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FACULDADE DE DIREITO BACHARELADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS Eduardo Pazinato da Cunha CONSELHO MUNICIPAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA: A EXPERIÊNCIA DE GESTÃO PARTICIPATIVA DA SEGURANÇA EM PORTO ALEGRE (RS) Porto Alegre, 2006

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FACULDADE DE DIREITO BACHARELADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

Eduardo Pazinato da Cunha

CONSELHO MUNICIPAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA: A EXPERIÊNCIA DE GESTÃO PARTICIPATIVA DA

SEGURANÇA EM PORTO ALEGRE (RS)

Porto Alegre, 2006

Eduardo Pazinato da Cunha

CONSELHO MUNICIPAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA: A EXPERIÊNCIA DE GESTÃO PARTICIPATIVA DA

SEGURANÇA EM PORTO ALEGRE (RS)

Trabalho de conclusão apresentado à banca examinadora como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Porto Alegre, 2006

2

Eduardo Pazinato da Cunha

CONSELHO MUNICIPAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA: A EXPERIÊNCIA DE GESTÃO PARTICIPATIVA DA

SEGURANÇA EM PORTO ALEGRE (RS)

Trabalho de conclusão apresentado à banca examinadora como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovado pela Banca Examinadora em ......... de ................................... de 2006

Banca Examinadora:

_____________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Orientador

_____________________________________________

_____________________________________________

3

Dedico aos meus pais, José Francisco Miranda da Cunha

e Edair Maria Pazinato da Cunha, ao meu irmão, Márcio

Pazinato da Cunha, e a Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente aos meus pais pelo respaldo afetivo e material de

sempre, pelo amor, pelas vidas compartilhadas e pela maior herança que poderiam

me legar: a educação; ao meu irmão pela cumplicidade e amizade conquistadas ao

longo das nossas vidas e ao Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, orientador, professor,

amigo, exemplo de ser humano e de profissional, pelo respeito, lealdade e

confiança.

Aos professores Léo Peixoto Rodrigues, Cláudio Fortunato Michelon e in

memorian de Marcelo Muñoz Küfner.

A Roberta Camineiro Baggio e a Paulo Abrão Pires Junior, professores,

amigos e companheiros por um mundo mais justo e solidário.

Aos meus amigos Marcelo Dalmás Torelly, Iagê Zendron Miola, Caroline

Zamboni de Souza e Vanessa Dorneles Schinke.

Aos meus amigos de colégio (São João), cuja amizade permanece até hoje,

apesar da distância.

Aos amigos e colegas do curso de Ciências Sociais da UFRGS.

Aos meus colegas e amigos integrantes do Núcleo de Assessoria Jurídica

Popular (NAJUP/PUCRS), do Núcleo de Estudo e Pesquisa Ambiente e Direito

5

(NEPAD/PUCRS), do Grupo de Estudo em Políticas Públicas de Segurança, Justiça

e Cidadania (GPESC), em especial a Andréa Lucas Fernanda, e da Associação de

Jovens Empresários de Porto Alegre (AJE-POA).

6

“Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do

cotidiano tornem um homem duro ou cínico o suficiente

para ele permanecer indiferente às desgraças ou alegrias

coletivas, sempre haverá no seu coração, por minúsculo

que seja, um recanto suave onde ele guarda ecos dos

sons de algum momento de amor que viveu na sua vida.

Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se

deixou endurecer, de forma a atingi-lo no pequeno núcleo

macio de sua sensibilidade e por aí despertá-lo, tirá-lo da

apatia, essa grotesca forma de autodestruição a que por

desencanto ou medo se sujeita, e inquietá-lo e comovê-lo

para as lutas comuns da libertação.”

Plínio Marcos (Canções e Reflexões de um Palhaço)

7

RESUMO

A presente pesquisa objetiva investigar o papel, os limites e as

possibilidades de o Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de Porto

Alegre afirmar-se como um ator/sujeito importante para a constituição de uma

esfera pública não-estatal de participação da cidadania e da sociedade civil

organizada na proposição, no monitoramento e na fiscalização de políticas

públicas de segurança em âmbito municipal. Para tanto, procedeu-se a uma

análise teórica de diversos temas em torno dos quais esse instrumento de

participação comunitária se estrutura (pluralismo-democracia participativa-esfera

pública-descentralização político administrativa-municipalização da segurança

pública-direitos fundamentais) e uma análise dos coletados na pesquisa de

campo (estudo de caso, envolvendo a análise da legislação que dá suporte ao

CMJS e observação (não) participante: Pré-conferências Municipais de

Segurança Urbana e I Conferência Municipal de Segurança Urbana, e a

realização de entrevistas com gestores públicos da Secretaria Municipal de

Direitos Humanos e Segurança Urbana de Porto Alegre e com o Presidente do

CMJS). Afinal, pode-se concluir que a criação do CMJS representou um avanço

8

importante para a gestão participativa da segurança pública em Porto Alegre,

embora ainda não plenamente desenvolvida.

Palavras-Chave: Gestão Participativa. Municipalização da Segurança Pública.

Conselho Municipal de Justiça e Segurança.

9

ABSTRACT

This paper intends to investigate the role, the limits and the possibilities of

the Justice and Security Municipal Council in Porto Alegre (JSMC) to become an

important actor/subject to a constitution of a non-state public sphere of citizenship

and civil society’s participation in proposition, evaluation and fiscalization of public

security policies in cities. For this, it made a theorical analysis envolving many

issues around the main subject (pluralism-participative democracy-non-state

public sphere-political-administrative descentralization-municipalization of public

security-fundamental rights) and an analysis about the information searched from

field research (study of case: legal texts that support (JSMC) and (non)

participative observation: Municipal Conferences of Urban Security in Porto Alegre

and interviews with public managers of Municipal Office of Human Rights and

Urban Security in Porto Alegre and the president of JSMC. At the end, it is

possible to conclude that the foundation of JSMC represented an advance to an

important process of participative administration of public security in Porto Alegre,

although incomplete.

Key-Words: Participative Administration. Municipalization of Public Security. Justice

and Security Municipal Council.

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12 1 A REFUNDAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO COMO INSTÂNCIA DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA CIDADANIA .........................................................17 1.1 Breve história da formação do Estado Liberal de Direito à Crise do Estado Social ..................................................................................................17 1.1.1 O Estado Liberal de Direito: a emergência da dicotomia Estado/ Sociedade Civil ......................................................................................17 1.1.2 A Crise do Estado Liberal de Direito e o Surgimento do Estado Social ......................................................................................................23 1.1.3 Estado Social e(m) Crise: a Degeneração do Estado de Direito .......29 1.2 Pluralismo, democracia e esfera pública: as (re)definições dos conceitos de público e de privado no Estado Contemporâneo .................32 1.3 A revigoração do poder local: a cidade como lócus privilegiado de atuação da cidadania para a proposição, o monitoramento e a fiscalização de políticas públicas de segurança .........................................41 2 O MODELO DA NOVA PREVENÇÃO: SEGURANÇA COMO DIREITO SOCIAL..................................................................................................................53 2.1 O modelo da nova prevenção e a necessária transversalidade das políticas públicas de segurança em âmbito municipal...............................53 2.2 O conceito de segurança como direito social: para além do senso comum teórico do enfoque criminal da segurança.....................................66 2.3 Aproximações teóricas entre os conceitos de eficácia vinculativa dos direitos fundamentais e o princípio da comunidade...................................75 3 UMA ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA DO CONSELHO MUNICIPAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA DE PORTO ALEGRE .................................................................85 3.1 O contexto do reconhecimento dos conselhos municipais a partir do advento da Constituição Federal de 1988 ....................................................85

11

3.2 A municipalização da segurança pública: pressupostos para uma agenda mínima ...............................................................................................92 3.3 O Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre: notas para um estudo de caso ................................................................................97 3.3.1 Metodologia ...........................................................................................97 3.3.1.1 Método de Abordagem..............................................................97 3.3.1.2 Método de Procedimento..........................................................98 3.3.1.3 Técnicas de Pesquisa ...............................................................99 3.3.2 Breves Considerações sobre o Processo de Municipalização da Segurança Pública em Porto Alegre..................................................100 3.3.3 Análise do Suporte Legal do Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de Porto Alegre ...................................................103 3.3.4 Análise da Pesquisa de Campo (Pré-conferências Municipais de Segurança Urbana, I Conferência Municipal de Segurança Urbana de Porto Alegre e entrevistas) ..............................................110 CONCLUSÃO .........................................................................................................127 REFÊRENCIAS.......................................................................................................130 ANEXOS .................................................................................................................140

12

INTRODUÇÃO

O tema da segurança pública tem despertado grande interesse da sociedade

e ocupado lugar de destaque na agenda política nacional e internacional. O aumento

objetivo dos índices de criminalidade, o crescimento do sentimento de insegurança

pública e a percepção coletiva de que o enfrentamento da criminalidade e o controle

da violência são responsabilidades de todas as instâncias governamentais (federal,

estadual e municipal) apresentam-se como hipóteses plausíveis para explicar a

centralidade conquistada por essa temática no país desde meados dos anos

oitenta1.

A despeito do modelo de policiamento adotado no Brasil e das limitações

impostas pela literalidade do texto constitucional, importantes experiências de

políticas de segurança têm sido implementadas pelas administrações municipais,

mormente na última década.

Nesse contexto, a presente pesquisa pretende investigar o papel, os limites e

as possibilidades de o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre

1 KAHN, Túlio; ZANETIC, André. O Papel dos Municípios na Segurança Pública. Disponível em:

<http://www.ssp.sp.gov.br>. Acesso em: 29 out. 2005.

13

(RS) afirmar-se como ator/sujeito importante para a constituição de uma esfera

pública não-estatal de participação da cidadania e da sociedade civil organizada na

proposição, no monitoramento e na fiscalização de políticas públicas de segurança

em âmbito municipal.

Parte-se do pressuposto de que tanto a descentralização político-

administrativa promovida pela Constituição Federal de 1988 quanto a emergência de

novas possibilidades de compreensão e tratamento dos conflitos sociais para além

do método penal estabeleceram as bases para a constituição de um novo modelo de

segurança pública, menos centrado no papel repressivo e reativo do Direito Penal e

do sistema de justiça criminal (Judiciário, Polícias e Prisões), e mais na construção

de alternativas democráticas e dialogais para a gestão e mediação dos conflitos e da

violência.

Trata-se, pois, de revigorar a importância do poder local na definição das

políticas públicas em vista do instrumento dos Conselhos Municipais2; reconhecer o

alargamento conceitual da questão da segurança pública por meio do qual se

deslocou o enfoque do controle repressivo-penal do crime, para uma concepção

preventiva da violência e da criminalidade, assente no desenvolvimento de políticas

integrais e protetivas de direitos (movimento da nova prevenção), privilegiando o

caráter interdisciplinar, pluriagencial e comunitário3; perquirir novas interfaces

2 GOHN, Maria da Glória. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. São Paulo: Cortez,

2001. 3 BARATTA, Alessandro. La politica criminal y el Derecho Penal de la Constitución: nuevas

reflexiones sobre el modelo integrado de las Ciencias Penales. In: Revista de La Facultad de Derecho de La Universidad de Granada, n.° 2, 1999, p. 89-114; BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Editora Revan: Rio de Janeiro, 2002; GARLAND, David. La Cultura del Control: Crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona: Editorial Gedisa, 2005; DIAS NETO, Theodomiro. Segurança Urbana: o modelo da nova prevenção. São Paulo: RT, 2005.

14

hermenêuticas entre a Criminologia Crítica, a Nova Cultura do Controle do Delito e a

Dogmática-constitucional e o Direito Administrativo na abordagem do conceito de

segurança como direito social, a partir da superação do senso comum teórico4 do

enfoque criminal desse tema e, afinal, verificar in loco essas reflexões teóricas a

partir de uma análise sócio-jurídica da experiência de Porto Alegre no campo da

segurança pública, por meio da instituição do novel Conselho Municipal de Justiça e

Segurança.

Com efeito, sirvo-me dos métodos histórico, comparativo e do estudo de caso.

Histórico e comparativo, na medida em que se analisou, mais detidamente no

primeiro e segundo capítulos, a formação do Estado Liberal de Direito, a crise do

Estado Social e a necessidade de refundação solidária e participativa do Estado, as

novas teorias do pluralismo (surgimento de novos núcleos de poder além do estatal)

e da democracia (participativa), as (re)definições dos conceitos de esfera pública,

perpassado por elementos públicos e privados, no bojo das reformas por que passa

o Estado Contemporâneo, a partir da valorização da participação da cidadania e da

sociedade civil organizada na busca por novas formas de compreensão e

administração das políticas públicas de segurança em âmbito municipal

(transversalidade-ampliação e deslocamento do enfoque criminal da questão da

segurança para uma nova leitura do problema da violência e da criminalidade

baseada nos direitos sociais fundamentais e na proteção integral dos direitos à

coletividade).

4 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito. A Epistemologia Jurídica da Modernidade.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 71-75.

15

Ao final, adota-se a metodologia do estudo de caso do Conselho Municipal de

Justiça e Segurança de Porto Alegre, de forma a analisar, na prática, os limites e as

possibilidades de se estabelecer um novo arranjo sócio-político para a proposição, o

monitoramento e a fiscalização de políticas públicas de segurança, a partir do

reconhecimento da importância e da repercussão sócio-jurídica da gestão

participativa da segurança pública nos municípios.

Cumpre ressaltar, por oportuno, que a natureza do tema escolhido,

envolvendo questões de ordem empírico-analítica e política, as limitações do texto

constitucional acerca da atuação dos municípios na segurança urbana, a falta de

sistematização das experiências de políticas de segurança levadas a efeito pelas

administrações municipais no país e a inexistência de um referencial teórico preciso

impõem uma série de dúvidas tanto aos pesquisadores quanto aos gestores

públicos municipais.

Pode-se afirmar, em vista disso, que este trabalho monográfico constitui-se

em um exercício de bricolage5 intelectual por meio do qual se pretendeu articular

elementos de diversos campos do conhecimento, presentes ao longo de minha

5 O termo é utilizado por Lévi-Strauss para desmistificar a concepção etnocêntrica e evolucionista

que tratava as sociedades “primitivas” segundo a ausência de um princípio ordenador na base pensamento mágico e das práticas rituais. “Aliás, subsiste entre nós uma forma de atividade que, no plano técnico, permite muito bem conceber o que, no plano da especulação, pôde ter sido uma ciência, que preferimos chamar “primeira” ao invés de primitiva; é comumente designada pelo termo bricolage” (LÉVI-STRAUSS, Claude. A Ciência do Concreto. In: O Pensamento Selvagem. Campinas, Papirus, 1997, p. 37-38). O ofício do bricoleur, encontrado na França contemporaneamente, consiste na execução de um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano preconcebido e se afastam dos processos e normas adotados pelas técnicas. Caracteriza-se especialmente pelo fato de operar com materiais fragmentados, já elaborados, “seu universo instrumental é fechado e a regra de seu jogo é a de arranjar-se sempre com os meios-limites, isto é, um conjunto, continuamente restrito, de utensílios e de materiais, heteróclitos, além do mais, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento, nem, aliás, com qualquer projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as ocasiões que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque, ou para conservá-lo, com resíduos de construções e de destruições anteriores.” (LÉVI-STRAUSS, Claude. A Ciência do Concreto. In: O Pensamento Selvagem. Campinas, Papirus, 1997, p. 37-38).

16

formação acadêmica, com uma postura crítica, e mais recentemente propositiva, do

autor no que concerne à compreensão da gestão participativa da segurança pública

a partir da experiência do Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto

Alegre6.

6 Este trabalho somente foi possível em virtude das oportunidades de pesquisa acadêmica que me

foram concedidas ao longo da graduação pelo Professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, entre as quais se destaca, pela afinidade temática com o objeto de estudo em tela, o projeto de iniciação científica: “A Municipalização da Segurança Pública: Bases Teóricas e Experiências de Implementação no RS”, do qual sou bolsista pelo programa BPA/PUCRS.

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1 A REFUNDAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO COMO INSTÂNCIA DE PARTICIPAÇÃO

POLÍTICA DA CIDADANIA

1.1 Breve história da formação do Estado Liberal de Direito à Crise do Estado

Social

1.1.1 O Estado Liberal de Direito: a emergência da dicotomia Estado/

Sociedade Civil

A concepção moderna de política e cidadania erige-se a partir do

estabelecimento do projeto liberal do Estado de Direito ao longo do século XIX.

Destaca-se, nesse período, a demarcação jurídica das fronteiras que separam a

esfera pública do Estado da esfera privada da sociedade civil7. Conforme Santos:

7 De acordo com Bobbio, através do Corpus iuris a dupla de termos público/privado fez seu ingresso na

história do pensamento político e social do Ocidente. Posteriormente, em função do uso constante e contínuo, sem substanciais modificações, acabou por se tornar uma das “grandes dicotomias” das quais uma ou mais disciplinas, no caso, não apenas as disciplinas jurídicas, como também as sociais e em geral históricas, dela se servem para delimitar, representar, ordenar o próprio campo de investigação. A relevância conceitual e classificatória da dicotomia público/privado revela-se pelo fato de que ela compreende, tanto quanto nela convergem, outras dicotomias tradicionais, entre as quais, para os propósitos deste estudo, a dicotomia sociedade civil/Estado. Assim, as acepções da dicotomia sociedade civil/Estado variam de acordo com a tradição em que se filie o interlocutor (marxiana, hegeliana, jusnaturalista, etc.). Afinal, impõe-se considerar, como o faz Bobbio, o fato de sociedade e Estado atuarem como dois momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos, mas interdependentes, do sistema social em sua complexidade e em sua articulação interna. (BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: Para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004a, p. 13-15;33-49). Outro enfoque sobre o tema pode ser encontrado na obra de Santos, da qual reproduzimos um breve excerto: “O projeto da modernidade é fértil em dicotomias, o que em última análise se deve atribuir ao modelo de racionalidade cartesiana que lhe subjaz. Este modelo não é monolítico, mas em qualquer das lógicas de racionalidade em que se desdobra estão presentes como princípios organizadores polarizações dicotômicas. Na racionalidade instrumental-cognitiva, as dicotomias sujeito/objeto e cultura/natureza; na racionalidade estético-expressiva, as dicotomias arte/vida e estilo/função; na racionalidade moral-prática, as dicotomias sociedade/indivíduo e público/privado.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado e o Direito na Transição Pós-Moderna: Para um novo senso comum. In: Revista Humanidades, v. 7, n. 3, 1991, p. 265-282). Consulte também: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 91-106.

18

A modernidade do Estado constitucional do século XIX é caracterizada pela sua organização formal, unidade interna e soberania absoluta num sistema de Estados e, principalmente, pelo seu sistema jurídico unificado e centralizado, convertido em linguagem universal por meio da qual o Estado comunica com a sociedade civil. Esta, ao contrário do Estado, é concebida como o domínio da vida econômica, das relações sociais espontâneas orientadas pelos interesses privados e particularísticos.8

Essa clivagem entre esfera pública e esfera privada visa, pelos menos a

priori, assegurar à sociedade civil a possibilidade de estabelecer, com autonomia,

relações econômicas, profissionais, culturais e familiares, livres da ingerência do

Estado.9 Trata-se, pois, de um mecanismo que encerra um duplo objetivo: a

despolitização da esfera sócio-econômica, tendo em vista a proteção da autonomia

(religiosa, econômica, moral) da sociedade civil em relação à intervenção

desmesurada do Estado e o controle, mesmo que em tese, das formas de poder que

grassam na sociedade civil, podendo comprometer a dita isenção (religiosa,

econômica, moral) do Estado.10

A despeito de não ser este o objeto de estudo do presente trabalho, há que se

ponderar, na esteira do que sustenta o sociólogo português sobredito, que o

dualismo Estado/sociedade civil nunca se assentou de maneira tão inequívoca. Pelo

8 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São

Paulo: Cortez, 2003a, p. 117-124. 9 É preciso lembrar que o estabelecimento do Estado Liberal de Direito ocorreu como superação do

Estado Absolutista, daí a constante tensão entre os limites de atuação do Estado e da sociedade. Bobbio considera o termo Absolutismo problemático e ambíguo, em virtude das várias acepções que recebeu ao longo da história, por isso: “a força polêmica do termo”. Por oportuno, resgata-se uma reflexão do autor bastante interessante para o objetivo primordial deste primeiro capítulo: “Os modelos posteriores, tanto os de tipo constitucional quanto os de tipo absolutista e iluminista, como ainda os mais modernos do Estado de Direito e do Estado social, não serão capazes de sair da rígida relação-separação em que o Absolutismo, mediante o recurso da soberania, havia fundado a própria obrigação política: aquela que existe entre autoridade e súdito. Só no âmbito desse dualismo e na delimitação precisa das respectivas competências é possível, por um lado, conhecer as fronteiras exatas, por mais amplas e extensas que sejam para Hobbes, do poder e, portanto, limitá-lo de alguma forma e, por outro, estabelecer e defender o âmbito de independência e autonomia individual, mesmo quando se trata apenas do espaço interior apolítico de Hobbes.” (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000, p. 1-7).

