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Revista do Colégio de Aplicação João XXIII - Ano 2 - nº 1/2014 ISSN 2318-2490 Educação em tempo integral Educadores defendem uma prática que transcenda a vulnerabilidade social e o baixo Ideb E mais! Bombordo e Estibordo Valesca Popozuda pode ser chamada de filósofa? Navegar é preciso Escola Família Agrícola Puris: uma experiência que deu certo Âncora Extensão Colégio de Aplicação João XXIII vai à comunidade do Bairro Bela Aurora Âncora Pesquisa Funk na escola: uma reflexão sobre as diferenças culturais À Proa Elenita Pinheiro Queiroz Silva A pesquisadora da UFU fala sobre corpo, gênero e sexualidade na escola

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Page 1: Educação em tempo integral - UFJF · Revista do Colégio de Aplicação João XXIII - Ano 2 - nº 1/2014 ISSN 2318-2490 Educação em tempo ... Valesca Popozuda pode ser chamada

Revista do Colégio de Aplicação João XXIII - Ano 2 - nº 1/2014ISSN 2318-2490

Educação em tempo

integralEducadores defendem uma prática

que transcenda a vulnerabilidade social e o baixo Ideb

E mais!Bombordo e Estibordo

Valesca Popozuda pode ser chamada de filósofa?

Navegar é precisoEscola Família Agrícola Puris: uma experiência que deu certo

Âncora ExtensãoColégio de Aplicação João XXIII vai à comunidade do Bairro Bela Aurora

Âncora PesquisaFunk na escola: uma reflexão sobre as diferenças culturais

À ProaElenita Pinheiro Queiroz SilvaA pesquisadora da UFU fala sobre corpo,

gênero e sexualidade na escola

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ReitorJúlio Chebli

Vice-ReitorMarcos Venício Chein Feres

DiretoraAndréa Vassallo Fagundes

Diretor de EnsinoJosé Luiz Lacerda

Conselho e coordenação EditorialEliete do Carmo Garcia Verbena e Faria

Elza de Sá NogueiraMargareth Conceição Pereira

Simone Ribeiro

Reportagens e ediçãoMárcia Carneiro

Assessoria de comunicaçãoRicardo Nogueira Reis

BolsistasNaiara Castro

Nathália CorrêaRaíssa Ferreira

ColaboradoresAndrea Serpa de Albuquerque, Andréia Bellotti,

Camila Pinho, Carla Rodrigues, Cátia Pereira Duarte,Fabrício Vassali Zanelli, Júlio Cesar de Almeida

Pacheco, Maria Rosania Lopes Duarte, Margareth Conceição Pereira, Rogério Arantes, Sérgio Cândido

de Oscar, Simone Ribeiro.

Projeto Gráfico e IlustraçõesInhamis Studio

FotografiaNathália Corrêa

RevisãoMariana Marcon Benicá

Revista [email protected]

www.ufjf.br/revistaargoRua Visconde de Mauá, 300

Bairro Santa Helena. CEP: 36015-260Telefone (32) 3229-7603

Âncora EnsinoPágina 16

Âncora PesquisaPágina 20

Âncora Discente Página 23

Âncora Discente II Página 30

Âncora ExtensãoPágina 26

Bombordo & EstibordoDebatePágina 43

Canto de OrfeuArte e LiteraturaPágina 48

Diário de BordoEditorialPágina 03

LemeReportagem EspecialPágina 32

Navegar é PrecisoPágina 10

MastrosResenhasPágina 15

À ProaEntrevistaPágina 05

Velocino de OuroCarta AbertaPágina 46

Revista Argo aberta à participação de professores e alunosA revista reserva espaço para publicação de textos desenvolvidos a partir de práticas educacionais e pesquisas peda-gógicas. A colaboração é aberta a professores e alunos do Ensino Básico e Superior das redes públicas e particulares.

Para conhecerem os critérios de participação, os interessados em publicar artigos nos próximos números poderão aces-sar as orientações e normas no www.ufjf.br/revistaargo ou entrar em contato com a comissão editorial por meio do e-mail: [email protected].

A equipe editorial da revista avaliará o material recebido de acordo com o perfil e os objetivos das seções da publicação e as normas estabelecidas para colaboração.

ArgonautasExpediente

Revista pedagógica e cultural do Colégio de Aplicação João XXIII vinculado à

Universidade Federal de Juiz de Fora

BússolaÍndice

Terras férteis à vista

Um ensino básico de qualidade passa necessariamente pela educação in-tegral. Embora nem tão atual como

possa parecer, a ideia é considerada por especialistas um avanço em se tratando de uma prática educacional eficiente. A proposta, no entanto, não significa apenas a extensão do horário do aluno na escola. Prevê a formação global do estu-dante para além da dimensão cognitiva, como ocorre na tradição escolar brasileira.

Na educação integral são valorizados diversos aspectos educacionais, como afetivo, moral, político e artístico. Assim, o aluno ganha a oportunidade de aces-sar entendimentos normalmente pouco explorados no currículo convencional. E, em consequência, amplia-se a chance do surgimento de futuros cidadãos com, no mínino, maior capacidade crítica.

Para buscar um maior entendimento sobre o tema, a Argo, em seu terceiro “cruzeiro”, traz uma reportagem en-focando os trabalhos desenvolvidos em Juiz de Fora dentro desta perspectiva e levantando o que falta para imprimir mais qualidade às atividades. Matéria de capa e, por isso, abrangendo a seção Leme, a educação integral é avaliada como proposta a ser valorizada pelos gestores e que poderia ser adotada pelo programa Mais Educação, do Governo Federal. O

projeto nacional que prevê tempo maior de permanência do estudante na esco-la prioriza a questão da vulnerabilidade social na escolha dos seus beneficiados, o que contraria a filosofia da educação integral, destinada a todos os alunos, indistintamente.

Nesta nova jornada nas ondas da edu-cação há também outras reflexões. Uma delas é sobre um tema que vem ganhan-do visibilidade: corpo, gênero e sexua-lidade, que é abordado pela professora da Universidade Federal de Uberlândia, Elenita Pinheiro de Queiroz Silva, na seção À Proa. Outra discussão enfoca a ques-tão da prova de uma turma de Ensino Médio de um colégio do Distrito Federal que classifica a funkeira Valesca Popozu-da como pensadora. A polêmica vem à baila em formato de debate proposto por Bombordo e Estibordo.

Em Navegar é Preciso, uma abordagem instigante: as escolas agrícolas no Brasil. Mas a aventura mar adentro prossegue com a apresentação de interessantes pro-jetos de ensino, pesquisa e extensão nas seções Âncora. Já as paragens culturais trazem alguns dos fazeres artísticos da cidade e da região em Canto de Orfeu. No mais, é entrar na nau e se entregar à viagem.

Diário de BordoEditorial

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À ProaEntrevista

À ProaEntrevista

Um tema de importância fundamen-tal na inibição da violência contra crianças, mulheres, homossexuais

e transgêneros, a tríade corpo, gênero e sexualidade tem aos poucos conquis-tado espaço em universidades, escolas, redes sociais e sociedade em geral. O assunto foi mais uma vez objeto de reflexão na Faculdade de Educação da UFJF em setembro último, durante o VI Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade/ II Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade. O evento contou com a participação de estudiosos, entre eles, Elenita Pinheiro Queiroz Silva, da Univer-sidade Federal de Uberlândia (UFU). Em um longo bate-papo com a Revista Argo, a pesquisadora falou do seu trabalho e sobre a necessidade de a escola como um todo se envolver em debate sobre o tema. Segundo Elenita, a incompreensão e o preconceito provocam manifestações de intolerância, que por sua vez contri-buem para promover a infelicidade no mundo.

A professora e pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) fala sobre a importância de se trabalhar o tema corpo, gênero e sexualidade em todas as instâncias da comunidade escolar

“A escola pode ajudar no combate à intolerância”

Entrevista: Elenita Pinheiro Queiroz Silva

Revista Argo: Como a relação corpo, gênero e sexualidade é tratada nas escolas hoje?

Elenita: Em regra geral, encontramos escolas e professores que vêem essa relação como um problema. Ao entrar em contato com as experiências de corpo, gênero e sexualidade de alunos e docen-tes que estão fora daquilo que chamamos de norma ou padrão da heterossexua-lidade e, ao não saber como lidar com isso, a escola e muitos professores tratam essa relação como um problema, um desafio a ser enfrentado. As escolas vão lidar com corpo, gênero e sexualidade quando organizam conhecimento esco-lar, quando organizam conteúdos pelos quais veiculam a ideia. Mesmo não sendo de forma explícita o corpo humano é um conteúdo a ser trabalho. No caso da minha área de atuação mais incisiva ou de formação, que são as disciplinas escolares de ciências e biologia precisa ser uma atuação constante e direta. Além

disso, nos últimos tempos em função da organização da política educacional no Brasil, das Diretrizes Curriculares tanto nacionais quanto no âmbito dos estados e dos municípios em que assumem a sexualidade e as questões de gênero tam-bém como temas a serem trabalhados na escola, o que a gente observa é que há escolas que fazem movimento de tentar dar conta desses temas e conteúdos. Por outro lado, há também escolas tratando o tema vinculado à dimensão de um corpo fragmentado, um corpo desvinculado da cultura.

E quanto às relações humanas, afeti-vas e dos desejos e prazeres?

Nessa dimensão, a questão é vista como um problema. Mas a escola sempre teve relação direta com o corpo, o gênero e a sexualidade, porque ela educa os corpos de meninos e meninas e educa dentro de determinados padrões, em regra geral, dentro dos padrões heteronormativos.

Apresentar, discutir e pensar sobre corpos, gêneros e sexualidade favorecem os processos de formação e construção de conhecimento.

por Márcia Carneiro

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À ProaEntrevista

À ProaEntrevista

É preciso necessariamente contar com a autorização dos pais ou familiares para trabalhar esse tema na escola?

Do ponto de vista formal a escola está autorizada a discutir as questões de sexualidade e étnico raciais desde 1996, quando foram implementadas as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que dialogam com várias conferências e acordos que organizam a educação no Brasil, como a Conferência dos Direitos Humanos. A Escola e os professores têm documentos formais e oficiais em âmbitos nacional, estaduais e municipais que definem educação de sexualidade, gênero e étnico raciais, como obrigatorie-dade para se trabalhar no espaço escolar. Entretanto, penso que do ponto de vista da responsabilização social não posso ig-norar a organização social família. Nesse caso, posso dialogar com as famílias e as escolas devem abrir espaço. Por que há enfrentamento? Da mesma forma que a escola não teve espaço para pensar cor-pos, gênero e sexualidade fora do padrão heternormativo, as famílias também. As relações de gênero e de sexualidade não se dão fora das relações de poder e conflitos.

A escola pode se negar a desenvolver essas discussões?

Não tem como. Muitas vezes o tema não é colocado pelo professor, mas a criança o leva, porque ela está no mundo, porque ela tem um corpo sexuado e que expressa múltiplas possibilidades de experiência sexual. Mesmo que a escola diga “não vou trabalhar” - e há escola e professo-res que dizem não vamos trabalhar-, a criança propõe isso. Nas atividades de extensão e trabalho de professores nas escolas, tenho localizado questionamen-to de crianças dos anos iniciais - e não falo de adolescentes nos anos finais -, que tradicionalmente apresentam esses questionamentos. Há crianças de 8, 9, 10 anos, que fazem perguntas que dizem respeito a desejo e prazer. E por que levam essas questões para o professor? Porque estamos próximos das crianças e dos adolescentes. E o que eu tenho

que não consegue localizar a história do conhecimento. Não identificamos como, por quem e por quais instâncias são produzidos esses saberes e essas verdades disseminados pelas escolas e por ou-tras instituições sociais, como a igreja, a família, hospital, a mídia. A importância disso está no fato do reconhecimento dos processos de discriminação, preconceito e violência sofridos por aqueles que não são reconhecidos como parte daquilo considerado como válido e como aceitá-vel pela sociedade.

Como enfrentar violências e atitudes preconceituosas?

Se não organizamos um modelo de formação na escola que permita compre-ender isso, não temos como enfrentar, combater ou eliminar essas formas de conduta que permeiam as relações sociais e as relações de poder dentro da esco-la. Apresentar, discutir e pensar sobre corpos, gêneros e sexualidade favorecem

os processos de formação e construção de conhecimento. Essas elucidações nos ajudariam a romper com as estruturas.

Quais são os desafios docentes para discutir sexualidade, corpos e gêneros no âmbito escolar?

O primeiro desafio é o próprio processo formativo dos profissionais da educação e aí alerto que não me refiro somente aos professores. Cabem a todos os profis-sionais da educação e que constroem a escola a tarefa de se capacitarem para trabalhar com essas questões. Quem são esses? a equipe da gestão da escola, diretores, vice-diretores coordenadores pedagógicos, o próprio conjunto de professores e professoras, serviço ad-ministrativo, secretarias, pessoas das cantinas e portarias. Esses profissionais precisariam pensar o processo formativo, que, em regra geral, é colado ao modelo que reproduz o padrão heteronormativo e, portanto, não contribui para se refletir o modelo de formação .

E como seria essa reflexão?

Enfrentar o modelo de formação e o modo com que as pessoas pensam a par-tir desse modelo seria o primeiro passo. Daí, pensaríamos as práticas escolares. Precisamos pensar a própria escola, a organização escolar, que envolve a orga-nização curricular e também a estrutura como a escola está organizada. Não é somente encontrando tempo no espaço entre as disciplinas ou tempo para proje-tos, que conseguiríamos assegurar o pro-cesso de formação. Ou a escola assume a questão como de formação da escola ou então vamos ficar localizando uma situ-ação na sala de aula que ultrapassa esse espaço físico. Se trabalho somente a for-mação de professores, mas não discuto o modo como cada um dos profissionais olha para essas questões e como a escola se organiza para materializá-las, vamos estar brincando de assumir a discussão da sexualidade, o racismo e os preconceitos na escola. Na verdade a gente está fazen-do coisas pontuais que não se constituem como políticas de formação dentro do espaço da escola.

Devemos produzir modelo de conhecimento em que crianças, adolescentes, professores e professoras consigam compreender qual a origem da forma como pensamos nossos corpos, nossas experiências de gênero e de sexualidade.

Hoje a escola brasileira ainda replica padrões heteronormativos, embora haja iniciativas dentro de escolas de forma pontual onde o modelo começa a ser questionado e outras práticas começam a ser instaladas nas escolas de educação básica.

Qual a importância do trabalho nas escolas nesse aspecto?

Devemos produzir modelo de conheci-mento em que crianças, adolescentes, professores e professoras consigam compreender qual a origem da forma como pensamos nossos corpos, nossas experiências de gênero e de sexualida-de. Por que eu estudo o corpo de for-ma fragmentada? Por que o padrão de sexualidade válido é o heterossexual? De onde vem isso? Efetivamente na orga-nização e nos ensinamentos das escolas por meio de disciplinas escolares isso não é discutido e apresentado. O efeito é o processo de formação de estudantes

dito é: que bom que aqui posso dialogar com eles para participar de um processo educativo sério, responsável em que eles possam, por exemplo, se tornar sujeitos capazes de lidar com situação de abuso ou pedofilia. Muitas vezes, quando a família se dá conta a criança já sofreu a violência. Se tivermos diálogo tranqüilo, responsável, se a escola convidar a família para um diálogo como esse que é afetivo e afetuoso para com as crianças e adoles-cente, podemos aliar forças para enfren-tar situações perversas as quais meninos e meninas em muitos casos são submetidos ou estão sob essa ameaça. Outro mo-tivo para o engajamento da escola, diz respeito à necessidade de combatermos qualquer forma de preconceito e discrimi-nação para com as pessoas que aparen-temente fogem à norma. Não é possível, como educadores, como escola e como família aceitarmos violências homofóbi-cas, transfóbicas e sexistas a que meninos e meninas são submetidas.

A escola identifica a diversidade

sexual, mas quando constata

não acolhe, as aniquila porque cria estratégias para controlar

e apagar as diferenças.

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À ProaEntrevista

À ProaEntrevista

O policiamento promovido pelas fa-mílias não faz com que os professores sintam-se impedidos de tratarem dos temas relacionados à sexualidade?

Temos que ter cuidado para não usarmos o discurso da família para não entrarmos na questão sobre sexualidade. A gente precisa problematizar. Muitas vezes em 500 famílias, uma ou duas reagem, então não é o conjunto de famílias. Temos que observar se não transformamos esse dis-curso numa verdade, isso nos faz recuar nessa discussão. Nenhum professor deixa de tratar da evolução por causa da reação de algumas famílias que reagem a isso. Muitas vezes são situações isoladas. É bom que a família reaja, mas essa reação deve ser uma convocação ao debate, não reação de recuo do professor ou da escola acerca da temática. Muitos pro-

fessores usam essa estratégia para não discutir, para se preservar, porque esse não é um tema que não nos envolvemos pessoalmente. Quando falo de cartogra-fia, classificação de seres vivos, isso não está ligado diretamente a mim, posso me afastar. Já essa temática está associada à forma com que eu penso. O professor vai à sala de aula para abordar as informa-ções científicas, mas os alunos perguntam situações corriqueiras. O professor que tem relação mais próxima com o aluno terá que abordar questões pessoais, como os riscos de contrair HIV e gravidez.

Suas pesquisas mencionam o apaga-mento ou borramento das diferenças nas escolas. O que isso quer dizer?

A escola identifica a diversidade sexual, mas quando constata, não acolhe, as aniquila, porque cria estratégias para controlar e apagar as diferenças. Quando a escola reconhece, por exemplo, um garoto ou uma garota homossexual, rea-liza um processo de disciplinamento para anular tudo aquilo que é reconhecido como atrelado à homossexualidade. Ou seja: se ele não for espalhafatoso, se não apresentar nenhum desequilíbrio e ficar quietinho, está tudo bem. Eu diria que a escola não reconhece a diversidade sexu-al, mas a identifica e desenvolve a prática do apagamento, que é: não acolho, mas tolero desde que não provoque tumulto que não me afete, que não tire a ordem e que não rompa com o ideal de norma-lização.

Mas como a escola deve se comportar com relação às manifestações exacer-badas de afeto ou desejo na escola?

Obviamente que nas relações sociais há condutas, regras e acordos. Minha expe-riência mostra que a reação das institui-ções sociais com relação à demonstração afetiva entre um casal homossexual é mais forte e violenta que a de um casal heterossexual. Porque me sinto agredido com isso? Por que um beijo nos incomo-da tanto? Parece que uma briga no pátio é menos agressiva que uma manifestação

afetiva. O que devemos fazer é dialogar e discutir os acordos de convivência, po-rém, a norma tem que valer para todos. Há ainda uma cultura preconceituosa de que a expressão do transexual ou travesti é agressiva, mas essa constatação se deve à negação social daquela pessoa. Muitas vezes a manifestação excessiva é a única forma que a pessoa fora da conduta heteronormativa tem para proteger-se, porque o grupo social não favoreceu aquela maneira de se expressar.

