eduardo pellejero, sesões não numeradas

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  • 7/24/2019 Eduardo Pellejero, Seses No Numeradas

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    Eduardo Pellejero

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte / Capes

    Sesses no numeradas

    Algumas notas sobre o cinema e a emancipao do olhar

    Volta-te e torna a confiar nos teus olhos!Confia na velha mquina de filmar. Elaainda pode produzir imagens.

    Lisbon Story(Wim Wenders, 1994)

    Lies de interpretao

    Em Rear Window (1954), uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, L.B.

    Jefferies (James Stewart), fotgrafo de guerra, preso a uma cadeira, praticamente

    desvalido, resolve um crime atravs da observao atenta e prolongada do que o rodeia.

    EmBlow-Up(1966), a provocativa adaptao de um conto de Julio Cortzar que filmara

    Michelangelo Antonioni, Thomas (David Hemmings), frentico fotgrafo de moda,

    fechado num quarto escuro, acredita revelar outro atravs da explorao obsessiva das

    suas imagens. Quietos ou inquietos, hericos ou delirantes, as personagens que o

    cinema prope muitas vezes encarnam as aventuras do olhar, e ao faz-lo nos submetem

    a uma prova, na qual o que est em jogo a nossa capacidade para interrogar as

    evidncias do que e descobrir o que no pelo menos imediatamentevisvel1.

    No preciso internar-se nas cinematecas para embarcar nessa aventura, que

    perpassa o cinema no seu conjunto, inclusive quando adota as marcas do gnero, as

    prescries do sistema de estudos ou as prerrogativas do mercado. Sob as suas formas

    mais explcitas, ganha algumas vezes as formas de um desafio manifesto, como em

    certos filmes nos que somos a prioriconvidados a solucionar o mistrio que a intriga

    nos prope, antes que encontre propriamente a sua soluo argumental; o caso das

    adaptaes de alguns policiais clssicos, comoMurder on the Orient Express(1974), de

    1Refiro-me ao visvel, mas certamente no podemos deixar de considerar todas as dimenses que fazemparte do cinema: o som, a linguagem, a narrativa. O cinema tambm nos oferece uma aprendizagem

    nessas matrias. The conversation (1974), de Coppola, e Blow out (1981), de Brian de Palma, porexemplo, retomando respectivamente Rear window y Blow-up, oferecem uma verdadeira lio do quesignifica ouvir e escutar.

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    Sidney Lumet, assim como de boa parte dos thrillerscontemporneos, como Zodiac

    (2007), de David Fincher. Outras vezes, o desafio nos lanado a posteriori, resolvido

    j o mistrio, expondo-nos a imagens que vimos e no fomos capazes de observar com a

    necessria suspiccia; algo que encontramos em alguns filmes de twist ending, como

    em The sixth sense(1999), de M. Night Shyamalan, onde no final somos confrontados

    com o que todo o tempo esteve nossa frente, chamando-nos a redobrar a nossa ateno

    em relao s imagens. Outras vezes, por fim, o desafio coloca em causa, no apenas as

    nossas competncias para ver e apreciar, mas tambm o alcance e os limites do que

    aparece enquanto via de acesso ao real como em Memories of murder (2003), de

    Bong Joon-Ho, onde a ambiguidade das imagens e a interrogao crtica do olhar

    tencionam os elementos definidores do gnero at faz-los em pedaos.

    Em todos esses casos a intriga que nos instrui sobre o tempo e o esforo que

    exigem de ns as imagens, oferecendo-nos uma lio sobre o que significa ver e

    interpretar.

    A deseducao do olhar

    Mas as imagens do cinema tambm podem oferecer-nos a possibilidade de uma

    aprendizagem, nas aparncias e pelas aparncias, que excede as histrias que conta e a

    lgica da lio.