10 DIAS NETO, Theodomiro. Segurança Urbana: o modelo da nova prevenção. São Paulo: RT, 2005, p. 21.

19

contrário, suscitou infindáveis contendas teóricas, mormente no campo da política e

das análises das relações de poder que permeiam tanto o Estado quanto a

sociedade. Isso porque o paradoxo é tal que “o princípio da separação entre Estado

e sociedade civil engloba tanto a idéia de um Estado mínimo como a de um Estado

máximo e a ação estatal é simultaneamente considerada como um inimigo em

potencial da liberdade individual e como a condição para o seu exercício.”11

Em verdade, a idéia da separação entre Estado e sociedade civil encerra uma

discussão subliminar, sub-reptícia, assente na distinção entre as esferas

econômicas e políticas. Essa suposta antinomia mostrou-se, historicamente, prenhe

de contradições e crises reiteradas, muito em razão de duas contradições, a prima

facie, insolúveis.

A primeira refere-se ao princípio do laissez faire, ou da não intervenção

estatal no universo da economia. Ocorre que, dado o caráter particularístico dos

interesses na sociedade civil, o princípio do laissez faire não pode ser

universalmente válido para todos os interesses. Não por acaso a discussão desse

11 No caso da realidade brasileira, ainda hoje, essa reflexão é bastante atual. A esse respeito

consulte: DAMATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997; LIMA, Kant de Lima. A Antropologia da Academia: quando os índios somos nós. Niterói: EDUFF, 1997; BARBOSA, Lívia O Jeitinho Brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros. Rio de Janeiro: Campus, 1992; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2000) e, apenas para citar autores locais que abordam o tema sob diferentes diferentes perspectivas, pesquise: FEDOZZI, Luciano. Orçamento participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001 e STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, entre outros).

20

princípio fez-se sempre à margem do debate acerca dos interesses a que esse

mesmo princípio se aplicava.12

A segunda contradição refere-se aos mecanismos que ativam socialmente o

princípio do laissez faire. O incremento da legislação sobre política econômica e

social do Estado inglês do século XIX constitui-se em um paradigma interessante de

análise, na medida em que fomentou o aparecimento de novas instituições estatais

(Factory Inspectorate, Poor Law Board, General Board of Health, entre outros), como

também leis específicas (cite-se a legislação de 1825-65 sobre a sociedade por

ações), as quais foram consideradas por uns como um bom exemplo do laissez

faire, por eliminar as restrições à mobilidade do capital, e, por outros, como uma

nítida violação desse mesmo princípio, por conceder às sociedades comerciais

privilégios que eram negados aos empresários individuais (TAYLOR, 1972 apud

SANTOS, 2003).

Decerto, pode-se concluir que, apesar, ou talvez por isto, dos diferentes

pontos-de-vista teóricos versando acerca do surgimento e da permanência da

dicotomia Estado/sociedade civil, a separação entre o político e o econômico

favoreceu a consolidação do modelo capitalista das relações sociais ao longo dos

tempos.

12 Exemplificativamente, Santos alude ao fato de a Inglaterra vitoriana ter sido considerada por uns a

idade do laissez faire e, por outros, a gênese do Welfare State - Estado do bem-estar social (SANTOS, 2003a, p. 119). Não se ignora que essa reflexão reveste-se de características próprias, quando se trata da realidade brasileira, na medida em que o denominado Estado Social (Estado Providência, Estado do bem-estar social, entre outras denominações possíveis) aqui não existiu, ou, pelo menos, possui(u) um outro escopo. É esse, pois, um dos dilemas do Estado brasileiro moderno, bem como o que explica a discordância de autores da chamada Teoria Crítica do Direito com o uso da expressão “pós-modernidade”. Preferem estes, no caso do Brasil, o uso da terminologia “modernidade tardia”, vide: STRECK, 2001, p. 21). Diria, concordando com o primeiro autor, que, por estarmos vivenciando uma época de transição paradigmática, apesar de inadequado o termo pós-modernidade, à falta de um melhor, é um nome “autêntico na sua inadequação” (STRECK, 2001, p. 77).

21

Nessa senda, não se pode, pois, olvidar que a maior contribuição das

sociedades capitalistas para o progresso civilizacional reside no campo das relações

políticas13, no âmbito da esfera pública. Assim é que, pela primeira vez na história, o

Estado adquiriu condições verdadeiras de tornar-se público, ao deixar de pertencer a

um grupo específico da sociedade. Na síntese de Santos: “A concessão de direitos

cívicos e políticos14 e a conseqüente universalização da cidadania transformaram o

Estado na consubstanciação teórica do ideal democrático de participação igualitária

no domínio social.”15

A radicalização da distinção Estado/sociedade civil, pari passu ao

esgarçamento da dicotomia política/economia, no período do Estado Liberal16,

neutralizou ou limitou profundamente o potencial emancipatório do ideal

democrático, vez que este, circunscrito ao âmbito público, cumpriu uma função

13 Note-se, por outro lado, que a separação entre o político e o econômico favoreceu a naturalização

da exploração econômica capitalista, no campo, sobretudo, das relações de produção (indústria) e das relações familiares (espaço doméstico).

14 Coutinho debruça-se sobre o conceito de direitos civis, tendo por base os escritos de Marshall, para o qual esses direitos surgiram no século XVIII, tornando-se efetivamente positivos depois que a chamada Revolução Gloriosa de 1688 consolidou nesse país a monarquia constitucional. Tratava-se, essencialmente, das liberdades individuais (do direito à vida, à liberdade de pensamento e de movimento - de ir e vir), como também à propriedade (de forte inspiração nos direitos que Locke chamou de “direitos naturais inalienáveis”). A crítica marxista, nesse particular, reside justamente no fato de que esses direitos serviram como meio de legitimar a sociedade burguesa da época e, por conseqüência, a capitalista. Para essa tradição os “direitos do homem”, em verdade, transformaram-se na prática em prerrogativas de apenas um tipo de homem, precisamente do homem proprietário da classe burguesa. Os direitos políticos, por outro lado, seriam aqueles que se relacionam com o direito de participação política da sociedade (ex.: o direito de votar e ser votado) e que permaneceram negados à maioria da população mundial, mesmo nos regimes liberais, até, pelo menos, o final do século XIX. No Brasil, as mulheres só garantiram formalmente o direito a voto na Constituição Federal de 1934 e os analfabetos apenas na atual Constituição de 1988. (COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a Corrente: Ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000, p. 49-69. Vide, ainda, o clássico: MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 57-114).

15 SANTOS, 2003a, p. 122. 16 O sociólogo português divide o Capitalismo em três grandes períodos, quais sejam: o capitalismo

liberal, que cobre todo o período do século XIX; o capitalismo organizado, que se inicia no final do século XIX e atinge seu pleno desenvolvimento no período entre as guerras e nas primeiras décadas depois da 2ª Guerra Mundial e, finalmente, o período do capitalismo desorganizado. O Estado liberal corresponde ao primeiro período, caracterizado pelo estabelecimento do projeto da modernidade (SANTOS, 2003a). Ao longo do texto, especialmente neste primeiro capítulo, essa inferência de Santos nos conduzirá a abordar as relações entre cidadania e democracia e entre estes e a modernidade.

22

legitimadora de outras formas antidemocráticas de Direito e política exercidas no

seio da esfera privada e econômica (vide, apenas para mencionar dois casos

emblemáticos, o descalabro das relações de produção nos primórdios da Revolução

Industrial e as relações de poder no seio do ambiente familiar que só foram

desveladas em meados do século XX).

Impõe-se considerar, afinal, que a separação entre as esferas pública e

privada apresenta-se como um dos marcos fundantes da modernidade, ao passo

que marca definitivamente a queda do Absolutismo (Ancien Régime)17. Destarte, a

desvinculação do Estado da Igreja estabelece a convicção religiosa como questão

privada, libertando-a da interferência daquele. A dissociação do Estado em face da

universidade, por sua vez, propicia o desenvolvimento da ciência e do ensino. O

rompimento da transmissão hereditária do poder, com a separação do Estado da

família, dá azo à formação de um corpo funcional burocrático18, inaugurando a

carreira pública19.

A par dessas características macro-institucionais (separação do Estado da

Igreja, da universidade e da família), o Estado moderno, estribado no projeto político

liberal, sustenta a primazia e o monopólio do exercício legítimo da força como um

dos seus traços identitários mais evidentes. O Constitucionalismo20 e o Estado de

17 A esse respeito vide nota de rodapé número três. 18 Para um aprofundamento teórico do conceito de burocracia, considerada por este autor, o mais

crucial fenômeno do moderno Estado ocidental, consulte: WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 198-233; ou ainda, WEBER, Max. Os Fundamentos da Organização Burocrática: Uma Construção do Tipo Ideal. In: CAMPOS, Edmundo (Org.). Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 16-27.

19 DIAS NETO, 2005, p. 20. 20 Trata-se do movimento da Codificação que toma corpo na Europa, no século XVIII, marcadamente

na França, no período napoleônico, influenciado pelo racionalismo do século XVIII e a convicção de que o processo de unificação política deve corresponder a um processo de unificação jurídica, como reação ao direito particularista, símbolo da organização feudal (Absolutismo).

23

Direito, abordados alhures, forjam-se a partir da defesa e da manutenção da

segurança nas relações sociais, o que se torna possível com a instituição de um

sistema jurídico capaz de garantir, como atividade eminentemente estatal, a máxima

autonomia individual e a mínima interferência externa, pelos menos em termos

ideais. Diferentemente do Estado Absolutista, no Estado de Direito os procedimentos

de produção (atividade legiferante) e de aplicação (atividade judicante) do Direito

deixam de estar à disposição, ou a serviço do soberano. A legitimidade do poder

político passa a ancorar-se na sua vinculação a um Direito legitimamente

produzido.21

1.1.2 A Crise do Estado Liberal de Direito e o Surgimento do Estado Social22

O princípio democrático, ao lado do princípio liberal da intervenção mínima,

constitui-se em elemento formativo do Estado de Direito.23

Há que se reconhecer, no entanto, que, historicamente, esses dois princípios

partiram de concepções diversas de liberdade. Para o pensamento liberal a idéia de

liberdade vem atrelada à capacidade individual de autodeterminação, decorrendo

daí a concepção de um Estado mínimo estruturado para exercer a função negativa 21 Tal assertiva pode ser inferida da leitura de WEBER, 1999, p. 139-198; HABERMAS, Jürgen.

Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 123-188 e, de forma sucinta e sistematizada, em: DIAS NETO, 2005, p. 19-22.

22 Utilizam-se as expressões Estado Social, Estado interventor, Estado-providência e Estado do bem-estar social como sinônimas, visto que, por meio delas, apenas se pretende salientar os movimentos de maior ou menor interferência/influência do Estado na sociedade, genericamente considerada. Não se tem, pois, pelo menos não neste estudo, maior interesse no aprofundamento dos detalhes que cercam cada conceito, o que, certamente, poderia ser empreendido em uma análise mais pormenorizada sobre essa temática.

23 DIAS NETO, op. cit., p. 23.

24

de proteção-repressão.24 A doutrina democrática, inspirada em Rousseau, faz uso

do conceito de liberdade como capacidade de autodeterminação coletiva e

potencializa o alargamento dos direitos políticos, oferecendo aos indivíduos

condições de participar da constituição de um poder coletivo que efetivamente se

traduza em expressão da “vontade geral” e, como tal, possua legitimidade.25

A experiência de interação entre essas duas correntes do pensamento político

estimulou o desenvolvimento de variadas formas de concepção e estruturação do

Estado e da cidadania. A concepção liberal do Estado de Direito, erigida no curso do

século XIX, favoreceu o estabelecimento e a consolidação dos direitos civis. De

acordo com Dias Neto: “A cidadania liberal constitui uma posição estatal

(Staatsbürgerstatus); ser cidadão, ser titular do direito a ter direitos, é a condição

que se tem por se pertencer a um Estado. Ao proteger as liberdades individuais, o

Estado liberal funciona como guardião da autonomia da sociedade civil.”26

A possibilidade formal de participação das decisões políticas do Estado,

garantida pelo reconhecimento dos direitos políticos no plano do Direito positivo

estatal (europeu e norte-americano), até, pelo menos, o início do século XX, esteve

disponível a uma parcela diminuta da população mundial. As lutas políticas dos

séculos XIX e XX encarregaram-se, felizmente, de alterar esse panorama,

capitaneando a universalização da cidadania, com a alteração do peso relativo da

sociedade civil em relação ao Estado, e a democratização do acesso ao Estado,

com o reconhecimento de novos direitos, abolição de leis discriminatórias, adoção

24 É nesse contexto e com este mister que nasce o conceito de direitos civis na modernidade. A esse

respeito consulte a nota de rodapé número oito. 25 DIAS NETO, 2005, p. 23. 26 Ibid, p. 23.

25

gradual do sufrágio universal, etc. Por isso, embora a garantia da igualdade formal

não tenha representado, de plano, a concretização/materialização desses direitos,

há que se admitir que significou um inegável avanço.

É evidente que, em muitos países, como o Brasil, de modernidade tardia ou

arcaica, a universalidade dos direitos civis e políticos, inobstante assegurada

constitucionalmente, no campo formal, não se materializou, pelo menos não em

plenitude. Aqui as possibilidades reais de exercício de tais direitos sempre estiveram

limitadas pelas profundas desigualdades fáticas de acesso aos bens econômicos e

sociais. Andrade identifica a existência de um conceito liberal de cidadania,

fortemente consolidado na cultura jurídica brasileira, que, em face de suas limitações

epistemológicas (positivismo normativista) e político-ideológicas (liberalismo),

precisa ser superado para que se possa dar conta das exigências que a cidadania

reclama, notadamente no país:

Desta forma, o conceito de cidadania, que é um elemento constitutivo de tal cultura, é tributário de suas matrizes e, em especial, do liberalismo, razão pela qual é concebida (tal como nesta matriz) com o direito à representação política e o cidadão definido como indivíduo nacional titular de direitos eleitorais (votar e ser votado) e do direito de exercer cargos públicos. Tal conceito vincula-se, por sua vez, a um modelo específico de democracia, fazendo com que a cidadania seja dela dependente e inexista fora do seu interior. Trata-se da democracia representativa ou indireta, originada da mesma matriz liberal. O conceito moderno de cidadania aparece, assim, umbilicalmente ligado ao conceito de democracia e por ele moldado.27

27 Para maiores informações acerca do tema da cidadania no Brasil, consulte: ANDRADE, Vera

Regina Pereira de. Sistema Penal Máxima x Cidadania Mínima. Códigos da Violência na Era da Globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 64; como também: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2004, p. 198-229; GOHN, Maria da Glória. História dos Movimentos e Lutas Sociais: A Construção da Cidadania dos Brasileiros. São Paulo: Loyola, 2003 e GOHN, Maria da Glória. O Protagonismo da Sociedade Civil: Movimentos Sociais, ONG’s e Redes Solidárias. São Paulo: Cortez, 2005, p. 70-114.

26

As contradições entre a igualdade formal da esfera pública estatal (dos

cidadãos perante o Estado) e a desigualdade material de outras esferas da vida

social contribuíram para converter o projeto político da modernidade em crônica

contradição entre “universalidade potencial” e “seletividade real.”28 Esse foi, contudo,

o pano de fundo sobre o qual se descortinaram várias mobilizações e manifestações

sociais ao longo do século XX.29

A pressão de novos sujeitos de direitos no campo político-institucional,

acompanhada pela proliferação do mais amplo espectro de movimentos sociais e,

portanto, de variadas reivindicações, marcadamente a partir das décadas de 60 e 70

do século XX, compele o Estado a assumir responsabilidade mais ativa na reversão

das desigualdades produzidas pelas leis de mercado e a assegurar, por

conseqüência, condições mais igualitárias de participação na gestão política da

sociedade.30

Essa mudança na conformação do Estado Liberal redefine os contornos das

fronteiras entre o público e o privado. O Estado Social assume, então, um papel

mais destacado na regulação do processo de acumulação capitalista de riquezas

(intervencionismo), com o propósito de assegurar uma base de bem-estar (mínimo

28 BARATTA, 1995 apud DIAS NETO, 2005, p. 24. Verifique também: SANTOS, 2003a,

especialmente o capítulo IV, p. 75-114. 29 Para Gohn, no que se concorda, além de “breve”, conforme Hobsbawm (1995), o século XX foi

também o século das mobilizações, de massas e de minorias organizadas, populares e de outras categorias sociais. (GOHN, Maria da Glória. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. São Paulo: Cortez, 2001, p. 30-45).

30 São exemplos desses movimentos sociais, que surgiram mais fortemente no Brasil a partir do período de redemocratização, na década de 80: o movimento estudantil, o movimento negro, o movimento feminista, o movimento ambientalista, o movimento em defesa dos direitos sociais como habitação, educação, segurança, qualidade de vida e de afirmação de direitos frente a corporações econômicas (consumidores, beneficiários da previdência e serviços de saúde, etc.). SANTOS, 2003a, p. 256-261.

27

social existencial)31 para o conjunto da sociedade. A falência do Estado mínimo,

restrito às funções negativas de proteção-repressão contra rupturas da ordem

jurídica, manifesta-se na ampliação das tarefas estatais, que extravasam, desta

feita, a manutenção da ordem e da segurança jurídica, na exata medida em que o

Estado passa a ter responsabilidades diretas na produção e, sobretudo, na

distribuição dos bens sociais necessários à manutenção da coletividade.

O reconhecimento desses direitos sociais (do trabalho, da educação, da

saúde, da cultura, da segurança), inicialmente nos países europeus e anglo-saxões

do pós-guerra e, posteriormente, irradiando-se em nível mundial, ampliou as

possibilidades reais de exercício da autonomia política e civil de setores até então

excluídos do chamado pacto social.32 Recepcionadas pelo Direito positivo estatal,

essas reivindicações constituíram-se em direitos universais, ou, pelo menos,

universalizáveis, merecendo, por isso, a proteção do Estado.33

A excessiva centralidade do aparato estatal, que se seguiu à implementação

desses direitos, sobretudo nos países centrais e semi-periféricos, acabou por

engendrar uma estrutura política hierarquizada, descendente e verticalizada,

31 Cabe ao Estado, nessa perspectiva, assegurar à totalidade da população a satisfação de suas

necessidades básicas, previstas, entre outros artigos esparsos, cite-se o capítulo relativo ao meio ambiente, art. 225, o rol de direitos e garantias fundamentais dos arts. 5° ao art. 11 da Constituição Federal de 1988.

32 Para um aprofundamento crítico das expressões “pacto social” ou “contrato social”, vale a leitura do artigo de SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: HELLER, Agnes. et al. A crise dos paradigmas em Ciências Sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. Outrossim: “A idéia do contrato social e os seus princípios reguladores são o fundamento ideológico e político da contratualidade real que organiza a sociabilidade e a política nas sociedades modernas.” Nesse particular: “O contrato social é a metáfora fundadora da racionalidade social e política da modernidade ocidental. Os critérios de inclusão/exclusão que ele estabelece vão fundar a legitimidade da contratualização das interações econômicas, políticas, sociais e culturais [...] Embora a contratualização assente numa lógica de inclusão/exclusão, ela só se legitima pela não-existência de excluídos.”

33 Para uma discussão contemporânea do tema, tendo em vista o impacto da violação desses direitos: ANDRADE, 2003, especialmente o terceiro, o quarto e o quinto capítulos.

28

assente em uma intrincada rede de obrigações vinculando cidadãos e governos, de

forma que “o espaço da política foi loteado por disputas de interesses privados no

acesso ao sistema administrativo estatal, que confundem o papel público do

“indivíduo-cidadão” com o papel privado do “indivíduo-cliente” das instituições de

bem-estar.”34

Essa constatação acerca da dificuldade de racionalização jurídica do Estado,

em virtude da ampliação da máquina administrativa e da capilarização das relações

sociais no âmbito estatal, ganha contornos ainda mais dramáticos no caso da

realidade brasileira. A recorrente dualidade entre, por um lado, práticas sócio-

jurídicas patrimonialistas, perpassadas por uma tradição autoritária atávica,

reconhecida por diversos pensadores da nossa formação social e política, e, por

outro, a existência de um arcabouço jurídico-institucional compatível com a moderna

sociedade democrática, impõe obstáculos estruturais ao exercício pleno da

cidadania.35

Para Santos a crise do formalismo constitui-se também em dos elementos

que caracterizam a crise do Estado Social, eis que:

[...] a partir do final da década de 60 acumulam-se sinais de crise do formalismo reformista, e de tal maneira que podemos caracterizar o tempo presente como de um novo movimento que parece ser também o do estatismo para o civilismo, do coletivismo para o individualismo, do publicismo para o privatismo, da estética modernista para a estética pós-moderna, da totalidade estruturalista para a desconstrução pós-estruturalista [...] define-se no plano político, nos países capitalistas

34 HABERMAS, 1992 apud DIAS NETO, 2005, p. 27. No caso brasileiro essa dificuldade é ainda mais

evidente, tendo em vista as peculiaridades da formação histórica e social do país. Nesse sentido, verifique as indicações bibliográficas apontadas na nota de rodapé número seis.

35 FEDOZZI, 2001.

29

centrais, pela crise do Estado-providência (e, portanto, dos ramos do Direito que sustentaram a regulação social; nomeadamente o direito social e o direito do trabalho) e pela crise das formas de representação política que asseguraram a sua reprodução, ou seja, a democracia representativa, os partidos e os sindicatos.36

1.1.3 Estado Social e(m) Crise: a Degeneração do Estado de Direito

A divisão dos poderes, ou seja, a divisão institucional e temporal das

instâncias de produção e reprodução legislativa, de forma que ninguém detenha

um poder exclusivo de decisão sobre o Direito, assegura o nexo entre Direito e

democracia, legalidade e legitimidade, etc. Essa divisão visa garantir a

racionalidade, a previsibilidade e a segurança às relações entre Estado e

sociedade civil. O crescimento do Estado através da ampliação da máquina

administrativa e da regulamentação capilar das relações sociais no âmbito do

Direito estatal, no entanto, dificultou a racionalização jurídica do Estado.