Acha que a violência contra homos-sexuais e trangêneros pode diminuir com a abordagem do tema pela escola?

Há pesquisas que mostram que a violên-cia transfóbica é inegável. Não deixamos de escutar, na cidade onde moro, notícias veiculadas pela mídia de homossexuais e travestis assassinados com a marca de que foi morto por ser homossexual, não deixo de escutar que mulheres continuam sendo mortas por seus companheiros. Os casos de abuso sexual contra crian-ça entre zero e quatro anos de idade possuem índices assustadores em Minas e no Brasil. Não posso achar que não tenho que me mobilizar contra essas práticas. E o processo formativo educativo na escola pode desconstruir a idéia de que por eu ser heterossexual, sou melhor, ou se eu sou branca, sou melhor que qualquer outra pessoa que tenha pigmentação diferente. A escola pode ajudar a desmi-tificar e, mais que isso, romper com essa estrutura de pensamento que é perversa e violenta. Alterando essa lógica é que consigo acolher e pensar que a vida se manifesta de formas as mais diferentes possíveis. As experiências dos sujeitos são múltiplas e não é possível reduzir os comportamentos a apenas um. O modelo heteronormativo imposto a todos não nos conduz à uma vida feliz, não nos conduz ao amor, - esse termo parece que caiu na banalidade -, mas não podemos ter estrutura de mundo feliz quando não admito que o mundo se manifesta nas suas múltiplas formas e experiências. E

essa discussão não é incompatível com a sala de aula.

Quais foram os resultados das pesqui-sas com livros didáticos de biologia?

O livro didático tem potência muito gran-de, mais que a internet. O acesso à inter-net não corresponde a 100% da popula-ção brasileira, já o rádio e o livro didático são materiais que chegam a todos. Livro didático é instrumento de formação e de conhecimento sobre sexualidade, gênero e corpos. Observamos que as coleções co-meçam de forma tímida a abordar o tema da sexualidade explicitamente como tópi-co a ser trabalhado. Majoritariamente, as coleções didáticas ainda não conseguem sair da abordagem biomédica. Há uma delas que discute a homossexualidade, um avanço nos livros didáticos, pois antes de 2008, não havia abordagem alguma. Nesse livro em um texto complementar, de dois ou três parágrafos, no entanto, ela reafirma o pensamento de que o adolescente que vive essa experiência pode recorrer ao psicólogo. Ao falar isso ele reafirma de forma implícita que a homossexualidade pode ser um problema psicológico ou uma doença.

E quanto às questões relacionadas ao gênero?

Nas coleções 2012, em regra geral, com relação às questões de gênero, o que se vê é a reafirmação dos modelos hegemônicos de masculinidade e femini-lidade, com a mãe representada como a cuidadora. Agora há um avanço no livro didático nesse ponto de vista: a figura do cientista que sempre era masculina, a partir de 2012 vem sendo representa-da pela mulher. Percebemos que há um efeito das pesquisas e movimentos sociais sendo trabalhado nos livros didáticos de biologia. No entanto, eu diria que esta-mos bastante distantes do alcance de uma abordagem nos materiais de biologia do ensino médio que favoreçam o acolhi-mento das diferenças. A reprodução do discurso hegemônico ainda é favorecida.

A escola pode ajudar a desmitificar e mais que isso romper com essa estrutura de pensamento que é perversa e violenta. Alterando essa lógica é que consigo acolher e pensar que a vida se manifesta de formas as mais diferentes possíveis.

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Navegar é PrecisoEscola Agrícola

A experiência contada neste artigo nasceu em 1935, em um pequeno vilarejo francês... Diz a história

que um rapaz, chamado Ivo, filho de agricultores, desistiu de estudar porque, para continuar seus estudos, teria que se deslocar para a cidade. Além de ficar longe de sua família e de seus afazeres na propriedade, Ivo não se sentia motivado pelo que a escola lhe proporcionava. Seu pai, Jean, decepcionado com a decisão do filho e desejando fazer algo a respeito, foi procurar o padre da paróquia local. Padre Abel era preocupado com as questões so-ciais e atuante nas organizações sindicais.

Ambos concordavam que o problema principal era o fato de que as escolas existentes formavam as pessoas para a vida na cidade, e não consideravam a

produzindo muitos frutos. Foi assim que a experiência se alastrou pela Europa, África, América Latina e Ásia (RIBEIRO, BEGNAMI & BARBOSA, 2002).

No Brasil, a experiência que chega em meados da década de 1960, tem origem das Maisons Familiales Rurales da Itá-lia e foi desenvolvida de forma direta e fortemente influenciada pela atuação de padres jesuítas italianos. Assim, foi no sul do Espírito Santo que a nossa abóbora nasceu. A região era caracterizada pela produção agrícola primária, especialmen-te do café, e encontrava-se em uma crise socioeconômica que causava um forte êxodo rural. Nesse panorama desfavorá-vel, a educação ofertada às populações rurais refletia uma perspectiva urbano-

por Fabrício Vassalli Zanelli1 , Júlio Cesar de Almeida Pacheco2 e Maria Rosania Lopes Duarte3

Escola Família Agrícola Puris:

Uma escolade agricultorese agricultoras

formação daqueles que desejavam conti-nuar no campo. Assim, os dois resolveram procurar outras famílias que estivessem na mesma situação e surge, então, uma nova escola, cujo programa de formação era baseado em três aspectos principais: a formação técnica para a agricultura, a formação geral para a vida consciente e cidadã e a formação humana baseada em valores éticos e espirituais.

COMO ABóBORASOs agricultores costumam dizer que as Escolas Famílias Agrícolas são como abó-boras que, quando plantadas em terreno fértil, se alastram pelos quintais, inclusive dos vizinhos, e ninguém controla mais,

cêntrica que desqualificava o meio. Da crítica a esse projeto surgem as primeiras experiências de escolas em alternância no Brasil, mais especificamente no ano de 1969, no estado capixaba (SILVA, 2012).

A Pedagogia da Alternância é entendida como um princípio orientador de projetos educativos. Assim, articula as vivências que acontecem no meio familiar àquelas que se desenvolvem na escola para uma formação teórica geral que englobe a preparação para uma vida em comunida-de. Para além de justaposições de tem-pos e espaços diferentes, a alternância educativa visa desenvolver o jovem em interação com o mundo e a realidade que o cerca, articulando contextos a princípio distantes e trazendo à tona a complexida-de das relações existentes entre a escola e a comunidade. Tal perspectiva localiza a escola na fronteira entre a manutenção e reconfiguração da própria realidade local, dos conhecimentos e da escola. A alternância se baseia na crença de que a vida ensina mais do que a escola; que se aprende também na família, a partir da experiência do trabalho, na participação comunitária etc.

MOBILIZAçãO POPULARNo panorama da Pedagogia da Alter-nância têm-se as Escolas Família Agrícola (EFAs) enquanto instituições educativas organizadas pelos movimentos sociais populares para promoção do desenvol-vimento local e formação integral dos jovens por meio de metodologias peda-gógicas contextualizadas e por meio do envolvimento comunitário e de atores locais (GARCIA-MARIRRODRIGA, 2010). Desde sua origem, as escolas em alter-nância aproximam organizações sociais, movimentos camponeses e/ou grupos ligados à Igreja Católica. Portanto, surge da mobilização da sociedade civil pela conquista e garantia de direitos sociais.

Nos anos de 1973-1987, as EFAs brasi-leiras passam por um processo de expan-são para outros estados brasileiros, mas também por um período marcado por

Da esquerda para a direita:

Escola Agrícola Puris de Araponga: transformando a realidade do campo.

Em mutirão, comunidade constrói sua escola.

Aulas na EFA transpõem os muros escolares.

Navegar é PrecisoEscola Agrícola

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dificuldades financeiras e falta de apoio das administrações locais. Atualmente as EFAs somam 147 escolas em fun-cionamento, presentes em 17 estados, organizadas em 19 associações regionais. Estima-se que tenham 13.000 famílias atendidas em 950 municípios diferentes, 1.836 educadores e aproximadamente 7.000 estudantes matriculados em 2013 (UNEFAB, 2013).

Como parte desse processo, tem-se o sur-gimento da EFA Puris de Araponga-MG. Demandando por uma escola que consi-derasse a história étnico-identitária dos agricultores do município, após diversos obstáculos e conquistas, em fevereiro de 2008, a EFA Puris de Araponga admite a primeira turma de primeiro ano do Curso Técnico em Agropecuária integrado ao ensino Médio em regime de alternância, com enfoque agroecológico. Desde en-tão, muitos foram os desafios e também os avanços pelos quais o projeto passou. De relações instáveis com os poderes públicos, falta de recursos, mas também da consolidação de um projeto pedagó-gico, do reconhecimento legal da escola e do aperfeiçoamento de seus instrumen-tos, a EFA Puris constitui-se hoje como uma escola em alternância inserida em um debate mais amplo de transformação

ameaças, as reuniões e cursos promovi-dos pelas CEBs representaram espaços de formação de consciência crítica e política que geraram muitos frutos. A criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Araponga, em 1989, é um desses fru-tos. Assim como muitos outros sindicatos criados à época, o objetivo era a defesa dos direitos dos trabalhadores do campo. Entretanto, a atuação do STR em Arapon-ga foi muito além, e, ao longo desses 25 anos, as conquistas foram muito signifi-cativas. Em 1987, ainda antes de criarem o STR, estes trabalhadores participaram da criação do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), uma ONG composta por agricultores, estudantes e técnicos que objetivava trabalhar em prol da Agricultura Familiar e da Agroecologia, contrapondo-se ao modelo vigente de aposta no latifúndio e nas monoculturas.

numa relação entrelaçada entre conhe-cimento popular e conhecimento cientí-fico. Desta parceria, além do STR, foram criadas em Araponga uma Associação dos Agricultores Familiares, Cooperativa de Crédito, e também uma experiência de acesso à terra de grande destaque, a “Conquista de Terras em Conjunto”, que consiste na compra de propriedades de fazendeiros que, em seguida, eram divididas em muitas pequenas proprie-dades que, repassadas aos agricultores sem terra da região, eram pagas com a produção (café, gado, porcos, milho, fei-jão) ao longo dos anos. Esta estratégia foi responsável por permitir que mais de 170 famílias sem terra pudessem se tornar proprietárias de terras.

Este fato transformou a realidade dessas famílias, “porque o pedaço de terra, ele dá condição da pessoa pensar e agir, então ele tem liberdade (...) o agricultor

da realidade do campo e do desenvolvi-mento da Educação do Campo como um fenômeno social no Brasil.

TEOLOGIA DA LIBERTAçãOSeu histórico se aproxima do histórico de surgimento das EFAs no mundo e de sua origem brasileira, também está intima-mente ligada às organizações sociais locais e à luta de diversos agricultores em prol de um outro fazer educativo para as populações do campo. A trajetória das organizações sociais de Araponga-MG está ligada, desde o início, à Teologia da Libertação, em especial ao trabalho das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s). Na década de 1970, durante a Ditadura Militar, quando manifestações e reuni-ões de trabalhadores eram vistas como

OUTRO PARADIGMA: AGROECOLOGIAA parceria estabelecida entre o STR de Araponga e o CTA-ZM se fortaleceu atra-vés da agroecologia. Inicialmente enten-dida enquanto um conjunto de práticas de agricultura alternativa, o conceito de agroecologia se amplia, e recentemente é utilizado para se referir: a um campo científico; às práticas de manejo ecológi-co na agricultura; e ao reconhecimento da importância dos sujeitos do campo e seus movimentos sociais na construção de outro paradigma de desenvolvimento.

Em Araponga, a população possui traços herdados dos seus antepassados Puris (índios que habitavam a região). A cultura local e a relação com a natureza foram grandes chaves para o desenvolvimento da agroecologia na região, que se deu

Navegar é PrecisoEscola Agrícola

Seu Cosme Damião, falecido em 2011, e a esposa Amélia,

abriram as portas de sua propriedade para

o funcionamento provisório da escola.

sem terra pra mim é que nem passarinho sem asa, ele não tem como voar não” (Sr. Neném –Agricultor).

Daí em diante, os agricultores consegui-ram afirmar ainda mais sua identidade e sua vinculação com a produção de alimentos saudáveis, do cuidado com a natureza, da comercialização em conjun-to. Mas ainda enfrentavam graves proble-mas quando o assunto era educação: os jovens rurais que iam estudar na cidade eram alvo de muito preconceito, por co-legas e professores. Muitas escolas rurais foram fechadas, o processo de nucleação das escolas se acentuava. E ainda, quan-do as escolas do campo permaneciam abertas, o ensino era descontextualizado da realidade que essas crianças e jovens viviam, como relatou um agricultor: “Porque eu vejo nos livros de 1ª série dos meus meninos... e é só história da cidade: o meu bairro, minha rua e outras coisas do tipo, entende? E não tem nada sobre a roça, minha comunidade, a lavoura do meu pai, o porco, essas coisas... então é muito desligado” (Paulo Amaral – Agri-cultor/ STR).

Compreendendo que não bastava apenas a conquista das terras, mas acreditando na importância de conceber outra forma

Amélia de Jesus continua seu trabalho diário, cuidando dos filhos e filhas postiços na EFA.

Navegar é PrecisoEscola Agrícola

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1514

MastrosNavegar é PrecisoEscola Agrícola Resenhas

O filósofo Jorge Larrosa, ao lançar seu livro: Tremores – Escritos sobre a experiência, nos desins-

tala de um lugar mais ou menos seguro de verdade de certezas pedagógicas, quando, em seus capítulos sobre a experiência, ele nos faz apaixonar pelas possibilidades abertas por ela , pois tra-ta-se de uma escrita potente enquanto algo nos toca, vibra, estimula, descons-trói, inventa etc.

O autor nos coloca a possibilidade de sairmos do emaranhado sistema capi-talista que sustenta e precede nossas escolas. O caminho seria o cotidiano, o ouvir as pluralidades sonoras das vozes que permeiam pátios, cantos, becos, enfim, lugares em que o devir-artista nos toma enquanto liberdade ou eman-cipação.

SUJEITOS ARTISTAS Assim, a escola pode ser o lugar de sujeitos artistas, já que lidar com as experiências e senti-las como tremores em nosso cotidiano significa poder fa-zer algo com elas, no caso, vivenciá-las como artistas que não estão presos a um tic-tac coordenado e pragmático da escola. O artista suspende o tempo, e é este o contexto que o filósofo advoga para a escola, ou seja, uma escola que permita a afetividade, que permita vivenciar os sentidos da experiência que não pode ser pedagogizada, tampouco didatizada.

A escola moderna inventou o tempo quantitativo, biológico, cronológico, e matou a fruição, a contemplação, a brincadeira. Se a experiência foi me-

nosprezada ao longo da humanidade em nome de uma filosofia que segue os ditames pla-tônicos de separação entre mun-dos sensí-veis (doxa) e inteligíveis (episteme), bem como também foi pelo olhar aristotélico, então é hora da escola ouvir essas paixões e ódios. Ou seja, essas emoções que compõem as experiências e que não podem ser cap-turadas pela linguagem pedagogizante da escola.

Entretanto, existe um perigo, que é o de cairmos na armadilha de conceituar a experiência. Ora, em um cenário de “organização”, no qual aprendemos a lidar com a vida, é grande o risco de buscarmos homogeneizar a experiência enquanto palavra/conceito. Logo, a ex-periência deve, segundo Larrosa (2014), ser vista como instrumento potente para tensionar a escola e colocar o “menor”, o invisível, como protagonis-ta da escola.

REFERêNCIA BIBLIOGRÁFICA

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre a experiência; tradução – Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. – 1º Ed, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

por Jairo Barduni Filho

Resenha de livro:

Tremores – Escritos sobre a experiência, de Jorge Larrosa

de educação com bases na valorização da agricultura familiar e da agroecologia, estes agricultores começam discutir a criação da Escola Família Agrícola Puris. Em 2001, o grupo da Conquista de Terras em Conjunto doa uma área para a cons-trução da EFA Puris. Logo em seguida, em 2002, é formalizada a Associação Escola Família Agrícola Puris e, neste mesmo ano, é realizado o trabalho de base para a criação da Escola (visitas de estudo, ela-boração do projeto político-pedagógico e estudo da viabilidade da proposta).

PÉ DE MANGAEm 2008, a sede da EFA começa a ser construída na área doada pela Conquista de Terras em Conjunto, com recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário. No entanto, a conjuntura política muni-cipal fez com que a Associação da EFA optasse por iniciar as aulas antes mesmo da conclusão das obras. Após a dificulda-

grandes desafios finan-ceiros e de infraestrutura para a escola. Contudo, os agricultores locais envolvi-dos tinham clareza de que aquela escola pertencia

a eles, e sua presença constante no dia a dia da escola, ora trazendo uma cesta de alimentos, ora trazendo umas ferra-mentas, ou apenas passando pra ajudar a levantar uma cerca, ou preparar a terra para fazer uma horta, permitiu que os problemas fossem enfrentados. Hoje, mesmo que ainda permeada por obstá-culos, pode ser considerada como um projeto educativo consolidado. A escola já formou sua primeira turma, com 52 alunos, e tem, atualmente, 54 alunos matriculados.

Entendendo que a sociedade é dinâmica e que nossa luta é constante, os agricul-tores e educadores e demais envolvidos investem para que a escola continue avançando no objetivo de construção de um outro campo, transformado por seus sujeitos formados em um processo autô-nomo, corresponsável e orientado para a emancipação e protagonismo de todos os envolvidos.

Contatos EFA PurisAssociação Escola Família Agrícola Puris de Araponga-MG: Córrego São Joaquim, comunidade Novo Horizonte - Zona Rural, Araponga-MG, CEP 36594-000. Tel.: (31)84237026 e (31)84803099

1 - Fabrício V. Zanelli: Geógrafo, mestrando em Educa-ção na UFV, educador na EFA Puris entre 2008-2010. E-mail:

fabricio.zanelli@ ufv.br

2 - Júlio A. Pacheco: Biólogo, mestrando em Educação na UFV, educador na EFA Puris desde 2011 e membro da AMEFA (Associação

Mineira das Escolas Famílias Agrícolas) e da UNEFAB (União Nacional das EFAs do Brasil). E-mail: [email protected]

3 - Rosania L. Du-arte: Agricultora, Pedagoga, licencianda em Educação do Cam-po – com ênfase em Ciências da Natureza

e Agroecologia na UFV, diretora da EFA Puri. E-mail: [email protected]

de em conseguir espaço para funciona-mento da escola, o casal Cosme Damião e Amélia de Jesus decide abrir as portas da sua propriedade – a primeira adquirida pela Conquista de Terras em Conjun-to - para o funcionamento provisório da Escola. A primeira sala de aula foi um pé de manga – e nos faz lembrar do livro de Paulo Freire: “À sombra desta manguei-ra”. Seu Cosme, como era chamado cari-nhosamente, nos deixou em 2011, mas a Dona Amélia continua seu trabalho diário de cuidado com seus “filhos e filhas” postiços na EFA. Em homenagem ao casal, foi criado o “Coral Popular Cosme Damião”, que trabalha a cultura popular na escola.

