultural? E os professores partilhavam des-sa compreensão ou haveria compreensões dife-rentes em torno daquele uso?

Toda a construção teórica dessa produ-ção aqui destacada – diferente nos seus objeti-vos e formas de análise – nega a história comomovimento. Segundo Thompson:

A explicação histórica não pode tratar deabsolutos e não pode apresentar causas su-ficientes, o que irrita muito algumas almassimples e impacientes. Elas supõem que,como a explicação histórica não pode serTudo, é portanto Nada, apenas uma narra-ção fenomenológica consecutiva. É um en-gano tolo. A explicação histórica não revelacomo a história deveria ter se processado,mas porque se processou dessa maneira, enão de outra; que o processo não é arbitrá-rio, mas tem sua própria regularidade eracionalidade; que certos tipos de aconteci-mentos (políticos, econômicos, culturais) re-lacionaram-se, não de qualquer maneira quenos fosse agradável, mas de maneira parti-culares e dentro de determinados campos depossibilidades; que certas formações sociaisnão obedecem a uma “lei”, nem são os“efeitos” de um teorema estrutural estático,mas se caracterizam por determinadas rela-ções e por uma lógica particular de proces-so. (1981, p. 61)

Certamente não podemos considerar osprofessores como sujeitos capazes de, por si só,transformar a realidade mediante sua práticapedagógica, como gostariam alguns dos auto-res anteriormente citados. Porém, os professo-re s também não são ou fo ram v í t imas ;tampouco, foram coitados. Eles foram sujeitosque agiram e reagiram dentro de condições his-tóricas concretas, bastante objetivas. Eles certa-mente não tinham a disponibilidade acadêmicapara teorizar sobre o fim ou o início dos tem-pos. Vale lembrar que a crítica à condição in-gênua ou alienada do professor está presenteem inúmeros outros trabalhos, além desses aquianalisados, como é possível destacar em Medina(1983), Pereira (1988), Mariz de Oliveira (1988),Carvalho de Freitas (1991), Kunz (1991), FerreiraNeto (1993) e Gonçalves (1994).

As reformas educacionais de 1968 e1971 são resultado de um processo contínuode consolidação hegemônica, que não se deusem profundos antagonismos, divergências

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embates e conciliações. Amplas parcelas dasociedade civil debatiam-se em torno do querepresentava a própria reorganização da culturano pós-guerra, tanto no plano interno quan-to no externo. Assim, o Estado brasileiro con-figurava-se como um amálgama de interessesdiversos, não monolíticos, mas que, em últimainstância, não se propunha somente a fazermecanicamente o jogo do capital internacional.Havia tensões que parecem ter sido descon-sideradas ao longo da produção historiográfica.Mesmo porque se delineava toda uma outraconfiguração para a cultura brasileira, no sen-tido de sua modernização. O sentimento denação moderna, forte, grande, difundido peloEstado não trazia nada de novo; antes, eraapenas uma redefinição de um processo inici-ado já no século XIX de construção da naçãobrasileira, como nos indica Carvalho (1987). Aprópria dimensão política da produção do Ins-tituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)aponta nesse sentido. Resta saber em que me-dida o povo brasileiro estava preocupado coma invenção ou não da nação, proposta pelosgovernantes, para muito além de seu cotidia-no mais imediato.

Uma parcela significativa da história daeducação brasileira, da qual tomei apenas al-guns exemplos, tem sido escrita à luz de de-ter-minantes estruturais, mas sem captar alógica de processo impressa no desenvolvimen-to histórico. Ora, parece-me bastante difícilsustentar que havia consenso popular em tor-no do poder do Estado militarizado. Mas tam-bém não podemos afirmar que os governos mi-litares não contavam com algum apoio entre apopulação. Creio que é necessário até mesmoindagar se o conjunto da sociedade civil sabiaou imaginava o que estava se passando emtermos políticos no país e até que ponto osgovernos militares não tinham o apoio, aindaque velado, de significativas parcelas da popu-lação. Não se trata de negar a repressão, aexceção do regime e mesmo seu caráter perver-so. Mas, se formos proceder a uma análise dosfatos concretos, poderíamos afirmar que socie-