    Em The third man(1949), de Carol Reed, uma das primeiras coisas que chama a

    nossa ateno o uso e o abuso do plano holands ou aberrante. As imagens aparecem

    inclinadas, em constantes jogos de plano e contra-plano, nos que a inclinao se d em

    ngulos opostos. O recurso, provavelmente utilizado com a inteno de sublinhar a

    tenso de algumas cenas, consegue, de fato, perturbar-nos, produzindo em ns certo

    incmodo, alimentando a nossa ansiedade. Mas, ao mesmo tempo, o recurso se

    denuncia a si prprio, no dissimula o seu papel na disposio das imagens. Vemos as

    cenas, podemos sentir a tenso, e ao mesmo tempo vemos essa rara propriedade esttica

    das imagens que a compem. No improvvel que esta ltima se imponha em ns

    sobre os efeitos induzidos, ao ponto de que, ao reingressar no domnio da

    horizontalidade que rege a maior parte das imagens que vemos diariamente, sintamos

    uma ligeira molstia, uma espcie de enjoo, como um marinheiro ao pisar terra firme

    depois de um prolongado tempo em alto mar. No que a perspectiva aberrante dos

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    planos de Reed seja mais adequada que a perspectiva da horizontalidade, mas a

    desestabilizao da nossa predisposio perceptiva projeta uma sombra crtica sobre as

    poticas que pretendem ocultar a sua artificialidade detrs dos prestgios de certas

    construes historicamente identificveis2.

    Filmes como The third mannos oferecem a possibilidade de ilustrar-nos sobre as

    formas depr em imagemao mesmo tempo que nos instruem sobre os fundamentos da

    interpretao (ao fim e ao cabo, apesar da sua singularidade, no deixa de ser um

    thriller). Esse trabalho no necessariamente mais subtil nem mais discreto, ainda

    quando, acostumados a falar do cinema em termos de narrao, possa resultar-nos mais

    difcil identificar as suas apostas e as suas operaes. Em realidade, enquanto que a

    compreenso da trama de um filme depende do conhecimento prvio de uma srie de

    convenes, as imagens, em si, se oferecem ao nosso olhar sem pressupostos, no

    solicitando de ns outra coisa que o nosso tempo e a nossa curiosidade, a nossa

    memria e a nossa imaginao.

    O que nos resulta inquietante, em verdade, o estranhamento que a colocao

    em jogo de recursos desse tipo produzem em ns, habituados pelas poticas televisivas

    e cinematogrficas hegemnicas a que as imagens se nos ofeream sob os modos da

    naturalidade e da transparncia (por princpio, impossveis). Por exemplo, estamos

    acostumados a que as imagens sejam filmadas em enquadramentos fixos, ou em

    deslocaes suaves, de preferncia imperceptveis. Da que quando, num filme, se

    introduzem cenas filmadas com cmara subjetiva e sem expediente a mecanismos de

    estabilizao, identifiquemos de imediato uma espcie de anomalia. Em realidade, a

    nossa viso est mais prxima disto, inclusive se o nosso crebro capaz de compensar

    boa parte dos nossos movimentos na construo do que vemos. Basta que nos alteremos

    um pouco para que as imagens comecem a dar saltos.

    Em Irrversible (2002), Gaspar No nos oferece uma experincia intensa detodo o que pode entrar nessas variaes da percepo. Durante os primeiros minutos do

    filme, a cmara assume uma posio subjetiva e um comportamento frentico, agitando-

    se constantemente, transmitindo-nos uma sensao de angstia e nervosismo difcil de

    suportar, que nos contagia o prprio nimo de Markus (Vincent Cassel) e nos faz

    2Nem todas as imagens cinematogrficas se prestam a essas aventuras, que, pelo contrrio, muitas vezestendem a reforar os esquemas psicofsicos de reao condicionada e os cdigos expressivos institudos,sobredeterminando o sentido das imagens e deixando pouco ou nenhum espao para o exerccio crtico do

    olhar. Quando o cinema se abre a tal, implica um desfasamento em relao ao seu funcionamento comum(Rancire, 2011, p. 12). Cf. Pellejero, Eduardo. Eikasa: A conscincia nas sombras do cinema. In:Paralaxe, n especial. So Paulo: PUC-SP, 2014.