Pouco depois, por exigência da secretaria de educação, o alojamento, a secretaria, e a sala de aula foram construídos em regime de mutirão pelos agricultores. Em 2009, a escola foi transferida para a sede definitiva, mesmo que esse período coincida também com um momento de

Coral Cosme Damião tra-balha cultura popular na escola.

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Âncora

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ÂncoraEnsino Ensino

A ampliação do ensino fundamental para nove anos complexifica o desafio de pensar, dentro do con-

texto e das especificidades desta etapa do sistema educacional, estratégias que possibilitem a vivência da ludicidade alia-da ao processo de ensino-aprendizagem. No Colégio de Aplicação João XXIII, o tra-balho com as turmas de 1º ano do ensino fundamental busca aliar os processos de brincar e aprender entendendo que, para a criança nessa faixa etária, as atividades lúdicas são educativas e as atividades educativas devem ser lúdicas.

A chegada das crianças ao 1º ano do colégio é um momento especial, marcado

Simone Ribeiro, Andréia Bellotti e Camila Pinho*

estratégias de ensino trazendo mais ele-mentos que incentivassem a ludicidade.

Foi neste contexto que, preocupadas em trazer o lúdico e despertar a fantasia dos nossos alunos e alunas, criamos um Amigo Secreto. Este foi pensado por nós como um mensageiro que, fazendo parte de um mundo fantástico, nos permiti-ria criar situações imaginárias em que o processo de ensino e de aprendizagem acontecesse junto com a brincadeira.

Assim, iniciamos o trabalho trazendo para a sala de aula uma caixa, que havia sido estilizada para se parecer com um baú, onde haviam sido colocados objetos que seriam utilizados ao longo daquele período para explorarmos os conteúdos matemáticos: livros, numerais, jogos, corda, relógio, fita métrica, calendários etc. O nosso objetivo era despertar a curiosidade e o desejo pelo conhecimen-to, criando, ao mesmo tempo, um clima de mistério, de magia, que envolvesse as crianças. Para isso, junto com a caixa dei-xamos uma carta, também estilizada para parecer antiga, onde “alguém” dizia ter deixado a caixa de presente para a turma e os desafiava a responder uma pergunta sobre pra que servia o calendário, e assim ganhariam outra surpresa. A carta era assinada pelo Amigo Secreto.

Nós, professoras, esperávamos que elas mergulhassem na fantasia e que a expec-tativa de ganhar outra surpresa fosse o que despertasse maior interesse, ajudan-do-nos a fazer com que o conteúdo da caixa se tornasse o foco de atenção das crianças, mas elas mergulharam na fanta-sia, sim, só que de uma maneira diferente daquela que imaginávamos.

A turma ficou agitadíssima com o fato de ter um “Amigo Secreto”. A caixa e a per-gunta, que tanto nos interessava, ficaram em segundo plano, as crianças queriam saber quem era ele. Foi desnorteante, mas empolgante ver como algumas crian-ças se envolveram de imediato, enquanto outras ficaram em dúvida e outras, ainda,

por muitas expectativas das famílias e das próprias crianças que, oriundas das mais variadas situações e experiências, terão no “João XXIII” um espaço de múltiplas possibilidades, no qual permanecerão por um longo período de suas vidas, aproxi-madamente 12 anos, onde passarão de crianças a adolescentes. Neste sentido, temos grande preocupação com a acolhi-da dessas crianças e buscamos desenvol-ver e aprimorar sempre nossa proposta de trabalho, tendo como um de seus princípios uma prática pedagógica que alimente e traga o imaginário da criança, tão presente nessa fase da infância, como um dos motivadores do processo de

ensino-aprendizagem. Entendemos que a imaginação, base de toda a atividade criadora do humano, e, por consequ-ência, da criança, proporciona a criação de conhecimentos técnicos, científicos e artísticos, ou seja, é essencial para a criança no seu processo de conhecimento do mundo. O adulto, representado no co-légio pelo professor, tem uma influência fundamental na imaginação infantil, pois o mesmo, enquanto mediador, pode es-truturar ações que estimulem e ampliem a capacidade imaginativa, a curiosidade e a criatividade da criança, contribuindo, dessa forma, para uma educação integral dos alunos.

O LúDICO E A FANTASIAA experiência que vamos relatar aconte-ceu no ano de 2012, quando, ao receber-mos as crianças que ingressavam no 1º ano, percebemos que uma grande parte daquele grupo demonstrava pouca fami-liaridade com o brincar e com a fantasia. E procuramos então construir nossas

com certo medo... Mas, considerando que o objetivo principal havia sido alcan-çado, o único caminho era canalizar este interesse, num primeiro momento, para a identidade do Amigo. Convencemos as crianças de que seria melhor responder-mos a carta, perguntando mais detalhes sobre o Amigo Secreto para descobrirmos quem ele era, e assim começou uma longa amizade, com um amigo imaginário que possibilitou muitas aprendizagens ao 1º ano.

AGUçANDO A CURIOSIDADENossa correspondência se tornou intensa. As cartas que tinham a professora como escriba já não eram suficientes e várias crianças começaram a escrever suas pró-prias cartas. E, juntamente com o traba-lho sobre identidade e de identificação dos nomes de cada criança, recebemos uma carta pedindo que escolhêssemos um nome para o Amigo. Uma das turmas “descobriu” que o Amigo, na verdade, era Amiga. Esta constatação foi sendo construída aos poucos, até porque, nós, professores, também não sabíamos quem era o “Amigo Secreto” quando tudo começou... E as dicas que fomos inse-rindo nas cartas como: “durmo de dia”, “tenho parentes que moram no interior”, “estou nesta escola há muitos anos” de certo modo foram estimulando pesquisas que ampliavam as possibilidades, até que, juntando todas as dicas, chegamos à con-clusão de que nossa Amiga Secreta era uma corujinha, símbolo do colégio, que morava no telhado, e por alguma ação mágica, podia se comunicar conosco.

As atividades organizadas a partir das Amigas Secretas (cada turma tinha a sua) foram muitas, e durante todo um trimes-tre possibilitaram muitos conhecimentos com muita ludicidade.

Uma destas atividades surgiu em função de, no início do ano letivo, sempre explo-

Conhecimento e imaginação no 1º ano do ensino fundamental

A história da “amiga secreta”:

*Professoras do Colégio de Aplicação João XXIII

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Âncora

18

ÂncoraEnsino

rarmos os diversos lugares da escola. As-sim, a Amiga Secreta nos enviou cartas direcionando nossas visitas a diferentes espaços. E queríamos explorar os regis-tros destes trajetos, realizados dentro da escola, visto que estávamos, em mate-mática e geografia, com uma proposta de trabalho voltada para a localização, posição, itinerários, vista e mapas.

O ponto culminante para a realização dos registros foi uma carta onde a Amiga nos pedia ajuda para mostrar o caminho que deveria ser feito do portão de entrada do Colégio até as nossas sa-las de aula. Isso porque ela nos enviaria um presente, mas o entregador precisa-va de um mapa para acertar o caminho. A promessa de uma surpresa deixada pela “Amiga Secreta” criou uma grande

ENCANTO E PRAZER

Uma das crianças propôs que tirásse-mos fotos da escola para mostrar onde era nossa sala, então, propusemos que fizéssemos o trajeto da entrada da escola até a nossa sala para, depois, fazermos o “mapa” para a Amiga Secreta apresen-tar ao entregador. Assim, após algumas tentativas e muito planejamento, fizemos juntos o trajeto que deveria ser feito pelo entregador, e fomos identificando os pontos de referência juntos, tendo a professora como escriba, registrando o que vinha antes ou depois, o que estava do lado direito ou esquerdo e, o mais importante, pensando sobre o objetivo do registro, ou seja, o que era mais impor-tante aparecer no “mapa”.

Ensino

expectativa nas crianças. Como nosso objetivo era explorar os registros dos trajetos já percorridos dentro da escola, nossas conversas foram direcionadas pela pergunta: Para que serve e como se faz um mapa? Depois de levan-tarmos os conhecimentos prévios da turma sobre o assunto e de vermos vários tipos de mapas, chegamos à con-clusão de que precisávamos mostrar ao entregador o caminho que ele deveria seguir, dentro do colégio, para che-gar à nossa sala, uma vez que, como escrito na carta da Amiga Secreta, ele não conhecia a escola e era muito tímido para perguntar a outras pessoas a trajetória a ser seguida, e ainda, não poderia contar com a ajuda da coruji-nha, pois ela dormia durante o dia.

Ao retornarmos à sala, cada criança foi escolhendo que ponto de referência queria desenhar. Depois, fomos colando os desenhos na ordem em que eles apa-receram, mas não sem antes colarmos a foto do portão de entrada numa extre-midade do papel e a foto da nossa sala na outra extremidade. Agora tínhamos o ponto de partida e o ponto de chegada. Para completar o mapa, as crianças pro-puseram que fizéssemos pegadas, dese-nhadas no mapa, para que o entregador enviado pela Amiga Secreta não tivesse dúvidas do caminho a seguir.

No dia seguinte, um grande embrulho de presente estava nos esperando no meio da sala. Mas esta já é outra história...

O relato desse trabalho com a Amiga Secreta nos fez refletir sobre o quão importante é (re)pensar metodologias de trabalho, que aliem o prazer e o encanto, através da imaginação e da ludicidade, com os conhecimentos científicos ou escolares. É sabido por nós, professores, que as crianças aprendem melhor os con-teúdos que estão relacionados aos seus interesses e são significativos para elas. Desse modo, para realizar a atividade, precisávamos do máximo comprometi-mento e empenho por parte dos profes-sores e das crianças. A tarefa não foi fácil, mas pensando em todo o envolvimento das turmas com a Amiga Secreta e no quanto nós professores também nos

divertimos com o “clima de mistério”, valeu a pena! E além de ter sido di-vertido, nada foi em vão, percorremos essa trajetória com as crianças fazendo as interferências necessárias, levando-as a refletir sobre as decisões tomadas e orientando-as acerca dos conheci-mentos necessários para avançarmos, e, ao mesmo tempo, mediamos a fan-tasia e o imaginário infantil para tornar mais prazeroso o processo de ensino e aprendizagem.

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ÂncoraÂncora

A necessidade de reconhecimento e valorização das diferenças culturais

Funk na escola:

Não podemos negar a forte influência que a música exer-ce sobre crianças e adolescentes

e também sobre os professores que com eles dividem o espaço escolar. A música tem importância comprovada no desenvolvimento humano, contribuindo para o desenvolvimen-to de habilidades como a socialização, eleva-ção da autoestima, trabalho em grupo entre

outras. Também não podemos fechar os olhos para um fenômeno comum na escola: a existência de uma hierarquização cultural, e espe-cificamente em relação à música, a classificação daquilo que é bom ou ruim. É necessário reconhecer a heterogeneidade cultural do meio escolar.

Embora este seja um tema extre-mamente amplo e que merece a dedicação de pesquisadores de dife-rentes áreas, me concentro especifi-camente na crescente presença do Funk Carioca nas escolas de Juiz de Fora e defendo a posição de que a escola deve estar preparada não somente para reconhe-cer este fenômeno enquan-to manifestação cultural,

por Sérgio Cândido de Oscar

“Neste trabalho, pretendemos nos aproximar da compreen-são de um fenômeno que está presente em grande parte das escolas públicas do município de Juiz de Fora-MG.Preten-demos entender melhor a in-terferência do gosto1 musical no ambiente escolar através da tentativa de uma leitura cultural e antropológica. As limitações deste trabalho são evidentes, e, portanto nos limitaremos a relatar os resul-tados parciais de um estudo ainda bastante propedêuti-corealizado entre os meses de março e junho de 2010 na escola selecionada.”

21

ÂncoraPesquisa

mas também valorizá-lo e explorá-lo no sentido de criar novas oportunidades de aprendizagem por meio da valorização das diferenças culturais.

Mesmo acreditando que esta questão já foi superada para muitos educadores, em algumas escolas ainda é necessário re-fletir sobre como trabalhar as diferenças na prática. Na verdade, a prática escolar deve ser pensada e repensada a todo tempo e não é possível prover educação de qualidade para todos com um mesmo modelo de escola. Não existem receitas nem soluções mágicas, contudo, não podemos pensar em soluções que não contemplem a diversidade. Nesse sentido, especificamente ao tema aqui abordado a escola clama por responder questões pragmáticas como porque as crianças e adolescentes têm fascinação pelo Funk? Por que a escola apresenta resistência e em alguns casos até mesmo proíbem a execução do Funk em suas dependên-cias? Como aceitar letras, gestos e danças que causam estranhamento para alguns grupos? Por que existe distanciamen-to cultural entre alunos e professores? Como fazer estas diferenças se encontra-

rem para um diálogo?

Os educadores, mais especificamente aqueles que vivem o chão da escola, muitas vezes têm a tendência de buscar

respostas práticas para as ques-tões mais emergentes vividas em sua rotina. Isso se justifica pelo desejo de encontrar formas rápi-das de solucionar os problemas vividos na escola. Não poderia e também não tenho a pretensão de dar respostas conclusivas para estas questões. Gostaria apenas de chamar para a neces-sidade de construir uma reflexão coletiva sobre os diferentes conceitos de cultura e pensar sobre as possíveis chaves que esses conceitos podem oferecer para a interpretação do fenômeno que estamos discutindo. Dentro desta perspectiva, algumas questões são impor-tantes: Qual o conceito de cultura que melhor

pode explicar esse fenômeno? Existe uma cultura musical uni-versal ou particular? Pensando na sociedade esta cultura pode ser vista como uma totalidade? Qual é a importância dessa aceitação para o desenvolvimento desses jovens enquanto sujeitos? Qual o significado da cultura Funk frente ao contexto em que estes alunos estão inseridos?

É necessário aprofundar o enten-dimento destas questões e buscar as diferentes interpretações para os significados que podemos dar a este fenômeno na escola. Compreender que as diferenças culturais - étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosas, entre outras – são manifestadas em diferentes modos de expres-são, dentre eles a música. Assim, devemos estar atentos a todas

“A escola onde foi realizado nosso levantamento possui características especiais que merecem destaque. Cria-da em janeiro de 2010, a escola reúne alunos de várias escolas do município de Juiz de Fora. Cerca de 350 alunos foram selecionados por estarem cur-sando a 5ª série ou 6º ano do ensino fundamental, e possuírem defasagem série/idade superior a dois anos. Es-ses alunos foram transferidos de suas escolas e de seus bairros (cerca de 80 bairros/localidades diferentes) e se-gregados em uma escola localizada no centro da cidade.”

as nuances que estão por trás das esco-lhas musicais dos estudantes, ou seja, devemos atentar para a multiplicidade de fatores envolvidos, não fazendo da escola uma instituição que reproduz as injustiças, desigualdades e discriminações presentes na sociedade, mas sim que con-tribua como aliada daqueles que clamam por igualdade de acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural.

As diferenças não podem ser ignoradas ou desconsideradas. A arte em geral e a música em particular devem servir para enriquecer o ambiente escolar tornando o cotidiano dos alunos e professores mais harmonioso. Para isso, não basta simples-mente aceitar as diferenças. Temos que aprender com elas.

“O processo de construção da escola iniciou-se com a realização de uma seleção específica para formar o seu corpo docente. Este processo constituiu-se de entrevis-ta com a direção da escola e com membros da secretaria de educa-ção que apresentaram o projeto aos candidatos. Todos os candida-tos eram professores de carreira da rede municipalvoluntários, a maioria com experiência superior a dez anos.Entre estes voluntários foi selecionado o corpo docente da escola que se reuniu e se conheceu apenas um mês antes do início do projeto. Durante sete dias antes do início das aulas, este grupo se reu-niu diariamente e elaborou o pro-jeto pedagógico. O grupo bastante motivado assumiu o compromisso de realizar um trabalho diferencia-do com esses alunos.”

Pesquisa

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Âncora

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Âncora

Sérgio Cândido de OscarDoutor em Ciências Humanas - PUC-RIO, Mes-tre em Educação - UCP, Especialista em Infor-mática Aplicada a Educação – UFLA, Graduado em Geografia – UFJF e Graduando em Música – UNIS-MG. Professor da Educação Básica no Mu-nicípio de Juiz de Fora e Pesquisador da Rede

de Pesquisa e Formação em Educação - REPEd (www.reped.org).

A MÚSICA PARA OS ALUNOSDos 350 alunos da escola, 257 acei-taram participar da pesquisa e pre-encher as fichas que não eram obri-gatórias. Durante o preenchimento das fichas os alunos puderam conversar entre si, consultar aparelhos de mp3, mp4 e celu-lares. A tabela abaixo resume o levantamento realizado:

Verificamos que na escola pesquisada a existência de “dois mundos” ocupando o mesmo espaço. Numa simples análise das tabelas, podemos verificar que o gênero mais ouvido no mundo musical dos alunos, ou seja, o Funk não aparece na escolha dosprofessores e da mesma forma o gênero que ocupa o primeiro lugar na preferência dos professores não é apreciado pelos alunos. A música na escola acaba assumindo a confi-guração de um “pano de fundo”, isto é, está presen-te na escola, mas de forma separada, em diferentes dimensões que não se comunicam.

GêNERO

Total

Funk

Pagode

Rap

Pop

Sertanejo

Axé

Rock

Reggae

Gospel

ALUNOS

257

194

175

96

44

31

21

10

10

10

%

100

75,49

68,09

37,35

17,12

12,06

8,17

3,89

3,89

3,89

A MÚSICA PARA OS PROFESSORES

Um dado interessante é o fato de 100% dos professores marcarem en-

tre suas preferências a MPB. O segun-do gênero musical mais ouvido entre

os professores da escola é o pop rock, seguido do pop nacional e internacional,

samba e sertanejo.

Não se pode deixar de relatar que a música brasileira é riquíssima e que não apenas o Funk, mais uma série de outros ritmos musicais são ouvidos por alunos e professores dentro e fora da escola. Constatamos no decorrer da pesquisa que alunos e professores gostam de gêneros bastante diferenciados.