dade política teria perdido apoio da sociedadecivil por conta da hipertrofia daquela, confor-me indica Saviani, (1988, p. 95)? A historio-grafia mais recente sobre o golpe militar de1964 tem enfatizado, inclusive, a própria ten-são interna das Forças Armadas, que em hipó-tese alguma estavam coesas quanto aos rumosdo país após os acontecimentos de 31 demarço de 1964 (D’Araújo et al., 1994; Sodré,1997; Gorender, 1997; Figueiredo, 1997). Aanálise da história pela sua configuração estru-tural pouco espaço deixa para a configuraçãode formas particulares de correlação de forças,permeada pelas características próprias da cul-tura brasileira.

Parece-me que é também negada ahistoricidade da elaboração da reforma educa-cional da ditadura quando se aponta a conti-nuidade entre o texto das várias reformasaprovadas – Lei 5.540/68 e Lei 5.692/71 – e aordem socioeconômica gestada a partir de1964. Creio que é o mínimo que se espera deum regime que pretende ampliar e consolidaro seu domínio, e a política educacional é pe-dra de toque nessa empreita. Dessa maneira,absurdo seria se não houvesse uma certaorganicidade entre as reformas educacionais eo modelo socioeconômico. Mais: é importan-te destacar que as “vitórias” encetadas pelo re-gime militar foram expressão de um período deextrema ebulição política e de uma profundareorganização cultural no Brasil. No vazio cri-ado pelo fim do popu-lismo no início da dé-cada de 1960, aflora-ram as condições histó-ricas necessárias para a reorganização das for-ças mais conservadoras, mas não sem uma per-manente luta pelo poder em torno das ques-tões educacionais e políticas mais amplas(Ianni, 1974, 1997; Fernandes, 1982, 1997).Assim, o nexo entre a organização política, di-nâmica cultural e a reorganização do sistemaeducacional só pode ser compreendido à luz daaná l i s e do s f a to s conc r e to s e não po rcategorizações externas à própria história. Es-tas, quando não apenas abstratas, correm orisco ainda de se tornarem arbitrárias.

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As análises aqui desenvolvidas têm amotivação clara e já manifesta de propiciar aretomada do debate acerca da configuraçãohistórica da educação física escolar, mais pre-cisamente, no período pós-1964. Os estudosescolhidos foram-no pelo grau de imagens ecompreensões que ajudaram a consolidar naárea, o que contribuiu, intencionalmente ounão, para que se cristalizasse uma concepçãodo desenvolvimento histórico da educação fí-sica rígido e algo mecânico. Uma concepçãoque cancela os sujeitos na sua potência cria-dora e obsta a compreensão da história comoum processo dinâmico e multifacetado. O quese depreende dessa análise é a profunda carac-terística generalizante e abstracionista de umadeterminada produção em educação física noBrasil, no que tange aos estudos voltados parao ensino de educação física. A vinculação en-tre essa produção em educação física e ahistoriografia da educação brasileira é clara.Não podemos esquecer em absoluto o carátersituado e datado dessa produção. É precisodestacar também o papel que ela cumpriu naabertura de novas possibilidades de compreen-são do fenômeno social e cultural que é aeducação física.