É forçoso admitir-se que a sociedade, embora demande novas incumbências

do sistema estatal, não dispõe dos mecanismos políticos e jurídicos adequados

para vincular a atuação do Estado a uma maior participação democrática da

cidadania. Nesse contexto, os tradicionais instrumentos de controle jurídico e

político encontram-se defasados frente a ampliação e a transformação do poder

estatal.

36 SANTOS, 1991, p. 265-282.

30

Analisando as modificações estruturais por que passou o Estado para

desempenhar as tarefas de gestão econômica e social, três são as causas principais

da chamada crise do modelo político-jurídico do Estado Social:37

1) Crise da Supremacia do Poder Legislativo: o Parlamento deixa de constituir-se como a instância do exercício da soberania popular. Nesse sentido, três são os fatores fundamentais: a exigência de rapidez nas respostas, a complexidade técnica envolvida na regulamentação de certas matérias, a incapacidade de formação de consenso diante das demandas sociais díspares em confronto. Esses aspectos condicionam a construção de conceitos jurídicos indeterminados, de cláusulas gerais ou das leis provisórias, que transferem aos Poderes Executivo e Judiciário, sobretudo a este último, expressiva discricionariedade para definir o programa jurídico do Estado. Ocorre que, nesse processo, o sistema jurídico estatal desvaloriza-se como instrumento de regulação social;

2) Crise da Racionalidade Administrativa: afeta diretamente o princípio da legalidade, que se encontra na gênese do estabelecimento do Estado. Por conta da “delegação tácita” da definição do programa político do Estado do Poder Legislativo para o Executivo, o sistema administrativo (Administração Pública) apropria-se da tarefa de “legislar”, no sentido de que lhe é facultada, cada vez mais, definir o seu próprio programa de ação. Como conseqüência, em vez de um programa jurídico geral e abstrato definido pelo Parlamento, sobrevém um complexo de atos administrativos, emanadas de inúmeros órgãos burocráticos, os quais, não raro, orientam-se por interesses corporativos, no lugar de republicanos;

3) Crise do Controle Jurisdicional: em face do caráter aberto e indeterminado das normas jurídicas de ordem programática emanadas do Poder Legislativo, o Poder Judiciário acaba por disputar com aquele e com o Executivo a definição dos critérios de seleção de prioridades para a alocação de recursos orçamentários no processo de planejamento de políticas públicas - “fenômeno da judicialização da política.

Desde outra perspectiva, a do domínio da Sociologia Jurídica38, os dois

fenômenos mais importantes da oscilação antiformalista, que marcaram o descenso

37 Adaptado de DIAS NETO, 2005, p. 29-30. 38 Para maiores informações: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; ROJO, Raul Enrique (Org.).

Sociologias. Porto Alegre. UFRGS, Ano 7, n. 13, 2005a; AZEVEDO, Rodrigo Ghringhelli de; CUNHA, Eduardo Pazinato da. Contribuições da Sociologia Jurídica para a Análise do Sistema de Justiça: Estudo do Perfil e Concepções do Ministério Público Gaúcho. Anais do I Ciclo de Estudos e Debates sobre Violência e Controle Social. Porto Alegre: PUCRS, 2005b, p. 25-48. O sociólogo italiano Renato Treves sustenta que os assuntos que têm constituído o objeto de estudo concreto da Sociologia Jurídica agrupam-se, principalmente, mas não exclusivamente, em três indagações: aquelas referentes à produção e eficácia das normas (efeitos sociais); as relativas aos agentes do Direito (“operadores do direito”) na sociedade e sua função e as alusivas à opinião do público a respeito do Direito e das instituições jurídicas (da obra clássica do autor: TREVES, Renato. La Sociologia del Derecho: Origines, Investigaciones e Problemas. Barcelona: Ariel, 1988 e SABADEL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Sumaré, 2000).

31

do Estado-providência, são o da desregulação e o da informalização da justiça.

Assim:

A crise cada vez mais perceptível da forma jurídica e judicial do Estado-providência criou as condições para um questionamento mais profundo do direito estatal. De fato, um questionamento duplo, que conduziu a uma dupla relativização do direito estatal. Em primeiro lugar, a sociologia do direito começou por questionar o monopólio da produção estatal do direito, admitindo a existência, nas sociedades complexas e não apenas nas sociedades ditas primitivas, de uma pluralidade de ordens jurídicas no mesmo espaço político, nas fábricas, na família, nas escolas, nos bairros marginais, no interior de comunidades mais ou menos segregadas, etc. [...] Tratava-se de denunciar a ocultação (ou supressão) de outras juridicidades existentes na sociedade, levada a cabo pelo Estado capitalista enquanto estratégia de dominação.39

A emergência dessas crises, atingindo cada um dos três pilares que

sustentam o modelo institucional do Estado de Direito (Poderes Legislativo,

Executivo e Judiciário), erigido justamente para oportunizar maior racionalidade às

relações entre os cidadãos e o Estado, como também para garantir o processo de

autonomização do sistema estatal (Legislativo, Executivo e Judiciário) em vista de

instâncias de controle jurídico e democrático, parecem indicar um esgotamento da

capacidade reguladora do Estado.

Acresça-se a isso a famigerada crise econômico-fiscal do Estado e o

fenômeno da globalização econômica e das reformas políticas neoliberais, reduzindo

tanto as possibilidades de investimento em políticas públicas quanto o papel

desempenhado por aquele como “unidade privilegiada e exclusiva de gestão

econômica, direção política, controle social e iniciativa legislativa.”40

39 SANTOS, 1999, p. 269-270. 40 FARIA, 1999, apud DIAS NETO, 2005, p. 32.

32

1.2 Pluralismo, democracia e esfera pública: as (re)definições dos conceitos de

público e de privado no Estado Contemporâneo

O esvaziamento do Estado Social, como se pontuou, deveu-se, ainda, à

emergência de uma crise de natureza econômico-fiscal e aos reflexos do fenômeno

da globalização, que limitam os investimentos em políticas sociais. Em tal contexto a

carência de instâncias políticas de deliberação (“espaços públicos não-estatais”)

capazes de equacionar novos temas e atores, favorecendo a gestão de conflitos de

interesses e a eleição de critérios para a escolha de prioridades de investimentos

públicos em uma sociedade de massa e de risco41, na qual se convive com a

existência de múltiplas e diversas demandas sociais, reforça a degenerescência do

Estado como promotor de intermediações não-mercantis entre cidadãos.

A aludida incapacidade de regulação do Estado42 torna-se ainda mais

dramática, quando a análise, em vez de uma perspectiva internalista, contempla o

41 O termo sociedade de massa é aqui referido “como uma sociedade em que a grande maioria da

população se acha envolvida, seguindo modelos de comportamento generalizados, na produção em larga escala, na distribuição e no consumo dos bens e serviços, tomando igualmente parte na vida política, mediante padrões generalizados de participação, e na vida cultural, através do uso dos meios de comunicação de massa [...] Na complexidade de sua estrutura, a sociedade de massa é um fenômeno recente, do nosso século; mas, ao mesmo tempo, ela é resultado de um longo processo de modernização, que pressupõe um progressivo envolvimento social, político e cultural das grandes massas da população.” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2000, p. 1211-123). As dificuldades de gestão do Estado são também potencializadas pelas contribuições teóricas de BECK, introduzindo ao debate o conceito de sociedade de risco, através do qual se abarca um estágio da modernidade (“segunda modernidade” ou “modernização da modernização”) em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial (SOCIEDADE GLOBAL DO RISCO. Uma discussão entre Ulrich BECK e Danilo ZOLO. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm>. Acesso em: 07 set. 2006).

42 Dias Neto serve-se do conceito de “saturação estrutural do Estado de Direito”, proposto por Erhard Denninger, para explicar a dificuldade de o Estado, seja em face da propalada crise econômico-fiscal, seja em face da carência, ou, eventualmente, inexistência, de instâncias decisórias de determinação de critérios para seleção de prioridades de investimento diante de demandas sociais divergentes (DIAS NETO, 2005, p. 32). Essa diagnose torna possível desvelar a crise de legitimidade por que passam as instituições estatais, máxime as brasileiras - sociedade semi-periférica (SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: 2006, especialmente o décimo capítulo, p. 341-381).

33

cotejo das especificidades da dinâmica do comércio e das relações internacionais,

na qual se inserem grandes blocos econômicos, como a União Européia, e

empresas transnacionais.43

Tendo como base a situação na Europa e na América do Norte, Bob Jessop,

identifica três tendências gerais na transformação do poder do Estado: a

desnacionalização do Estado, baseada na reorganização, tanto territorial quanto

funcionalmente, em nível subnacional e supranacional, das capacidades tradicionais

de regulação sócio-política estatal; de-estatização de regimes políticos, tendo em

vista a transição do conceito de governo (government) para o de governança

(governance), do modelo de centralidade do Estado na regulação social e

econômica para um outro com foco em parcerias e novas formas de associação

entre organizações governamentais, para-governamentais e não-governamentais,

nas quais o aparelho do Estado detém apenas tarefas de coordenação e, afinal, uma

tendência para a internacionalização do Estado nacional expressa no aumento do

impacto estratégico do contexto internacional na atuação do Estado.44

A legitimidade e a posição de superioridade (soberania) ocupada pelo

moderno Direito estatal sobre todos os demais sistemas normativos cedem espaço a

43 Partindo da concepção de que o Direito é contextual, Boaventura de Sousa Santos distingue quatro

contextos sociais, os quais, embora não sejam os únicos, apresentam-se como contextos estruturais, porque as relações sociais que eles constituem condicionam decisivamente todas as demais que se estabelecem na sociedade (refiro-me aos contextos doméstico, da produção, da cidadania e da mundialização, cada qual operando com sua própria unidade de prática social, forma institucional, mecanismo do poder, forma de Direito e modo de racionalidade, apesar de estruturalmente autônomas, no plano teórico, estão articuladas entre si e interpenetram-se de diversos modos) (SANTOS, 2003, p. 124-127; SANTOS, 1991, p. 265-282).

44 SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 37-38.

34

novos pólos de produção normativa (juridicidade) ou de “interlegalidade”45 -

corporificados no fenômeno do pluralismo jurídico. Wolkmer avança na teorização do

pluralismo, ao associá-lo à emergência de sujeitos e subjetividades coletivos:

Enquanto o pluralismo liberal atomístico, consagrando uma estrutura privada de indivíduos isolados, mobilizados para alcançar seus intentos econômicos exclusivos, o novo pluralismo caracteriza-se por ser integrador, pois une indivíduos, sujeitos coletivos e grupos organizados em torno de necessidades comuns. Trata-se, como lembra Carlos Nelson Coutinho, da criação de um pluralismo de “sujeitos coletivos”, fundado num novo desafio: construir uma nova hegemonia que contemple o equilíbrio entre “predomínio da vontade geral” [...] sem negar o pluralismo dos interesses particulares”. Ademais, a hegemonia do “pluralismo de sujeitos coletivos”, sedimentada nas bases de um largo processo de democratização, descentralização e participação, deve também resgatar alguns dos princípios da cultura política ocidental, como: o direito das minorias, o direito à diferença, à autonomia e à tolerância.46

O ideal pluralista, para além de suas várias versões, apregoa um modelo de

sociedade em que o Estado é controlado pela existência de outros núcleos de poder.

A partir do século XIX, o pensamento pluralista trata a sociedade civil como esfera

não-estatal de interação e associação de indivíduos, representando, como tal,

possibilidade de mediação entre o Estado e os indivíduos, favorecendo, por um lado,

a superação do isolamento do Estado total e, por outro, a superação da atomização

e fragmentação de indivíduos.

Os conceitos de democracia e pluralismo, embora não sejam unos, posto que

ao longo da história do pensamento político estiveram vinculados a tradições

45 O conceito de interlegalidade somente se mostra possível se inserido na categoria maior do

pluralismo jurídico, ou seja, no fato de que, como sujeitos de direitos, vivemos em diversas comunidades jurídicas organizadas em redes de legalidade, de tal sorte que a prática social é uma configuração de direitos. “Um direito poroso constituído por múltiplas redes de juridicidades que nos forçam a constantes transições e transgressões. A vida sócio-jurídica do fim do século é, assim, constituída pela interseção de diferentes linhas de fronteiras jurídicas, fronteira porosas e, como tal, simultaneamente abertas e fechadas. A esta interseção chamo interlegalidade, a dimensão fenomenológica do pluralismo jurídico.” (SANTOS, op. cit., p. 278-279).

46 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Novo Paradigma de Legitimação. In: Espaço Jurídico. São Miguel D’Oeste. Unoesc, pp. 87-94, 2000, p. 87-94.

35

distintas, conforme bem trata Wolkmer (2000), aproximam-se ao enfrentarem a

questão do abuso de poder.

A teoria democrática combate o poder autocrático, imposto de cima para

baixo, e almeja uma sociedade na qual o poder flua do sentido ascendente. A teoria

pluralista, ao abordar o mesmo tema, vislumbra uma realidade na qual o poder seja

distribuído e submetido ao controle social.47

O que está em pauta é menos a democratização do Estado e mais a

democratização da sociedade, mediante a construção de diversos centros

democráticos de poder. Daí, Cohen e Arato suscitarem a necessidade de que o

conceito de sociedade civil seja reconstruído, de sorte que reflita a articulação de

novas identidades (sujeitos coletivos) em prol de projetos capazes de efetivamente

democratizar as sociedades.48

A expressão pluralidade de democracia, de que trata os autores, reflete os

desafios práticos da democracia na sociedade pluralista, na qual o sistema estatal

deve dividir a sua soberania com outras formas de regulação social e os princípios e

47 BOBBIO, 1984 apud DIAS NETO, 2005, p. 34. 48 Do original: “Even more, we assume that the defense and expansion of acquired liberties rests on

the further democratization of the institutions of modern civil society and on their achievement of greater influence over the polity. We shall demonstrate this thesis by exploring the concepts of democratic legitimacy and basic rights in the framework of the theory of discourse ethics and by establishing the connection of both to a coherent conception of a modern, and potentially democratic, civil society.” […] “What is needed is a conception of civil society that can reflect on the core of new collective identities and articulate the terms within which projects based on such identities can contribute to the emergence of freer, more democratic societies.” (COHEN, Jean L.; ARATO, Andrew. Civil Society and Political Theory. Cambridge, Massachusetts and London: The MIT Press, 1999, p. 345-421).

36

procedimentos de deliberação coletiva devem ser ajustados às especificidades

funcionais dos diversos sistemas sociais.49

Para Touraine a democracia realiza a mediação entre o Estado e a sociedade

civil. Diferentemente do que faziam crer os fundadores da filosofia política quando

utilizavam a expressão espírito da democracia, esta é mais um processo do que

uma idéia. Trata-se, antes de tudo, de um conjunto de garantias e procedimentos

que oportunizam o estabelecimento de relações entre a unidade de poder legítimo e

a pluralidade dos atores sociais. Observe-se, in verbis:

Toda democracia comporta, assim, três mecanismos institucionais principais. O primeiro combina a referência aos direitos fundamentais com a definição de cidadania. Tal é o papel dos instrumentos constitucionais da democracia. O segundo combina o respeito pelos direitos fundamentais com a representação dos interesses, o que é o objeto principal dos códigos jurídicos. O terceiro combina representação com cidadania, o que é a função principal das eleições parlamentares livres. Portanto, podemos falar de um sistema democrático cujos elementos constitucionais, legais e parlamentares colocam em ação os três princípios: limitação do Estado em nome dos direitos fundamentais, representatividade social dos atores políticos e cidadania.50

A democracia, portanto, favorece o encontro das forças de libertação social

com os mecanismos de integração institucional e política. Uma das condições

necessárias da democracia é a cidadania. Esta, todavia, já não pode mais ser

identificada unicamente com a consciência nacional, tendo em vista os riscos de se

prestar a um nacionalismo fundamentalista, que conduziu, entre outros, ao

estabelecimento do Estado nazista. Segundo Touraine:

49 COHEN; ARATO apud DIAS NETO. 2005, p. 35. 50 TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p. 103.

37

O tema da cidadania significa a construção livre e voluntária de uma organização social que combina a unidade da lei com a diversidade dos interesses e o respeito pelos direitos fundamentais. Em vez de identificar a sociedade com a nação, como nos momentos mais marcantes da independência americana ou da Revolução Francesa, a idéia de cidadania fornece um sentido concreto à idéia de democracia: a construção de um espaço propriamente político, nem estatal, nem mercantilista.51

A democracia em uma sociedade pluralista favorece o fortalecimento da

sociedade civil, na perspectiva de que esta assuma sua responsabilidade pela

gestão de suas necessidades e de seus conflitos, influencie no controle democrático

dos processos decisórios de suas instituições, neutralizando, ou pelo menos

reduzindo, o emprego de mecanismos de domínio e exclusão.

A moderna dicotomia entre esfera pública estatal, caracterizada por um

sujeito político universal e homogêneo, e a esfera privada, como espaço apolítico

das particularidades e diferenças, é agora questionada. As lutas democráticas

desvelaram as relações de poder existentes nas instituições da sociedade civil

(família, fábrica, escola, etc.).52

Dito de outro modo, as pautas e reivindicações dos novos movimentos sociais

ultrapassaram os limites da esfera pública estatal, atingindo as práticas sociais

autoritárias exercidas no bojo da esfera privada da sociedade civil, as quais,

justamente por estarem sob o manto do privado, não raro, estavam imunes aos

instrumentos de proteção de direitos por parte do ente estatal.53

51 TOURAINE, 1996, p. 101. 52 Em relação a esse tópico, enfatiza-se a contextualização de Boaventura de Sousa Santos

recuperada na nota de rodapé número vinte e oito. 53 A emergência do movimento feminista, em nível internacional, na década de sessenta, e no Brasil

mais detidamente na de oitenta, constitui-se em importante exemplo do fenômeno da publicização e politização do privado. Vide: ANDRADE, 2003, terceiro e quarto capítulos.

38

Cumpre ressaltar, por seu caráter didático, a síntese de Dias Neto nessa

direção:

A essência dessa teoria democrática pluralista não é, portanto, a extensão da cidadania estatal (Staatsbürgerstatus) a novos espaços, ou seja, a democratização das relações sócio-econômicas pela via do intervencionismo estatal, como se pleiteava nas lutas trabalhistas por direitos sociais (McClure, 1992, p. 122), mas a proliferação extra-estatal dos instrumentos jurídicos e políticos de validação de direitos. A cidadania estatal não perde a sua relevância, mas a sua condição de exclusividade; passa a ser interpretada como uma das formas possíveis de identidade política.54

A criação desses novos espaços baseados na politização e democratização

global do social não implica o fim da separação entre o público e o privado, ou seja,

entre o espaço da autodeterminação coletiva e o espaço da autodeterminação

individual. A emergência de novas formas de identidade e subjetividade, revelando

manifestações de poder e exclusão na esfera das relações econômicas, culturais,

familiares, profissionais, aponta para o fato de que, embora nem todas as decisões

individuais tenham relevância pública, não há âmbito da vida social que esteja, em

princípio, fora do alcance dos instrumentos de proteção da cidadania.55

Ao ensejo, crê-se na necessidade de estabelecer-se um novo arranjo sócio-

político, perpassado por elementos estatais e não-estatais, voltado ao

desenvolvimento de formas alternativas de participação cidadã, na defesa da

segurança para a coletividade. Há que se ponderar, pois, a articulação entre o

princípio da comunidade e o princípio do Estado, conforme propõe Santos através

do conceito de Estado-novíssimo-movimento-social:

54 DIAS NETO, 2005, p. 37. 55 Ibid., p. 39.

39

Pode causar estranheza conceber o Estado como o novíssimo movimento social. Quero, com isto, significar que as transformações por que está a passar o Estado tornam obsoletas, tanto a teoria liberal, como a teoria marxista do Estado e tal ponto que, transitoriamente pelo menos, o Estado pode ser mais adequadamente analisado a partir de perspectivas teóricas que antes foram utilizadas para analisar os processos de resistência ou de autonomia em relação ao Estado. A pretensa inevitabilidade dos imperativos neo-liberais tem vindo a afectar de modo irreversível o âmbito e a forma do poder de regulação social do Estado. Não se trata de um regresso ao passado uma vez que a desestabilização da regulação social pós-liberal só pode ser levada a cabo por um Estado pós-liberal. Por via dela, cria-se o anti-Estado dentro do próprio Estado. Em verdade, trata-se de menos de desestabilizar a regulação social do que despolitizar o Estado. Do meu ponto-de-vista, estas transformações são tão profundas que, sob a mesma designação de Estado, está a emergir uma nova forma de organização política mais vasta que o Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais, locais e globais. Esta nova organização política não tem centro e a coordenação do Estado funciona como imaginação do centro. A regulação social que emerge desta nova forma política é muito mais ampla e férrea que a regulação protagonizada pelo Estado no período anterior, mas como é também muito mais fragmentada e heterogênea, quer tanto às suas fontes, quer tanto à sua lógica, é facilmente dissimulada como desregulação social. Aliás, boa parte da nova regulação social ocorre por subcontratação política com diferentes grupos e agentes em competição, veiculando diferentes concepções dos bens públicos e interesses em geral. (grifo nosso).56

Note-se que essa descentração do papel desempenhado pelo Estado na

regulação da vida em sociedade significa menos, como sustenta o autor, o

enfraquecimento do Estado do que a mudança da qualidade de sua força. À perda

do controle da regulação social segue-se o controle da meta-regulação, ou seja, da

seleção, coordenação, hierarquização e regulação dos agentes não-estatais. Há de

se atentar, nesse novo contexto, por um lado, à democratização da meta-regulação

e, por outro, à democratização interna dos agentes não-estatais da regulação.