GêNERO

Total

MPB

Pop Rock

Pop Internacional

Pop Nacional

Sertanejo

ALUNOS

17

17

14

10

8

3

%

100

100

82,35

58,52

29,41

17,65

A pesquisa “A infância no campo: as ações de crianças e suas práticas lúdicas” foi realizada ao longo

do ano de 2013, com crianças da Escola Municipal Dom Justino José de Sant’An-na, localizada na zona rural de Juiz de Fora - MG. Além desse fato, apresenta a peculiaridade de ser de tempo integral.

O estudo amparou-se na vertente teórica da Sociologia da Infância, que entende a infância como uma categoria estrutural da sociedade e as crianças como sujei-tos, atores sociais que integram-na. Teve como objetivos pesquisar as práticas lúdi-cas de crianças que vivem no meio rural, desenvolvidas especialmente, no tempo não escolar, a partir de experiências coti-dianas; interpretar as representações das crianças sobre o espaço vivido, bem como sobre sua autonomia e mobilidade; e pesquisar a existência ou não de crianças trabalhadoras e o ser criança nesse con-texto. Considerando minha experiência como pesquisadora com as crianças que vivem no meio rural, esse relato dará des-taque aos modos de se viver a infância no campo, em que grande parte do tempo das crianças é compartilhado com colegas no espaço escolar.

Durante um período de cinco meses (de abril a setembro de 2013), vários encon-tros foram realizados com as crianças a partir do espaço escolar, no sentido de participar das suas experiências cotidia-nas. Seguindo os princípios da pesquisa etnográfica e da pesquisa com crianças,

passei a frequentar a escola para que fizesse parte da vida das crianças e que as mesmas tomassem conhecimento dos objetivos do estudo a fim de decidirem sobre sua participação na pesquisa. A partir da confiança estabelecida entre pesquisador e sujeitos da pesquisa, en-treguei às crianças o Termo de Consen-timento Livre e Esclarecido (TCLE), para manifestarem seu desejo de participarem ou não da pesquisa. Foram enviados os TCLE’s aos pais/responsáveis dos interes-sados, para que também ficassem cientes da pesquisa e autorizassem a participação das crianças.

Após a formação do grupo das crianças, sujeitos da pesquisa5 , passei a frequentar a escola ainda mais para poder acom-panhar o cotidianos delas. Pude, ainda, acompanhá-las em festas locais e finais de semana. A cada encontro, registra-va-os com detalhes no meu diário de campo. Além deste instrumento para registro dos dados, foram criados os diá-rios de bordo para as crianças, para que elas pudessem anotar os acontecimentos do seu dia- a -dia, segundo seu interesse. Esta prática foi interessante, pois pude-mos analisar os acontecimentos a partir das perspectivas das crianças. Foram adotados, além deste diário, a produção de desenhos e textos pelas crianças, bem como a aplicação de questionários que nos possibilitassem conhecer um pouco mais do cotidiano de cada uma delas.

Uma experiência deformação no Ensino Médio

Discente

22

ÂncoraPesquisa

Pesquisa com criança:

por Clarice Alves do Nascimento

O projeto de pesquisa “A infância no campo e na cidade: as ações de crianças e suas práticas lúdi-cas1” foi desenvolvido no ano de 2013, vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Inicia-ção Científica Júnior (PROBIC-JR/UFJF), cujo objetivo é “despertar o interesse pela pesquisa cien-tífica em estudantes do Ensino Médio, inserindo-os precocemen-te no ambiente de investigação e formulação do conhecimento” (UFJF, 2014). Envolveu crianças de três escolas da cidade de Juiz de Fora - MG, sendo duas urba-nas e uma rural, respectivamente: Colégio de Aplicação João XXIII2, Escola Municipal Cecília Meireles3 e Escola Municipal Dom Justino José de Sant’Anna4. Como parte desse projeto, o relato que segue refere-se à pesquisa realiza-da com crianças que vivem no campo e apresentam uma forma singular de ser criança, de viver a infância.

Eliete do Carmo Garcia Verbena e Faria

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Âncora

As minhas experiências - Diário de bordo PVMM

Discente Discente

EXPERIêNCIAS COTIDIANASO estudo mostrou que as práticas lúdicas no tempo não escolar são materializadas na rua, onde as crianças encontram-se para realizar brincadeiras, o que também acon-tece em suas casas. Considerando a escola de zona rural, o espaço da rua e o contato com a natureza aparece com grande evi-dência em suas experiências cotidianas.

O ir e vir das crianças acontece, em sua maioria, na companhia de pares e, algumas vezes, na de adultos, mostrando as formas de interações horizontais e verticais.

As recomendações dos pais/responsáveis são centradas nos riscos do trânsito6 e no contato com pessoas estranhas. É percep-

Âncora

TEXTO E IMAGEM DAS CRIANçAS O lugar que eu moro é muito lindo, porque lá tem natu-reza, cachorro, galinha, vaca, cavalo, cachoeira, lá é lindo, eu brinco de subir na árvore, pique - esconde, pula-corda, de andar de bicicleta, lá tem pessoas legais, divertidas e bem animadas, duvido se ninguém ia querer morar lá, principalmente um peixe, né? Porque ele só vive na água, mas se tivesse uma terra lá duvido. FIM! (Texto CAN).

O lugar onde eu moro é muito bonito, tem várias plantas, pássaros, flores, bichos etc. Eu e meu irmão brincamos muito e ajudamos nossos pais nas tarefas da casa. A minha irmã leva eu e o meu irmão na cachoeira e a gente nada muito e brinca. Quando eu chego da escola eu vou descansar e depois vou dormir. Enfim eu gosto muito do lugar onde eu moro e nunca vou me esquecer dele. FIM! (Texto GMSG).

tível que as crianças têm adquirido maior autonomia e suas opiniões têm sido consi-deradas nas relações intergeracionais.

Entre a obrigação e prazer, foram identi-ficadas situações de obrigatoriedade que compõem a rotina das crianças, exemplifi-cadas nas atividades escolares e de orga-nização da casa. Considerando o contexto da escola em tempo integral, destacou-se a rotina de obrigações escolares decorrentes da ampliação do tempo escolar, tais como laboratórios de aprendizagem e atividades culturais e esportivas.

Sobre os espaços vividos, as representações sinalizam para o exercício de ser criança, que transita entre obrigação e ludicidade, que evidenciam a relação do espaço como lugar e de se viver a infância, dado o con-texto em que a mesma a constitui.

A minha casa - Desenho JPAC

1 - A orientação da pesquisa esteve sob a responsabilidade das professoras Eliete do Carmo Garcia Verbena e Faria, do CAp. João XXIII (UFJF) e Adriana de Castro Fonseca, da Faculdade Metodista Granbery (FMG).2 - O bolsista foi Paulo André Garcez Oliveira, aluno do 2º ano do Ensino Médio do CAp. Aplicação João XXIII.3 - Com as crianças dessa escola, a pesquisa foi desenvolvida por Camila Teles Schmidt, aluna do curso de Licenciatura em Educação Física da Faculdade Metodista Granbery, que atuou com voluntária no projeto.4 - A bolsista foi Clarice Alves do Nascimento, aluna do 3º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Nyrce Villa Verde Coelho de Magalhães.5 - Participaram da pesquisa vinte e oito crianças, sendo dez da E. M. Dom Justino, quinze da E. M. Cecília Meireles e três do CAp. João XXIII. 6- Existe movimento de ônibus e de carros no acesso à escola para as crianças que moram distantes.

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A escola vai à comunidade

Conhecer as adversidades enfrenta-das cotidianamente pelas popula-ções de alguns bairros de Juiz de

Fora motivou a professora de Educação Física, Cátia Duarte, do Colégio de Aplica-ção João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a propor uma parceria de atuação entre a Universidade e líderes comunitários. A princípio, apostou-se na proposição de atividades de lazer, por meio de projetos de extensão, acreditan-do-se na potencialidade de que poderiam levar a descobrir patrimônios culturais riquíssimos em termos de pesquisa e ensino por uma sociedade mais justa e igualitária. Naquele momento histórico, o projeto permitiu uma aproximação da instituição com comunidades carentes; permitiu que graduados e graduandos vivenciassem práticas que corroboravam com a formação inicial; permitiu que a comunidade ampliasse as percepções sobre alternativas de superação de sua vulnerabilidade.

por Cátia Pereira Duarte1 e Margareth Conceição Pereira2

ÂncoraExtensão

O Colégio de Aplicação João XXIII atua no Bairro Bela Aurora.

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ÂncoraExtensão

Alguns fatores vêm contribuindo para a exclusão dos jovens e dos idosos do mer-cado de trabalho e, em contrapartida, a precoce e criminosa inserção de crianças nesse mercado. De acordo com Antunes (2001, p. 42), essas são algumas con-sequências das mudanças na sociedade capitalista no final do século XIX. Fatores como esses corroboram para um crescen-te aumento da criminalidade.

Ressalta-se, ainda, que todas essas mudanças ocorrem num mundo altamen-te interconectado, tanto na dimensão econômica quanto na dimensão social, política e cultural. Como enfatiza Santos (2000), a globalização aparece como ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista, e como expansão acelerada do reino da escassez há a intro-dução da questão do pobre nesse mundo globalizado.

1Doutora em Educação Física/Universidade Gama Filho. Pós-doutoranda na Universidade Federal Fluminense. Professora do Ensino Fundamental e Médio do Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF.

2Doutora em Educação/UFJF. Líder do grupo de pesquisa EduCAP – Educação, Currículo, Avaliação e Políticas Educacionais. Professora de Matemática nos Ensinos Fundamental e Médio do Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF.

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ÂncoraExtensão

CONTRASTES SOCIAIS Neste contexto, os valores se uniformi-zam ao mesmo tempo em que buscas fundamentalistas e racistas procuram resguardar, de forma autoritária e violen-ta, as identidades de grupos sociais. É im-portante notar que todos esses processos perpassam o município de Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira. Apesar de a cidade possuir uma rede de proteção social acima da média nacional, verifi-cam-se indicadores sociais contrastantes. É possível observar a existência de graves problemas associados à alta concentração de renda e à pobreza absoluta.

Este contraste fica nítido mesmo no site da prefeitura do município, no qual po-demos visualizar que, apesar de em 2010 a renda per capita ter sido de aproxima-damente R$ 6,2 mil por ano, 15,32% (que corresponde a 70 mil habitantes) vive com menos de R$ 100,00 por mês. Nesse contexto, verificam-se várias co-munidades em Juiz de Fora vivenciando graves problemas sociais, excluídas social-mente, situadas à margem do mercado formal de trabalho e submetidas a con-dições precárias de sobrevivência (saúde, educação, moradia, saneamento etc.), bem como excluídas do acesso aos canais de participação política, impossibilitando a construção de alternativas concretas da população para alterar sua situação de vulnerabilidade.

Verificam-se, como populações vulnerá-veis, a comunidade do campinho no bair-ro Vila Ideal, a comunidade do córrego no Ipiranga, a comunidade do morro do Dom Bosco e a comunidade da antena em Bela Aurora. O processo de formação destas comunidades se configurou por ocupações espontâneas e irregulares de terrenos públicos onde antes funciona-vam campos de futebol, áreas de pas-seios, terrenos privados abandonados por famílias ricas. Os habitantes vivem em loteamentos irregulares e de invasões, tendo um histórico de rejeição pelos demais moradores dos bairros devido à

sua condição de habitação, permeada ainda pelos mais variados traços de exclusão e situações de risco social.

Os contrastes, sobretudo aqueles de cunho social, fazem dos moradores deste espaço, para além de uma população pertencente aos bairros, uma subclasse, con-siderada por órgãos públicos locais de assentamentos desprovidos dos padrões mínimos de infraestrutura (água, luz e esgoto), acessi-bilidade e habitabilidade, o que as coloca numa situação de segregação social, ou seja, Área de Especial Inte-resse Social (AEIS) da cidade (PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA, 2004).

Depois de diagnosticar a realidade social da comuni-dade; elencar atividades de interesse da comunidade a serem trabalhadas (oficinas, cursos, palestras, vivências corporais); organizar tais atividades a partir dos perfis dos voluntários e bolsistas inscritos no projeto de extensão e in-clusão social das periferias juiz-foranas, sinalizou-se a necessidade de efetivar um projeto de reforço escolar não somente da Educação Física (contato inicial), mas de matérias/disciplinas que permitissem avanços nas discussões dos problemas locais, bem como sanassem dúvidas essenciais para se obter aprovação no ENEM, em vestibulares e concursos, caso os jovens assim desejassem.

No caso da Educação Física, os objetivos sofreram modificações. Por meio de aulas teórico-práticas, buscou-se difundir as-pectos da cultura do movimento humano, articulando-os com temas como saúde, qualidade de vida, pluralidade cultural, ética no esporte, questões de gênero e sexualidade entre outros.

AMPLIANDO HORIZONTESA partir de 2011, a proposta ampliou-se para além da Educação Física, no que foram integrados trabalhos relativos à Matemática e Física e, em anos subse-quentes, Química, Língua Portuguesa, Espanhol e Informática. Essas ações foram resultado dos esforços da professora Cátia, sempre à frente, com o fim de con-tribuir com a melhoria nas oportunidades dos envolvidos e favorecer o estreitamen-to de atuação do Colégio de Aplicação/UFJF junto à comunidade.

As atividades de Matemática e Física con-sistiram no atendimento aos alunos da

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O ENSINO NA PRÁTICAOs depoimentos dos graduandos revelam, em certa medida, no que a preparação para inserção no trabalho na comunidade, bem como a vivência no processo, contribuem para reflexões na postura como docente:

“Visando um maior aproveitamento pelas alunas, tenho procurado não correr com o conteúdo lecionado, tentando focar mais na qualidade de informação do que na quantidade da mesma. As alunas têm se mostrado esforçadas e interessadas no projeto, demonstrando um bom retorno, tanto na frequência como na aplicação do conteúdo.”

Vinícius - bolsista de Matemática

“O projeto é muito importante pra mim. Sobre a prática docente, o projeto ajuda sim a compreendê-la, mostrando, às vezes, a melhor maneira de se explicar um conteúdo diante de uma dúvida”

Max - bolsista de Matemática

Eu fiquei feliz por um fato que ocorreu essa semana (em novembro de 2013). Uma aluna levou o xerox do boletim dela, mostrando a evolu-ção que ela teve em física após começar a frequentar o projeto. Agora, no último bimestre, ela está precisando somente de 8 pontos em 30 para conseguir a aprovação. E isto fez com que ela ficasse muito mais motivada para fazer o PISM em dezembro”

Paulo Vítor – bolsista de Física

Uma consequência positiva da atuação no projeto envolve dois bolsistas que atuaram com Matemática e Física – O Vinícius e o Alexandre. A vivência docente fez com que optassem por continuar os estudos e cursar também a Licenciatura em Matemática. A desvalorização docente em múltiplos aspec-tos tem promovido o desinteresse dos jovens, de modo geral, em almejarem cursos superiores em licenciaturas. Desse modo, destacamos a relevância do projeto para a comunidade, mas ressaltamos as grandes contribuições na formação dos graduandos, que tem trazido para eles reflexões significativas no exercício da docência.

Abordamos neste texto algumas vivências da Educação Física, da Matemáti-ca e da Física – projetos sob orientação das professoras Cátia e Margareth. No entanto, há outras disciplinas sendo desenvolvidas na comunidade do bairro Bela Aurora e que têm, de igual modo, dado sua contribuição e pro-movido aprendizagem em ambos os universos. Nosso objetivo com este tra-balho é compartilhar algumas vivências no projeto e, desse modo, destacar as potencialidades e benefícios de ações desenvolvidas por meio de parcerias entre UFJF e comunidade. Ainda, reforçar a responsabilidade que compete à Universidade nesse processo e servir como motivador para que novos proje-tos surjam, confluindo com os interesses das comunidades envolvidas.

ÂncoraExtensão

comunidade do bairro Bela Aurora, com aulas teóricas, acompanhamento escolar, apoio no desenvolvimento de pesquisas escolares e preparação de materiais para feiras de ciências. As demandas sempre partiram dos alunos que, a cada ano, apresentam perfis diferentes. Nesse con-texto de diversidade, pelo próprio perfil da comunidade e pelas diferentes deman-das que surgiram no decorrer dos quatro anos em que o projeto de Matemática e Física têm sido desenvolvidos, foram vivenciadas experiências importantes no processo de ensino-aprendizagem de todos os envolvidos, tanto para a comuni-dade como para os alunos da graduação da UFJF.

Centro Comunitário Abolição, no Bela Aurora, em uma de suas múltiplas

atividades educativas.

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Educação em Tempo Integral

ÂncoraDiscente

Contra ou a favor? Alunos do João XXIII tomam partido

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“Por um lado vai ser legal o tempo inte-gral, pois nós teremos mais atividades, como aulas de teatro. Teremos também mais educação e mais disciplinas. Mas por outro lado, ficaremos cansados, porque teremos muitas aulas e não teremos tempo para nos divertir. Nossa opinião é que as aulas deveriam começar às 8 horas e termi-nar às 15 horas. Mas é claro que devería-mos ter três coisas muito importantes no nosso dia a dia: o café da manhã (biscoitos com suco), almoço (arroz, feijão, frango) e o lanchinho da tarde (um biscoito e um re-fresco), porque assim teríamos as refeições completas.”

Laís de Oliveira e Letícia Matos, 6º C.

“Na minha opinião, esse tempo integral vai ser um pouco ruim, pois, como os alunos acordam entre 5h e 6h30, iríamos ficar bastante cansados, a não ser que se pro-longasse o tempo da entrada. Mas mesmo assim iríamos ficar cansados, pois passarí-amos a manhã e a tarde inteira na escola, e quando chegássemos em casa ainda te-ríamos tarefas da escola e tarefas de casa, como por exemplo: lavar louça, varrer casa etc. Mas, por outro lado, iríamos ficar interagindo com outras pessoas. Para me-lhorar, poderia ter, por exemplo, uma sala de descanso, refeitório, atividades esporti-vas, aulas de teatro, canto e também uma piscina. Poderia ter um ônibus por série, para chegarmos mais rápido e com mais segurança em casa.

Kayoan Luiz, 6º C.

ÂncoraDiscente

“A escola de tempo integral é uma ótima ideia para nós, seria muito legal, pois seria bom estudar mais e ficarmos perto dos colegas. Saberíamos mais e também teríamos projetos educativos, como: natação, caratê, música, dança, entre outros.

Também poderia haver passeios para outras cidades, para estudarmos as culturas de cada lugar, como: Tiradentes, Rio de Janeiro, Ouro Preto e São Paulo, por exemplo. O horário de escola poderia ser de 8:00h às 19:00h, com intervalo de uma hora, assim teríamos matérias que gostamos, além das tradicio-nais, e mais projetos também. A cantina e o restaurante poderiam vender guloseimas, Coca-cola, fritura e outras coisas que ado-ramos. Nós aprovamos a mudança, ficamos até felizes quando soubemos sobre o horário integral.”