Por outro lado, no que tange à com-preensão da história da educação física, essaprodução incorporou alguns “vícios” e algunslimites da pesquisa em educação à qual, na suamaior parte, esteve vinculada; o principal de-les é olhar para a realidade de fora dela. Naperspectiva da teoria educacional, houve avan-ços significativos a partir da produção anali-sada. Mas, também, deu-se muita margem paraequívocos quando se perdeu de vista o cotidi-ano da escola e duas das principais categoriasutilizadas por praticamente todos os interlo-cutores aqui contemplados: a história comomovimento contraditório e a sociedade comolugar de conflito. Tomado o Estado brasileirodo período analisado como títere do capitalis-mo internacional e dos arroubos conspiratóriosda burguesia, restou fazer a apologia da revo-lução via educação, via a escola, como apare-

ce em alguns trabalhos. Os documentos pormim analisados, entre os quais incluo os depo-imentos dos professores de educação física,indicam o quanto as críticas desferidas contraos governos militares diante da opção pelo de-senvolvimento precisam ser relativizadas, setomadas como elemento apenas de juízo ide-ológico.

A profusão de teorias de desenvolvi-mento gestadas a partir do ISEB (Toledo,1982) demonstra o quanto havia de divergên-cias em torno do melhor projeto de desenvol-vimento para o Brasil a partir da década de1950. Num período de “crise de hegemonia” avacância do poder abriu possibilidade para umregime autoritário mas, de forma alguma,monolítico e, em alguns dos seus estratos, pro-fundamente nacionalista. Sendo assim, a liga-ção automática entre as políticas educacionaisdo governo brasileiro pós-1964 e o capitalis-mo internacional aponta para a desconsi-deração da particularidade do desenvolvimen-to cultural brasileiro.

O que pretendo, então, é chamar aatenção para aquilo que considero como doisproblemas presentes numa determinada manei-ra de escrever a história da educação e da edu-cação física escolar no Brasil: a abstração e ageneralização. No caso dos estudos analisadosesses problemas ficam patentes quando trans-formam o Estado em um ente superior, quepaira acima das mazelas humanas e dos inte-resses dos homens e dos grupos que represen-tam. Ou o Estado é apresentado como per-tencente a um só grupo social (classe ou fra-ção de classe) ou é elevado à condição de su-premo juiz das intenções humanas. Ora, o Es-tado não pode ser abstraído de sua orientaçãoconflituosa, marcada por tensões, dissensões econciliações. O Estado é uma construção his-tórica, determinada por uma correlação de for-ças que se consubstancia nos diversos interes-ses de classes e frações de classes contrários eantagônicos. E no campo da história não sãotangíveis as leis gerais, as generalizações uni-versais, uma vez que ela, a história, se confi-

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gura como um processo (Thompson, 1981). Noplano educacional, é preciso investigar até queponto o Estado freqüentou as salas de aula.

A reorganização da educaçãofísica escolar: um amálgama deinteresses

Muitas evidências permitem inferir quea educação física brasileira naquele momentopassava por um processo de renovação. Umuniverso bastante diverso de fontes indica quemuitas vozes se levantavam para reivindicar ummaior reconhecimento acadêmico e escolarpara esse componente curricular. Desde a nor-ma legal a partir da Lei 4024/61 (Diretrizes eBases da Educação Nacional), reforçada na Lei5692/71 e no decreto 69.450/71, passandopela expansão dos cursos de formação de pro-fessores em nível superior, pela oferta de cur-sos emergenciais de formação de “recrea-cionistas”, pelo incentivo ao intercâmbio inter-nacional na área, pela emergência de um pro-grama de publicações, pelo debate aberto nointerior do Conselho Federal de Educação so-bre a organização escolar desse componentecurr icular , pela qual if icação em nível demestrado e doutorado dos primeiros profissi-onais da área e desaguando na reivindicaçãodos professores escolares por uma definiçãomais precisa do espaço da educação física noscurrículos, eram muitos os fóruns onde a edu-cação física era ponto de pauta obrigatório.Não é a intenção desse artigo esgotar o tema,mesmo porque somente agora começam a sur-gir pesquisas de caráter histórico sobre a rela-ção entre a constituição e a reorganização dossaberes escolares e as práticas docentes noâmbito da ditadura militar no Brasil. Mas nocaso da educação física escolar é possível in-ferir algumas questões a partir do corpus do-cumental por mim reunido e ao mesmo tem-po infirmar uma certa tradição de leitura, aqual percorremos no tópico anterior. Essa lei-tura está fadada à obsolescência á medida quea pesquisa histórica tem demonstrado que inú-