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    partcipes da vingana. Mais tarde a cmara tomar distncia e assumir uma posio de

    total imobilidade, dando-nos a ver, durante quase dez minutos, sem vus nem cortes

    nem rodeios, a tremenda cena da violao de Alex (Monica Bellucci). A tambm, a

    opo da cmara fixa tem um objeto especfico, que enfatizar a crueldade da cena,

    reduzindo a zero qualquer distrao possvel, impedindo-nos de focar a vista noutro

    lugar que no seja o corpo torturado da protagonista. difcil, se no impossvel,

    contemplar a cena do princpio ao fim, pelo menos sem parar para tomar ar, para

    recuperar a compostura. E no se trata de um efeito decorrente apenas do contedo da

    cena, que em ltima instncia (lamentavelmente) humana, demasiado humana, mas da

    composio esttica da imagem, em si mesma totalmente inumana: ningum capaz de

    contemplar com semelhante frialdade, sem piscar sequer, uma cena assim. Raras vezes

    o cinema demostrou to claramente que a composio de um plano uma questo

    moral3. A onde est a cmara, no h ningum, apenas uma mquina. S pode tratar-se

    do olhar de um deus perverso ou, o que o mesmo, do nada4. Essa paradoxal quietude

    da cmara perante a imagem que nos revolve o estmago no s suspende a progresso

    da histria, mas a coloca de cabea para baixo, forando inclusive a inverso da

    sucesso temporal que pressupem os incidentes da trama. Em todo o caso, esses

    recursos (cmara frentica/cmara imvel), que certamente procuram golpear a

    sensibilidade do espectador antes que este tenha clara conscincia do que est vendo, se

    encontram totalmente vista; logo disponveis para a nossa considerao crtica ao

    contrrio do que em geral acontece nas poticas da transparncia que procuram

    manipular a nossa percepo sem que o notemos. Como possvel no sermos

    sensveis, depois de ver o filme de No, s formas habituais em que posta em imagem

    a violncia5? Como esquecer que o movimento ou a quietude das imagens so algo mais

    do que metforas do compromisso ou da indiferena do olhar?

    De modo geral, chamando a nossa ateno sobre as propriedades estticas dasimagens, sobre as formas sempre singulares da sua articulao, o cinema afirma sem

    rodeios a sua prpria artificialidade. conscincia ou no dos seus realizadores,

    habitualmente s costas dos seus produtores, nega assim que seja possvel dar conta de

    3Como sabido, Godard afirmava que o travelling uma questo moral, brincando com uma frase deLuc Moullet, que pela sua vez afirmara que a moral uma questo de travellings.4Para ns, pelo contrrio, as imagens sempre esto em movimento, inclusive as imagens estticas da

    pintura e da fotografia, mesmo que no seja seno porque os nossos olhos nunca ficam quietos.5Recentemente, Dan Gilroy tematizou de forma arrepiante os dispositivos televisivos de pr em imagema violncia. Cf.Nightcrawler (2014).

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    uma histria atravs de imagens sem pr em jogo uma srie de operaes complexas,

    que ao mesmo tempo velam e revelam aquilo que as imagens evocam.

    Baz Luhrmann dizia que no cinema tudo tcnica, inclusive quando parece no

    haver. Na sua frequentao, contudo, o reconhecimento da artificialidade, da opacidade

    e do perspectivismo do cinema podem converter-se em oportunidade para aprender

    sobre os dispositivos que aspiram a naturalizar um certo tipo de imagens, dando por

    descontada a sua transparncia e neutralidade logo, proclamando o seu carter

    indicial, exigindo a sua assimilao referencial e a adeso total (acrtica) do nosso olhar.

    A minha inteno, com isto, no distinguir um cinema bom ou libertrio de um

    cinema ruim ou alienante, nem estabelecer uma diferena essencial entre o cinema e a

    televiso. Os clichs nos quais se anquilosa o nosso olhar, e que nos levam muitas vezes

    a equiparar certas poticas cinematogrficas ou televisivas sformas naturaisem que se

    manifesta o mundo aos nossos olhos (se que tem algum sentido falar dessa maneira),

    assombram por igual todos os modos depr em imagem. Ao mesmo tempo, a potncia

    disruptiva das imagens pode manifestar-se em no importa que campo da criao

    artstica, inclusive a rebeldia dos seus criadores, contrariando o sentido das fbulas que

    se propem contar6.

    O que me interessa assinalar menos ambicioso, mas no menos instigante. Se

    trata de considerar algumas das formas em que o cinema pode contribuir para a

    (des)educao do olhar, para a desnaturalizao dos modos incorporados que temos de

    ver, e, pelo mesmo, para a denncia das poticas da transparncia que, ao mesmo tempo

    que procuram satisfazer as expectativas desse olhar normal ou normalizado, contribuem

    para o seu endurecimento.