Laura Campos e Lara Vetere, 6º C.

“A nossa opinião é que o tempo integral será bom, pois teremos mais recreios e mais aulas, principalmente aquelas de que gostamos, como história. Também queremos aulas extras diferentes, como Mitologia Grega.

Um aspecto negativo é que ficaremos mais horas no colégio e teremos que mudar os horários etc.

Nossa conclusão é que queremos mais aulas, além das que já temos, para aprender coisas que não aprendemos nesses anos.”

Alexandre Lima e Gabriel Lopes, 6º C.

“Achamos que um aspecto positivo que teremos é tempo à tarde para fazer projetos legais como teatro, ginástica rítmica, fotogra-fia, pintura etc. E um aspecto problemático é que algumas pessoas não vão ter ônibus ou vans para buscá-los.

Nossas sugestões para a ‘escola de tempo in-tegral’ são: ter quartos para descansar depois do almoço, o almoço ser separado do recreio e as aulas começarem às 8 horas e termina-rem às 16 horas.”

Isabela Tolentino e Leticia Henrique, 6º C.

CONTRA

A FAVOR

Uma exigência definida por lei federal: as escolas públicas vão oferecer ensi-no em tempo integral em um futuro

próximo. Por esse motivo, professores e a direção do Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF têm procurado aprofundar a discussão sobre o tema.

Em uma dessas reuniões do grupo de professores do Ensino Fundamental II surgiu a ideia de se estender o debate aos alunos.

O objetivo da proposta era democratizar o processo no colégio. Assim, a proposta

acabou se transformando no Projeto Coletivo de Trabalho 2013. O ponto de partida para a

execução das atividades previa uma visita a uma escola que funcionasse nesse sistema, para que

os alunos pudessem entrar em contato com aquela realidade.

Assim, foi feita uma visita à Escola Municipal José Calil Ahouagi,

no dia 1 de novembro de 2013, com participação

das professoras Eliete Faria e Cláudia Ta-

vares, além de sete alunos de cada turma. Ao retor-narem, os alunos expressaram suas impressões. A Re-

vista Argo compar-tilha com os leitores

alguns depoimentos.

Em roda de conversa, alunos do C. A. João XXIII e da E. M. José Calil Ahouagi trocam ideias sobre escola em tempo integral.

Estudantes do João XXIII percorrem as dependências da Escola José Calil Ahouagi no Bairro Marilândia

Encontro entre escolas promove empatia e troca de experiências.

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LemeLeme

Por um ensinoamplo para todos

por Márcia Carneiro

Educação em Tempo Integral

Enquanto o Programa Mais Educação avança, educadores reivindicam a extensão da proposta, independentemente da vulnerabilidade social do aluno e do baixo Ideb

“A escola em tempo integral evidencia uma concepção de educação fundamentada na perspectiva da forma-ção humana.” O conceito apresentado pela pesqui-

sadora Ligia Martha C. da Costa Coelho, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sugere uma educação que vai além dos aspectos da racionalidade ou cognição. Ela prevê a formação do aluno em sua integra-lidade, valorizando também outras dimensões como afeti-vas, psicológicas, éticas e corporais.Tal iniciativa, embora seja uma meta nacional,não é uma regra para todos os alunos entre as escolas que desenvolvem o projeto.

Por meio do Programa Mais Educação, o Governo Federal tem investido no tempo integral nas escolas. Estabelece, porém, como prioridade na destinação de recursos as escolas que apresentam baixo desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e alunos com vulnerabilidade social. De acordo com a pesquisadora Lígia Martha, embora haja a concepção ampla da educação integral, o Governo Federal optou por um segundo en-tendimento da proposta denominado “contemporâneo”.Ela explica que, nesse caso, o que se torna mais evidente é o caráter de proteção social à criança e ao adolescente, e não obrigatoriamente o seu viés de formação.

Ensino

TEMPO QUANTITATIVO

Lígia Martha esclarece que alguns indícios verificados na prática do governo de-monstram o favorecimento ao segundo

modelo de educação integral. “Quando o programa apresenta critérios para que os alunos das escolas contempladas sejam inseridos em suas atividades, ele prioriza a proteção social a um grupo, e não está pensando na formação mais completa de todos aqueles que estão no mesmo espaço educativo”, pontua.

A analista tecnológica de políticas sociais do Ministério da Educação (MEC), Gesuína Leclerc, confirma a opção pelo social. Ela explica que a conjuntura política, desde o governo Lula, prioriza o enfrentamento à pobreza é à desigualdade. “A proposta do tempo integral do Governo Federal é amparada pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educa-ção (Fundeb), que prevê percentual diferenciado para as escolas que desen-volvem turnos de sete horas.”

Gesuína esclarece que o Programa

Ensino

Mais Educação foi concebido com foco na vulnerabilidade social. “Levou-se em conta estudos relevantes que colocam a pobreza como uma barreira à apren-dizagem.” O Governo, então, planejou ações intersetoriais, convergindo políticas das áreas de desenvolvimento social, assistência social,educação,cultura, saúde e esporte para elaborar o programa.A representante do MEC diz que o governo tem consciência de que o Plano Nacional de Educação (PNE) estabelece a educação integral para todos.Observa, porém, que a prática, de imediato, não é possível por ques-tões estruturais, como a ausência de instalações ade-quadas nas unidades de ensino para o desenvolvimento das

atividades. “No programa,

a es-co-

la faz plano de atendimento com finan-ciamento público não só para o que ela quer, mas o que consegue dentro de seus limites logísticos”, observa Gesuína.

Sendo assim, o Programa Mais Educação busca a superação das desigualdades so-ciais nas escolas. Para a representante do MEC, não se trata de reduzir o debate ao campo da assistência social, mas facilitar o acesso dos alunos de baixa renda a um capital cultu-ral que faça diferença nos proces-

sos de inserção social, com o objetivo de diminuir as disparidades entre classes. A técnica do MEC explica que as experiên-cias têm sido monitoradas pelo Governo Federal cujas pesquisas apontam para um trabalho qualitativo, não restrito a alguns ou para poucos.

Alunos em horário de almoço na Escola Municipal Dom Justino.

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LemeLeme

FORMAçãO MULTIDIMENSIONALA pesquisadora Lígia Martha ressalta que a falta de espaço físico adequado nas escolas de tempo integral não é uma prerrogativa da experiência em Juiz de Fora. “Outros municípios passam pela mesma situação.” Em sua avaliação, a infraestrutura escolar ofertada está vinculada à visão dos gestores municipais sobre educação em tempo integral. “Se eles a entendem como formação multi-dimensional, obviamente pensarão em espaços escolares capazes de comportar essa possibilidade.” Por outro lado, ela observa que,se esse tempo é entendido

e do Ensino Fundamental do município, educando-os para o pleno exercício de cidadania, orientando-os para a vida.”

Como informou a Secretaria de Educação do município (vide depoimento oficial do secretário Weverton Vilas Boas em ane-xo), a intenção da prefeitura hoje é de-senvolver a educação em tempo integral nos moldes do programa Mais Educação. Enquanto isso, a lei municipal que prevê uma modalidade mais ampla de educação integral mantém-se engavetada.

PRÉDIOS DESCONECTADOSApesar da determinação de diretores e professores, as cinco escolas contempla-das com a educação em tempo integral para todos na cidade enfrentam empeci-lhos ao desenvolvimento da proposta em sua plenitude. Uma das principais difi-culdades é a falta de estrutura física dos prédios para o acolhimento das diversas atividades diferenciadas exigidas.

Mesmo as unidades mais recentes,como a Escola Municipal José Calil Ahouagi, no bairro Marilândia, e a Escola Dom Justino José de Sant’Anna, no distrito de Torreões, carecem de adaptações. Essas construções foram pensadas para abrigar a proposta de tempo integral, porém, nos moldes das escolas convencionais. Nas unidades falta o mínimo, como sala de música, teatro, dança, TV e laboratório de ciência. E, se as escolas com prédios mais novos estão fora dos padrões exigidos, as demais estão muito aquém das necessida-des básicas para o desenvolvimento pleno do projeto.

A Escola Municipal Bom Pastor, por exemplo, acolhe 170 crianças entre quatro e 10 anos de idade. Seu espaço físico é reduzido e verticalizado, o que não favorece a locomoção dos alunos ou a prática da educação inclusiva, devido à escadaria. Além disso, biombos são usados para dividir salas de aula, a biblio-teca foi improvisada e não há área para atividades artísticas.

ESCOLAS DE JF EXPERIMENTAM EDUCAçãO INTEGRAL PARA TODOSEm Juiz de Fora, das 101 unidades muni-cipais, segundo a Secretaria de Educação, 79 aderiram ao Programa Mais Educação do Governo Federal. Em Minas, de acordo com a assessoria de imprensa da Secre-taria de Estado da Educação, das 3.670 escolas da rede estadual, o programa fun-ciona em 1.771 escolas, onde são criadas turmas de alunos em tempo integral. “Em 2014, 110 mil alunos são atendidos em 586 municípios de todo o Estado, com previsão de investimentos em torno de R$ 22 milhões.” A informação da assessoria de imprensa da Secretaria de Educação de Minas, entretanto, é de que a iniciativa no estado é do Governo Estadual, e não da esfera federal.

Entre as escolas públicas da cidade, cinco delas desenvolvem o projeto de educação em tempo integral dentro da concep-ção mais ampla da proposta. Ou seja, englobam todos os alunos no projeto, independentemente de suas condições sociais. São elas: Dom Justino José de Sant’Anna (Torreões), José Calil Ahouagi (Marilândia), Bom Pastor (Cidade Jardim), Maria José Vilella (Centro) e Professor Nilo Ayupe (Centro).Uma delas, a Escola Bom Pastor, por apresentar baixo Ideb, conta também com recursos do Programa Mais Educação.

LEI MUNICIPAL, GRANDE CONQUISTAA implantação do projeto nessas escolas surgiu em meados dos anos 2000, a partir do empenho de educadores locais para a criação de uma lei municipal específica que se tornou realidade em 2008. A nor-ma 11.669/2008, então, institui o Pro-grama de Escola de Educação em Tempo Integral, cujo objetivo é “prolongar a per-manência dos alunos de Educação Infantil

Ensino

por uma perspectiva mais assistencia-lista, os gestores não se preocuparão com áreas compatíveis com a prática de educação integral.“Nesse caso, o tempo é que precisa ser ‘preenchido’ e não obriga-toriamente a educação que necessita ser de melhor qualidade.”

Doutora em Educação pela UFJF, com projetos e pesquisas sobre o tema, a coordenadora pedagógica da Escola Bom Pastor, Graciele Fernandes Ferreira Mattos, confirma que a ideia do projeto escola de educação em tempo integral é focada no sujeito em toda a sua com-plexidade. “É essa a perspectiva que tentamos desenvolver nas escolas muni-cipais”, assegura. O que atrapalha? Além

das limitações do espaço físico, a baixa remuneração dos professores e sua rota-tividade. “As escolas recebem excelentes profissionais que são trocados periodica-mente quando termina o contrato”, expli-ca Graciele. Mas, segundo ela, a falta de estrutura física adequada das instituições ainda é a questão mais grave.

NOVA LóGICAA professora Luciana Pacheco participou do processo de implantação das cinco escolas que oferecem educação em tempo integral em Juiz de Fora, até a constituição da lei que regula a educação integral no município. Ela reconhece

hoje que a expansão do projeto ainda é tímida na cidade, mas lembra que a filosofia da escola de educação em tempo integral é nova para professores e alunos acostumados aos padrões de ensino da escola tradicional. “Estamos em fase de construção, adaptação da realidade à nova lógica. Nos outros países isso já faz parte de um processo cultural. Aqui não temos essa cultura instituída. É uma questão cultural.”

A mudança do conceito educacional, porém, é uma tendência da sociedade contemporânea. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Plano Nacional de Educa-ção (PNE) propõem a ampliação da escola integral. O objetivo é melhorar a qualida-de da formação dos alunos e diminuir o fracasso e a evasão escolar.

CONSTRUINDO CIDADãOS A professora Luciana ressalta que o foco atual da educação em geral é o de aprimorar o processo de construção da cidadania, retomando a relação do sis-tema cognitivo com as questões éticas e sociais. “Essas duas vertentes da educa-ção ficaram separadas e geraram a forma conteudista escolar, que não responde aos anseios da sociedade. O crescimento da violência é um exemplo dos reflexos sociais dessa separação.”

As especialistas apostam na necessidade de renovação dos processos, buscando a formação de sujeitos que irão, no futuro, construir famílias de forma diferenciada. “Isso não é responsabilidade de um setor ou de outro, é uma responsabilidade de todos”, defende Luciana.

No entanto, mesmo enfrentando difi-culdades, em sua maioria causadas pela precariedade das estruturas físicas, as escolas municipais de tempo integral em Juiz de Fora têm se empenhado para sin-tonizar teoria e prática. A dedicação pode ser observada cotidianamente em cada unidade escolar.

Ensino

Crianças compartilham atividades na Escola

Bom Pastor.

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Leme

Há cinco anos em um novo espaço, a Escola Municipal José Calil Ahou-agi conta com aproximadamente

280 alunos, que passam oito horas de seus dias em um espaço construído nos moldes convencionais. As salas, ali, não se diferem em nada das demais escolas. A diretora Virgínia Cláudia Moreira Braga comenta que a administração municipal à época pensou em tempo integral, mas a obra foi feita apressadamente, sem plane-jamento adequado. “Assim, a escola vive de improviso”, queixa-se Virgínia.

Naquela escola, os alunos entram às 7h30 e saem às 15h30, fazendo ali suas refei-ções. Além das atividades curriculares, eles têm como opções aulas de dança, música, esportes, patrimônio cultural e meio ambiente. A José Calil Ahouagi ofe-rece, ainda, aos alunos a oportunidade de trabalharem a afetividade com o apoio de um professor de ciências. “Por meio dessa disciplina, podem ser averiguadas a relação com o outro, as questões corpo-rais e sexuais,” informa a diretora.

NãO LUGARA questão é que muitas dessas práticas diferenciadas, como a dança, são desen-volvidas no pátio. Devido ao barulho, as aulas de música foram transferidas para o segundo andar. Naquela escola, alunos do sexto ao nono ano, entre 12 e 15 anos, têm o direito de escolher quatro projetos, além da orientação de estudos. Crianças das séries iniciais e da educação infantil têm aulas de música, leitura e narração de histórias, além de atividades físicas. As orientações de estudos de português e matemática são obrigatórias. Servem como reforço escolar ou tira-dúvi-das. Entre o quarto e o quinto ano, além

Ensino

Sem recursos e com vontadede acertar

Escola José Calil Ahouagi

das disciplinas curriculares pela manhã, os alunos se envolvem com o teatro e a educação física à tarde.

De acordo com a diretora da unidade, apesar do esforço, ainda não deu para perceber a diferença entre esses alunos e os que estudam em horário convencio-nal “Acho que a questão social provoca entraves”, avalia. Já a aceitação de pais e alunos da proposta de tempo integral, segundo Virgínia, aumentou. “Os que resistiam pediram transferência”.

BARREIRAS ESTRUTURAISA vice-diretora Anna Cristina Perontoni queixa-se do processo de implantação da escola em tempo integral como uma imposição da administração municipal à

época. “Hoje há muito o que se repen-sar.A proposta não é só trabalhar conteú-do, mas a estrutura da escola nos limita.” Segundo ela, há um terreno anexo que a Secretaria de Educação deveria utilizar para ampliação do espaço físico, uma vez que há um aumento da demanda de alunos.

Ela posiciona-se a favor da escola em tempo integral, mas acha necessário ter condições para o aproveitamento do tempo qualitativo. Por outro lado, queixa-se da falta de professores efetivos. “A rotatividade provocada pelas contratações de professores não permite continuidade do trabalho, porque, vencido o contrato, na próxima contratação o mesmo profes-sor não consegue voltar para a mesma escola.”

“Hoje há muito o que se repensar. A propos-ta não é só trabalhar conteúdo, mas a estru-tura da escola nos limi-ta.”Diretora e vice: Virgínia Braga e

Anna Cristina Perontoni.

37

LemeEnsino

Quando foi construída, em 2007, a atual sede da Escola Dom Justino José de Sant’Anna, em Torreões,

também previa o funcionamento em tempo integral. Mas assim como na obra da José Calil Ahouagi, a gestão muni-cipal não considerou a possibilidade de uma consultoria pedagógica para ajustar o projeto às demandas específicas da escola.

Com 286 alunos e uma procura crescen-te, a escola tenta adaptar o espaço físico às necessidades. Sem lugar específico, as atividades artísticas dos alunos são desenvolvidas na quadra esportiva. Nor-malmente, o local é inadequado, mas em dias de chuva, os trabalhos precisam ser suspensos, devido ao barulho provocado pelas águas em contato com o telhado de amianto.

A coordenadora pedagógica Dulcinéia Bicalho Monteiro confirma as limitações provocadas pela deficiência de estrutu-ra física e entende que essas barreiras

dificultam o desenvolvimento da filosofia de educação integral. “Aqui o espaço é adaptado, mas se a comunidade for questionada, vai enaltecer a escola, por-que tira o menino das ruas. Nesse caso, o aspecto social é maior que o educativo”, observa Dulcinéia.

RANçO

ASSISTENCIALISTAA professora da UFJF Luciana Pacheco tem conhecimento de que a prática traz o ranço assistencialista de tirar o menino da rua. “No entanto, o projeto tem uma dimensão muito maior.Formar integral-mente um ser é mais que recolhê-lo em outro espaço.”

Como nas outras escolas de tempo inte-gral, a escola de Torreões desenvolve as atividades artísticas e esportivas, soman-do 15 oficinas, mas procura ir além dos muros da unidade. “Levamos em conta que, por ser uma escola da zona rural, os meninos que a frequentam estão acostumados à liberdade”, conta. Então, o professor de Ciências, Bruno Caldas Camerino, desenvolveu o Projeto Convi-vência, em que os alunos são estimulados a desenvolver pesquisas de campo. Eles percorrem a região para conhecerem o ecossistema, identificando vegetação e animais típicos.

A caminho dos bons resultados

Escola Dom Justino José de Sant’Anna

Como as demais escolas, a Dom Justino cresce, e tem recebido alunos que não são da localidade. “Isso tem provocado alteração no perfil da escola”, conta a diretora Roseli Mathozinhos de Carvalho. Ela explica que tem havido um fenômeno de imigração da cidade para o campo. “Muitos pais vêm com a família para trabalhar como caseiros. Outros alunos são transferidos da cidade ou de outros municípios para morarem com os avós na região. Geralmente,esses meninos têm histórico de conflito familiar,” observa Dulcinéia.