56 SANTOS, 2006, p. 363.

40

Essa concepção antiformalista encerra quatro aspectos fundamentais, os

quais, a meu ver, uma vez observados57, podem fomentar a ampliação das

instâncias políticas de deliberação e do espaço público da retórica para além dos

limites do Estado:58

1) Os conflitos entre os interesses setoriais que competem pela conquista do espaço público não-estatal são maiores que os conflitos de interesse corporativos que configuram o espaço público do Estado de bem-estar, ou Estado desenvolvimentista; 2) A descentração do Estado na regulação social neutralizou as virtualidades distributivas da democracia representativa e com isso esta passou a poder coexistir, mais ou menos pacificamente, com formas de sociabilidade fascista que simultaneamente agravam as condições de vida da maioria e trivializam o agravamento em nome de imperativos transnacionais; 3) O regime político democrático, confinado ao Estado, deixou de poder garantir a democraticidade das relações políticas no espaço público não estatal. A luta anti-fascista passa assim a ser parte integrante do combate político no Estado democrático, o que só se faz possível mediante a articulação entre democracia representativa e democracia participativa; 4) A luta anti-fascista, nesse contexto, consiste na estabilização mínima das expectativas das classes populares que o Estado deixou de poder garantir ao perder o controle da regulação social. Tal estabilização exige uma nova articulação entre o princípio do Estado e o princípio da comunidade que potencie os isomorfismos entre eles.

Decerto, a redefinição do espaço público, o fortalecimento e a ampliação das

possibilidades de participação da cidadania na gestão local do poder político59

57 “O formalismo é assim o produto do crescimento conjunto da burocracia e da violência e do

correspondente atrofiamento da retórica. Conseqüentemente, qualquer movimento antiformalista significará sempre o decréscimo da burocracia, mas, à partida, tanto pode acarretar o reforço da retórica como o reforço da violência. Assim sendo, devemo-nos precaver contra apreciações apriorísticas do informalismo, uma vez que o seu significado social e político é, em princípio, ambíguo” (SANTOS, 1991, p. 270. O tema é esmiuçado pelo autor na obra: SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder: Ensaio sobre a Sociologia da Retórica Jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988).

58 Adaptado de SANTOS, 2006, especialmente o décimo capítulo, p. 341-381. 59 Gohn trabalha, basicamente, com quatro paradigmas de participação: a corporativa e comunitária,

assentes no paradigma liberal, tendo em vista que a participação é entendida como um movimento espontâneo do indivíduo em que não se colocam as questões das diferenças de classe, raças, etnias, etc.; a autoritária, orientada para a integração e o controle social da sociedade e da política e, afinal, a democrática, que se baseia no primado da soberania popular. Nesse último caso, a participação é concebida como um fenômeno que se desenvolve tanto na sociedade civil - em especial entre os movimentos sociais e as organizações autônomas da sociedade, quanto no plano institucional - nas instituições formais políticas. O pluralismo é a marca dessa concepção. A participação tem caráter plural e se articula com o tema da cidadania (GOHN, 2001).

41

podem favorecer a efetivação das promessas constitucionais do Estado Democrático

de Direito.60

1.3 A revigoração do poder local: a cidade como lócus privilegiado de atuação

da cidadania para a proposição, o monitoramento e a fiscalização de

políticas públicas de segurança

Os novos contornos dos espaços públicos de participação sócio-política

extrapolaram os estreitos limites estatais. Esse movimento, embora tenha

enfraquecido a centralidade do papel ocupado pelo Estado, não significou sua

negação - pelo contrário! O Estado continua operando como instância política

privilegiada na proteção e promoção de direitos, apenas deixa de possuir o

60 O Estado Democrático de Direito caracteriza-se pela íntima e indissociável vinculação entre os

direitos fundamentais e as noções de Constituição e Estado de Direito. O núcleo material das primeiras Constituições escritas de matriz liberal-burguesa, na segunda metade do século XVIII, assentava-se na noção da limitação jurídica do poder estatal, mediante a garantia de alguns direitos fundamentais, no âmbito dos direitos civis e políticos, ainda restritos a maioria da população mundial, bem como do princípio da separação dos poderes. No chamado Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais assumem, para além de sua função originária de instrumentos de defesa da liberdade individual, elementos da ordem jurídica objetiva, passando a integrar um sistema axiológico que atua como fundamento material de todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido, na esteira da denominação utilizada por Ingo Wolfgang Sarlet, é preciso consignar a estreita ligação dos direitos fundamentais com o Estado Social, consagrado na Constituição brasileira, como de resto, na maior parte das Leis Fundamentais contemporâneas, daí a qualificação de Estado Democrático e Social de Direito, o que se deve a previsão de uma grande quantidade de direitos fundamentais sociais de ordem prestacional por parte do Estado - para os propósitos deste estudo, cite-se o direito de todo o cidadão ter garantido sua segurança pessoal e dos seus por parte do Estado. (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006c, p. 69-74). Cumpre mencionar, ainda, a proposta de José Joaquim Gomes Canotilho, no sentido de que se deve avançar para a noção de Estado Constitucional Ecológico, ou seja, o Estado constitucional, além de ser e dever ser um Estado de direito democrático e social, deve ser um Estado regido por princípios ecológicos. Este aponta para formas novas de participação política sugestivamente condensadas na expressão democracia sustentada. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In: Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional Internacional e Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003).

42

monopólio da identificação dos problemas sociais e, conseqüentemente, da eleição

das prioridades dos investimentos em políticas públicas, como no passado.61

O poder local, como conceito mais abrangente do que o de governo local e

não circunscrito à sua natureza geográfico-espacial, foi redefinido como espaço de

gestão político-administrativa, sinônimo de força social organizada como forma de

participação da população, na direção do que tem sido denominado de

empowerment ou empoderamento popular, isto é, a capacidade de gerar processos

de desenvolvimento auto-sustentáveis com a mediação de agentes externos - novos

educadores, principalmente de ONG’s do Terceiro Setor. Esse novo processo

ocorre, majoritariamente, por meio de novas redes societárias, sem,

necessariamente, dispor de articulações políticas mais amplas com a estrutura

tradicional dos partidos políticos ou sindicatos.62

Desta feita, temas socialmente relevantes, tal qual o da segurança pública, já

não são passíveis de serem compreendidos através dos dualismos tradicionais do

indivíduo contra o Estado, da classe contra classe, da esfera administrativa federal

ou regional contra a local.

61 Santos analisa a influência da globalização, concebida como um “fenômeno multifacetado com

dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo”, no que concerne à perda da exclusividade do Estado nacional como promotor de relações sócio-políticas: “Para o Grupo de Lisboa, a globalização é uma fase posterior à internacionalização e à multinacionalização porque, ao contrário destas, anuncia o fim do sistema nacional enquanto núcleo central das atividades e estratégias humanas [...] o Estado-nação parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de iniciativa econômica, social e política. A intensificação de interações que atravessam as fronteiras e as práticas transnacionais corroem a capacidade do Estado-nação para conduzir ou controlar fluxos de pessoas, bens, capital ou idéias, como fez no passado” (SANTOS, 2002, p. 26-36).

62 GOHN, 2001, p. 35.

43

A gestão dos conflitos sociais (pós-industriais) exige o estabelecimento de um

modelo político participativo, nos quais os canais institucionais de deliberação

coletiva (dimensão retórica e argumentativa) estejam abertos às experiências

informais de comunicação e de aprendizagem surgidas no espaço heterogêneo do

social.

A construção de outros atributos e significados ao poder local, no final do

século XX, suscitou a renovação de outro conceito muito caro à teoria democrática,

a saber: o de esfera pública. Trata-se, portanto, de uma esfera que contempla a

interação entre diversos grupos organizados da sociedade (organizações de classe,

associações, movimentos sociais, etc.). É um espaço para o debate dos problemas

coletivos da sociedade, diferenciado do debate do espaço público estatal.

A emergência ou o alargamento do conceito de esfera pública precipitou a

incorporação ao debate público de questões até então tratadas no somente no

âmbito privado, por exemplo, a violência doméstica. Além disso, merecem registro o

fenômeno da globalização econômica e as reformas políticas neoliberais, sobretudo

na década de 1990. Esses dois processos catalisaram a desarticulação da

capacidade de o Estado controlar, através de políticas públicas reguladoras,

problemas ambientais e sócio-econômicos: desemprego, pobreza, etc.

A ressignificação do conceito de esfera pública e a emergência de

substanciais alterações do papel político desempenhado pelo Estado na sua relação

com a sociedade criaram as condições necessárias para o surgimento do conceito

de governança. O conceito de governança alterou sensivelmente o padrão e o modo

44

de pensar a gestão de bens públicos, antes restrita aos atores presentes na esfera

pública estatal.

A noção de esfera pública não-estatal é incorporada ao debate, em função

dos novos atores e, conseqüentemente, da nova pauta de reivindicações, que

entraram em cena nas décadas de sessenta e setenta, pressionando para obter

equipamentos públicos, melhores condições materiais e ambientais de vida, direitos

sociais, cidadania, identidade de raça, etnia, gênero, geracional, etc.63

A vitalidade desse processo de aprendizagem democrática não decorre da

identificação coletiva com determinado espaço político, como o estatal, mas sim, da

proliferação extra-estatal de arenas públicas, nas quais é facultado aos cidadãos

63 A proliferação dos movimentos sociais, sobretudo nas décadas de sessenta e setenta do século

XX, mais detidamente em oitenta no Brasil, não só precipitaram uma série de alterações no ordenamento jurídico, incorporando o estudo de novos direitos relacionados às esferas social, transindividual - difusos e coletivos, bioética, ecossistêmica, da realidade virtual (propriedade intelectual, por exemplo), entre outros, como também oportunizaram a abertura de novos campos de trabalho em organizações não-governamentais (ONG’s), consultorias (vide as ambientais), em empresas (fortalecimento da função de diretor jurídico, ou mesmo dos departamentos jurídicos e corporativos internos), no setor público (além dos tradicionais concursos públicos para a Magistratura, Ministério Público, Polícias, ampliados em face da defesa do consumidor, do meio-ambiente, dos direitos humanos, etc. O impacto dessas transformações de ordem social na atuação e, sobretudo, na formação dos novos profissionais do Direito, pode ser percebido tanto nas alterações legislativas que vêm sendo implementadas no ordenamento jurídico brasileiro, de forma ainda mais contundente e sistemática nos últimos anos, em razão da chamada reforma do Judiciário, e da necessidade de se potencializar o acesso, a efetividade e o controle social da Justiça, bem como nas mudanças institucionais havidas na organização do ensino do Direito no país. Em relação a esta última, insta destacar-se as possibilidades de aprimoramento técnico-profissional e de aproximação das demandas postas pela sociedade representadas pelo fortalecimento e conexão dos três eixos de atuação universitária, a saber: o ensino, a extensão e a pesquisa, fomentados pelas novas Diretrizes Curriculares Nacionais. Nesse sentido, há que se ressaltar a significativa experiência de “pesquisa-ação” (interface dos três eixos constitutivos da universidade) representada pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa Ambiente e Direito (NEPAD/PUCRS) e pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP/RS). Consulte: CUNHA, Eduardo Pazinato. Direito e comprometimento social. Jornal do Comércio. Porto Alegre. Opinião, p. 04, 12 set. 2006, p. 4; LEITE, José Rubens Morato; WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). Os Novos Direitos no Brasil: Natureza e Perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003; WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa ômega, 2001; WOLKMER, 2000; GOHN, 2001, p. 38.

45

debater seus conflitos em busca das transformações necessárias para a sua

governabilidade.64

Para Dias Neto, no que concordamos:

Quanto mais amplos, inclusivos e igualitários forem os canais de comunicação e deliberação política, mais favoráveis serão as condições para o enfrentamento pacífico e racional dos conflitos sociais. A exclusão de dissidências, a censura de idéias ou temas, a ocultação de diferenças ou qualquer forma de entrave no acesso às esferas públicas representam falsas garantias de estabilidade, que mascaram a complexidade social e impedem o enfrentamento racional e transparente dos conflitos, criando terreno fértil para que estes venham à tona sob a forma de violência e intolerância.65

Não se pode deixar de reconhecer, ainda, que a incorporação de novos

atores tem-se dado em cenários de tensão e conflito. Se, por um lado, os espaços

construídos por setores públicos não-estatais constituem-se em conquistas da

cidadania organizada, por outro, também fazem parte de estratégias de

recomposição de poder de determinados grupos políticos e econômicos. Enquanto

os primeiros visam à democratização dos espaços conquistados através de lutas

pelo acesso às informações e por igualdade de condições de participação da

coletividade; estes lutam para atribuir aos novos atores um perfil de

64 Arendt recupera a experiência da polis grega. Nela, o ser político significava que tudo era decidido

mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência. Assim é que, para os gregos, forçar alguém mediante o uso da violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família (da esfera privada), na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos. Importante paralelo pode ser estabelecido entre a concepção de esfera pública de Arendt, baseada na existência de “espaços públicos de liberdade”, onde o poder pode ser questionado e os temas relevantes podem adquirir visibilidade e ser objeto de deliberação coletiva, como aduz Dias Neto, e a importância do discurso retórico na mediação e resolução de conflitos - do estudo desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos acerca do Direito da Pasárgada. Para um aprofundamento do tema: ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 31-83; DIAS NETO, 2005, p. 39-44; SANTOS, 1991, p. 265-282; SANTOS, 1988).

65 DIAS NETO, 2005, p. 42.

46

cidadãos/consumidores, confundindo, maliciosa e deliberadamente, o papel público

do “indivíduo-cidadão” com o papel privado do “indivíduo-cliente.”66

O desafio consiste na articulação do maior nível de participação com os

critérios de eficiência e eficácia reclamados para uma maior racionalidade na gestão

e destinação dos recursos públicos por parte do poder local. A superveniência do

conceito de governança local, pensado, a princípio, em termos globais, nacionais e

regionais, tem relação com um sistema de governo em que a inclusão de novos

atores sociais torna-se fundamental. O conceito refere-se hoje a um sistema político-

administrativo de gestão pública compartilhada, capaz de envolver ONG’s,

movimentos sociais, Terceiro Setor de uma forma geral, como também entidades

privadas e órgãos públicos estatais.67

Caberá à sociedade assumir a responsabilidade pela identificação dos fatores

políticos, econômicos e culturais capazes de limitar, ou, de algum modo, dificultar, o

acesso da cidadania aos debates públicos. A luta pelo estabelecimento de

condições mais favoráveis para a existência de esferas públicas vitais e igualitárias

é, portanto, um exercício constante.68

Resta evidenciado que participação política e inclusão social afiguram-se em

dois temas fundamentais para a efetivação da democracia. Logo, o Estado deve

continuar a exercer um papel destacado na promoção da inclusão social por meio da

prestação dos direitos fundamentais. “O que se espera não é a onipresença do

66 Reporto-me à nota de rodapé vinte e seis, com o acréscimo de GOHN, 2001, p. 39-45. 67 Gohn ressalta que a governança local diz respeito à gestão compartilhada entre diferentes agentes

e atores, tanto da sociedade civil quanto do Estado, a exemplo do Orçamento Participativo (GOHN. op. cit., p. 40-41). Um estudo bastante detalhado do Orçamento Participativo foi desenvolvido em: FEDOZZI, 2001.

68 DIAS NETO, 2005, p. 44.

47

Estado e a clientelização do cidadão, mas um Estado cujos poderes estão dirigidos

ao fortalecimento da autonomia das instituições da sociedade civil.”69

Sabe-se, ademais, que a simples construção de espaços públicos

democráticos de discussão e participação da cidadania para a eleição das políticas

públicas prioritárias para o enfrentamento da criminalidade e do controle da violência

não assegura, de per si, a efetividade de sua implementação. Nesse sentido,

pondera Avritzer:

Ao nível da esfera pública, a racionalidade do processo participativo não leva à constituição imediata de propostas administrativas, mas conduz a um processo democrático de discussão. Diferentes atores construindo identidades em público, estabelecendo novas formas de solidariedade e possibilitando a superação de uma condição privada de dominação constituem os elementos centrais da noção de esfera pública.70

A deliberação pública, ou o exercício da democracia deliberativa, como

assevera Santos, subsidia o entendimento mais pleno do conceito de governança

local, ao passo que amplifica as possibilidades de uma gestão democrática

compartilhada. Para esse autor:

Cabendo ao Estado mais funções de coordenação do que funções de produção direta de bem-estar, o controle da vinculação da obtenção de recursos a destinações específicas por via dos mecanismos da democracia representativa torna-se virtualmente impossível. Daí a necessidade de a complementar com mecanismos de democracia participativa. A relativa maior passividade do Estado, decorrente da perda do monopólio regulatório, tem de ser compensada pela intensificação da cidadania ativa, sob pena de essa maior passividade ser ocupada e colonizada pelos fascismos societais.71

69 DIAS NETO, 2005, p. 44. 70 AVRITZER, Leonardo. Teoria democrática, esfera pública e participação local. Cidadania e

Democracia. Sociologias n.° 2. Porto Alegre: UFRGS, 1999, p. 32. 71 O conceito de fascismo societal, suscitado por Santos, não se relaciona com o fascismo dos anos

30 e 40. Não se trata de um regime político, mas antes de um regime social e civilizacional. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove a democracia, a ponto de não ser mais necessário sacrificar a democracia para promover o capitalismo. Configura-se em um fascismo pluralista e, por isso, de uma forma de fascismo que nunca existiu antes. (SANTOS, 1999, p. 51-52).

48

A combinação da democracia representativa com a participativa, sob a

mediação da fiscalidade participativa da cidadania, favorece o estabelecimento da

nova democracia redistributiva ou deliberativa. Sua lógica política é o

estabelecimento de um espaço público não-estatal no qual o Estado atue como um

elemento crucial de articulação e de coordenação de políticas públicas.

A democracia deliberativa apresenta-se como um sistema político em que se

estimula o envolvimento e a participação dos indivíduos como cidadãos políticos

ativos, construtores de consensos, por meio de diálogos interativos, em prol da

geração e elaboração de políticas públicas. Esse modelo de democracia requer

desenhos institucionais alternativos de algumas instituições governamentais,

sobretudo no âmbito local, da municipalidade, a fim de que estas possam afirmar-se

como instituições de participação deliberativa. Consoante atesta Gohn:

Os novos mecanismos participativos incluídos na governança local se baseiam no engajamento popular como um recurso produtivo central: a participação dos cidadãos provê de informações e diagnósticos sobre os problemas públicos, gerando conhecimentos e subsídios à elaboração de estratégias para a resolução dos problemas e conflitos envolvidos.72

Desse debate exsurge a necessidade de reformar o modelo de Estado

concebido para atuar como instância central, com a capacidade de monopolizar as

funções de planejamento e administração global da sociedade. A reforma do Estado

articula-se em torno do conceito-chave de descentralização, o qual, registra-se, varia

muito dependendo da vertente ideológica em que se vincule o interlocutor. Mesmo

reconhecendo a inexistência de consenso em relação a um modelo de reforma do

Estado, a descentralização envolve a transferência de recursos e competências

72 GOHN, 2001, p. 39-45.

49

(tanto no plano interestatal - dos governos centrais aos locais, quanto extra-estatal -

do Estado para a sociedade civil).

Não está em pauta a extinção da burocracia (modelo burocrático-estatal), ou

a necessidade de o Estado contar com um corpo de servidores públicos capacitados

e bem remunerados para a gestão da infra-estrutura e prestação de serviços

públicos, mas a recuperação do “sentido público do Estado, tornando-o receptível à

influência externa e apto para interagir com outras instituições na busca de soluções

dos problemas.”73

Tendo como base a síntese de Dias Neto, três são as vertentes fundamentais

em torno das quais o debate da descentralização do Estado está organizado:74

1) A vertente administrativa pressupõe medidas institucionais e operacionais orientadas a transferir funções, recursos e competências do centro para a periferia do Estado. Nesse particular, a descentralização de competências para os municípios, distritos ou bairros tem sido especialmente adotadas em setores que lidam com o fato humano, como policiamento, saúde, educação e assistência social - áreas que não se coadunam com automatização e padronização em larga escala. Nelas os governos possuem um duplo desafio: assegurar coerência no planejamento e execução de suas políticas e descentralizar os processos decisórios, para moldar as intervenções às peculiaridades locais, viabilizando dessa forma um espaço para o exercício da diversidade social.