    As neurocincias nos advertem que detrs do rpido funcionamento da nossa

    viso se estende uma inteligncia to vasta que ocupa quase a metade do nosso crtex

    cerebral, e que, por sua vez, coloca em movimento as zonas do nosso crebro associadas afetividade, memria e imaginao (Hoffmann, 2000, p. 12-13). Ver no apenas

    uma questo de recepo passiva, mas um processo que pe em jogo toda a nossa

    inteligncia.

    Agora, boa parte das operaes que do lugar viso tm lugar em geral de

    modo inconsciente. Isso significa que, em teoria, conhecendo os modos em que tende a

    responder um crebro mdio, em circunstncias normais ou normalizadas, seria possvel

    6Sobre o sentido da fbula contrariada, cf. Rancire, Jacques. La fable cinematographique. Paris: Seuil,2001.

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    propiciar (sobredeterminar) certo nmero de reaes psicofsicas, e inclusive

    emocionais (algo similar j afirmavam os psiclogos da Gestalt). Na prtica, por outra

    parte, constatamos que parece perfeitamente possvel, atravs do agenciamento

    estratgico das imagens, manipular, com propsitos artsticos ou polticos, ideolgicos

    ou comerciais, o modo em que se comporta o nosso olhar e vemos o mundo, induzindo

    expectativas perceptivas, associaes mecnicas, reaes afetivas, etc.7

    Mas tambm possvel, assim como nos mostra a cincia, atravs de

    experimentos pensados especialmente para identificar os automatismos aos que em

    geral se encontra preso o nosso olhar, suscitar o nosso estranhamento enquanto

    espectadores atravs do reagenciamento das propriedades estticas das imagens,

    obrigando-nos a pr em variao e, atravs disso, a pr em questo, o que significa ver e

    dar a ver, olhar e resignificar, contemplar e fazer sentido.

    As nossas mentes no se prestam passivamente manipulao, como temia

    Plato e muitas vezes continua a temer a filosofia. As nossas mentes no so como a

    cera. Porm, sem a desnaturalizao do olhar qual d lugar a experincia esttica,

    seriam muito mais vulnerveis ao constante bombardeamento de publicitrios e

    idelogos.

    3. Uma aprendizagem nas imagens

    Alm das lies sobre o olhar que possa dar-nos atravs das suas histrias, e das

    experincias que possa oferecer-nos para que problematizemos os modos habituais de

    pr em imagem, o cinema tambm pode ser ocasio para o livre exerccio das nossas

    faculdades, sem ideias preconcebidas de um objeto ou um fim a alcanar8.

    Isto assim porque no existe sintaxe das imagens. Se as imagens, em si

    mesmas, pensam, o fazem sob a forma de uma espcie de parataxe.A priori, entre uma

    7 O prprio Einsenstein considerava que o estudo da conduta do homem () e dos seus mtodos depercepo da realidade e formao de imagens, seria sempre determinante [para os cineastas](Eisenstein, 2006, p. 54). E, como assinalvamos antes, alguns grandes cineastas foram verdadeirosespecialistas no clculo das respostas provveis dos espectadores s imagens, e utilizaramestrategicamente esse saber probabilstico para lhe armar ciladas, criar e frustrar expectativas, oucondicionar as suas reaes psicofsicas (com mais ou menos sucesso).8 Sartre dizia que, de forma geral, a arte nos apresenta o mundo, no como uma totalidade fechada,historicamente sobredeterminada, mas como um processo, um devir, sempre em jogo, ao contrrio do queacontece na realidade cotidiana, onde o mundo aparece como o horizonte da nossa situao, como a

    distncia infinita que nos separa de ns mesmos, como a totalidade sinttica do dado, como o conjuntoindiferenciado dos obstculos e dos utenslios mas jamais como uma exigncia dirigida nossaliberdade (Sartre, 2004, p. 49).

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    imagem e outra, no existem nexos de nenhum tipo. As imagens tm isso: cintilam. E

    no se trata apenas de uma singularidade atribuvel precariedade tcnica dos comeos

    do cinema: se trata de uma caracterstica essencial9.

    Por isso mesmo, tambm, a experincia que nos prope o cinema sempre

    maior e menor que as histrias que nos conta. um convite para que estabeleamos por

    conta prpria as conexes que consideramos pertinentes ou inslitas, interessantes ou

    graciosas, crticas ou paradoxais, a partir das justaposies de imagens que nos propem

    os seus filmes.