MUDANDO

MENTALIDADESCom a mudança de perfil do seu público, a direção introduziu um trabalho socioe-ducativo sobre temas como drogas, con-flito e negligência familiar com alunos e pais. “O problema é que os pais querem que a escola resolva todas as questões e vêm sempre com o mesmo discurso: ‘não sei o que fazer com o menino’,” diz a coordenadora pedagógica.

Mas com todas as dificuldades, segun-do as responsáveis pela escola, há uma mudança de mentalidade. Os alunos já pensam em continuar os estudos, muitos fazem provas para o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia (Ifet), o

Senai e o Jesuítas. Roseli e Dulcinéia comentam que, apesar das dificulda-des, acreditam na escola em tempo integral. “Ela ajuda a ampliar a visão de mundo dos alunos. As crianças passam a ter contato com a diversida-de cultural e artística, têm acesso a jogos, como xa-drez, prática com a qual nunca teriam contato fora da escola, desenvol-vem reflexões, trabalham com vídeos, entre outras atividades”, explica a co-ordenadora pedagógica.

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Leme

Voltada para crianças abaixo dos 10 anos, geograficamente mal locali-zada e com estrutura física vertical,

a Escola Bom Pastor enfrenta grandes obstáculos. Esta foi uma das primeiras escolas da cidade a funcionar em tempo integral, buscando a adesão à filosofia da formação do aluno em suas múltiplas dimensões.A estrutura física da unidade, entretanto, é uma das mais precárias, embora a diretora e a coordenadora pedagógica estejam dispostas a superar os desafios.

Ali, os alunos contam com uma estrutura quase nula para o atendimento em tem-po integral. Há laboratório de informáti-ca, mas os computadores são defasados, a biblioteca está localizada em um espaço apertado, com poucos livros, a cozinha fica em um espaço adaptado e a escola mais parece um labirinto. “As administra-ções anteriores não aderiram totalmen-te à filosofia de tempo integral. Agora parece que o interesse pela organização é crescente”, diz a diretora Inês Monteiro Ribeiro.

SEM APOIOProfessora e coordenadora pedagógica da Escola Bom Pastor, Graciele Mattos res-salta que ações básicas são negligencia-das pela administração municipal, como a criação de um “escovódromo”. “Uma alternativa simples: pias na altura das crianças, que facilitariam os cuidados com a higiene e que nos dariam condições de ampliar as funções da escola. Mesmo assim, não somos atendidos.”

A diretora explica que, devido ao baixo desempenho no Ideb, a escola tem acesso a recursos financeiros provenientes do

Ensino

Em busca da superação dos obstáculos

Escola Bom PastorPrograma Mais Educação, que prevê a educação em tempo integral. A verba que chega à escola é usada para a compra de equipamentos e adaptação do prédio. O programa do Governo Federal faz repasse financeiro às escolas com notas baixas em avaliações externas, com objetivo de garantir a possibilidade de reforço escolar em contraturno e melhorias nas estruturas físicas dos prédios.

Situada no Bairro Cidade Jardim, de classe média alta, a Escola Bom Pastor atende a crianças de periferia. A situação se traduz em um contrassenso, uma vez que a instituição não serve aos moradores das imediações e seu público tem que per-

correr grande distância para ter acesso às aulas. “Além disso, já nos deparamos com manifestações de não acolhimento da escola pela população do entorno,” comenta a diretora. Os alunos são de bairros como Olavo Costa, Vila Ideal e Solidariedade (Zona Leste), e Santa Luzia (Zona Sul) e até de regiões mais distantes, como Nova Era, na Zona Norte. A escola funciona em regime de comodato, em um prédio cedido à prefeitura por uma instituição filantrópica. No térreo há uma creche da organização não governamen-tal. A luta da diretoria da unidade é por um prédio próprio, bem projetado para o atendimento de seu público.

Direção e professores se empenham em proporcionar acesso à leitura e ao lazer às crianças.

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LemeEnsino

Depoimentos dos alunos das escolas de educação em tempo integral

Eu gosto!

“Eu moro no distrito de Torreões e gosto da escola, não tenho do que reclamar. Meus pais podem ficar despreocupados, porque sabem que os filhos, ali, estão protegidos. Estou na escola desde 2007, e quando ela mudou do tempo parcial para o integral, senti diferença, mas me adaptei.

Agora consigo aprender mais, na forma anterior não tanto. Tenho mais atividades. Antes ficava em casa, agora aproveito mais o dia. Das atividades que pratico, gosto mais de música, e não gosto muito de esportes. Aprendo violão e já aprendi a tocar muitos instrumentos.

Quando terminar o Ensino Fundamental, pretendo fazer provas no Senai, Ifet e Colégio Jesuítas. Se passar, pretendo me mudar para Juiz de Fora.”

Talita Corrêa do Carmo, 15 anos, 9º ano - Escola Dom Justino

“Estou na escola desde o primeiro perí-odo, gosto muito de estudar aqui e ficar na escola o dia todo, porque aprendo muitas coisas. Gosto dos colegas e de me esforçar nos estudos para aprender. Moro perto da escola e tenho cinco irmãos, de 5, 9, 13, 16 e 19 anos, que estudam ou já estudaram aqui.”

Fernanda de Paula Martins de Almeida , 9 anos, 4º ano - Escola Dom Justino

“Gosto de todos os projetos desenvolvi-dos aqui. Por isso, acho que a escola em tempo integral é a melhor proposta de ensino.”

Larissa Almeida, 11 anos, 6º ano José Calil Ahouagi

“Tenho orgulho de estudar aqui e poder aproveitar todos os projetos. O que mais gosto é das aulas de fotografia.”

Keylla Vitória de Paula, 11 anos, 6º ano José Calil Ahouagi

”Eu gosto da escola, porque ela me deu a oportunidade de fazer teatro. O que mais gosto é de maquiagem para teatro.”

Bruna Cruz Siqueira, 11 anos, 6º anoJosé Calil Ahouagi

“Meu ofício é desenvolver atividades lúdicas que ajudem meninos e meninas a respeitarem o tempo da infância, por meio do faz de conta.”

Professora Gisela Pelizoni – Professora de Artes Integradas trabalha a cultura popular com crianças entre 4 e 6 anos.

“Prefiro ficar na escola o tempo todo. Gosto porque tem mais coisas para fazer na escola. De todos os projetos, o que mais me atrai são as aulas de inglês.”

Eduardo Aparecido da Silva, 11 anos, 6º ano.José Calil Ahouagi

“Gosto da escola em tempo integral, porque nos permite o acesso a projetos que nas outras escolas não existem, como artes e de leituras em biblioteca.”

Samira Souza, 11 anos 6º anoJosé Calil Ahouagi

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Leme

Mais Educação: meta é garantir ao menos 25% das matriculas em educação integral

O Governo Federal desenvolve um projeto que visa garantir educação em tempo integral

nas escolas públicas municipais e estaduais do país desde 2008. A proposta está inserida no Progra-ma Mais Educação, que consiste na jornada ampliada de sete horas diárias, com atividades extracur-riculares como acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura e artes; cultu-ra digital, entre outras.

Atualmente, 49 mil escolas públicas de todo o país adotam a jornada ampliada. A proposta do Mais Edu-cação se distingue da prática am-pliada defendida por uma corrente de educadores devido à opção pela vulnerabilidade social dos alunos e pelo baixo desempenho no Ideb das escolas.

O Governo Federal quer ampliar o programa e atingir em dez anos a meta do Plano Nacional de Edu-cação(PNE), que é de garantir o mínimo de 25% das matrículas em educação integral. De acordo com a assessoria de imprensa do MEC, o Censo da Educação Básica de 2013 revelou um crescimento de 140% nas matrículas nessa modalidade, de 2010 a 2013. O crescimento, segundo o MEC, foi principalmente nas escolas públicas e, conside-rando somente o período de 2012 para 2013, houve um crescimento de 45%. Ainda conforme informa-ções da assessoria de comunicação, o MEC repassa em média R$ 2 bilhões ao ano para ampliação da jornada escolar.

Ensino

Eu não gosto!

“Eu não gosto de estudar em escola de tempo integral, porque acho que fico muito mais aqui com professores e ami-gos do que com a minha família. Me sinto como se estivesse em uma prisão. Aqui tem projetos que não gosto e sou obriga-da a fazer por falta de opção.”

Luana Carnicelli Guedes, 15 anos, 9º anoJosé Calil Ahouagi

“Eu acho a escola em tempo integral can-sativa. Não temos direito de escolher os projetos, mas acho que, se tivesse condi-ções de ir para outra escola, não iria.”

Clara Elis de Freitas, 14 anos, 9º anoJosé Calil Ahouagi

“Acho horrível isso aqui. Queria que tives-se mais oficinas, como de montagem de robô, casa etc.”

Jéfferson Martins, 11 anos, 6º anoJosé Calil Ahouagi

“Acho que poderia fazer outros cursos lá fora e trabalhar como menor aprendiz, que é o que quero, para poder ganhar um dinheiro.”

Juan Costa Campos, 14 anos, 8º anoJosé Calil Ahouagi

“Poderia fazer muita coisa se estudasse só meio período, como inglês, já que as aulas aqui são básicas.”

Vinícius Santos, 13 anos, 8º anoJosé Calil Ahouagi

“Não gosto, porque aqui as oficinas são escolhidas por sorteio, deveria ter mais quadras para práticas esportivas, e ainda não podemos andar de skate.”

Luiz Henrique Silva, 13 anos, 8º anoJosé Calil Ahouagi

Depoimentos dos alunos das escolas de educação em tempo integral

Luana Carnicelli, Jefferson Martins e Juan Costa Campos

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LemeEnsino

Argo: Por que apenas cinco escolas na cidade atuam em tempo integral, como prevê a lei municipal?

Weverton Vilas Boas: Nas adminis-trações municipais anteriores, o tema norteador das discussões de políticas públicas era a universalização do Ensino Fundamental, questão urgente a ser efeti-vada. O estado, por sua vez, não realizou investimentos na construção de novas escolas, ficando esta responsabilidade para o próprio município, que começa a investir nas ampliações dos prédios esco-lares, contando, hoje, com 101 unidades. Temos então, duas questões que nortea-ram o ensino em Juiz de Fora: a primeira é a universalização, que prevê todos na escola; a segunda questão é a busca pela qualidade e permanência dos alunos na escola.

Para a questão da universalização, pode-mos afirmar que Juiz de Fora cumpriu sua meta. Hoje, todos os pais e/ou responsá-veis pelas crianças e adolescentes na fase

escolar do Ensino Fundamental encon-tram vagas nas unidades escolares do município.

Por que as estruturas físicas das esco-las que funcionam em tempo integral não estão adaptadas à proposta?

A arquitetura das escolas municipais não beneficia a implementação do tempo integral no modelo tradicional e de forma imediata, pois estas unidades escolares foram construídas visando a absorver a grande demanda de alunos existentes no município, no qual a opção pelo tempo parcial resolveria de imediato essa situa-ção.

Das cinco escolas em tempo integral, apenas duas delas (Dom Justino José de Sant’Anna e José Calil Ahouagi) foram projetadas com salas para atenderem diferentes ambientes educativos (salas de oficinas, multimídias, biblioteca). As demais escolas (Bom Pastor, Maria José Villela e Nilo Camilo Ayupe) estão em

prédios alugados e, por isso, precisaram adaptar seus atendimentos de acordo com seus espaços disponíveis. Entretanto, tal fator não impediu as escolas de ofe-recerem tempo integral com qualidade e eficiência, como é o caso da escola Maria José Villela, que buscou outros espaços educativos na própria vizinhança: clubes e associações. Também são promovidos passeios para integrar as crianças no uni-verso social e em eventos de letramento.

O que a PJF tem feito na prática para ampliar ou melhorar a organização em tempo integral?

A busca pela qualidade e a permanência dos alunos na escola ganha novas possi-bilidades a partir da criação do Programa Federal Mais Educação, instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e pelo Decreto nº 7.083, de 27 de janeiro de 2010. Com isso, as escolas municipais co-meçam a implantar a extensão da jornada escolar dos alunos, fazendo a adesão ao Programa, iniciando-se uma nova con-cepção de educação, para além das salas de aulas. Os espaços internos das escolas ganham diferentes funções e ações para a realização das oficinas; os pátios e as quadras ganham a companhia da capo-eira, do futsal, do vôlei e da dança. Os refeitórios passam a ser compreendidos como um espaço não só para a merenda, mas também utilizados para oficinas e atividades do Programa. E nas bibliotecas ecoam novas histórias com os grupos de contadores, sendo todas essas atividades

Entrevista: Secretário de Educação Weverton Vilas Boas

“Buscamos a universalização do Programa Mais Educação”

Em entrevista à Revista Argo, o secretário de Educação Weverton Vilas Boas manifestou interesse em garantir o tempo integral aos alunos nos moldes do Programa Mais Educação. O projeto muni-cipal aprovado em lei que funciona em apenas cinco escolas da cidade, pelo que tudo indica, permanecerá sem alteração. Além de não haver perspectiva de ampliação para outras escolas da rede, as unidades que trabalham dentro dessa filosofia pedagógi-ca também, ao que parece, não terão melhorias em sua infraes-trutura.

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LemeEnsino

Sementes que deram frutos: as primeiras experiências no BrasilAs primeiras experiências com educação integral no Brasil foram registradas na década de 1940, em Salvador (BA), com o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, e na capital federal nos anos 1950, com a construção de cinco escolas-parque, idealizadas por Anísio Teixeira.

A segunda experiência aconteceu com os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), pensados por Darcy Ribeiro. Esse projeto foi colocado em prática no estado do Rio de Janeiro, nos anos 1980, ao longo das duas gestões do governador Leonel Brizola.

Além de embasar sua defesa em favor da educação em tempo integral, a coorde-nadora pedagógica Graciele Fernandes relata os primórdios do projeto no país, em sua tese de doutorado, “As artes de saber fazer na educação em tempo inte-gral.” Ali, ela informa que, já em meados do século XX, Anísio Teixeira possuía uma concepção educacional ampla, abrangen-

te, que compreendia o homem e a mulher enquanto seres históricos e culturais.

ESCOLA IDEALGraciele relata, ainda, que as experi-ências dos CIEPs foram inspiradas em Anísio Teixeira, e lembra que os prédios escolares implantados em todo o Estado foram construídos por Oscar Niemeyer. “Diferentemente da proposta de Anísio Teixeira, os CIEPs procuraram congregar em um mesmo espaço tanto as atividades do currículo comum quanto as atividades diversificadas. A situação promoveu uma maior integração entre as diversas práti-cas educativas desenvolvidas pela escola. Possibilitou ainda que todas estas práticas fossem compreendidas como componen-tes curriculares inerentes à formação dos alunos e alunas no tempo e no espaço escolar.”

De acordo com os estudos apresentados por Graciele, para o então governador Leonel Brizola, os CIEPs faziam a socieda-de brasileira questionar a realidade social injusta. Já para Darcy Ribeiro,o projeto garantiria a escola pública que o país tanto necessitava.

realizadas no contraturno dos alunos. A cada ano, desde 2010, o número de es-colas multiplica-se e novas experiências surgem em diversos cantos da cidade.

Atualmente, há 60 escolas munici-pais participando do Programa Mais Educação e 16 aguardam validação da adesão. Envolvidos em uma nova discussão de escola integrada com sua comunidade e cidade, os espaços edu-cativos externos (associações, clubes, lojas, fábricas, mercados, ONGs, escolas de samba, produção artesanal etc.) ganham importância na vida estudantil das crianças e adolescentes.

Entendemos que o tempo integral não deve ser visto somente dentro dos mu-ros escolares, ou seja, os alunos devem participar de atividades educativas fora da escola, em locais diversificados, desde a aula de história na venda; a atividade física na praça; a aula de ciências no posto médico; a aula de geografia nas encostas do bairro, com a ação de cidadania na prevenção contra a dengue; entre tantas situações e lo-cais que podem e devem ser explorados pelas escolas.

A atual gestão compreende a importân-cia do tempo integral como a educação que insere, cria identidade e motiva o conhecimento social, global e científico dos alunos. Para isso, instituiu-se a Su-pervisão de Planejamento e Articulação de Programa de Educação Integral para fomentar, orientar e planejar, junto com as escolas, novas organizações e expansão da jornada dos alunos.

Há planos de ampliar o projeto na cidade, uma vez que há uma deman-da crescente?

Sim. Buscamos a universalização do Programa Mais Educação, consolidan-do-o como educação integrada (escola – comunidade – cidade).

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Valesca Popozudaé uma “grande pensadora”?

O adjetivo “grande pensadora” atribu-ído à autora do hit “beijinho no om-bro” e mencionado em uma prova

de Filosofia aplicada a alunos do Centro de Ensino Médio 3, de Taguatinga (DF) gerou polêmica nas redes sociais.

A questão perguntava: “Segundo a grande pensadora contemporânea Valesca Popozu-da, se bater de frente é: A – tiro, porrada e bomba; B – é só beijinho no ombro; C – recalque; D – é vida longa”. Ela foi elabo-rada pelo professor Antônio Kubitschek, que leciona Filosofia há 19 anos. Segundo o educador, a questão tinha como objetivo chamar a atenção dos alunos e da própria imprensa para a construção de valores na sociedade atual.

Diante da repercussão, a Revista Argo trouxe o debate para a seção Bombordo e Estibordo, dando voz a dois estudiosos: a professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carla Rodrigues, e o mestrando em filosofia pela Universidade Federal Fluminen-se (UFF), Rogério Arantes. E então? Reflita e tire suas próprias conclusões.

Bombordo & Estibordo

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Bombordo

Foi com esse título, acrescido de um ponto de interrogação, que o filósofo alemão Martin Heidegger propôs um

sentido para a experiência de pensamen-to. Eram os anos 1950, e ele ministrava um curso de Filosofia na Universidade de Freiburg. Texto fundamental na filosofia contemporânea, nele Heidegger afirma que nós ainda não pensamos aquilo que precisa ser considerado pensar. De certa forma, com essa proposição, abrem-se pelo menos duas questões: haveria temas, questões, problemas impensados ainda na nossa época, apesar de todos os esforços da tradição filosófica de compre-ensão do mundo; e haveria, como uma espécie de contrapartida a essa postula-ção, o que não mereceria ser pensado, não seria digno do pensamento filosófico.

A partir de Heidegger, poderia-se inter-rogar se essa divisão entre o que deve e o que não deve ser pensado também se aplica a uma outra divisão, a de quem pode pensar – poder no sentido de ter legitimidade para tal – e a de quem não pode pensar, aqui no sentido de não ser digno desta mais alta tarefa filosófica. Não é preciso ir muito mais longe para perceber que estabelece-se aí uma hierar-quia da dignidade do pensamento, cujo resultado é conferir maior importância a determinados temas e a certos pensado-res à altura destes temas.