meros outros fatores determinam em largamedida a instituição, configuração e transfor-mação dos saberes escolares ao longo do tem-po. Portanto, privilegiarei aqui outras vozesque não as oficiais – consideradas como aque-las oriundas do aparelho estatal –, pretenden-do com isso indicar o contraponto possívelentre os múltiplos interesses em jogo na reno-vação da educação física escolar naquele pe-ríodo.

Como é impossível falar de um deba-te sobre a educação f ís ica no Brasi l semremetê-lo ao debate internacional, julgo serimportante destacar o cerne daquele debate: arelação entre uma educação física voltada paraa educação integral do indivíduo e o esportena sua forma acabada, ou seja, de rendimen-to ou de alto nível:

O fato importante – o fato mundial – é quetodos os países têm tomado perfeita consci-ência da importância humana e social daeducação física. A confusão mais freqüenteentre exercício físico e desporto de grandecompetição (amador ou profissional) é aindaobstáculo sério aos programas de educaçãofísica no mundo. O poder central (por dema-gogia), o público (por interesse imediato),me smo o s pa i s do s p r a t i c an t e s ( po rincompreensão) têm enorme tendência a ce-der ao “desporto espetáculo”. No entanto,devemos esperar que, um dia, os educadoresfísicos do mundo inteiro, intimamente liga-dos pelos princípios essenciais, saberão im-por, em todos os países, uma educação físi-ca racional, estruturada para ser posta, ver-dadeiramente, ao serviço do homem e dasociedade. (Seurin apud Ramos, 1970, p. 26)

O texto acima é indicativo de dois doselementos por mim anteriormente apontados.O primeiro refere-se à preocupação mundialcom o significado e a importância da educa-ção física no processo educativo. Pierre Seurin,au to r do t e x to a c ima , e r a memb ro daFédéra t ion In te rnat iona l de Éducac ion

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Physique –FIEP, talvez a maior entidade inter-nacional de educação física. Nos anos 1970Seurin viria a ser presidente da entidade. Osegundo elemento diz respeito à inserção doBrasil no debate internacional. Não por acasooptei por uma citação de segunda mão. JairJordão Ramos foi um dos mais destacados in-telectuais da educação física brasileira. Naqueleperíodo, ele lançava mão de um trabalho decirculação mundial de um autor consagradopara referendar a sua própria posição sobre arenovação da educação física brasileira. Mas seos intelectuais brasileiros necessariamente re-corriam à literatura internacional, como seposicionavam aqueles responsáveis pelas elabo-rações curriculares? Essa posição se expressa-va na preocupação com a definição e expan-são do campo acadêmico da educação físicabrasileira, como é possível observar no textoabaixo:

Estabelecimento de uma política nacional deeducação física. Propõe várias medidas paraexecução desses fins: instalações desportivas,material, formação intensiva de profissionaisda especialidade, cursos intensivos regula-mentados, zelo pela norma legal, saúde ur-bana e rural, plano nacional de comunica-ção (incremento da educação física), funçãode representação de professores de educaçãofísica nos órgãos, conselhos etc, orçamento.

TEMA B – unificação dos currículos dos di-ferentes cursos das escolas de educação físi-ca . Maté r i a s ob r i ga tó r i a s e maté r i a soptativas, diversificação dos programas dosdiferentes cursos – currículo mínimo.