    Isso quer dizer que podemos aprender do cinema mais do que o cinema nos

    ensina. Ao fim e ao cabo, mesmo quando o cinema se proponha oferecer-nos lies

    sobre o que significa ver e interpretar, no est livre de recair em lugares comuns, nem

    de funcionar de modo preceptivo.

    Spellbound(1945) um filme desse tipo: falho, pelo menos do ponto de vista do

    que quer ensinar-nos sobre a interpretao. Como habitual em Hitchcock, a histria

    abunda em grandes observadores, mas os seus olhares no se dirigem desta vez s

    coisas mesmas, mas repousam todas sobre um saber autorizado (a psicanlise, que

    funciona como uma espcie de cdigo) e uma srie de preconceitos fortemente

    enraizados (comeando por um machismo exasperante). No que a inteno de

    introduzir a teoria dos deslocamentos do inconsciente a partir de certos artifcios do

    surrealismo carea de qualquer interesse. A questo que as imagens transbordam

    constantemente a moldura conceitual na qual pretende enquadr-las a perspectiva de

    interpretao adotada.

    Seja a cena do beijo. Com a escusa de discutir um livro, Constance (Ingrid

    Bergman) irrompe em meio da noite no quarto de Edwardes (Gregory Peck) de quem

    alega ser o Dr. Edwardes, pelo menos (em realidade, John Ballantyne). No momento em

    que ambos deixam cair as mscaras e se aproximam um do outro, a cmara vaiencurtando os planos em rpida sucesso, suspendendo a histria num instante exttico.

    Os olhos chegam a ocupar todo o quadro. Por fim, os dela se fecham para o beijo. Ento

    a imagem se funde na de uma srie de portas abrindo-se, uma detrs da outra, dando

    9Mesmo quando se encontrem incorporadas numa intriga, mesmo quando possam estar articuladas poruma narrao, as imagens so paratxicas. Imaginemos um exemplo limite, em que as imagens sesucedam separadas por placas com conectores lgicos. Inclusive nesse caso, a conexo entre as imagens(includas as imagens dos conectores lgicos) no uma propriedade do que aparece, mas dependesempre das relaes que estabelece cada espectador. As imagens no so apofnticas, no so proposies

    nem enunciados; so uma condensao que excede qualquer figura do sentido. As imagens proliferam,mesmo a contrapelo da sucesso temporal na que se encontram inscritas (por exemplo, uma imagemmodifica retrospectivamente o sentido das anteriores).

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    lugar a um corredor que se perde numa espcie de bruma branca. Evidentemente, se

    trata de uma metfora, de uma bastante bvia, inclusive, pelo menos da perspectiva de

    anlise que prope o filme, que deixa pouca margem para a sua interpretao. E,

    contudo, na sua simplicidade, essa imagem nos desvia, por excesso e por defeito,

    daquilo do que pretende ser metfora, suscitando o livre devaneio da nossa imaginao.

    As imagens no se traduzem umas s outras. As imagens ressoam entre si, no

    apenas as que se sucedem na trama, mas em geral, em ns. Assim como na cena do

    beijo, ou perante a imagem esttica da rvore outonal da abertura, o que vemos nos

    afeta sempre, em parte, margem de qualquer rede estabelecida de sentido, de qualquer

    quadro de interpretao. No independentemente de tudo isso, mas numa tenso

    constante, sem resoluo evidente10. Nesse sentido, o mais interessante do filme de

    Hitchcock que, alm das suas apostas ostensivas, das suas intenes e dos seus

    artifcios, nos oferece uma experincia intensa dessa dimenso do funcionamento das

    imagens, da qual qui no haja lio alguma a extrair, mas da qual talvez possamos

    apreender muito. Quando a histria seja retomada, nos submergiremos nela novamente,

    com mais ou menos interesse, mas improvvel que voltemos a aderir completamente

    ao argumento que rege a intriga, que sejamos fascinados por ele, agora em plena

    conscincia de que as imagens no so apenas uma pista a ser decifrada e de que o olhar

    algo mais do que um mero instrumento de exame. Pelo menos esse feitio j no pesa

    sobre ns.