2) A vertente econômica, associada aos conceitos de desregulamentação e privatização, estimula ao máximo a transferência de autoridade, funções e recursos do setor estatal para o privado. Freqüentemente se observa a equivocada polarização entre defensores do Estado-empresário ou intervencionista, como garantia da preservação do interesse público, e idealizadores do mercado como panacéia contra os males da inércia da burocracia. Tanto a primeira quanto a segunda premissas mostram-se falsas, na medida em que, primeiro, pertencer ao Estado, sobretudo no caso brasileiro, face suas especificidades históricas, não significa pertencer ao público; depois, o mercado não é sinônimo, de per si, de eficiência e racionalidade administrativas.

3) A vertente política da descentralização propugna pela reforma dos processos decisórios do Estado, tendo em vista sua democratização.

73 DIAS NETO, 2005, p. 45-69. 74 Ibid., p. 49-50.

50

Em verdade, as iniciativas mais promissoras são as que buscam fortalecer os

instrumentos de democracia representativa, bem como os mecanismos de

participação direta dos cidadãos no planejamento das políticas públicas,

horizontalizando o relacionamento entre o governo e a sociedade, por meio do

aperfeiçoamento das instâncias decisórias locais e do controle mais direto pela

população das agências estatais.

Das experiências mais exitosas de reforma do Estado, em nível nacional e

internacional, sobressaem-se aquelas desenvolvidas no âmbito municipal, dentre

outros fatores, em virtude da maior proximidade da administração pública com as

necessidades e potencialidades locais, o que pode favorecer a construção de

políticas públicas mais diretamente ligadas às especificidades e ao controle público

da comunidade.

Se existe algum modelo ideal de descentralização, este será aquele capaz de

articular, de modo equilibrado, as dimensões administrativas, econômicas e políticas

das reformas, envidando esforços para a democratização do Estado e para a

adoção da política como princípio dominante e transversal.

No caso brasileiro, o movimento de descentralização das políticas públicas,

oportunizado pela Constituição Federal de 1988, vem sendo constantemente

relacionado ao da municipalização, eis que:

O ideal da descentralização política tem sido freqüentemente associado ao caminho da municipalização. A proximidade do centro decisório ao ambiente em que se deve atuar pode estimular a comunicação entre Estado e sociedade, o que amplia as condições de gestão política da diversidade social, uma das maiores fontes geradores de conflitos urbanos. Acredita-se

51

ainda que a proximidade entre governantes e governados e a experiência mais direta com os problemas possam estimular o interesse da sociedade civil para as questões públicas. O fortalecimento das competências municipais seria, portanto, forma de estímulo às ações políticas de base e de legitimação do sistema político-estatal como um todo.75

Se por um lado os indivíduos se vêem cada vez mais confrontados com

questões de alcance global (riscos tecnológicos, desemprego, explosão

demográfica, imigração, tráfico de drogas, corrupção, trabalho e prostituição infantil),

que não podem mais ser enfrentadas somente no âmbito dos Estados nacionais, por

outro, a concentração populacional em grandes centros urbanos fortalece a

relevância da esfera local como espaço de conflitos, reivindicações e tomada de

decisões.

O revigoramento do poder local deve conduzir a uma concepção mais

abrangente de um projeto de municipalização, considerando a revitalização das

competências políticas dos governos locais e, sobretudo, o resgate da cidade como

lócus privilegiado de participação da cidadania na proposição, implementação,

acompanhamento e fiscalização de políticas públicas, mormente as que dizem com

a área de segurança.

Está em questão, portanto, a conversão do espaço local como núcleo

decisório relevante para a articulação de políticas públicas integradas e

participativas de proteção dos direitos fundamentais. O desafio reside na

constituição de uma verdadeira esfera pública local, na qual a sociedade através de

suas instituições (estatais, econômicas, culturais, profissionais, religiosas,

75 DIAS NETO, 2005, p. 55.

52

beneficentes, etc.) mobiliza os recursos necessários à sua governabilidade. Deve-se

atentar, afinal, à experiência concreta de interseção entre as pautas políticas globais

e locais.

É nesse contexto que se pretende discutir o papel, os limites e as

possibilidades de o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre

afirmar-se como uma instância pública não-estatal de articulação e mobilização de

amplo e diversificado espectro de atores sociais e instituições da sociedade civil e

das agências estatais que compõem o sistema de justiça criminal (Polícia, Poder

Judiciário, Ministério Público, Administração Prisional), na perspectiva de favorecer o

enfrentamento racional e preventivo dos conflitos e das situações associadas

diretamente ou indiretamente à segurança pública em âmbito municipal.

53

2 O MODELO DA NOVA PREVENÇÃO: SEGURANÇA COMO DIREITO SOCIAL

2.1 O modelo da nova prevenção e a necessária transversalidade das políticas

públicas de segurança em âmbito municipal

O tema da segurança pública tem despertado grande interesse da sociedade

e, por conseguinte, ocupado lugar de destaque na agenda política nacional e

internacional. O aumento objetivo dos índices de criminalidade, o crescimento do

sentimento de insegurança pública e a percepção coletiva de que o enfrentamento

da criminalidade e o controle da violência são responsabilidade de todas as

instâncias governamentais (federal, estadual e municipal) apresentam-se como

hipóteses plausíveis para explicar a centralidade conquistada por essa temática no

país desde meados dos anos oitenta. Nessa direção, apontam Túlio Kahn e André

Zanetic:

Não é difícil compreender porque simultaneamente empresas privadas, governo federal e municipais começaram a intervir de forma mais intensa na segurança pública: 1) a criminalidade cresceu rapidamente em todo o país nos anos 80, em especial os homicídios cuja taxa passou de 11 para 27 ocorrências por 100 mil habitantes entre 1980 e 2000 (Fonte: Datasus); 2) em paralelo, houve um crescimento da sensação de insegurança, que colocou o crime entre as principais preocupações da população, ao lado do desemprego; 3) junte-se a isso o fato de que a população culpa a todos os níveis de governo pelo problema e não apenas ao governo estadual, detentor das polícias civil e militar.76

76 KAHN, Túlio; ZANETIC, André. O Papel dos Municípios na Segurança Pública. Disponível em:

<http://www.ssp.sp.gov.br>. Acesso em: 29 out. 2005, p. 5.

54

Historicamente, no entanto, tanto em face do modelo de policiamento adotado

no Brasil77 quanto em virtude de “limitações” de ordem constitucional, os municípios

permaneceram à margem do debate sobre segurança pública, tendo sido esta, via

de regra, incumbência dos governos estaduais e federal78.

Ocorre que, na última década, seguindo uma tendência de municipalização

das políticas públicas79, como também correspondendo a um clamor público por

segurança, surgiram importantes experiências de políticas de segurança conduzidas

pelas administrações municipais. Esse movimento foi acompanhado por um

alargamento conceitual da questão da segurança pública por meio do qual se

77 Kant de Lima discute o conceito de segurança pública e a atuação policial, considerando as

peculiaridades culturais brasileiras acerca da concepção de espaço público e de mediação de conflitos. Assim: “[...] este ethos repressivo e esta organização em segmentos excludentes da polícia tem sido reforçado, no Brasil, seja pelos valores de nossa cultura judiciária, seja pelo ethos militar que tem definido a atuação das polícias militares, tradicionalmente organizadas como exércitos, tanto antes de 1964, quanto depois desta data. [...] Quanto ao ethos militar, influencia negativamente a polícia em pelo menos dois aspectos. Primeiro, quanto à sua organização interna e quanto a suas relações externas com outras instituições da sociedade [...] Em segundo lugar, mantém da hierarquia militar a estrita obediência e a negação da autonomia, que, se pode ser indispensável às funções a serem executadas no cenário da guerra, revelam-se obstáculos importantes na atuação policial, tanto no que diz respeito à sua necessária autonomia de decisão na prática de suas funções profissionais, quanto no modo pelo qual se deve fazer a avaliação de sua conduta na eficácia obtida na mediação de conflitos, medida não pelo grau de obediência a ordens superiores, mas pela sua criatividade na condução de negociações bem-sucedidas.” (LIMA, Kant de. Políticas de segurança pública e seu impacto na formação policial: considerações teóricas e propostas práticas. In: ZAVERUCHA, Jorge; BARROS, Maria do Rosário Negreiros (Org.). Políticas de segurança pública: dimensão da formação e impactos sociais. Recife: FJN, Escola de Governo e Políticas Públicas: Massangana, 2002, p. 208-210).

78 Estabelece a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 144, in verbis: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a

preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I- polícia federal; II- polícia rodoviária federal; III- polícia ferroviária federal; IV- polícias civis; V- polícias militares e corpos de bombeiros militares. No §8° do mesmo artigo, faculta aos municípios alguma margem de intervenção, eis que: §8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens,

serviços e instalações, conforme dispuser a lei. (PINTO, Antônio Luiz de Toledo; WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos; CÉSPEDES, Lívia. Vade

Mecum Saraiva. São Paulo: Saraiva, 2006). 79 Refiro-me ao fortalecimento do poder local (municípios) e à instituição dos conselhos municipais

como possibilidade de reordenação das políticas públicas brasileiras na direção de formas de governança democrática. A esse respeito: GOHN, 2001, p. 83 e ss.

55

deslocou a atenção do modelo tradicional de segurança, centrado no controle

repressivo-penal do crime, para uma concepção preventiva da violência e da

criminalidade, assente no desenvolvimento de políticas integrais e protetivas de

direitos, privilegiando o caráter interdisciplinar, pluriagencial e comunitário dessa

problemática.

Parece-nos que esses dois processos, tanto a descentralização político-

administrativa estimulada pela Constituição Federal de 1988, num primeiro momento

mais visível nas áreas de educação, saúde, assistência social, etc. do que

propriamente na da segurança pública, quanto a emergência de novas

possibilidades de compreensão e tratamento dos conflitos sociais para além do

método penal, estabeleceram as bases para a constituição de um novo modelo de

segurança pública, menos centrado no papel policialesco e repressivo do Direito

Penal e do sistema de justiça criminal (Judiciário, Polícias e Prisões), e mais na

construção de alternativas democráticas e dialogais para a gestão e mediação dos

conflitos e da violência. Precisamente nesse ponto, reside a relevância teórico-

prática deste estudo de caso sobre o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de

Porto Alegre. Para Túlio Kahn e André Zanetic:

Na última década, todavia, parece ter havido um alargamento da questão da segurança pública, tanto do ponto de vista conceitual quanto administrativo: de problema estritamente policial passou a questão multidisciplinar, envolvendo diversos níveis e instâncias administrativas. E este processo de alargamento ocorreu depois da Constituição de 1988, que em nada alterou o papel da Federação e dos Municípios na esfera da segurança, apesar da tendência municipalista em diversas outras áreas.80

80 KAHN; ZANETIC, 2005, p. 3.

56

Nesses termos, a despeito dos riscos de qualquer conceituação, esta

investigação, no que compete à abordagem da questão criminal, utilizará como

referencial teórico o chamado modelo da nova prevenção. Importa-nos “redirecionar

o debate da segurança para além do marco da penalidade, da alternativa entre

maior ou menor intervenção penal”.81 A expectativa é que, dessa forma, possam ser

viabilizadas novas possibilidades de gestão material dos problemas, direta ou

indiretamente, afetos ao crime e à insegurança do cidadão. Nessa linha de

argumentação, sustenta Dias Neto:

Essas inovações das políticas de controle e prevenção do delito devem ser compreendidas à luz dos já discutidos processos de reorganização das competências estatais, que se tornam mais acessíveis à interação com instituições do setor privado e do setor público não-governamental. As características, promessas e ambigüidades da nova prevenção serão discutidas sob quatro conceitos-chave: interdisciplinaridade, interagencialidade, participação e descentralização.82

Não se trata, por óbvio, de uma opção dicotômica entre dois modelos de

segurança pública: o repressivo e o preventivo. Decerto, a complexidade do

fenômeno criminal e a busca por respostas integradas e efetivas aos problemas

geradores da criminalidade, com impacto, não necessariamente direto, nas

81 No modelo da nova prevenção insere a sistematização das quatro diretrizes que deverão nortear

as políticas de controle e prevenção do delito, a saber: interdisciplinaridade, interagencialidade, participação e descentralização. Em certa medida, trata-se mais de um trabalho de síntese do autor em questão, apropriando-se de referências teóricas européias, do que propriamente da existência de um corpo de autores, ou mesmo de uma escola consolidada, que utilize a expressão “modelo da nova prevenção” como um conceito corrente no círculo de estudiosos que se dedicam à análise do fenômeno criminal e das alternativas de controle da violência no campo da segurança pública. Veja: DIAS NETO, 2005, sobretudo o Capítulo IV, intitulado: Nova Prevenção - Conceito de Prevenção Integrada, p. 102 e seguintes. À evidência, o texto inspira-se na obra de Baratta, notadamente: BARATTA, Alessandro. La politica criminal y el Derecho Penal de la Constitución: nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las Ciencias Penales. Revista de La Facultad de Derecho de La Universidad de Granada. n. 2, 1999, p. 89-114.

82 DIAS NETO, 2005, p. 104. Vide, ainda: SANTOS, 2006, especialmente o décimo capítulo, p. 341-381.

57

representações sociais com relação ao sentimento de insegurança e medo por parte

dos cidadãos,83 não nos permitem escolha tão simplória. De acordo com Azevedo:

[...] pode-se afirmar que as experiências de políticas públicas de segurança nos municípios brasileiros tendem a traduzir o debate mais amplo sobre o tema e materializam dois modelos fortes: o primeiro, centrado em iniciativas repressivas, e o segundo, em medidas de prevenção. Não se trata aqui de introduzir uma aporia entre prevenção e repressão, mesmo porque determinadas iniciativas repressivas podem cumprir um papel preventivo. O que importa é identificar duas racionalidades específicas cujos “pólos hegemônicos” insinuam, também, dois paradigmas.84

A grande novidade introduzida pelo modelo da nova prevenção, portanto,

consiste no oferecimento de novas possibilidades sócio-políticas para a gestão e

mediação do conflito e da violência, menos pautadas pela lógica da punição, uma

vez que mais abertas ao reconhecimento das diferenças e à construção de novas

83 “Considera-se que o sentimento de insegurança se estrutura mais a partir de percepções

subjetivas dos fatos acontecidos e menos de percepções objetivas quanto à proximidade do perigo ou do risco da violência e do crime. [...] O aumento da insegurança teria a ver com a multiplicação das desordens e com o aumento da delinqüência na sociedade contemporânea.[...] Esse sentimento de insegurança se define também como inquietação, e se cristaliza através do crime e nos seus atores” (ROCHÉ, Sebastian in DIRK, Renato Coelho; PINTO, Andréia Soares; AZEVEDO, Ana Luísa Vieira de. Avaliando o sentimento de insegurança nos bairros da cidade do Rio de Janeiro. Pesquisa apresentada no XXVIII Encontro Anual da ANPOCS 2004, GT: Conflitualidade Social, Acesso à Justiça e Reformas do Poder Judiciário. 2004. GT: Conflitualidade Social, Acesso à Justiça e Reformas do Poder Judiciário, sob a coordenação de AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; LIMA, Roberto Kant de; SINHORETTO, Jacqueline). Para Hassemer: “Não é a ameaça real da criminalidade e da violência que constitui o fator decisivo para a política de segurança pública e sim a percepção de tal ameaça pela coletividade. Estes sentimentos de ameaça dominam a população, são canalizados para reivindicações de imediato arrocho nos meios coercitivos e tornam o relaxamento dos direitos fundamentais bem como sua corrosão pelo Estado não só toleráveis como objeto de exigência da população. Porém, não existe a mais remota relação causal entre ameaça e sentimento de ameaça, pelo contrário: Há mais medo do crime entre grupos sociais onde a probabilidade de ser sua vítima é mais remota. A recíproca é verdadeira” (HASSEMER, 1997, p. 64). Essa reflexão do jurista alemão resta corroborada, no caso da realidade brasileira (comparativo de alguns bairros da cidade do Rio de Janeiro) pelo estudo imediatamente anterior - registro nosso!

84 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A Municipalização da Segurança Pública: Bases Teóricas e Experiências de Implementação no RS. BPA/PUCRS. Projeto aprovado pelo CNPq. Abril de 2006.

58

formas de convivência social respaldadas pela reciprocidade.85 Reproduz-se

oportuna síntese de Dias Neto para o qual:

Se no espaço da pena é feita uma leitura individualizada dos conflitos, é no espaço da política onde a sociedade deve confrontar-se com seus problemas e buscar soluções negociadas para os mesmos. A sociedade que não explica os seus conflitos por fora da linguagem da pena está se omitindo da reflexão acerca de suas próprias responsabilidades por tais conflitos, transferindo-as integralmente a indivíduos ou grupos isolados.86

Considera-se, então, a temática das políticas públicas como uma ferramenta

por meio da qual também se pode enfrentar a questão da segurança, entendida

como um fenômeno complexo, envolvendo grupos sociais distintos, visando ao

controle negociado das várias violências, às quais os diferentes grupos são

submetidos, inclusive aquelas praticadas pelo Estado.87

85 Para Alba Zaluar: “A reciprocidade e o dom em circuitos simétricos e assimétricos da troca, porque

são a base ou o cimento de qualquer sociabilidade, não se restringiram, como sugeriu o próprio Marcel Mauss, às sociedades ditas tribais ou primitivas. Os circuitos específicos das sociedades modernas e contemporâneas, nas suas conseqüências econômicas e políticas, assim como nos seus aspectos positivos e negativos, têm sido cada vez mais objeto de análise de inúmeros autores, em diferentes campos sociais: no cuidado médico, na previdência social, na doação de sangue e de órgãos, na política fiscal do Estado, nos diversos movimentos sociais, mas também nos circuitos de vingança privada e no próprio Direito Penal moderno, que não perdeu inteiramente o seu caráter vingativo. No social sempre houve o entrelaçamento entre a necessidade (ou o interesse) e o dom, a inveja e a solidariedade, apesar das afirmações às vezes exageradamente otimistas dos críticos do interesse próprio como cimento da sociedade. Falar apenas de reciprocidade, portanto, não basta. É preciso saber de que reciprocidade se trata, do seu contexto social, dos seus limites comunitários, dos seus circuitos, de quem, enfim, dela faria parte e com base em que critérios ou razões.” No caso dos conselhos, embora este não seja o tema analisado pela autora, pode afirmar que: “A autonomia local, que não organiza relações entre os vários grupos ou comunidades, rompe-se para formar cadeias de solidariedade entre estranhos cujo objetivo final pode ser a distribuição de um bem escasso, baseada em critérios diversos de justiça que implicam uma discussão pública permanente nos processos de escolha dos beneficiados” (ZALUAR, Alba. Exclusão e políticas públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo. v. 12, n. 35, fev. 1997).

86 Observe-se que o debate público acerca dos conflitos parte da responsabilidade de autores identificáveis, e não das dinâmicas e estruturas sociais. Assim, os conflitos sociais são uniformizados e a intervenção penal, apoiada em uma leitura individualizante do problema criminal, conduz a mesma forma repressiva de sanção, eis que posterior ao cometimento do delito, logo reativa! (DIAS NETO, 2005, p. 82-84).

87 LIMA; MISSE; MIRANDA, 2000, p. 55.

59

Interessa-nos a participação comunitária na proposição, monitoramente e

fiscalização de ações específicas de segurança, coordenadas e implementadas pelo

poder local, na perspectiva da promoção de políticas públicas de segurança,

identificadas com a manutenção da ordem, com respeito às leis e aos direitos

humanos.88 Por isso, “parece-nos essencial tratar esta área de justiça e segurança

de forma ampla, como um dos instrumentos fundamentais da reprodução social, que

tem de deixar de ser campo de especialistas para se tornar objeto de um processo

vital de rearticulação política e de reorganização social.”89

Ora, se é certo que o enfrentamento da criminalidade não se tornará efetivo

somente com o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal e do incremento da

atuação policial, baseada no policiamento ostensivo e repressivo, impõe-se o

incentivo, por parte das administrações municipais, do envolvimento da comunidade

na identificação dos problemas de segurança e da busca por soluções, bem como a

incorporação do caráter pluriagencial das estratégias preventivas, articulando

políticas entre as diferentes instâncias do poder municipal. Impõe-se uma maior

aproximação dos programas das diversas áreas da administração das cidades às

políticas de segurança, tais como: iluminação pública, urbanização de favelas,

construção de creches, formação profissional dos jovens e projetos de educação de

88 SENTO-SÉ, João Trajano (Org). Prevenção da Violência: O Papel das Cidades. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2005, em especial o capítulo primeiro, intitulado: Segurança municipal no Brasil - sugestões para uma agenda mínima, escrito por Luis Eduardo Soares.

89 DOWBOR, Ladislau. A Reprodução Social: propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis: Vozes, 1998, sobretudo p. 317-333.

60

jovens e adultos.90 Os desafios, para tanto, são enormes, “pois as modalidades da

coordenação entre as equipes encarregadas das políticas setoriais são difíceis de se

implementar. A transversalidade supõe a organização de todo um sistema de trocas,

de interações às vezes conflituais entre atores.”91

Destaque-se, uma vez mais, além disso, os riscos de o Estado delegar sua

responsabilidade pela repressão criminal (sistema de justiça criminal), bem como

sua responsabilidade pela prevenção do fenômeno criminal (fomento de políticas

públicas de segurança), à iniciativa privada. A participação comunitária no esforço

de buscar soluções para o enfrentamento da violência e do crime, aqui propugnada

com base na experiência do novel Conselho Municipal de Justiça e Segurança de

Porto Alegre, não se confunde com a defesa da privatização dos serviços públicos

(clientelização da cidadania)92, ou, ainda, com a possibilidade de se prescindir da

intervenção estatal para a garantia da segurança pública à coletividade.