TEMA D – desenvolvimento da educação fí-sica por meio de pesquisas e de cursos deaperfeiçoamento em alto nível e de pós-gra-duação: solução de muitos dos nossos pro-blemas. Esses cursos não devem ser limita-dos aos assuntos da ginástica e dos despor-tos, destacando-se, como tema prioritário, orelativo a métodos de pesquisa. A pesquisa

deve ser despertada e incentivada entre alu-nos e professores de educação física, dentrodas condições materiais disponíveis e essen-cialmente no campo das atividades da gi-nástica e dos desportos. (VI Reunião de Di-retores de Escolas de educação física, 1967)

Não emergia ali, conforme indica otexto acima, uma forte pressão para a eleva-ção do status institucional da educação física,a partir de uma série de considerações em tor-no de sua relevância social, da necessidade dedesenvolvimento de pesquisa na área, o querequeria formação de professores e pesquisa-dores e alocação de recursos? E em linhasgerais a corporação dos professores, por meiode uma das suas associações, não destoavadaquelas considerações:

– necessidade, cada vez maior, de dar aoeducador uma formação de amplo e profun-do caráter humano;– revisão dos processos pedagógicos; esti-mular o educando a resolver situações novascom os recursos que o educador lhe forne-cer; agir e reagir face aos problemas que lhesurgem;– necessidade de pesquisar no campo da di-dática;– que as autoridades governamentais solici-tem a colaboração das entidades de classedos diversos Estados da União, quando dosestudos dos problemas da formação dosprofessores de educação física;– exige várias providências do Estado no to-cante a valorização do profissional;extensão da educação física a toda a comu-nidade;– incentivo (política) (sic) aos recém forma-dos;– os programas das escolas de educação fí-sica devem ser orientados no sentido de cri-ar no futuro professor o espírito e iniciativado livre empreendimento;– melhorar o nível do ensino especializadode educação física, facilitando os contatos

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da especialização com os centros mais adi-antados do mundo;– que sejam cumpridos fielmente o ditamesdo Decreto no 69.450/71, por ser certo e deprofunda liberalidade, sendo mesmo o míni-mo a exigir, tendo em vista que a educaçãofísica, através dos exercícios físicos, dos des-portos e das atividades ditas de recreação,representa a alegria, o prazer, a saúde físicae mental da infância, da adolescência e dosadultos. (Recomendações do III Encontro deP r o f e s s o r e s d e e d u c a ç ã o f í s i c a d aGuanabara, 1972)

E no plano da política miúda tambémemergiam preocupações com a educação físi-ca. Um exemplo pode ser tirado do primeiroprograma de educação física da PrefeituraMunicipal de Curitiba:

A elaboração do “Programa por Temporada”objetiva propiciar aos senhores Professoresde educação física, a preparação dos seusalunos de modo planejado obedecendo auma programação antecipada e definida,afastando deste modo processos improvisa-dos, e sem uma seqüência pedagógica.Nunca será possível realizar uma tarefa educa-cional se a mesma não for antecipada em seusobjetivos e nos meios a serem utilizados.Desta forma pretendemos acabar por vezcom o regime de improvisação dentro dasescolas municipais, fornecendo orientaçãoeducacional sistemática, formal e organizadadentro da conceituação moderna da educa-ção. (1972, p. 18)

Esse texto é outra evidência de comoas coisas mudavam naquele momento, pelomenos no que diz respeito à educação físicaem Curitiba. O Programa por Temporada des-pontava como uma alternativa à improvisaçãoque grassava nas escolas municipais e ao des-caso com a educação física escolar. Diantedesse quadro organizou-se um programa queviria a ser conhecido como “Bíblia”, justamente

pelo seu caráter de manual, de receituário. Masesse caráter era constantemente subvertido àmedida que os professores lançavam mão dosmais variados artifícios na sua prática cotidi-ana:

As crianças vinham para a escola; elas ti-nham aquela noção de vir para a escola paraaprender a ler e escrever; jamais vinham paraa escola para fazer educação física, jamais;isso não se cogitava. E essa fase de 5ª a 8ªsérie era de implantação recente, isso nosanos 70. Então, para as crianças que cami-nhavam em torno de 4 a 6 quilômetros paravir para a escola, chegar na escola para cor-rer, para saltar, enfim, para fazer aquilo queeu havia aprendido que era importante, elesnão achavam que realmente era importante,não é? Então, eu tive que usar de “n” meca-nismos de sedução para que eles passassema gostar do conteúdo (...).A gente adaptou a educação física a cir-cunstâncias muito naturais. Por exemplo, osalto em extensão a gente fazia com assombras do barranco por sobre a estrada; osalto em profundidade era saltar do barran-co sobre a estrada; o salto em altura era sal-tar os galhos caídos sobre o barranco.(Massaneiro, 1998).