    Sem lugar a dvidas, as imagens cumprem diversas funes no cinema: ilustram

    a intriga, pontuam a trama, enfatizam os momentos dramticos, materializam o estado

    de nimo das personagens, etc. Mas a sua singular natureza faz com que,

    independentemente dos servios que possam vir a prestar, acabem sempre por fraturar a

    intriga, contrariar a fbula, exceder o drama, despersonalizar as personagens, etc.

    Nesses momentos, que so indissociveis do seu carter sensvel, as imagens nosoferecem a oportunidade de exercitar-nos em algo mais do que na moral das histrias

    que nos conta o cinema.

    Isso no quer dizer que o cinema no possa contar histrias, nem que as histrias

    caream em si mesmas de interesse. Pelo contrrio. Porm, a partir do momento em que

    10A msica tambm pode contrariar a fbula cinematogrfica. EmLisbon story(1994), de Wim Wenders,h um longo momento musical, quando Winter (Rdiger Vogler) descobre o ensaio de Madredeus, que

    nos arranca totalmente do filme. Como o protagonista, fechamos os olhos, ou, mantendo-os abertos,perdemos a vista num ponto qualquer, como numa sala de concertos, e viajamos com a msica. O cinematambm nos depara coisas assim: verdadeiros momentos de arrebatamento.

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    certas imagens perturbam o decoro do seu desenvolvimento argumental, escorregam,

    indo ao encontro de outras imagens, de intuies e de ideias, desencadeando uma

    mirade de histrias possveis, assim como dando lugar a experincias que no traduzem

    bem as figuras da narrao.

    O cinema nunca deixou de contar histrias, e hoje, na poca que a nossa, qui

    privilegiemos a sua forma de faz-lo sobre qualquer outra. A questo que o cinema

    no conta nunca apenas uma histria, ou no se limita nunca a contar histrias. A sua

    intimidade com as imagens lhe impede isso. Entre a histria que resume o argumento e

    as operaes que, numa dialtica complexa, se articulam no entrelaamento do

    argumento e as imagens dos filmes, por um lado, e a memria e a imaginao dos

    espectadores, por outro, as aventuras da percepo e do sentido proliferam sem

    controlo.

    Isso assim inclusive nos filmes que se inscrevem no cinema de gnero, no

    sistema de estudos ou na indstria do entretenimento11. Em The player(1992), Robert

    Altman, que nunca ignorou a abertura das imagens s quais d lugar o cinema, e que em

    certa medida deixava sempre o corte finalem mos do espectador12, faz a crtica mais

    corrosiva desse cinema que se prope filmar The Graduate Part II, ou a cynical,

    psychic, political, thriller comedy with a heart. Mas Altman no deixa de filmar por

    isso. Sabe que, inclusive sendo obrigado a negociar, o cinema sempre acaba por se

    vingar desse sistema, transgredindo as suas leis, transbordando a lgica doplot.

    De um ponto de vista filosfico, qui seria mais apropriado falar de um excesso

    do real sobre a representao. A conscincia histrica que temos desse excesso,

    modifica as formas pelas que fazemos, vemos e pensamos a arte. E, no caso do cinema,

    nos difcil imaginar como poderamos faz-lo, v-lo ou pens-lo de outra maneira

    (seja porque o cinema contribui para a emergncia dessa conscincia, seja porque ganha

    11Nisto guardo uma dvida impagvel para com as aulas de Mrio Jorge Torres, com quem aprendi tudo oque entra em jogo quando vemos um filme.12 Robert Altman acostumava filmar os seus filmes utilizando vrias cmaras, que exploravam cenasmltiplas, nas que tinham lugar muitas coisas ao mesmo tempo. Essa estranha forma de filmar tinha umpropsito. Altman dizia que estava procura de um momento especial, de um momento verdadeiro. Maso reconhecimento da verdade algo que deixava em ltima instncia em mos do espectador. Paramultiplicar ainda mais as aberturas, nos anos setenta comea a utilizar uma gravadora de oito canais, quelhe permitia gravar a voz dos atores individualmente, para depois, na mesa de edio, mistur-las de tal

    forma que duas ou mais conversas tivessem lugar ao mesmo tempo, como em The long goodbye(1973) o espectador que deve decidir a que conversa prestar ateno, dado que no possvel escutar todas aomesmo tempo.