90 Observe-se a análise de alguns dos programas municipais de segurança de 39 cidades da Região

Metropolitana de São Paulo na pesquisa de KAHN; ZANETIC, 2005, p. 54. No plano internacional, recomenda-se a leitura da publicação: INTERNATIONAL CENTRE FOR THE PREVENTION OF CRIME; Urban crime prevention and youth at risk - Compendium of Promising Strategies and Programmes from around the World. Prepared for the 11th United Nations Congress on Crime Prevention and Criminal Justice, Bangkok, 2005. Disponível em: <http://www.crime-prevention-intl.org/filebin/tools/Compendium_of_best_practices.pdf>. Acesso em: 30 out. 2005. Nela, constam três experiências (inter)municipais de segurança pública brasileiras, quais sejam: o Programa Fique Vivo (“Stay Live Programme”) de Belo Horizonte (MG), as ações de política de segurança pública (“Public Security Policy”) de Diadema (SP) e o Fórum Metropolitano de Segurança Pública, envolvendo 39 prefeituras da região metropolitana de São Paulo (“Metropolitan Forum of Public Security”). Merece também referência a experiência da prefeitura de Bogotá (Colômbia), nas gestões de Antanas Mockus. Reduziu-se em 60% o número de mortes violentas no município, por meio da combinação de estratégias de prevenção e repressão e do desenvolvimento de ações que enfocavam, sobretudo, mudanças de ordem cultural, baseadas na auto-regulação cultural da cidadania (a exemplo: do uso obrigatório de cinto de segurança e do trabalho de conscientização de “mímicos profissionais” para reduzir a mortandade no trânsito, restrição da venda de álcool em bares e restaurantes, criação de centros de mediação, os quais treinaram mais de 8.000 agentes de cidadania, capacitação de policiais em escolas de segurança, considerando os policiais como “cidadãos formadores de cidadãos” - multiplicadores, ações coletivas para o desarmamento da população, entre outros). (MOCKUS, Antanas. La experiencia de Bogotá en la lucha contra la criminalidad. Palestra proferida na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, a convite da Comissão Especial de Segurança Pública. 06 set. 2006).

91 BOURDIN, Alain. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 142. 92 Sobre essa temática vide nota de rodapé número vinte e oito.

61

Fundamental atentar para a reflexão suscitada por David Garland, tendo por base a

realidade britânica (e européia):

Um dos problemas que foi freqüentemente ressaltado é o de que a “responsabilização” de organismos não estatais e o funcionamento rotineiro da prevenção da criminalidade podem provocar enormes disparidades no financiamento social e na rede de segurança. Uma vez que a “segurança” deixa de ser garantida para todos os cidadãos por um estado soberano, ela se torna um produto cuja distribuição esta antes à mercê das forças do mercado do que sendo executada em função das necessidades. Os grupos que mais sofrem a criminalidade tendem a ser os membros mais pobres e menos poderosos da sociedade, que são desprovidos quer de recursos para comprar segurança, quer da flexibilidade para adaptar suas vidas cotidianas e se organizar de forma eficaz contra o crime. Essa disparidade entre ricos e pobres - que coincide com a divisão entre as classes detentoras da propriedade e os grupos sociais que são considerados como uma ameaça à propriedade - tende a nos arrastar para uma sociedade fortificada, caracterizada pela segregação e o abandono de todo o ideal cívico (veja-se BAUMANN, 1987; DAVIS, 1994; BOTTOMS & WILES, 1994). Também se disse que as novas políticas de prevenção da criminalidade foram seriamente solapadas pelas políticas sociais e econômicas das últimas duas décadas, assim como pelas transformações estruturais do mercado de trabalho e da estratificação social (veja-se SIMON, 1993; HALL & JACQUES, s/d). “Fazer agir” as comunidades, as famílias e os indivíduos torna-se muito menos plausível se estes foram enfraquecidos e socialmente excluídos. Tanto mais que os hábitos de pensamento, estabelecidos de longa data e alimentados pelos organismos de Estado numa fase precedente, monopolizante, preconizaram a administração dos problemas de desordem e de desvio única e exclusivamente pelos especialistas e as “autoridades competentes.93

O autor, no final dessa exposição, aponta, mesmo que a contrario sensu, para

a necessária participação comunitária na gestão dos problemas da desordem e do

93 Nessa abordagem, o autor não só sublinha os riscos da privatização da segurança pública, como

também, ao final, suscita, pela via negativa, ou seja, insurgindo-se contra o que poderíamos chamar de tecnicização da política de segurança pública por parte do Estado, a necessária participação da cidadania na busca de soluções ao problema criminal. (GARLAND, David. As Contradições da Sociedade Punitiva: o caso britânico. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, UFP, n. 13, nov. 1999, p. 76). Digna de nota a observação do professor francês Ladislau Dowbor: “[...] a substituição pura e simples da ética social por regulamentos, fiscais e instituições armadas não resolve o problema do funcionamento adequado da sociedade. As leis e o aparelho repressivo podem constituir-se nas cordas do ringue, fixando determinados limites, mas o essencial do jogo social deve se dar no meio do tablado, no quadro da compreensão, solidariedade e respeito mútuo.” (DOWBOR, 1998, sobretudo p. 328).

62

desvio94. Essa reflexão favorece o debate acerca da politização da segurança e, por

decorrência lógica, da relevância de esferas públicas não-estatais de participação

popular na gestão e no controle da administração estatal da segurança, nos termos

colimados por Winfried Hassemer:

Nossas discussões atuais favorecem o aspecto segurança em detrimento do aspecto política. Com isto quero dizer sobretudo que nós fixamos apenas um dos olhos nos elementos de um controle da criminalidade tecnicamente eficiente, ao passo que aspectos normativos, tais como pressupostos de longo prazo da segurança, alternativas ou custos deste controle atraem nossa atenção apenas marginalmente. Uma repolitização do debate sobre política de segurança teria porém também o efeito de que ele voltaria a ser conduzido pelos cidadãos interessados mais que pelos experts: questões gerais e não apenas criminalísticas saltariam para o primeiro plano.95

Vale dizer, entretanto, que essa não é uma tendência hegemônica. Pelo

contrário, o processo de construção de uma política integral de defesa dos direitos96,

no campo da segurança pública, convive com o fortalecimento do Direito Penal,

estendendo suas competências reguladoras para outros domínios e esvaziando-se

enquanto sistema de garantias. Para Azevedo:

Uma das tendências mais evidentes no tocante às normas penais nas sociedade contemporâneas é a da hipertrofia ou inflação de normas penais, que invadem campos da vida social que anteriormente não estavam regulados por sanções penais. O remédio penal é utilizado pelas instâncias de poder político como resposta para quase todos os tipos de conflitos e problemas sociais.97

94 Posteriormente, em uma obra densa, o autor irá aprofundar essa reflexão acerca da importância da

participação de diferentes atores estatais e da sociedade civil na gestão da segurança pública, senão vejamos: “Este campo se extiende ahora más allá del Estado, comprometiendo a actores y agencias de la sociedad civil, permitiendo que las prácticas del control del delito se organicen y dirijan a distancia desde las agencias estatales. El control del delito se está volviendo una responsabilidad no sólo de los especialistas de la justicia penal, sino de toda una serie de actores sociales e económicos” (GARLAND, 1999, p. 280).

95 HASSEMER, 1997, p. 66. 96 Expressão cunhada por BARATTA, 1999, p. 89-114. 97 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. As Reformas Penais no Brasil e na Argentina nos anos 90:

Uma Abordagem Sócio-Jurídica. Oficinas do CES. Coimbra. v. 1, n. 196, p. 1-60, 2004, p. 1-60.

63

Não obstante, é preciso avançar para um conceito de segurança que seja

capaz de garantir a segurança dos indivíduos em todos os seus direitos

fundamentais, o que inclui os direitos de prestação positiva por parte do Estado,

promovendo ou garantindo as condições materiais de gozo efetivo desses bens

jurídicos (ações positivas fáticas), e extrapola o escopo dos tradicionais direitos de

defesa do cidadão frente ao sistema punitivo estatal98, ou mesmo, dos direitos de

prestação positiva estatal, de ordem normativa, aqueles previstos pela legislação

penal para proteger os direitos fundamentais do cidadão contra a atividade de

terceiros. O conceito de garantismo positivo de Alessandro Baratta, erigido no

contexto do movimento da nova prevenção, resume a tese aqui sustentada:

Ampliar la perspectiva del derecho penal de la Constitución en la perspectiva de una politica integral de protección de los derechos, significa también definir el garantismo no solamente en sentido negativo como limite del sistema positivo, o sea, como expresión de los derechos de protección respecto del Estado, sino como garantismo positivo. Esto significa la respuesta a las necesidades de seguridad de todos los derechos, también de los de prestación por parte del Estado (derechos económicos, sociales y culturales) y no sólo de aquella parte de ellos, que podríamos denominar derechos de prestación de protección, en particular contra agresiones provenientes de comportamientos delictivos de determinadas personas. No se puede ignorar aquella parte de la inseguridad urbana debida efectivamente a comportamientos delictivos. No obstante, la necesidad de seguridad de los ciudadanos no es solamente una necesidad de protección de la criminalidad y de los procesos de criminalización. La seguridad de los ciudadanos corresponde a la necesidad de estar y de sentirse garantizados en el ejercicio de todos los derechos: derecho de la vida, a la libertad, al libre desarrollo de la personalidad y de las propias capacidades, derecho a expresarse y a comunicarse, derecho a la calidad

98 Consideram-se, a título de referência, como direitos de defesa, os tradicionais direitos

fundamentais de liberdade e igualdade (previstos no texto constitucional brasileiro como “direitos individuais”), de caráter negativo, na medida em que se dirigem a abstenções do Estado. Os denominados direitos sociais, por sua vez, são tidos primordialmente como direitos dirigidos precipuamente a prestações positivas por parte do Estado. É justamente esse último enfoque que será privilegiado nesta análise, a saber: a segurança como direito fundamental, inscrita no rol dos direitos sociais e, como tal, tendo eficácia vinculativa, não somente em relação aos entes estatais (União, Estados e Municípios), como também junto aos particulares. Maiores referências sobre o assunto: SARLET, 2006c, p. 96 e seguintes.

64

de vida, así como el derecho a controlar y a influir sobre las condiciones de las cuales depende, en concreto, la existencia de cada uno. La relación existente entre garantismo negativo y garantismo positivo equivale a la relación que existe entre la politica de derecho penal y la politica integral de protección de los derechos. El todo se sirve de cada uno de los elementos que cada vez lo conforman, pero cada uno de estos elementos necesita del todo.99

Embora não se esteja a advogar a existência de relações de causalidade

entre pobreza, leia-se falta ou carência de acesso aos direitos fundamentais

constitucionalmente previstos, e criminalidade violenta, pesquisas demonstram que

a sobreposição da violência e das graves violações de direitos humanos às

carências de direitos econômico-sociais tornam determinados grupos sociais mais

vulneráveis e em situação de risco de serem vítimas potenciais de ocorrências

fatais.100

Assim, se no campo teórico-conceitual a segurança pública revela-se melhor

equacionada no bojo da defesa do projeto constitucional de garantia dos direitos

fundamentais, no âmbito da gestão e execução de políticas públicas de segurança, a

concatenação e o redirecionamento de investimentos municipais em programas

sociais de caráter preventivo, focados especificamente na questão da violência e da

criminalidade, ou seja, em áreas e grupos de risco, indicam uma tendência

alvissareira. Para Alessandro Baratta:

99 BARATTA, 1999, p. 110. 100 Faz-se menção a pesquisa de CARDIA, Nancy; ADORNO, Sérgio; POLETO, Frederico. Homicídio

e violação de direitos humanos em São Paulo. Estudos Avançados. v.17, n. 47, 2003, p. 43-73, que enfoca o crescimento das taxas de violência, em particular das de homicídio, e suas relações com o escasso acesso aos direitos econômicos e sociais, para largos setores da população na região metropolitana de São Paulo. Ademais: “As políticas sociais devem ser implementadas não porque os pobres constituam um perigo permanente à segurança, não porque venham a ser classes perigosas, mas porque um país democrático e justo não pode existir sem tais políticas.” (ZALUAR, 1997).

65

Tal esfuerzo debería tender a una radical relectura de las necesidades humanas y de las situaciones de riesgo em la óptica del sistema de los derechos fundamentales y del edificio normativo entero de la Constitución. No se trata solamente de diseñar un derecho penal de la Constitución, sino de redefinir la política pública, a la luz del proyecto constitucional, como politica de ejercicio efectivo y de protección íntegral de los derechos fundamentales.101

O desafio está posto: os limites e possibilidades de o Conselho Municipal de

Justiça e Segurança de Porto Alegre constituir-se efetivamente como um espaço

público não-estatal de participação da cidadania, com vistas à mediação de conflitos,

proposição, monitoramento e fiscalização de políticas públicas de segurança em

âmbito municipal. Para a consecução desse objetivo, é imperioso reiterar os

propósitos publicísticos deste trabalho, ao encontro do que diagnostica e preceitua

Andrade, relativamente à construção de uma cidadania ativa:

O ator visível central, embora longe de ser exclusivo - justamente porque sustentado por sujeitos sociais, individuais e coletivos, em nível local, nacional ou global - deste processo bipolar de sobrestimação do espaço da pena e subestimação do espaço da cidadania, é o próprio Estado na caricatura de Estado mínimo (neoliberal). Ora, se o Direito e o sistema penal estatais estão se tornando máximos, como máximos também estão a se tornar, o Direito e os sistemas Administrativo e Tributário, é porque o Estado mínimo é uma falácia. De fato, o Estado e o Direito só estão a se tornar mínimos no campo social (Direito do Trabalho, Previdenciário), que é precisamente o campo vital, o campo mais nobre da construção da cidadania, do qual se retiram com a mesma selvageria que colonizam e se expandem pelo campo penal (administrativo, tributário), de modo que a caricatura do Estado mínimo equivale a um sistema penal máximo x cidadania mínima, para alguns.102

101 BARATTA. 1999, p. 105-106. 102 ANDRADE, 2003, p. 26-27.

66

2.2 O conceito de segurança como direito social: para além do senso comum

teórico do enfoque criminal da segurança

A complexidade de erigir o presente objeto de pesquisa funda-se na

dificuldade de articular as relações entre o Estado e a sociedade civil sob uma

perspectiva sócio-jurídica, situada, como se sabe, no limiar entre o conhecimento

jurídico e as ciências sociais, e, como tal, imbricada com as várias disciplinas

acadêmicas para as quais o fenômeno jurídico se coloca como objeto de

investigação, entre elas: História, Antropologia, Sociologia, Ciência Política. Deve-se

também ao esforço para abarcar, mesmo que não de forma exaustiva, o arcabouço

teórico-conceitual cristalizado desde a idade moderna pela Filosofia do Direito, pela

Dogmática Jurídica e pela História do Direito acerca do tema. Conforme Azevedo:

A construção de um objeto de pesquisa situado na fronteira entre o conhecimento jurídico e as ciências sociais não é tarefa das mais fáceis, pela dificuldade de articular a complexidade de um fenômeno para cuja abordagem constituíram-se linguagens quase irredutíveis, correspondentes a formações culturais e metodológicas especializadas.103

Ao ensejo, parte-se da premissa de que a segurança constitui um direito

humano e fundamental, que passou a constar nos principais documentos

internacionais e em muitas Constituições modernas, inclusive na nossa Constituição

Federal de 1988. Dentre as diversas acepções do conceito de segurança previstas

nos texto constitucional, dedicar-nos-emos aquela ínsita ao caput do art. 6° da Carta

103 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Informalização da Justiça e Controle Social: Estudo

Sociológico da Implantação dos Juizados Especiais Criminais em Porto Alegre. Porto Alegre: IBCCRIM, 1999, p. 21. Veja também: AZEVEDO; ROJO, 2005a; AZEVEDO; CUNHA, 2005b, p. 25-47.

67

Magna, inserto no Capítulo II do Título II, que disciplina os direitos e garantias

fundamentais.

Para tanto, cumpre assinalar, preliminarmente, um conceito geral de direitos

fundamentais, em vista do qual, doravante, será desenvolvida a argumentação.

Segundo Sarlet:

Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo).104

Dadas às múltiplas faculdades de um direito constitucionalmente consagrado,

que têm objeto e conteúdo distintos, opondo-se a destinatários diferentes e

determinando deveres de variados tipos, há que se buscar um critério para distingui-

los e, assim o fazendo, perquirir os efeitos práticos decorrentes dessa taxonomia

(dogmático-constitucional) dos direitos fundamentais, máxime do direito social

fundamental à segurança. Para o jurista português Vieira de Andrade:

[...] num mesmo direito fundamental unitariamente designado podemos encontrar combinados poderes de exigir um comportamento negativo (das potências públicas) com poderes de exigir ou de pretender prestações positivas, jurídicas ou materiais, ou com poderes de produzir efeitos jurídicos na esfera de outrém, poderes que têm muitas vezes recortes diferentes e aos quais correspondem, conforme os casos, deveres de abstenção ou de não-intromissão, deveres de prestação ou de ação ou sujeições (deveres de tolerar).105

104 SARLET, 2006c, p. 91. Nesse particular, o autor inspira-se na conceituação de Alexy, para o qual

os direitos fundamentais podem ser definidos como aquelas posições que, do ponto-de-vista do direito constitucional, são tão relevantes, que seu reconhecimento ou não-reconhecimento não pode ser deixado à livre disposição do legislador ordinário (ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001).

105 ANDRADE, Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 188.

68

Considerando a evolução histórica dos direitos fundamentais, pode-se

diferenciá-los de acordo com sua matriz liberal (direitos de liberdade), democrática

(direitos políticos) ou social (direitos sociais).106 Para os fins a que se destina este

trabalho, todavia, tal distinção, embora necessária, não é suficiente para dar conta

de uma justificação constitucional do direito social fundamental à segurança. De

forma que, em face do conteúdo, ou do modo de proteção dos direitos fundamentais,

estes podem, ainda, ser também classificados como direitos de defesa, direitos de

participação e direitos a prestações.107

Os direitos de defesa, também chamados de direitos de impedir,

caracterizam-se por implicarem um dever de abstenção, por parte do Estado,

abstenção de agir e dever de não interferência ou de não intromissão, no que toca

às liberdades propriamente ditas, em que se resguarda um espaço de

autodeterminação individual (por exemplo, em relação à vida, à honra, à intimidade).

Para Alexy:

Los derechos del ciudadano frente al Estado a acciones negativas del Estado (derechos de defensa) pueden dividirse en grupos. El primero está constituido por derechos a que el Estado no impida u obstaculice determinadas acciones del titular del derecho; el segundo, por derechos a que el Estado no afecte determinadas propriedades o situaciones del titular del derecho; y el tercero, por derechos a que el Estado no elimine determinadas posiciones jurídicas del titular del derecho.108

106 Saliente-se o percurso histórico privilegiado ao longo do primeiro capítulo desta monografia. 107 ANDRADE, 1988, p. 191 - Optou-se, por razões metodológicas, por não abordar as características

dos direitos de participação, já que o mote para apresentar algumas das classificações possíveis dos direitos fundamentais deve-se à necessidade de pontuar alguns aspectos decorrentes da interpretação do direito à segurança como direito social fundamental.

108 ALEXY, 2001, p. 189.

69

Os direitos a prestações, por seu turno, no bojo de uma teoria do Estado

Social,109 impõem ao Estado o dever de agir, seja para a proteção dos bens jurídicos

protegidos pelos direitos fundamentais contra a atividade de terceiros, seja para

promover ou garantir as condições materiais de gozo efetivo desses bens jurídicos

fundamentais. O mesmo autor aborda as distinções dos direitos a prestações, nos

seguintes termos:

Cuando se habla de “derechos a prestaciones” se hace referencia, por lo general, a acciones positivas fácticas. Este tipo de derechos que están referidos a aportes fácticos que, en principio, también podría proporcionar un sujeto particular, serán llamados “derechos a prestaciones en sentido estricto”. Se puede hablar no sólo de prestaciones fácticas sino también normativas. Cuando tal es el caso, los derechos a acciones positivas normativas adquieren también el carácter de derechos a prestaciones. Serán llamados “derechos a prestaciones en sentido amplio”.110

Resta claro que os direitos a prestações por parte do Estado se estendem

desde a proteção do cidadão frente a outros cidadãos através das normas do Direito

Penal, passando pelas normas de organização e procedimento,111 até as prestações

de cunho material (ações positivas fáticas), representadas pelo rol dos direitos

sociais, estampados no art. 6° da Constituição Federal de 1988, entre os quais, o

direito à segurança abstratamente considerado.

109 “O Estado social no Brasil aí está para produzir as condições e os pressupostos reais e fáticos

indispensáveis ao exercício dos direitos fundamentais. Não há para tanto outro caminho senão reconhecer o estado atual de dependência do indivíduo em relação às prestações do Estado e fazer com que este último cumpra a tarefa igualitária e distributivista, sem a qual não haverá democracia nem liberdade. [...] O Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de direitos. Obriga o Estado, se for o caso, a prestações positivas; a prover meios, se necessário, para concretizar comandos normativos de isonomia. [...] Com o Estado social, o Estado-inimigo cedeu lugar ao Estado-amigo, o Estado-medo ao Estado-confiança, o Estado-hostilidade ao Estado-segurança. As constituições tendem a se transformar num pacto de garantia social, num seguro com que o Estado administra a sociedade.” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 336-346).