Esse pequeno conjunto de evidênciasdiversas permite situar a configuração da edu-cação física brasileira no âmbito das reflexõesdesenvolvidas por Goodson (1990):

Análises mais atentas das matérias escolaresrevela uma série de paradoxos inexplicados.Em primeiro lugar, o contexto escolar é, sobmuitos aspectos, muito diferente do contex-to universitário – problemas mais amplos demotivação do aluno, de capacidade e decontrole necessitam ser considerados. A tra-dução da “disciplina” para a “matéria esco-l ar”, portanto, exige uma considerável adapta-ção (...). Em segundo lugar, as matérias esco-lares são, com freqüência, ou divorciadas de

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sua disciplina-base ou não tem uma disci-plina-base. (Goodson, 1990, p. 234-235)

Se olharmos para o desenvolvimentohistórico e para a realidade atual da educa-ção física brasileira, creio ser possível refe-rendar as considerações acima. E é aindaesse mesmo autor que nos dá elementospara compreender esse processo:

O grau de isolamento ou autonomia dasmatérias escolares pode ser visto, numaanálise mais atenta, como estando relaci-onado aos estágios de evolução das maté-rias. Longe de serem derivadas de discipli-nas acadêmicas, muitas matérias escolaresprecedem cronologicamente suas discipli-nas-mãe: nessas circunstâncias a matériaescolar em desenvolvimento realmentecausa a criação de uma base universitáriapara a “disciplina” de forma que professo-res secundários das matér ias escolarespossam ser treinados. (Goodson, 1990, p.235)

Os debates promovidos no âmbito daeducação física brasileira nos últimos qua-renta anos têm evidenciado uma busca in-cessante pelo reconhecimento acadêmico,institucional e social. Diante de um campode possibilidades – diferentes perspectivasdo ensino da educação física na escola –esse processo não se desenvolveu sem oconsórcio, inclusive, da corporação dos pro-fessores de educação física, como já explo-rou Beltrami (1992). Daí a necessidade delocalizarmos a experiência desses professo-res no âmbito daquilo que Thompson carac-teriza como o diálogo entre o ser e a cons-ciência social (1981, p. 17). As perspectivasdiversas de agentes diversos estão pautadaspor uma necessária e intrincada trama sociale cultural, em que algumas tendências sãosuplantadas por outras, permanecendo asprimeiras como potência histórica. Nesseprocesso os diferentes sujeitos, portadores

de diferentes perspectivas, lançam-se à lutaem torno daquilo que representaria a síntesemais aproximada dos seus interesses manifes-tos. O Estado que legislava, os pesquisadoresque reclamavam recursos e os professores queexigiam um controle forte sobre aquilo queconsideravam desmando das escolas (Be l t r ami ,1992), bem como lançavam mão dos maisvariados artifícios para o seu trabalho coti-diano, como ficou patente nos textos acima.Todos esses sujeitos, portadores de amploleque de interesses e reivindicações, de umaforma ou de outra estavam amalgamadosnaquele momento. Em suma, todos deseja-vam maiores e melhores recursos para o desen-volvimento de suas atividades no âmbito da edu-cação física.