É nesse contexto hierarquizante e exclu-dente que se podem perceber as fortes críticas sofridas pelo professor Antônio Kubitschek por ter classificado a cantora Valesca Popozuda como grande pensado-ra contemporânea. A maioria das reações negativas expressava um conjunto de preconceitos, heranças de uma tradição filosófica grega e ocidental em que a sa-

O que significa pensarpor Carla Rodrigues

bedoria é privilégio de poucos. O masculino aqui não é de uso genérico para abarcar o conjunto dos seres humanos. Diz respeito diretamente a um tipo de prerrogativa do homem na história do pensamento. Sabedoria, pensamento, contemplação reflexiva é para poucos homens e sobre poucos temas, os dignos de serem pensados. Na condenação à prova, os crimes cometidos pelo professor seriam popularizar o pensamento, numa mulher, cantora de funk, cujo clipe da música “Beijinho no om-bro” já tinha mais de dois milhões de visitas em pouco mais de duas semanas depois do lançamento.

Na letra, a pensadora contemporâ-nea expressa um problema comum numa sociedade competitiva, volta-da para a performance individual, pautada pelos padrões de sucesso do capitalismo: contra a inveja e o recalque dos fracassados, os bem-sucedidos só podem oferecer “tiro, porrada e bomba”. Expressão da violência cotidiana que marca as relações sociais, o beijinho no ombro é o sinal de desprezo aos invejosos, é a proteção contra a lógica da disputa. Questão cotidiana e atual, posta em pauta pelo provocador ritmo do funk, na imagem de uma mulher que encarna ao mesmo tempo a mulher-objeto e o obje-to-mulher, aquela que não se deixa reduzir a nenhuma propriedade, porque a partir de um determinado momento, pensar passa a ser transgredir.

Carla Rodrigues, é professora do Departamento de Filosofia da UFRJ. Doutora e mestre em Filosofia (PUC-Rio).

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Estibordo

Não, Valesca Popozuda não é uma filósofa, ou uma “grande pensadora contemporânea”, e

colocá-la como tal em uma prova de Filosofia pode não ser a melhor ma-neira de fazer jus ao seu nome ou à própria Filosofia. Além do mais, a carga conotativa que a expres-são “grande pensadora contem-porânea” carrega consigo já sugere de antemão uma espécie de idealização excessiva de tal posição. Penso assim pois acre-dito que, para além do “tiro, porrada e bomba”, a Filosofia, se quer ser - respeitando suas origens e seu desenvolvimento - algo que leve longe a nossa capacidade de abstração e raciocínio, não pode reduzir-se à mera utilização de “ditos populares” (em declaração sobre esta polêmica, a pró-pria Valesca caracterizou sua letra como um “dito popular” do momento, acertadamente, penso eu).

Isso não quer dizer que as mensa-gens transmitidas por Valesca em

suas letras devam ser excluídas ou vistas com preconceito e desdém.

Elas devem ser, como qualquer outra expressão cultural, fruídas e, den-tro dos círculos sociais, debatidas, discutidas, e também questionadas, mas não tomadas como um saber filosófico. Faz-se necessário perceber que as implicações políticas e filosó-ficas das letras e do posicionamento de Valesca são distintas. É evidente que nos últimos séculos a própria

Valesca não é filósofapor Rogério Arantes

Filosofia passou por diversas transforma-ções, porém, mesmo com as mudanças internas pelas quais passou, por uma questão de definição, caracterização e integralidade, a Filosofia ainda guarda consigo características que não creden-ciam uma letra de funk (ou de MPB, pop, rock) a serem tomadas como filosofia.

Da mesma forma que, nos dias de hoje, um filósofo é um indivíduo que trabalha, pensa, analisa, lê páginas e mais páginas, pesquisa, possui atividades didáticas etc., um funkeiro é alguém que, ao menos na grande maioria dos casos, não faz ne-nhuma dessas atividades, mas dedica-se a outras, as quais o filósofo, também na grande maioria dos casos, não se dedica!

RIGOR CRÍTICODesta forma, acredito que uma distinção de conceitos e categorias é necessária, e tomar Valesca como uma “grande pensa-dora”, numa prova de Filosofia, não é o mais interessante a se fazer. No entanto, também não se mostra nada adequado tomar a Filosofia como um saber isola-do, colocá-la num pedestal, reificá-la. Não, incorporar aspectos da sabedoria popular é válido e possui o potencial de enriquecer a Filosofia, se trabalhados com um certo rigor crítico. Utilizados como meros geradores de polêmicas, eles não enriquecem a Filosofia, pelo contrário, acabam causando mal-entendidos que, depois, podem tornar-se difíceis de serem apagados.

Que as discussões aconteçam sempre, mas que os grandes pensadores tenham seu lugar e suas atividades respeitadas, e

que aconteça o mesmo com o funkeiro. Cada um trabalha em um âmbito distinto e, levando-se em conta especificamente o caráter intelectual, o pensador tem de ser privilegiado quando o assunto é uma prova que procura verificar os conheci-mentos apreendidos pelos alunos. Se o intuito da prova é outro, que não esse, aí talvez possamos pensar em citar Valesca Popozuda e outros nomes semelhan-tes, mas aí talvez, também, estaríamos nos distanciando um pouco da questão da educação. Mais interessante do que meramente julgar a posição de Valesca é procurar melhores saídas e alternativas para a educação brasileira, que, como to-dos sabemos, necessita de grandes pen-sadores, e também educadores e alunos, que saibam se colocar criticamente frente às situações vividas.

Rogério Arantes - Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente é mestrando em Filosofia, na linha de pesquisa em Estéti-ca e Filosofia da Arte, pela Universidade Federal Fluminense.

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Vivemos em um tempo onde o tempo tornou-se um monstro que

nos devora. Um tempo em que a perda de tempo e a falta de tempo são como uma Hidra de muitas cabeças, que vai espalhando angústia, sofrimento, depressão, enfim, dor. A essas dores damos muitos nomes, são milhares de “trans-tornos” que se descobrem, anunciam, inventam. Todos com uma condição comum: a perda do tempo de humanidade. A perda da experiência humana em toda sua complexidade e plenitude.

por Andrea Serpa de Albuquerque

Carta de indignação pela educação que se quer sisuda e militarizada; depois matamos sua curiosidade; afinal, a dúvida ameaça qualquer sistema que se pretenda absoluto; depois matamos sua autoesti-ma; afinal, sempre terão muitos melhores do que ele e o seu fracasso não é pro-duzido por esse sistema social injusto, mas por sua incompetência de nascença; finalmente matamos sua fé e sua vontade de querer ser mais.

Ao final deste processo acelerado de “instrução programada”; de muitas provas, poucas brincadeiras; de muita gramática e pouca poesia, temos, ao final de uma década, ou duas, de escolaridade, o seguinte sujeito:

Ele não estuda para conhecer, apenas para passar na prova, e se houver um jeito mais fácil, macetes e musiquinhas tolas, que garantam marcar o X no lugar certo, melhor, e ele seguirá buscando o caminho mais rápido e fácil mesmo em seu curso superior; por isso não se sente eticamente culpado por não se esforçar para aprender, o ensinaram que o im-portante não é o caminho, é chegar, de preferência na frente.

COMPETIçãO X COLABORAçãO

Ele não vê relação entre o conhecimen-to teórico e a vida, o que vai buscar na escola é um diploma para ganhar mais dinheiro, ou status ou legitimar, com esse diploma, suas próprias ideias rasas, e se conseguir ganhar dinheiro sem a escola, melhor. Seus “ídolos” geralmente não são pessoas de muita instrução, ou que trabalham para o bem social; ao con-trário, ostentam uma riqueza da mesma ordem que sua futilidade e indiferença.

Ele não é cooperativo, mas competitivo, e junte-se a isso uma sociedade tolerante com “os fins justificam os meios”, então este sujeito, por nós formado, se tiver

Velocino de OuroVelocino de OuroCarta Aberta Carta Aberta

Caminhos & Chegadas...Substituímos tudo que é fruto de uma lenta e demorada gestação, tudo que exige tempo: tempo para melhor cozer, tempo para melhor tecer, tempo para melhor aprender, tudo que exige arte e ciência, tudo que era artesanal, visceral e profundo, em coisas descartáveis, efême-ras, supérfluas, e andamos por aí como sacos cheios de ventania. É o mundo líquido, diria Bauman. Talvez...

LINHA DE MONTAGEMNeste mundo, onde o tempo vai sendo, não só encurtado, como empobrecido, o artesanato dá lugar à linha de monta-gem, e a criança, antes de ser um projeto gestado com amor, carinho, cuidado e respeito, vira um projeto de fábrica, deve ser pré-moldada, do berço de preferência, com materiais rápidos e baratos, para que fique logo pronta para o consumo.

Essa é a escola que as políticas públicas de muitas redes Brasil a fora vêm pro-pondo para nossas crianças. Esses são os projetos hegemônicos em milhares de “escolinhas” privadas. Tudo o que sabemos sobre o que é uma criança, seus processos e seu desenvolvimento, suas necessidades e formas de aprendizagem, são simplesmente ignorados. Ignora-se Piaget e Vigostky, Freire e Freinet, ignora-se tudo que foi pensado e discutido sobre a infância e sua educação. São caminhos longos e difíceis demais para uma fábrica de alunos (seres sem luz, sem brilho). En-tão pegamos um atalho para chegar logo ao fim. Mas que fim exatamente é esse?

ESCOLA SISUDACada vez mais me chegam notícias ab-surdas dos pequenos abortos da infância. Sim, aqui no Brasil os deixamos nascer, para matá-los aos poucos, com requin-tes de crueldade. Primeiro matamos sua alegria; afinal, o riso ofende essa escola

que sabotar uma boa ideia, para que sua ideia, mesmo medíocre, sobressaia, ele o fará.

Ele, claro, odeia trabalho de grupo; ensinado a trabalhar individualmente, a buscar o sucesso sozinho, ele não sabe compartilhar, não sabe interagir, mediar conflitos, equilibrar diferenças e aprender com elas. Fazer sozinho é mais fácil.

Ele não lê o que escreve e muito menos reescreve o que já escreveu, porque lhe ensinaram que a rapidez e quantidade importam mais que a qualidade. Acha que reescrever um texto é vergonhoso, (tem vergonha de ter “errado”). Só aceita bem elogios, pois sua frágil autoestima não sabe lidar bem com críticas, mesmo construtivas, afinal, na escola as críticas geralmente são para desdenhar, diminuir, comparar e menosprezar os alunos, não para ajudá-los a crescer.

Ele não sabe ler. Ele olha para a escrita e só lhe vê a forma, ignora o conteúdo, o contexto e, portanto, o texto. Sua inter-pretação é rasa e ele pensa que interpre-tar um texto é simplesmente completar a lacuna; o que pensa ou sente, compreen-de, correlaciona e traduz é muito comple-xo para esse leitor; ele raramente busca o significado de palavras que desconhece e as incorpora ao próprio vocabulário.

Andrea Serpa de Albuquerque - Douto-ra em educação e professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve pes-quisa e extensão no Campus de Estudos do Cotidiano Escolar.

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Canto de OrfeuArte e Literatura

Canto de OrfeuArte e Literatura

Acredite. Em uma época em que o tempo é curto para contemplações livrescas e vasto para redes sociais,

é possível acessar literatura. Em ambiente virtual, que fique bem entendido, e sem consumir muitos minutos de atenção do leitor.

Alternativas dessa ordem foram pensadas pelo poeta, contista, ensaísta e professor da Faculdade de Letras da UFJF, Fernan-do Fiorese, que apostou na fórmula para atrair leitores também na internet. Ele divulga suas “pílulas” no blog Corpo Por-tátil (http://corpoportatil.blogspot.com.br), obtendo 27 mil acessos. Com o mes-mo objetivo, ele tem recorrido ao vídeo para valorizar sua arte. O primeiro, entre outros a caminho, ilustra o seu poema “A Casa”, também divulgado no blog e que representa a postagem mais visualizada.

Constituídos de pouquíssimas frases, os contos fazem parte de “Breviário”, livro virtual que pode ser acessado por meio do endereço eletrônico acima. As primei-ras inserções, que chegaram ao número 100, encerraram-se no final do ano passa-do, mas ainda estão no blog.

Mas a micronarrativa não foi esquecida e retomará erótica, segundo o autor, após o lançamento do seu primeiro romance, “Um chão de presas fáceis”, previsto para

Narrativas literárias em ambiente virtual

por Márcia Carneiro

histórias pequenas, que eram o osso da narrativa. Elas foram se acumulando e, quando havia 60, decidi publicá-las no blog, sempre ao lado de uma imagem.” Ele calculava que, por serem contos de poucas palavras, estariam adequados à velocidade do meio.

O fato é que a investida virtual tem proporcionado retorno satisfatório em se tratando da divulgação do seu traba-lho. O autor não sabe ao certo como se dão os acessos ao seu blog. Observa-se, entretanto, que os compartilhamentos no Facebook contribuem substancialmente. “Cada história tinha uma média de três comentários feitos por conhecidos e des-conhecidos. Há um leitor que comentava praticamente todos os contos e que não é meu amigo no Facebook”, observa.

Ele, porém, não cria expectativas com relação aos comentários. “É um meio de alta fluidez, as pessoas passam e vão para outros blogs e sites.” O que tem chamado a atenção do autor com relação aos comentários é como o universo que trabalha histórias de pequenas cidades do interior de Minas - memórias de sua infância -, mexe com as lembranças de tantas pessoas. “Me alegra saber que o texto traz ao outro narrativas que tam-bém lhes são próprias.”

Além do lançamento do primeiro romance, o escritor Fernando Fiorese publica contos mínimos, videopoesia e ensaios em blog e ganha um novo público

este ano. A obra reúne história de pesso-as variadas em uma viagem pela estrada Rio/Bahia, entre Além Paraíba (MG) e Divisa Alegre (MG). “É uma narrativa em fluxo contínuo de dois amigos que viajam juntos”, resume. O romance, elaborado desde 2012, foi selecionado por um con-curso do programa Petrobras Cultural.

TEXTOS PALATÁVEISQuanto à esfera virtual, Fiorese nem so-nha em romper o relacionamento. “Abri o blog para publicar pequenos contos, crônicas, textos mais palatáveis, fora do jargão acadêmico”, comenta. O encontro do autor com a estética da concisão voca-bular na elaboração do conto, comum à poesia, surgiu há alguns anos. A técnica não é nova, e segundo Fiorese, é batizada micronarrativa ou nanonarrativa. “Tem sido um exercício e o fato de fazer poesia e escrever há 30 anos facilita o traba-lho. O pensamento é semelhante a uma mensagem de Twitter, embora eu nunca tenha usado essa ferramenta. Mas está relacionado com as redes mais recentes.”

Fiorese começou a escrever narrativas breves quando preparava “Dicionários mínimos”, livro de poemas em prosa lan-çado em 2008. “Passei então a escrever

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ESCRITA INTUITIVAAutor de dez livros individuais de poe-sia, prosa e ensaio, além de outros em parceria, Fiorese revela uma curiosidade: sempre foi péssimo em redação na esco-la. “Tinha dificuldade de criar e elaborar histórias.” O escritor estudou em escolas municipais e foi cursar a antiga sexta série do Ensino Fundamental no Colégio de Aplicação João XXIII, entre 1974 e 1975. No ano seguinte, a família transferiu-se para São João Nepomuceno . “No João XXIII o aprendizado da língua era por meio da prática da escrita. Assim, aprendi a escrever quase intuitivamente. Por outro lado, o meu aperfeiçoamento da escrita também aconteceu ali.”

Em uma escola particular de São João Nepomuceno, que seguia o ensinamento clássico, teve dificuldades com a gramá-

USINA DE IDEIASUma de suas características, segundo o autor, é a não perseguição de um estilo pessoal. “Sempre tentei encontrar a voz do personagem, produzir histórias e criar singularidade para o texto ou poema. Não tenho a pretensão de que a obra seja identificada como minha. O que quero é criar uma boa história, bem contada.”

Além de professor, Fiorese é homem de muitos projetos literários. E, como es-critor, põe em prática o que interessa: a flexibilidade do texto, que vai desde a construção de um romance (com múltiplos corpos narrativos e histórias) à variedade de gêneros, como contos, poesias e ensaios.

Hoje, além do lançamento do romance, ele trabalha em dois livros de contos, sem abandonar a poesia. “Preparo um livro de poemas que talvez seja a obra da minha vida: um retrato político-so-cial da Zona da Mata.” De acordo com o autor, o livro abordará a diferença entre a Zona da Mata e as outras Minas Gerais. Será a leitura da história sem o rigor histórico do período de criação do Caminho Novo, por meio de dois personagens: um rico, que se apropria de sesmarias do Imperador na região, e o outro, um pobre coitado, que por passar fome, vem para a região. E dá-lhe produção. Como se vê, Fiorese é um turbilhão de ideias e realizações.

Canto de OrfeuArte e Literatura

Me alegra saber que o texto traz ao outro narrativas que também lhes são próprias

Música, poesia e performance compõem a base do Ou Sim, um projeto que reúne artistas

de diferentes gerações e formações em torno de uma proposta: mostrar traba-lhos autorais e inéditos. Não apenas isso. Som e ideias propagadas pelo grupo convocam a plateia a sair do entorpeci-mento, trazendo uma lufada de ousadia à comportada cena cultural juiz-forana.

Experimentação e anti-hegemoniapor Márcia Carneiro

Ou Sim

Grupo de artistas sacode a cena cultural juiz-forana com performances poético-musicais

Canto de OrfeuArte e Literatura

“Vai fundo, Carlos, abandona o museu do livro, enlouquece o céu dos nause-abundos que te assinam, te assassinam e te assistem sentados”, diz a letra de André Monteiro, um dos oito integrantes do Ou Sim, em uma amostra do espírito coletivo. O grupo, formado ainda por Edson Leão, Bruno Tuler, Edwald Winand, Stephan Rangel, Valéria Leão, Nathália

Guimarães e René Eberle Rocha, traz na bagagem influências poéticas e musicais diversificadas. “Dialogamos com poesia marginal dos anos 1970, literatura beat, tropicalismo e vanguarda paulistana dos anos 1980. Também temos referências musicais variadas, como rock rural, clube da esquina, Walter Franco e punk rock”, enumera Edson Leão.

Grupo tem influências estéticas variadas.

tica, mas a profes-sora gostava de suas redações. “Até que, precisando de nota para passar de ano, ela pediu que fizesse um soneto tendo a ansiedade como tema. Fui para casa e escrevi. Ela gostou tanto, que publicou no jornal Voz de São João e, graças a isso, não fui repro-vado.”