110 ALEXY, 2001, p. 195-196. 111 Propositadamente, deixa-se de analisar as chamadas normas de organização e procedimento, em

vista do seu caráter processual de efetivação dos direitos fundamentais, que transcende os modestos intentos deste trabalho. “Los derechos procedimentales pueden ser tanto derechos al establecimiento de determinadas normas procedimentales cuanto derechos a una determinada “interpretación y aplicación concreta” de normas procedimentales (ALEXY, 2001, p. 458).

70

Em verdade, o direito social à segurança abarca tanto ações positivas fáticas

(direitos à prestação em sentido estrito) quanto ações positivas normativas (direitos

à prestação em sentido amplo). Trata-se, nesta medida, de uma complexa estrutura

de um direito voltado à proteção dos direitos fundamentais. “Este modelo permitiria

elaborar estrategias de protección de los derechos que pueden coordinar, en la

dimensión nacional y particularmente en la local, las intervenciones preventivas o

reactivas de distintas politicas públicas, también las de la politica del derecho penal,

cuando no son evitables.”112

O clamor das pessoas por segurança (compreendida em seu sentido amplo)

revela, primordialmente, uma preocupação com certa estabilidade nas relações

sociais, ou como defende Soares, “estabilização de expectativas positivas quanto à

ordem pública e à vigência da sociabilidade cooperativa.”113 Não por outra razão, a

interpretação do conceito de segurança, previsto no art. 6° da Constituição Federal

de 1988, a nosso ver, deve ser extensiva, abarcando o direito fundamental à

segurança social, vinculada a condutas positivas orientadas à efetivação e proteção

da dignidade dos indivíduos.

Na esteira da defesa de Canotilho acerca da tese da Constituição dirigente,

“[...] acreditamos que os textos constitucionais devem estabelecer as premissas

materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se

pretendem continuar chamar de direito, democráticas e sociais.”114

112 BARATTA, 1999. 113 SOARES, Luis Eduardo. Segurança municipal no Brasil: sugestões para uma agenda mínima. In:

Prevenção da Violência - O Papel das Cidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 15-44.

114 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. s/n.

71

Destarte, uma leitura constitucional do conceito de segurança, compreendida

como direito social fundamental, enseja a possibilidade de se cotejar o direito

fundamental à segurança social com o direito fundamental à segurança pública,

aquele entendido como um direito a prestações positivas de cunho material (ações

positivas fáticas) por parte do Estado para com a coletividade e este, como um

direito a prestações positivas de ordem legal, em colaboração com o sistema de

persecução criminal (ações positivas normativas) do Estado, via a proteção dos

bens jurídicos considerados fundamentais pelo Estado por meio do Direito Penal.

Poder-se-ia, ainda, correlacionar o direito fundamental à segurança social à

transversalidade das políticas públicas de segurança, enquanto o direito

fundamental à segurança pública estaria associado às tradicionais políticas de

segurança pública115. Em um e noutro sentido, combinam-se medidas preventivas e

repressivas, expressas respectivamente nos modelos de segurança da prevenção,

associados ao direito fundamental à segurança social, e nos modelos de segurança

de viés repressivo, imbricados com o direito fundamental à segurança pública.116

Tal qual como se referiu no subcaptítulo anterior, não se pretende com essa

digressão sobre a extensão do conceito de segurança previsto no rol dos direitos

sociais estipulados pelo art. 6° da Constituição Federal, estabelecer uma aporia

entre o duplo significado que se vislumbra à segurança - segurança social e

segurança pública, prevista amiúde no art. 144 do texto constitucional. As duas

115 Para Dias Neto, “por fazer uma leitura descontextualizada dos conflitos sociais e por intervir em

seu nível sintomalógico, respondendo retroativamente a ações puníveis de indivíduos - as chamadas “políticas de segurança pública” não têm sido avaliadas no plano de sua eficácia. Pelo contrário, a ineficácia da resposta repressiva costuma reforçar a demanda punitiva.” (DIAS NETO, 2005, p. 105).

116 Vide, em especial, nota de rodapé número setenta e seis.

72

dimensões do conceito de segurança afiguram-se fundamentais para a proteção e

garantia da dignidade humana. Apenas se acredita que a interpretação da

segurança na perspectiva de um direito social fundamental permita consubstanciar,

no plano constitucional, a atual tendência à municipalização da segurança pública,117

operada mediante a participação da cidadania através do estabelecimento de

parcerias pelo poder local para o desenvolvimento de políticas sociais e de

segurança em âmbito municipal.

É preciso ter em conta que a proteção jurídico-constitucional dos direitos

sociais, entre os quais, a segurança, através de atuações positivas do Estado,

implica uma transformação das estruturas econômicas e sociais, a qual somente

poderá ser resolvida ao nível da luta política no quadro democrático. Nesse sentido,

ao debruçar-se sobre a tutela dos direitos sociais, assinala Vieira de Andrade que:

[...] a constituição como um estatuto jurídico do político não fornece uma resposta concreta e determinada para o problema de como e em que medida deve o Estado prosseguir essa tarefa fundamental que é a de promover a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais. De fato a proteção constitucional dos direitos sociais é sobretudo uma proteção política: o direito de petição individual ou colectiva, os direitos de participação na organização e no processo de decisão, as formas legítimas de pressão por intermédio dos partidos políticos e dos grupos sociais são os meios ao alcance dos cidadãos para conseguirem a efectivação dos seus direitos.118

117 Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida

para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

[...] §8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens,

serviços e instalações, conforme dispuser a lei. (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006). Detendo-se, estritamente, ao texto constitucional positivo,

Soares propugna a desconstitucionalização das polícias, ou seja, a transferência aos estados a autoridade para escolher o modelo de polícia que lhes fosse mais apropriado. (SOARES, 2006).

118 ANDRADE, 1998, p. 343-344.

73

Desde esse ponto-de-vista, introduz-se verdadeira viragem paradigmática119

na abordagem (teórico-prática) da temática em tela. Desloca-se o foco de análise do

modelo repressivo da dogmática do Direito Penal, adstrito ao controle do sistema de

justiça criminal, para a repolitização do debate da segurança, facultado pela

construção de um modelo preventivo de segurança. A segurança é, então,

concebida como um direito social fundamental à coletividade, favorecendo-se, como

não poderia deixar de sê-lo, uma maior participação da cidadania no debate acerca

da proposição, monitoramento e fiscalização de políticas públicas de segurança.

Esse approach constitucional do tema da segurança oferece novo ferramental

teórico, como também prático, para suplantar as limitadas possibilidades de

interpretação e tratamento das condutas desviantes do senso comum teórico120

impregnado, tanto na linguagem quanto no controle penal do desvio, pelo enfoque

criminal da segurança. Para Baratta:

119 A expressão é inspirada em outra: viragem lingüística, utilizada por Lênio Streck para sustentar,

com base em Martin Heidegger, e, neste excerto, em Antônio Castanheira Neves, que no “nosso sistema jurídico brasileiro - a mudança de paradigma (da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem) não teve a devida recepção no campo da filosofia jurídica e da hermenêutica no cotidiano das práticas judiciárias brasileiras. Os juristas não se deram conta do fato de que “o Direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o Direito é-o numa linguagem e como linguagem - propõe-se sê-lo numa linguagem (nas significações lingüísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa linguagem, que é.” (STRECK, 2001, p. 63).

120 Sirvo-me desta expressão no sentido atribuído a ela por Warat, para quem: “O sentido comum teórico precisa, assim, ser entendido como uma racionalidade subjacente, que opera sobre os discursos de verdade das ciências humanas. Esta racionalidade tem múltiplos modos de emergência (surge como comportamento/modos de sensibilidade, de percepção e de sexualidade/hábitos e fantasmas éticos, religiosos e gnoseológicos/relações estereotipadas ou preconceituosas/dispositivos de vigilância e disciplina/mitos, fetiches e operadores totêmicos/etc.) e configura a instância de pré-compreensão do conteúdo e os efeitos dos discursos de verdade das ciências humanas, assim como também incide sobre a pré-compreensão que regula a atuação dos produtores e usuários desses discursos. [...] Um efeito de univocidade que oculta o caráter forçosamente plural do mundo - como complexo significativo - e de suas versões cognitivas. [...] O sentido comum teórico estaria, assim, constituindo uma racionalidade subjacente que não deixa de ser uma fala adaptada a pré-conceitos, hábitos metafísicos, visões normalizadoras as relações de poder, princípios de autoridade, ilusões de transparência, noções apoiadas em opiniões, assinalações religiosas mitológicas, etc.” (WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: Vol. II A Epistemologia Jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 71-75).

74

[...] parece claro que a linha fundamental de uma política criminal alternativa é dirigida para a perspectiva da máxima contração e, no limite, da superação do sistema penal, que veio se configurando, pari passu com o desenvolvimento da sociedade capitalista, como um sistema cada vez mais capilar e totalizador de controle do desvio, através de instrumentos administrados por uma autoridade superior e distante das classes sobre as quais, sobretudo, este aparato repressivo exerce a própria ação.121

Repisa-se, ademais, a criação de novos arranjos hermenêuticos para

fundamentar, sob o prisma constitucional,122 a atual tendência de intervenção das

administrações municipais na gestão da segurança pública, ao passo que se

ressignifica a relevância do fortalecimento de esferas públicas não-estatais de

proposição e fiscalização de políticas públicas de segurança, aqui representadas

pelo Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre.

É sabido, afinal, que todos os direitos fundamentais encerram uma função

protetiva, calcada em assegurar e proteger certos bens individuais ou coletivos

considerados essenciais, desta forma a materialização do direito social fundamental

à segurança somente será possível com a realização do Estado Democrático

(Social) de Direito, assegurado na Constituição Federal de 1988, como bem infere

Sarlet, amparado, sobretudo, na produção doutrinária portuguesa e alemã:

Podemos encontrar tanto direitos materialmente fundamentais de cunho negativo (direitos de liberdade, igualdade e as correspondentes garantias), quanto direitos prestacionais, sem excluir aqui os direitos e liberdades de

121 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à

Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 206. Para o autor, com forte inspiração no marxismo não dogmático, a nova criminologia ou criminologia crítica se dirigiu, sobretudo, ao estudo do processo de criminalização das chamadas classes subalternas pelo Direito Penal (ao processo de seletividade penal), bem como, à compreensão da função histórica e atual do sistema penal para a conservação e para a reprodução das relações sociais de desigualdade.

122 Registre-se, no entanto, que não se ignoram as limitações do texto constitucional relativamente à municipalização da segurança pública (vide art. 144 da Carta Política, notadamente a abertura para a atuação dos municípios nessa temática através do §8°). Vide, ainda, a nota de rodapé número setenta e dois.

75

participação políticas, vinculação dos direitos fundamentais com os princípios fundamentais que caracterizam o nosso Estado como democrático e social de Direito.123

2.3 Aproximações teóricas entre os conceitos de eficácia vinculativa dos

direitos fundamentais e o princípio da comunidade

Analisadas as possibilidades hermenêuticas de uma leitura constitucional do

conceito de segurança como um direito social fundamental; apresentadas as

possíveis classificações dos direitos fundamentais, abstrata e concretamente

considerados, em termos das similitudes e diferenças teórico-práticas entre os

conceitos de segurança social e segurança pública para a construção e avaliação de

políticas públicas de segurança, respaldadas pela participação da cidadania, em

uma esfera pública não-estatal, representada pelo Conselho Municipal de Justiça e

Segurança de Porto Alegre, faz-se necessário doravante perquirir, combinando a

perspectiva sociológica com a dogmática jurídico-constitucional, as potenciais

aproximações teóricas entre os conceitos de eficácia vinculativa dos direitos

fundamentais e o princípio da comunidade, de inspiração rousseauniana,

reelaborado Santos.

O sociólogo português trabalha com duas categorias operativas, cada qual

subdividida em três princípios e lógicas, em estreita correlação: os pilares da

regulação e da emancipação, sustentáculos do projeto sócio-cultural da modernidade.

123 SARLET, 2006c, p. 110;131. Consulte também: ANDRADE, 1988; CANOTILHO, José Joaquim

Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.

76

O pilar da regulação traduz-se em três princípios: o princípio do Estado, cuja

construção se deve a Hobbes; o princípio do mercado, prevalente sobretudo na obra

de Locke, e o princípio da comunidade, cujo maior representante é Rousseau.

O pilar da emancipação constitui-se de três lógicas de racionalidade: a

racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-

prática da ética e do Direito e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da

técnica.

Esses dois pilares estão diretamente imbricados, visto que as lógicas da

emancipação racional possuem um modo de inserção privilegiado no pilar da

regulação, o que denota o quão ambicioso e revolucionário é o projeto da

modernidade. Destarte:

A racionalidade estético-expressiva articula-se privilegiadamente com o princípio da comunidade, porque é nela que se condensam as idéias de identidade e comunhão sem as quais não é possível a contemplação estética. A racionalidade moral-prática liga-se preferencialmente ao princípio do Estado na medida em que a este compete definir e fazer cumprir um mínimo ético para o que é dotado do monopólio da produção e da distribuição do Direito. Finalmente, a racionalidade cognitivo-instrumental tem uma correspondência específica com o princípio do mercado, não só porque nele se condensam as ideias de individualidade e da concorrência, centrais ao desenvolvimento da ciência e da técnica, como também porque já no século XVIII são visíveis os sinais da conversão da ciência numa força produtiva.124

Para os propósitos específicos deste trabalho, importa-nos analisar os

desdobramentos dessa teoria, notadamente no que se refere à obrigação política

horizontal entre cidadãos (princípio da comunidade), no atual momento histórico,

124 SANTOS, 2003a, p. 77; SANTOS, 2006, especialmente o décimo capítulo, p. 341-381.

77

caracterizado pelo autor como do capitalismo desorganizado.125 Esse período, que

começa nos anos sessenta e se estende até hoje, é bastante complexo, seja pelas

características que o constituem, seja pelas dificuldades inerentes da análise de um

processo histórico em curso atualmente.

Nesta fase, os princípios do Estado e do mercado foram fortalecidos,

enquanto o princípio da comunidade, assente na obrigação política horizontal

cidadão a cidadão, restou desprivilegiado, na medida em que o reconhecimento

político da cooperação e da solidariedade entre cidadãos foi restringido às formas de

cooperação e de solidariedade mediadas pelo Estado. A questão fulcral, como

aponta Santos, reside no fato de o Estado ter perdido a importância como principal

agente de regulação social das esferas da produção e da reprodução social, na

medida em que:

O Estado nacional parece ter perdido em parte a capacidade e em parte a vontade política para continuar a regular as esferas da produção (privatizações, desregulação da economia) e da reprodução social (retracção das políticas sociais, crise do Estado-Providência); a transnacionalização da economia e o capital político que ela transporta transformam o Estado numa unidade de análise relativamente obsoleta, não só nos países periféricos e semiperiféricos, como quase sempre sucedeu, mas também, crescentemente, nos países centrais; esta fraqueza externa do Estado é, no entanto, compensada pelo aumento do autoritarismo do Estado, que é produzido em parte pela própria congestão institucional da burocracia do Estado e em parte, e um tanto paradoxalmente, pelas próprias políticas do Estado no sentido de devolver à sociedade civil competências e funções que assumiu no segundo período e que agora parece estrutural e irremediavelmente incapaz de exercer e desempenhar.126

125 O autor divide o trajeto histórico da modernidade em três grandes períodos. O primeiro período

cobre todo o século XIX e é conhecido como o período do capitalismo liberal. O segundo período inicia-se no final do século XIX e atinge o seu ápice no período do entre as guerras e as primeiras décadas depois da 2ª Guerra Mundial. Trata-se do chamado período do capitalismo organizado. E, finalmente, o terceiro período, que nos interesse propriamente pela sua contemporaneidade, denomina-se de capitalismo desorganizado. (SANTOS, 2003c, notadamente o quarto capítulo).

126 SANTOS, 2003c, p. 89.

78

Essa constatação conduziu à emergência de um movimento para a reforma

do Estado. A primeira fase desse movimento partiu do paradoxal pressuposto de

que o Estado é irreformável, já que ineficaz e parasitário. Assim, a única forma de

reforma possível e legítima consistiria na defesa da redução do Estado ao mínimo

necessário para o funcionamento do mercado, retomando-se um debate do século

XIX acerca das funções estatais, exposto com mais detalhes no primeiro capítulo

deste trabalho. O movimento do Estado mínimo prolongou-se da década de oitenta

aos primeiros anos da década de noventa, quando ficou evidente a necessidade de

construir-se uma outra qualidade de Estado, diversa dos modelos do Estado-

providência e do Estado desenvolvimentista em crise, mas sem prescindir da

intervenção estatal na sociedade. Esse será o perfil da segunda fase do movimento

de reforma do Estado, que, diga-se de passagem, encontra-se em andamento.

Em termos macro-institucionais esse segundo período se caracteriza por dois

pilares fundamentais: a reforma do sistema jurídico e, em especial, do sistema

judicial: com a participação do chamado Terceiro Setor. Em linhas gerais:

[...] pode-se dizer que a emergência do terceiro sector significa que finalmente o terceiro pilar da regulação social na modernidade ocidental, o princípio da comunidade, consegue destronar a hegemonia dos outros dois pilares, o princípio do Estado e o princípio do mercado [...]127

O princípio da comunidade propugna a obrigação política horizontal e

solidária de cidadão a cidadão, constituindo-se, desse modo, em contraponto

indispensável ao princípio do Estado, que estabelece a obrigação política vertical

127 SANTOS, 2003c, p. 352.

79

deste para com os cidadãos e vice-versa. Essa reflexão parece contribuir para

legitimar, em termos políticos e sociológicos, a existência e o fortalecimento de

espaços públicos não-estatais de participação da cidadania para a proposição e

fiscalização de políticas públicas.

No caso do Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre, tem-

se, a priori, a possibilidade de se equacionar o pilar da regulação social com o da

emancipação social, de acordo com o referencial teórico de Santos, em um esforço

conjunto entre o Estado, através de seus membros democraticamente eleitos

(democracia representativa), e a cidadania, organizada (daí falar-se em Terceiro

Setor) ou não, concretizando a democracia participativa128, para a ampliação do

debate e da busca por soluções para um dos temas de maior clamor social na

atualidade: a segurança.

É precisamente nesse ponto que Sociologia e Direito convergem para

fornecer, a meu ver, novos subsídios para a efetiva superação do tratamento

unicamente criminal do problema da segurança, a partir do reconhecimento da

segurança com um direito social fundamental, advindo da interpretação sistemática

dos arts. 6° e 144 da Constituição Federal de 1988, bem como da identificação da

crise do Estado - da estrutura estatal moderna - como promotor de intermediações

não-mercantis entre cidadãos. Trata-se, pois, de indicar, nos limites de possibilidade

de um trabalho com esse escopo, um modelo de regulação social e uma nova forma

128 Conforme Miranda, em interessante análise do princípio da democracia participativa no âmbito da

Constituição Federal Portuguesa: “A democracia participativa imbrica-se, aliás, com determinados dados das sociedades contemporâneas: a inelutabilidade dos grupos de interesses; a necessidade de lhes dar voz e de os conciliar; a irrupção de formas ditas corporativas ou necorporativas; a conseqüente inserção no processo legislativo, formal ou informalmente, de elementos também de concertação, negociação e auxiliariedade, o diálogo dentro e fora do Parlamento (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. Tomo V, p. 185).

80

política de gestão sócio-estatal, baseados na participação e no controle público da

administração estatal pela cidadania.

Para tanto, impõe-se breve comentário sobre o conceito de eficácia

vinculativa dos direitos fundamentais,129 que assume maior relevância em uma

época como a nossa, em que, como se destacou alhures, não faz mais muito

sentido, se é que algum dia o fez, estabelecer um antagonismo, uma separação em

dois mundos estanques, entre Sociedade e Estado. Conforme Vieira de Andrade:

[...] torna-se patente que os indivíduos não estão isoladamente contrapostos ao Estado como pressupunham as teorias liberais-burguesas. A área da sociedade deixa de ser (ou de poder ser vista como) o palco de actuações individuais, à medida que se verifica a profunda diversificação e imbricação entre os interesses das pessoas e se multiplica a actividade dos partidos e dos grupos de interesse - sindicatos, associações patronais, igrejas, grupos económicos, associações cívicas, profissionais, desportivas, etc. - que dispõem, cada vez mais, de elevado poder social e político. [...] as entidades privadas passam a exercer tarefas de interesse colectivo (terceiro setor - grifo nosso!) ou determinam em termos fundamentais os comportamentos de indivíduos em diversas áreas sociais - esbate-se a distinção entre entidades públicas e privadas e, em conseqüência, a diferença entre o direito público e o direito privado como critério de relevância dos direitos fundamentais.130

Na verdade, a paz social, o bem-estar coletivo, a justiça e a própria liberdade,

como elementos de um conceito mais amplo do direito social fundamental à

segurança, reclamam a regulação do Estado, ressignificado por novos mecanismos

e arranjos participativos de engajamento popular (vide o objeto deste estudo de

caso). Por conseqüência, cabe aos poderes públicos não só respeitar, como fazer

respeitar como interesses públicos fundamentais, esses valores constitucionais.