A atuação através da distribuição padroniza-da de recursos representa um processo de“tendência acadêmica” que angustia ossubgrupos que promovem as matérias esco-lares. Por isso, áreas tão diversas como as detrabalho em madeira e metal, educação físi-ca, artes, estudos técnicos, contabilidade,costura e economia doméstica têm procura-do melhoria de status, defendendo uma in-tensificação de exames e habilitações no es-tilo acadêmico. (Goodson, 1995, p. 37)

Nas falas contempladas nos limitesdesse trabalho – entidades internacionais/in-telectuais da educação física, dirigentes deescolas superiores, legisladores e professores– vemos convergir uma série de orientaçõesque determinariam os rumos da educaçãofísica escolar no Brasil pelo menos por vin-te anos, o que infirma a tese de um Estadodemiurgo determinando o lugar e a práticadaqueles diferentes sujeitos na organizaçãode uma prática cultural, a educação física. Eessas orientações nada tinham de altruístasou arbitrárias. Antes, faziam parte da corre-lação de forças determinada pelas condiçõesobjetivas dos sujeitos em uma determinadaambiência cultural e histórica. Partindo do

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pressuposto de Goodson (1990) de que ocontrole universitário não reflete um padrãocontinuo de dominação generalizada, é pos-sível afirmar que

O conhecimento acadêmico de alto s ta tusganha seus aderentes e aspirantes menosatravés do controle dos currículos que so-c ia l izam que at ravés da conexão bemestabelecida com padrões de alocação derecursos e com o trabalho associado e asperspectivas de carreira que esses assegu-ram. O estudo das matérias escolares emevolução dirige nossa atenção para a evo-lução de padrões de alocação de recursos.O trabalho recente de M. Smith tem de-monstrado claramente quão frutífero po-deria ser esse enfoque ao substituir cruasnoções de dominação por padrões de con-trole nos quais os grupos subordinadospodem ser vistos at ivamente em ação.(Goodson, 1990, p. 252)

Assim, é possível concluir que, a me-nos que houvesse o consentimento dos di-versos agentes sociais, as políticas educaci-onais não teriam condições de consolidar-seno interior das escolas. Até porque a escolapode desenvolver uma dinâmica própria deorganização que, sem dúvida, relaciona-secom o plano cultural mais amplo, mas queinterage com ele para manifestar-se e para

autoger i r-se . Ass im, não podemos fa largenericamente de uma conformação do siste-ma educacional pelo Estado autoritário. Pri-meiramente, então, prefiro caracterizar as ini-ciativas oficiais como sendo “do governo” enão “do Estado”. Mas, apesar da influênciagovernamental, ainda assim, no caso da reno-vação da educação física brasileira, a suacorporação de especialistas ajudou a conformaro sistema educacional, mormente no que serefere às práticas escolares. Da tensão entre o“imposto” pela via legal e aquilo que foi assi-milado e produzido por parcelas da sociedade,emergia a prática cotidiana dos educadoresescolares.

Para essa produção acadêmica por mimindicada, com a qual não pretendi exaurir otema, representativa de uma forma de “ler” ahistória da educação no Brasil, caberia à escola,com sua função estritamente reprodutora, úni-ca e exclusivamente a reificação dos indivídu-os e da cultura no interesse da manutenção/reprodução da ideologia burguesa. Para aque-les que pretendem uma sociedade mais igua-litária a escola seria, então, perfeitamente dis-pensável. Por que continuamos, então, aestudá-la e a trabalhar nela? Analisemos a es-cola por dentro de suas particularidades e desuas determinações próprias. Deixemos as ge-neralizações e as abstrações para aquilo quenão tem existência concreta na história daeducação e da educação física.

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Recebido em 23.05.2001

Aprovado em 27.03.2002

MarcuMarcuMarcuMarcuMarcus Auré l io Taborda de Oliveiras Auré l io Taborda de Oliveiras Auré l io Taborda de Oliveiras Auré l io Taborda de Oliveiras Auré l io Taborda de Oliveira é doutor em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP; professor do Departamento deTeoria e Prática de Ensino e do programa de Pós-Graduação em Educação, linha de História e Historiografia da Educação, daUniversidade Federal do Paraná.