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    consistncia em virtude dessa conscincia emergente13). O certo que, para os homens

    que somos, as suas imagens jamais chegam a identificar-se completamente com a

    representao, e, alm de funcionar como ilustrao ou pontuao das representaes

    das que formam parte, pem a trabalhar o excesso da sua realidade contra as prprias

    figuras da representao s quais do corpo.

    Mais uma vez, isso no significa que, perante as imagens do cinema, devamos

    evitar qualquer representao, que no possamos acompanhar a intriga ou contar-nos

    histrias que divergem mais ou menos da intriga. No fundo, como diria Bergson,

    qualquer representao particular, artificial, e em certa medida arbitrria, mas o fato

    de nos fazer representaes universal, natural, e em certa medida, tambm, necessrio

    (e essa distino qui outra forma de definir o princpio da emancipao).

    Mais simplesmente, digamos que o cinema no se esgota nas histrias que conta,

    nos argumentos que encena, mas que se encontra essencialmente aberto a uma

    articulao do que os seus filmes nos propem com tudo aquilo que somos capazes de

    pr da nossa parte.

    4. Cinema e emancipao

    Os exemplos expostos no tm nenhum valor especial, no constituem um

    modelo nem propem um mtodo. A aprendizagem que nos convida o cinema, em

    virtude da distncia que assegura o exerccio livre das nossas faculdades em relao ao

    espetculo14, inevitavelmente um processo sempre individual, que ningum pode

    poupar-nos, e necessariamente devemos conduzir ns prprios.

    Evidentemente, as imagens que interrompem as suas intrigas e contrariam as

    suas fbulas podem ser, e muitas vezes so produto das obsesses de um realizador (por

    13 Sabemos que Deleuze lia a desconexo entre a intriga e as imagens a partir do que denominava aruptura do lao sensrio-motor, que atribua, por outra parte, aos acontecimentos traumticos da SegundaGuerra Mundial, retomando, de alguma maneira, a ideia adorniana de que no possvel continuar aescrever poesia depois dos campos. Da mesma forma, j no seria possvel continuar a fazer filmes comose faziam at ento, algo grande demais teria acontecido, algo que invalidaria inevitavelmente as formasde inscrever as imagens numa trama. A pertinncia desse recorte, em todo o caso, se presta polmica.Walter Benjamin identifica esse momento decisivo nas prprias origens do cinema; John Berger nosprimeiros anos do cubismo; Jacques Rancire, na literatura francesa do sculo XIX. Qui o que seencontra em jogo exceda qualquer tentativa de atribuir um acontecimento desencadeante mudanaoperada no que respeita aos modos em que fazemos, vemos e pensamos as imagens (Pellejero, 2013). Ocerto que constatamos uma mudana na nossa conscincia histrica, para a qual o passado j no cabe

    na histria (Rojas, 2015), assim como a realidade no cabe na representao.14 A distncia no um mal a abolir, antes a condio normal de toda a comunicao. (Rancire,2010, p. 19)

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    exemplo, homens pendurados na borda de um abismo em Hitchcock), ou uma marca de

    gnero (como quando nos filmes de terror a cmara se aproxima, da praia ou do mato,

    janela de uma cabana no meio da noite), ou inclusive efeito da aura de um ator ou de

    uma atriz (os olhos de Greta Garbo). Mas tambm, de forma mais geral, essas imagens

    podem ganhar a sua fora suspensria dos investimentos do nosso olhar com o qual

    qualquer imagem poderia, em princpio, ser arrancada de um filme, arrancando pela sua

    vez o filme do seu progresso intrnseco, para inscrever-se num jogo livre de associaes

    e dissociaes, de inveno e de crtica.

    O cinema capaz de lies magistrais, assim como de uma potncia crtica

    impondervel, mas, sobretudo, ocasio de aventuras afetivas e intelectuais. Se nos

    entregamos a elas com paixo, lucidez e perseverana, podemos chegar a apreender

    muito sobre ns, sobre a profundidade da nossa sensibilidade e a espontaneidade da

    nossa inteligncia, sobre a persistncia da nossa memria e a rebeldia da nossa

    imaginao. No seu espao15, ao fim e ao cabo, no s tem lugar a suspenso da

    incredulidade que exigem as suas fbulas, mas tambme isso menos evidente, mas

    muito mais importante a das formas habituais de relacionarmo-nos com o sensvel,

    com o que se d e aparece.