E graças ao impulso dado pela primeira publicação passou a escrever esporadicamente, sem, entre-tanto, publicar. Mas no começo de 1980, já de volta a Juiz de Fora, conheceu uma turma que também gostava do ofício, formada por José Santos, José Henrique da Cruz, o Mutum, Júlio Polidoro, Walter Sebastião e João Batista Motta, entre ou-tros. “Nessa época, passei a escrever com mais frequência, motivado pelo diálogo com os amigos. Estava comprometido com a causa.”

Seu primeiro livro, “Leia, não é carto-mante”, saiu em 1982. De acordo com Fiorese, suas primeiras publicações eram incipientes, porque ele ainda tentava encontrar a dicção mais adequada ao que pretendia dizer. “Quando entrei para o curso de Comunicação Social, na UFJF, é que ganhei versatilidade. Ali acabei de aprender a escrever.”

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LITERATURAE PROTESTO Da miscelânea de informações emergiu o trabalho, que traz ainda uma estética coerente aos princípios do grupo. As músicas têm lirismo, protesto e pegada punk. Inserções de vinil e poemas como de Carlos Drummond e Murilo Mendes, além da apropriação do hip-hop em sua forma, também estão presentes. O cená-rio é composto por antigas capas de disco e uma instalação da artista Valéria Faria feita de braços, pernas e pés de mane-quins grafados com poesia.

Todas as referências levam a uma novi-dade com nítida proposta política: buscar a experimentação e a anti-hegemonia. “Não somos, no entanto, panfletários. Fazemos política com subjetividade”, explica André Monteiro.

FORMAS QUADRADAS Dentro dessa dinâmica, os integrantes apresentam textos e canções que se complementam. “Não há mais santos nem loucos, só formas quadradas”, diz a música de Edson e Valéria Leão. “Incon-formados com o que rola, e o que rola é martelo nos dedos das mãos e dos pés”, rebate Edwald.

Assim, o grupo monta um mosaico que, segundo seus componentes, tem algo de vômito. “A ideia generalizada de indig-nação perpassa o espetáculo”, confirma André. Edson, por sua vez, acrescenta que o Ou Sim tem a intenção de mexer com eles próprios, além da cidade. “É que fazemos parte dessa acomodação”, admite.

Canto de OrfeuArte e Literatura

Fazem parte do Ou Sim: André Monteiro (Voz e violão), Bruno Tuller (Voz e violão), Edson Leão (voz e violão), Edwald Winand (voz e violão), Milene Pimentel (ireção e performance) Nathalia Guimarães (baixo), René Eberle (bateria), Stephan Rangel (guitarra) e Valéria Leão (voz).

CONTRACULTURA, BEATNIKS E AFINS De acordo com Edson Leão, a concepção do Ou Sim teve origem em 2009, quando aconteceram dois ciclos de debates sobre contracultura, em comemoração aos 40 anos do Festival Woodstock. Os integran-tes do grupo eram, naquele momento, organizadores e palestrantes do evento. Os ciclos de debates terminaram com uma apresentação de André Monteiro lendo seus poemas e a Fantástica Banda Invisível (FBI), que tem Edson Leão, Dan-niel Goulart e Luís Lima como integrantes.

A partir daí, surgiram conversas sobre contracultura e movimentos relacio-nados, como o modernismo de 1922, poesia marginal e o próprio tropicalis-mo. “Fizemos uma seleção de textos da geração Beat e canções da MPB dos anos 1960/70. Procurando um nome da contracultura que não fosse batido, opta-

O espetáculo já percorreu lugares, como a Casa de Cultura e o Museu de Arte Mo-derna Murilo Mendes - ambos vinculados à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) -, e o antigo Mezcla, tendo sido levado à Universidade Federal de Viçosa (UFV). Segundo os integrantes, a propos-ta cênica, musical, performática e poética atrai um público amplo e variado. “Isso fortalece o pensamento de que há espaço para espetáculos com música autoral e poesia, saindo das formas mais comuns de entretenimento”, comenta André.

Atualmente o grupo está em processo de gravação de CD, amparado pela Lei Mu-rilo Mendes de Apoio à Cultura. Embora planejem apresentações da mesma edi-ção, lembram que têm material para um novo espetáculo, de onde se conclui que a criatividade de seus membros mantém-se em plena forma.

Canto de OrfeuArte e Literatura

mos por “Ou Não”, numa referência ao disco de Walter Fran-co”, conta Edson. André lembra que os integrantes acharam interessante a deno-minação, porque fi-cava em aberto. “Ou Não era um símbolo de resistência à cul-tura dominante e ao mesmo tempo uma alternativa ao que está posto”, observa André .

Mas a ideia com o projeto que come-çava a germinar era fazer algo diferente, um novo espetáculo,

desta vez reunindo canções próprias. Aí surgiu o “Ou Sim”. Além dos compo-sitores/cantores, Edson, André, Edwald, Bruno e Valéria, o grupo conta com instrumentistas que também formam a banda Seu Nadir e com o guitarrista Stephan Rangel.

Para a concepção cênica, eles convidaram Milene Pimentel, que responde por ceno-grafia e por uma intervenção performá-tica. O jornalista João Paulo Oliveira, por sua vez, juntou-se aos bons, passando a produtor e divulgador do espetáculo e ajudando a dar identidade ao projeto.

De acordo com Edwald, a contracultu-ra permanece no Ou Sim, por ser uma resistência à homogeneização e à natu-ralização das coisas. “Não é uma imita-ção, nem uma adoração à contracultura, mas uma apropriação de sua filosofia ao nosso cotidiano,” define Edwald. Então, enquanto houver establishment , haverá um movimento contrário? Ou sim!

Grupo prepara um álbum com previsão de lançamento ainda este ano, produzido pelo guitarrista e produtor Julião Júnior.

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Canto de OrfeuArte e Literatura

O senhor dos papéis

por Márcia Carneiro

José Luiz Ribeiro

sonagens à procura de um autor”, de Pirandello, “Beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues, e novas criações como “O príncipe Rufião”, de José Luiz, entre outras centenas de peças, cutucam o espectador para uma realidade incômoda.

Foi aos 21 anos, em 1963, que José Luiz estreou oficialmente no universo teatral, por meio do Grupo Jovem do Contato e que apresentou na Casa d’Itália a peça “Espaço 63”. Ali, ele havia de fato sido seduzido pelas artes cênicas. Tanto que já no ano seguinte botou em cartaz “Sin-fonia de uma favela”, de sua autoria e direção, levada ao palco por 100 atores.

“Em 1965, entrei para a Faculdade de Jornalismo, na antiga Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile), o que me abriu muitas portas”, recorda-se José Luiz. As portas, pode-se dizer, eram quase as da percepção, devido à efervescência política e cultural vivenciada nesse seu novo ciclo. “Vivíamos em um ambiente muito rico de ideias, em contato com estudantes de Letras, Ciências Sociais, Pedagogia e História.”

ANOS DE CHUMBO

Impossível falar de teatro em Juiz de Fora sem mencionar José Luiz Ribeiro. Dramaturgo, diretor e ator, além de

professor da Faculdade de Comunicação da UFJF, ele incorporou-se à história da cidade com tanta força a ponto de trans-formar-se em referência cultural.

O homem sinônimo de artes cênicas com-pletou 50 anos de dedicação ao ofício. E a comemoração fez jus ao mérito: entre-vistas em diversos meios de comunicação, exposição de fotos e lançamento do livro “José Luiz Ribeiro, 50 anos de Teatro”, organizado por Ieda Alcântara.

Ex-integrante do Grupo Divulgação (concebido e dirigido por José Luiz, há 47 anos), Ieda produziu uma obra luxuosa. Imagens e textos registram meio século de realizações artísticas na cidade A his-tória é narrada pelo homenageado e por pessoas que compartilharam com ele, de alguma forma, essa trajetória.

ESPELHO DA REALIDADE Os episódios teatrais se entrelaçam aos fatos históricos do país, como a ditadura militar, governos e presidentes. Assim, os clássicos do teatro, como “Seis per-

Referência cultural juiz-forana, dramaturgo comemora cinco décadas de dedicação às artes cênicas

Canto de OrfeuArte e Literatura

Era o início dos anos de chumbo. Suas peças refletiam o momento e, claro, so-friam censura governamental. Em 1968, ano do AI-5, o grupo apresentou “Bodas de Sangue”, de Garcia Lorca, no Círculo Militar. A escolha do local gerou indig-nação em integrantes da esquerda, que consideravam um absurdo montar Lorca em ambiente militar. Ao mesmo tempo, “Electra”, de Eurípedes, na Casa D’Itá-lia, tinha na plateia censores seguindo o texto.

Protagonizada por ele e dirigido pela mulher, Malu, “Diário de um louco”, de Gogol, foi censurada na estreia, no momento em que o público chegava para assistir ao espetáculo. E, denunciando com maestria os cortes impostos pelos censores, o personagem Antônio Barna-bé, incorporado por José Luiz, amarrava um lenço na boca toda vez que entrava o texto censurado.

Quando, em 1971, a Faculdade de Di-reito, que funcionava no casarão da Rua Santo Antônio, mudou-se para o Campus da UFJF, a universidade fez uma seleção de entidades para ocupação das salas. Foram contemplados o Instituto Histórico e Geográfico, o Centro de Estudos Socio-lógicos, o Coral Universitário, o Centro de

Estudos Teatrais - Grupo Divulgação e o Teatro de Comédia Independente (TCI).

“Fiz um pedido ao então reitor Gilson Sa-lomão: transformar o Salão Nobre da Fa-culdade de Direito em teatro. Ele aceitou o projeto e eu fui para São Paulo comprar os spots, que, diga-se de passagem, lá estão até hoje.” Assim, eles firmaram um acordo de cavalheiros. Ali, o antigo reitor garantiu que, enquanto estivesse trabalhando, o teatro seria do Grupo Divulgação. Naquele mesmo ano, come-morando o cinquentenário da Semana de Arte Moderna, a peça “A morta”, de Oswald de Andrade, na versão do grupo, inaugurou o Forum da Cultura, com a presença ilustre do dramaturgo Paschoal Carlos Magno.

Ao todo, José Luiz contabiliza a realiza-ção de 245 espetáculos adultos e infantis, entre direção e atuação, e 137 textos tea-trais. Mas sua participação no teatro não se resume a isso. Ele coleciona inserções em cenografia, sonoplastia, luminotécni-ca, figurino e composição musical. Tam-bém teve participação ativa na formação de atores que ganharam o mundo, tendo recebido, ainda, dezenas de prêmios por suas criações.

Em 1965, entrei para a Faculdade de Jornalismo, na antiga Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile), o que me abriu muitas portas

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Canto de OrfeuArte e Literatura

Canto de OrfeuArte e Literatura

TEATRO GREGOClaro que, como devoto do palco, teve muitos momentos marcantes na ribalta. Um deles se deu nos idos 1990. Naquele ano, “Édipo Rei” era a peça encenada pelo Grupo Divulgação, no Forum da Cultura. No palco, todo empenho na recriação da clássica tragédia de Sófocles: atores afiados, luz, figurino e cenário im-pecáveis. As apresentações destinadas ao público adulto seguiam seu curso normal, até o aparecimento de um menino de rua na plateia.

O artista conta que o garoto assistiu ao espetáculo e foi embora. Mas, para surpresa de todos, no dia seguinte, estava de volta; desta vez, acompanhado de outros três, até que, com o passar da temporada, havia sempre uma fileira de meninos. “Um dia, eles levaram marmi-tas, ali mesmo consumidas. E, no meio do espetáculo, quando o coro entrou em

cena batendo pratos, os meninos levanta-ram-se e, ao mesmo tempo, bateram suas marmitas, cantando o refrão”, descreve.

Ele lembra que os atores ficaram indig-nados, dizendo que a intervenção havia quebrado o clima. “Eu, no entanto, achei maravilhoso e falei que aquilo era o ver-dadeiro teatro grego”, recorda-se.

Outra lembrança emocionante foi a ex-cursão pelo Rio São Francisco, em 1974, na Barca da Cultura. “Viajamos por 60 dias, e ao final do trajeto, chegamos a Belém do Pará.”

Dizendo-se desiludido com os valores atuais e a situação cultural, ele comenta que persiste no teatro como um ato de teimosia. “É uma forma de estar com Deus. Tenho temor, brigo, às vezes eu não entendo ou os outros não entendem. Teatro é o que resta nesse mundo de barbárie, da minúscula fração da humani-dade”, reflete.

É a plateia que dá

significado ao espetáculo

VIDA LONGAO artista compreende, ainda, que o teatro depende do público. “É a plateia que dá significado ao espetáculo.” E, para dar vida longa a essa importante vertente das artes cênicas, ele faz a sua parte. Há 28 anos desenvolve um projeto com 200 es-colas, que permite o acesso de estudantes de vários cantos da cidade.

Nesses 50 anos, ele formou seu público cativo, “mas as pessoas vão envelhecen-do, e para o público da terceira idade subir os 67 degraus do Forum da Cultura é muito difícil”, diz José Luiz. Ele conta que já reivindicou à UFJF a instalação de um elevador no prédio, sem ainda obter um sinal favorável.

Por conta do seu profissionalismo, José Luiz chegou às novelas globais, mas confessa que não é o que gosta de fazer. “A gente tem que estar à disposição. Vai, fica o dia inteiro para atuar só por dois minutos”, justifica. E acrescenta: “o que gosto mesmo é de teatro. O infantil, en-tão, me dá muito prazer. Não é que não me preocupo com o teatro adulto, mas não deixo passar nada nas peças infantis, porque a resposta desse público é ime-diata. Quero sempre que a criança tenha a hora do espetáculo”, diz o experiente diretor, com olhar de menino por trás dos seus óculos.

Da esquerda para a direita: Cancioneiro de Lampião, de Nerthan Macedo (1967); A morta, de Oswald de Andrade (1972);

Bem do seu Tamanho, de Ana Maria Machado (1987).

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A poesia se materializa em gravura

por Márcia Carneiro

Paulo Lisboa

Gravador ganha o mundo com a natureza e a vida simples de Leopoldina, sua terra natal

Sérvia (Leste Europeu). “Era uma exposi-ção itinerante. A primeira foi na cidade de Aleksinac, a segunda em Knjazevac e a terceira em Nis.” Paulo conta que foi convidado por um artista e curador sérvio a mostrar mais de seus trabalhos, após participação em um salão internacional naquele país.

Sua arte já havia ocupado diversos es-paços no Brasil e no exterior, tendo sido premiado na Trienal Internacional de Pequenas Gravuras em Tóquio, no Japão, em 1998. Há 30 anos o artista se dedica ao exercício da gravura, e há 17 ensina a técnica em metal na Escola Guignard, em Belo Horizonte.

COMPêNDIODE GRAVURA O esmero na produção de arte se esten-deu à outra criação no ano passado: o

livro “Compêndio de gravura em metal”, em que, literalmente, tudo foi feito por ele. “Nesse livro, enfoco um pouco da história da gravura desde o século XV, quando surgiu e parte teórica sobre técnica. Há ainda impressões originais de gravuras (demonstrando cada processo), citadas na ordem em que foram inventa-das”, explica.

O que há de mais relevante no com-pêndio, na opinião de seu criador, é sua singularidade. “Cada volume é um original, pois foi todo feito a mão. A obra é baseada nos moldes dos livros dos séculos XV e XVI. Fiz questão de resgatar três ofícios que por muitos séculos eram indissociáveis: a tipografia, a gravura em metal e a encadernação manual.”

A ideia de fazer uma obra sobre gravura em metal se deve à dificuldade encon-trada por ele, quando estudante, em co-nhecer a técnica por meio de reprodução

Irmãs siamesas.

“Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poe-sia que estão falando”, diz o poeta

Manoel de Barros. Já quando árvores, pássaros e cães soltos pelas ruas são ma-terializados na gravura de Paulo Lisboa é a própria poesia que se expressa.

Difícil não fazer associação entre artista da palavra e o artista gravador quando se tem acesso a ambos. Os dois - cada qual a seu modo -, esbanjam talento, além de encanto por natureza e simplicidade, sem mencionar outras afinidades. No entanto, há uma diferença crucial: enquanto o ma-to-grossense Manoel é cânone literário, o leopoldinense Paulo é pouco conhecido dos mineiros.

Mesmo assim, a sua obra ganhou o mun-do, embora ele tenha optado por manter seu pequeno ateliê em Leopoldina (MG). Entre o final de 2013 e início de 2014, suas gravuras percorreram três cidades da

Canto de OrfeuArte e Literatura

em livros. “Mesmo em alta resolução, as fotos não são reproduzidas com perfei-ção. Por isso, não procuro me aprofun-dar em teoria, mas mostrar a técnica no original.”

A primeira edição de “Compêndios” en-globa 60 livros, já esgotados. O DVD com duração de aproximadamente 12 minutos revela todas as etapas, mostrando o artis-ta envolvido com a tipografia, a gravura em metal e a encadernação manual. O vídeo foi produzido pela fotógrafa e pro-fessora da PUC/RJ Silvana Marques e pela designer carioca Dora Reis.

EXTRAORDINÁRIA NATUREZAQuem vê a série de gravuras de Paulo Lisboa percebe a fixação do artista por determinado tema: a natureza. “Há imagens recorrentes em meus trabalhos,

principalmente as árvores e os passari-nhos”, confirma. Homem do interior que fez questão de ali permanecer, vê poesia nos oitis que ornamentam Leopoldina e nos cachorros que vagam pelas ruas.

Mas onde surgiu o interesse pela gravu-ra? Paulo conta que já estudava artes na Escola Guignard, nos idos 1978, quando conheceu os processos de gravura: xilo-gravura, litografia, serigrafia e gravura em metal. “Por questão de oportunidade, a sala de gravura em metal, que era a mais vazia naquela época, me chamou mais atenção.”

GRAVURAS COMO CRÔNICASAssim, começou, então, a trabalhar na técnica do “buril”, e desde o primeiro momento percebeu certa facilidade, se fixando na linguagem por dois anos

Quatro galinhas passeando sob a chuva.

e meio. “Depois senti necessidade de desenvolver novas técnicas, até porque o buril me deixava preso e eu queria soltar mais os traços, riscar espontaneamente, como fazemos com crayon, o que na gra-vura em metal demanda domínio técnico e conhecimento de outros processos.”

Daí, levando consigo uma carta de apre-sentação de Amilcar de Castro, renomado escultor já falecido e professor da Guig-nard à época, ele foi à oficina de gravura do Museu do Ingá, em Niterói, (RJ). Lá, teve a oportunidade de ser orientado por grandes gravadores, como Ana Letícia e José Assumpção de Souza. Depois, voltou à Leopoldina para desenvolver seus pró-prios processos técnicos. “Sempre usei a gravura para escrever minhas crônicas, meus poemas, minha história, em que as linhas no lugar das letras poetizam as formas. Assim penso o porquê da gravu-ra”, conclui.

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Paisagem para serm

os passarinhos, Paulo Lisboa