    Em ltima instncia, o cinema no um espelho da natureza nem do homem. A

    ideia de que a arte levanta um espelho no qual se contemplam o homem e a natureza,

    dizia John Berger (2002, p. 155) uma maneira de subestimar a realidade em lugar de

    interpret-la. O cinema , antes, um lugar de experimentao no sempre para os

    diretores, os atores ou os estdios, mas seguramente sempre para nsonde as imagens

    foram as nossas faculdades a duvidar e especular, a interrogar e propor hipteses,

    abrindo gretas que podem chegar a comover os cimentos da nossa percepo e os modos

    que habitualmente damos por descontados para a sua interpretao.

    Nisso, as aventuras do cinema guardam certa semelhana com as da observaocientfica. Num como noutro caso, do que se trata de ligar o que se sabe com o que se

    ignora (Rancire, 2010, p. 27), mesmo quando o ato de olhar uma imagem seja muito

    menos concentrado e a imagem atraia uma gama mais ampla e variada das experincias

    do espectador (Berger, 2002, p. 179). Resta que, no caso do cinema, ao contrrio que

    no caso da cincia, o saber do qual partimos no exige nenhum prestgio particular.

    Desde as suas origens nas feiras, o cinema sempre foi fiel ao seu ascendente popular,

    15No me refiro apenas escurido das salas onde tradicionalmente teve lugar, mas tambm luz comque emana das telas de qualquer tipo.

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    sobretudo quando os seus artifcios formais aspiram a assombrar o olhar do espectador

    comum. O singular exerccio da liberdade que nos prope se dirige a todos e cada um de

    ns, no importa quem, na espera de que assumamos o nosso papel de intrpretes ativos,

    capazes de fazer das suas histrias a nossa prpria histria (Rancire, 2010, p. 27).

    J em 1935, Walter Benjamin celebrava essa abertura democrtica do cinema,

    que conjugava, de forma nunca antes vista, as distraes do povo e as provocaes da

    vanguarda, e que, sob a forma de uma experincia ldica, propiciava a emancipao

    intelectual dos seus espectadores. Com o tempo, tornou-se comum fazer pouco do seu

    otimismo, reduzindo as suas teses a uma definio da essncia das suas imagens. Mas o

    que estava em jogo para Benjamin, e continua a estar em jogo para ns, era a

    possibilidade de uma relao.

    Com frequncia esquecemos que qualquer homem capaz de interrogar

    criticamente o que v a partir do visto e do pensado, do vivido e do imaginado, quando

    dessa potncia comum que depende a sobrevivncia do sonho benjaminiano de uma

    arte de massas que seja ao mesmo tempo promessa de aventuras espirituais16.

    margem das apostas da indstria cinematogrfica, e dos filmes bons ou maus que

    continuam a fazer-se, o cinema continua a ser um convite para que a exercitemos em

    liberdade.

    Referncias

    BERGER, John. El sentido de la vista. Madrid: Alianza, 2002EISENSTEIN, Sergei.El sentido del cine. Mxico: Siglo XXI, 2006.HOFFMANN, Donald.Inteligencia visual. Barcelona: Paidos, 2000.

    PELLEJERO, Eduardo. Eikasa: A conscincia nas sombras do cinema. Em: Paralaxe,n especial. So Paulo: PUC-SP, 2014PELLEJERO, Eduardo. Modos de fazer / Modos de ver / modos de pensar (Arte semsupersties). Em: Multito: experimentaes, limites, disjunes, artes e cincias.Feira de Santana: UEFS Editora, 2012RANCIRE, Jacques, O destino das imagens. Lisboa: Orfeu Negro, 2011.RANCIRE, Jacques.La fable cinematographique. Paris: Seuil, 2001.RANCIRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.ROJAS, Sergio.El pasado no cabe en la historia. Conferencia oferecida na UniversidadComplutense de Madrid no dia 5 de Junho de 2015. Madrid: UCM, 2015 (sem

    publicar).

    16 Cf. Sontang, Susan. Um sculo de cinema. Em: Questo de nfase. So Paulo: Companhia dasLetras, 2005.

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    SARTRE, Jean-Paul, Que a literatura? So Paulo: Editora tica, 2004.SONTANG, Susan. Um sculo de cinema. Em: Questo de nfase. So Paulo:Companhia das Letras, 2005.