129 Utilizada como sinônimo de eficácia frente a terceiros dos direitos fundamentais, eficácia externa

dos direitos fundamentais, efeitos em relação a terceiros dos direitos fundamentais, etc. 130 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre

particulares. In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 276.

81

Os direitos fundamentais, entre os quais o relativo à segurança, como

princípios e valores constitucionais, aplicam-se a toda a ordem jurídica - no direito

privado e penal (pelo princípio da unidade do ordenamento jurídico). Além disso,

deve-se considerar não apenas a proteção dos particulares frente ao Estado, mas

também, por meio do Estado, perante outros particulares,131 ou seja, em relação a

indivíduos ou entidades privadas que possam exercer algum tipo de poder jurídico

ou de fato que ameaçam a dignidade humana132 - princípio constitucional da

dignidade da pessoa humana está consagrado no art. 1°, III da Constituição Federal,

em função desse, a defesa do princípio da vedação do retrocesso social.133

Argumenta Sarlet sobre matéria correlata:

131 A bibliografia sobre o problema da validade dos direitos fundamentais entre sujeitos privados é

bastante vasta, apresenta diversas nuances e faculta múltiplas perspectivas, as quais, por não se constituírem no foco deste trabalho e, ainda, por economia de espaço em um trabalho monográfico que não se pretende exaustivo, não serão abordadas. Para maiores informações consulte, apenas para citar parte da produção, sobretudo luso-brasileira, a esse respeito: ALEXY, 2001; ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. Editora Renovar:, v. 217, jul./set. 1999; ANDRADE, 1988; CANOTILHO, 1998; MIRANDA, 1997; SARLET, 2006c; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006a, (integralmente dedicada a essa temática); MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

132 “Neste contexto, não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência, vale dizer, inclusive contra agressões oriundas de outros particulares, especialmente - mas não exclusivamente - dos assim denominados poderes sociais (ou poderes privados). Note-se as correlações teóricas possíveis entre o princípio da dignidade humana, que possui natureza igualitária e expressa a idéia de solidariedade, por força de sua dimensão intersubjetiva, e o princípio da comunidade, como obrigação política horizontal e solidária de cidadão a cidadão, nos termos propostos acima por Santos (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006b, p. 110; SANTOS, 2003a, p. 77; SANTOS, 2006, p. 341-381).

133 SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais Sociais e Proibição de Retrocesso: Algumas Notas sobre o Desafio de Sobrevivência dos Direitos Sociais num Contexto de Crise. In: (Neo) Constitucionalismo - Ontem, os códigos. Hoje, as constituições. Porto Alegre: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2004, p. 121-168.

82

Da mesma forma, inquestionável a conexão direta entre a segurança jurídica (nas suas diversas manifestações) e as demais dimensões referidas, notadamente da segurança social e pessoal, tal qual sumariamente delineadas, já que segurança social - aqui destacada pela sua relevância para o presente ensaio - também envolve necessariamente um certo grau de proteção dos direitos sociais (acima de tudo no âmbito dos benefícios de cunho existencial) contra ingerências dos órgãos estatais, assim como violações provindas de outros particulares. Aliás, tal circunstância já seria suficiente para demonstrar o quanto também a segurança jurídica jamais será estritamente “jurídica”, uma vez que se cuida de condição precípua da própria segurança pessoal e da ordem comunitária como um todo, temática que, a despeito de seu fascínio e relevância, aqui não iremos desenvolver de modo autônomo.134

No caso concreto, o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto

Alegre135 poderia indicar a aplicação de medidas restritivas aos direitos de

particulares. Cite-se como exemplo a possibilidade de o Conselho recomendar a

limitação da venda de bebidas alcoólicas a partir de determinada hora da noite em

bares, restaurantes e/ou lojas de conveniência (“Lei Seca”), localizados em certas

áreas da cidade nas quais se constate elevado índice de violência (desordens

urbanas) e criminalidade, através, se for o caso, da aplicação de sanções

administrativas136 por parte do poder local.137

Ademais, o Conselho, ao cumprir uma de suas atribuições relativas à

sistematização e ao encaminhamento de demandas da população junto aos órgãos

134 SARLET, 2004, p. 125. 135 Tanto respaldado pela regra do art. 5°, §1° da Constituição Federal, que determina a aplicabilidade

imediata dos direitos fundamentais, individuais ou sociais quanto, no âmbito municipal, com base na Lei Complementar n.° 487, de 14 de janeiro de 2003, que criou o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre, e nos Decretos n.° 14.487, de 04 de março de 2004 e n.° 14.706, de 09 novembro de 2004, os quais o regulamentaram, caso se advogue a tese de que as normas relativas aos direitos sociais fundamentais careçam de regulamentação por via legislativa para adquirirem plena eficácia.

136 Tal dedução está baseada na obra: OSÓRIO, 2005. Embora o assunto demande maior estudo por parte do autor desta monografia, acredita-se que pela via do Direito Administrativo (sanções administrativas), em lugar do Direito Penal (sanções penais), possa-se encontrar um novo tratamento da violência e da criminalidade, pelo menos de certos delitos. Expandir-se-ia, assim, as possibilidades de aplicação da sanção administrativa do Poder Executivo ao Judiciário, resguardando-se os limites constitucionais do poder punitivo estatal.

137 Vários estudos da Organização Mundial da Saúde apontaram a relação entre o aumento do horário e dias de venda de álcool e o crescimento do número de acidentes de trânsito, agressões e violências (KAHN; ZANETIC, 2005, p. 38).

83

que compõem o sistema de Segurança Pública do Estado, através da Secretaria de

Justiça e Segurança e do Conselho Estadual de Justiça e Segurança, poderia

buscar impetrar o instrumento do mandado de injunção e/ou buscar propor ação

direta de inconstitucionalidade por omissão contra o legislador ordinário e demais

órgãos estatais, no caso de serem tomadas medidas atentatórias à efetividade do

direito social fundamental à segurança, entendido aqui como de maior extensão e

amplitude do que o conceito de segurança pública), fulcro no princípio da dignidade

da pessoa humana e no princípio da proibição do retrocesso social, especialmente

em matéria de direitos sociais.138 Essas ações, por óbvio, devem estar associadas a

um programa mais amplo de prevenção ao crime, promovido pelo poder local, que,

para Túlio Kahn e André Zanetic, baseia-se em:

[...] em projetos que têm as seguintes características: um diagnóstico preciso que determine os desafios, fatores de risco e recursos da comunidade; um plano de ação que estabeleça prioridades, identifique programas que podem ser modelos úteis e defina objetivos de curto e longo prazo; um processo de implementação rigoroso que inclua o treinamento e coordenação dos parceiros envolvidos; avaliações que forneçam retornos tanto sobre os processos quanto sobre os resultados obtidos; uma coalizão de atores chave com lideranças fortes e staff de apoio administrativo; uma estratégia de comunicações que pode mobilizar profissionais e cidadãos e é sensível à idade, gênero e diferenças culturais [...].139

Em suma, essas reflexões visam discutir a refundação do Estado,

considerando a proteção constitucional dos direitos sociais, mais especificamente

aquele que diz com a segurança, a partir da emergência de uma esfera pública não-

estatal com a função de propor, acompanhar e fiscalizar políticas públicas de

segurança, em âmbito municipal.

138 Construção hermenêutica extraída das obras: MENDES; COELHO; BRANCO, 2000, p. 137;

SARLET, 2004, p. 150, como também da legislação municipal que cria e regula o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre.

139 KAHN; ZANETIC, 2005, p. 65.

84

Não se trata de propugnar a privatização dos serviços públicos a serem

prestados pelo Estado ou, a desregulação social das políticas públicas, mas de

reconhecer a fragilidade da obrigação política vertical entre Estado e cidadão para

garantir a realização de valores como cooperação, solidariedade, democracia

sustentada e prioridade das pessoas sobre o capital. Impõe-se, à evidência, o

concurso da obrigação política horizontal de cidadão a cidadão, que subjaz no

princípio da comunidade.

Acredita-se na existência de possibilidades de aproximação teórica entre o

conceito de eficácia vinculativa dos direitos fundamentais (entre particulares) e o

princípio da comunidade. Esse novo arranjo sócio-político, perpassado por

elementos estatais e não-estatais (participação da sociedade civil organizada,

Terceiro Setor e populares) pode favorecer o desenvolvimento de formas

alternativas de participação cidadã, na defesa e proteção do direito social

fundamental à segurança.

85

3 UMA ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA DO CONSELHO MUNICIPAL DE JUSTIÇA E

SEGURANÇA DE PORTO ALEGRE

3.1 O contexto do reconhecimento dos conselhos municipais a partir do

advento da Constituição Federal de 1988

Uma vez sustentada a necessidade de estabelecer-se um novo arranjo sócio-

político para a proposição, acompanhamento e fiscalização de políticas públicas de

segurança, em face da crise mais ampla do Estado como promotor de

intermediações não-mercantis entre os cidadãos, como também reconhecida a

importância e a repercussão sócio-jurídica de uma abordagem não criminal

(criminalizante) do conceito de segurança, interpretado como um direito social

fundamental atrelado à perspectiva da proteção integral de direitos, é chegada a

hora de apresentar um breve relato histórico do contexto do surgimento dos

conselhos municipais no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988.

A combinação desses aspectos históricos com a sistematização dos

conceitos-chave relativos à atual tendência de municipalização da segurança pública

subsidiará o estudo de caso do Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto

Alegre, que será empreendido ao final deste trabalho.

O fortalecimento do poder local e a criação de novos arranjos sócio-políticos

de participação da sociedade civil na gestão pública inserem-se em um processo de

86

descentralização político-administrativa calcado pela recepção, no plano jurídico-

formal, de significativas alterações nas dinâmicas social e política brasileiras,

notadamente a partir do final dos anos setenta, no bojo do acirramento do fenômeno

da democratização. É nesse período que se intensificam a mobilização e a

organização da sociedade brasileira com a emergência, por exemplo, do chamado

novo movimento sindical, que luta por melhores condições de trabalho e por

melhores salários, ao passo que enfrenta as arbitrariedades do regime ditatorial.

“Pela primeira vez desde o começo dos anos sessenta, sindicatos de

trabalhadores rurais e o movimento dos sem-terra exigiam reforma agrária e a

extensão dos benefícios previdenciários a trabalhadores rurais.”140 Nas áreas

urbanas, proliferam movimentos sociais de diversos matizes (estudantil, negro,

feminista, ambientalista, entre outros); organizações sociais e associações de

moradores promovem campanhas demandando maior acesso a bens e serviços

básicos e todos convergem na oposição ao governo militar.

Nos anos oitenta, com o fim da ditadura militar e a promulgação da

Constituição Federal de 1988 foram criados novos canais institucionais e

mecanismos jurídicos para favorecer a participação da cidadania na administração

pública. Se o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular afiguraram-se em alguns

dos mecanismos jurídicos trazidos pelo novo texto constitucional para ampliar o

controle público dos rumos do Estado, os conselhos municipais, nos seus diversos

escopos, representaram o estabelecimento de canais públicos não-estatais de

140 CORTES, Soraya Maria Vargas. Cortes, Soraya Maria Vargas. Construindo a possibilidade da

participação dos usuários: conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde. Sociologias, Jun. 2002, n.°.7, p.18-49. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 16 set. 2006.

87

participação da cidadania e de organizações da sociedade civil em torno de

diferentes questões e interesses sociais.141

De acordo com o estudo de Gohn, existem três tipos de conselho no cenário

brasileiro do século XX:

[...] os criados pelo próprio poder público Executivo, para mediar suas relações com os movimentos e com as organizações populares; os populares, construídos pelos movimentos populares ou setores organizados da sociedade civil em suas relações de negociações com o poder público; e os institucionalizados, com possibilidade de participar da gestão dos negócios públicos criados por leis originárias do poder Legislativo, surgidos por pressões e demandas da sociedade civil. No primeiro tipo, temos como exemplo os conselhos comunitários criados para atuar junto à administração municipal ao final dos anos 1970 (Gohn, 1990); no segundo, os conselhos populares ao final dos anos 1970 e parte dos anos 1980 (Urplan, 1984; Gohn, 1990); e no terceiro, os conselhos institucionalizados, a exemplo dos conselhos de representantes previsto na Lei Orgânica Municipal de São Paulo e os conselhos gestores institucionalizados setoriais [...]142

Há que se ressaltar as possibilidades abertas pelos conselhos na gestão de

políticas urbanas na atualidade, sobretudo os que operam em nível municipal, já que

as cidades têm-se revelado como o locus privilegiado de experiências de

democratização do Estado e da relação entre Estado e Sociedade.

Por outro lado, devem-se também registrar os limites impostos aos conselhos,

como instrumentos de expressão, representação e participação da população,

favorecendo a mediação da relação entre Estado e Sociedade. O grande desafio

141 Durante o regime autoritário militar, iniciado em 1964, o Estado brasileiro promoveu a

centralização das instituições políticas e estimulou o crescimento da provisão privada de bens e serviços, a passo que defendeu o planejamento e a gestão públicas baseados em decisões técnicas e na supressão de canais abertos à manifestação pública de interesses seccionais. No entanto, de acordo com Cortes, foi esse mesmo governo ditatorial, a partir de 1974, com a diminuição do ritmo do crescimento econômico e do enfraquecimento de suas bases sociais de apoio, que implementou o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREVSAUDE), em 1979. Esse programa incorpora, de forma inédita, paradoxalmente, a noção de participação comunitária no setor como um dos seus eixos centrais. (CORTES, 2006).

142 GOHN, 2001, p. 70-71.

88

que se lhes impõe é o de compatibilizar democracia e desenvolvimento, articulando

as duas lógicas presentes no processo de descentralização brasileiro, a saber: a

econômica e a política. Note-se que:

Essa tensão refere-se ao predomínio da lógica econômica, no nível federal, voltada para a diminuição do gasto público daquele esfera de governo, e ao predomínio da lógica (ou lógicas) política(s) no nível local, voltada(s) tanto a satisfação da demanda imediata quanto para a concepção da descentralização como uma estratégia de democratização das relações entre Estado e sociedade civil, além da possibilidade de reestruturação do próprio Estado para imprimir-lhe maior eficiência na prestação e maior eqüidade no acesso aos serviços sociais básicos.143

Os fatores que têm determinado a descentralização das políticas sociais no

país, alterando sobremaneira a estrutura organizacional do Sistema de Proteção

Social Brasileiro, nas áreas de educação, assistência social, saúde, saneamento e

habitação popular, podem ser atribuídos às mudanças na natureza das relações

intergovernamentais, associadas à recuperação das bases federativas do Estado

brasileiro ao longo dos anos oitenta, em vista da centralização político-administrativa

estatal do período da ditadura militar.

Acresça-se a isso o reconhecimento pelo texto constitucional de 1988 dos

estados e municípios como entes politicamente autônomos. “Isto implica que os

governos interessados em transferir atribuições de gestão de políticas públicas

devem implementar estratégias bem-sucedidas de indução para obter a adesão dos

governos locais.”144

143 REZENDE, 1997 apud COHN, 1998, p. 155. 144 ARRETCHE, Marta T. S. Políticas Sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo.

Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo. v. 14, n. 40, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Consultado em: 16 set. 2006c. Veja também: ARRETCHE, Marta T. S. Financiamento federal e gestão local de políticas sociais: o difícil equilíbrio entre regulação, responsabilidade e autonomia. Ciência Saúde Coletiva, Rio de Janeiro. v. 8, n. 2, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Disponível em: 16 set. 2006b e, ainda, ARRETCHE, Marta T. S. Dossiê agenda de pesquisa em políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 18, n. 51, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Disponível em: 16 set. 2006a.

89

À evidência, no caso do Estado brasileiro que se caracteriza por um

expressivo nível de desigualdade estrutural de natureza econômica, social e política,

a capacidade fiscal e administrativa, ou seja, o repasse de recursos e de atribuições

aos governos locais e, através deles, aos conselhos municipais, em sendo o caso,

bem como a cultura cívica de participação da cidadania na gestão e fiscalização de

políticas públicas, apesar de importantes, isoladamente não asseguram a

descentralização das políticas sociais. “Seu peso e importância variam de acordo

com requisitos institucionais postos pelas políticas a serem assumidas pelos

governos locais, tais como o legado das políticas prévias, as regras constitucionais e

a própria engenharia operacional de cada política social.”145

Para Gohn, os conselhos municipais podem ser considerados a principal

novidade das políticas públicas brasileiras ao longo dos anos, sendo, em tese,

instrumentos dotados de potencial de transformação política. “Destacam-se nas

inovações o fato de os conselhos conterem a possibilidade de reordenação das

políticas públicas brasileiras na direção de formas de governança democrática.”146

Vale destacar que o debate acerca dos conselhos municipais encerra um

tema bastante discutido no campo das Ciências Políticas, qual seja, o da construção

de um novo desenho político-institucional da administração pública marcado pelo

deslocamento da idéia de governo, que tem no Estado o principal ator de toda a

ação pública, para o de governança, assente nas relações entre o poder local e a

sociedade civil:

145 ARRETCHE, 2006c. 146 GOHN, 2001, p. 83.

90

Alguns especialistas desenvolvem verdadeiras teorias do poder, por exemplo, as dos regimes urbanos (STONE, 1989, 1993; NOVARINA, 1997), que acentua os arranjos informais que regem a cooperação e a complementaridade entre o setor público e o setor privado: nos sistemas policêntricos que caracterizam as configurações de atores contemporâneos, as fontes são necessariamente dispersas e só se pode agir formando coalizões, o que é típico da governança. Mas estas associam atores às preferências setoriais e a curto prazo. Construir coalizão é, pela intenção, fazer evoluir as preferências dos atores para se chegar a preferências partilhadas.147

Essa sucinta digressão acerca do reconhecimento dos conselhos municipais

pela Constituição Federal de 1988 não pretendeu esgotar de nenhuma forma a

temática em tela. As particularidades do Conselho Municipal de Justiça e Segurança

de Porto Alegre, objeto último deste estudo, como também a insuficiência de espaço

em um trabalho monográfico, assim não o recomendam. De todo o modo, uma

análise, mesmo que perfunctória, fazia-se necessária.

Não se ignoram, por fim, as diferenças de cunho qualitativo entre os

conselhos municipais reconhecidos pela Carta Política (por exemplo os das áreas de

saúde - Art. 198, III/CF, educação - Art. 211/CF e assistência social - Art. 204, II/CF),

posteriormente regulamentados por lei própria, que aqui não interessa mencionar, e

os conselhos municipais cujas atribuições se referem à proposição, ao

monitoramente e à fiscalização de política públicas de segurança, como o de Porto

Alegre, sem previsão constitucional expressa (vide a construção hermenêutico-

constitucional do segundo capítulo).

No entanto, conforme de verificará ao final, acredita-se que muitas das

questões implícitas ao funcionamento dos Conselhos Municipais de Justiça e

Segurança sejam correlatas às vivenciadas por aqueles conselhos, tais como:

147 BOURDIN, 2001, p. 138.

91

criação de mecanismos que garantam o cumprimento de seu planejamento;

instrumentos de responsabilização dos conselheiros por suas resoluções;

estabelecimento claro dos limites e das possibilidades decisórias às ações dos

conselhos; ampla discussão sobre as restrições orçamentárias e suas origens;

existência de uma multiplicidade de conselhos no município, competindo entre si por

verbas e espaços políticos; não existência de ações coordenadas entre eles, etc.148

A esse rol geral somam-se questões específicas como os avanços

protagonizados pelo Conselho na articulação e na cooperação interagencial de

diferentes atores do Estado, envolvidos, direta ou indiretamente, com o

enfrentamento do fenômeno criminal na cidade; os entraves e obstáculos

enfrentados para o aumento da participação da cidadania e da sociedade civil

organizada; os efeitos da instituição do Conselho Municipal de Justiça e Segurança,

na cidade de Porto Alegre, no que se refere a uma maior interlocução entre a

sociedade civil e as agências de Estado (polícias, Poder Judiciário, Ministério

Público, etc.) responsáveis pela formulação e implementação das políticas públicas

de segurança no âmbito municipal e, ainda, a interface entre a Secretaria de Direitos

Humanos e Segurança Urbana de Porto Alegre (poder local) e o Conselho Municipal

de Justiça e Segurança propriamente dito.

Por ora, basta o registro desses aspectos históricos atinentes às

possibilidades de participação social na gestão pública, abertas pelo reconhecimento

constitucional dos conselhos municipais, através do princípio da participação da

148 Inspirado em: GOHN, 2001, especialmente quinto capítulo e seguintes; REZENDE, 1997 apud

COHN, Amélia. Os governos municipais e as políticas sociais. In: Os desafios da gestão municipal democrática. SOARES, José Arlindo; CACCIA-BAVA, Sílvio.(org.) São Paulo: Cortez, 1998, sobretudo a partir da p. 159.

92

comunidade, no contexto do revigoramento do Estado federativo e da

descentralização das políticas públicas ao nível do poder local.

3.2 A municipalização da segurança pública: pressupostos para uma agenda

mínima

O debate acerca das políticas públicas municipais de segurança está longe de

ser pacífico e consolidado. A natureza do tema, envolvendo questões de ordem

empírico-analítica e política, as limitações do texto constitucional (interpretação

literal da norma do art. 144 da Constituição Federal de 1988), em relação ao papel a

ser desempenhado pelos municípios nessa área, a falta de sistematização das

recentes experiências de políticas de segurança levadas a efeito pelas

administrações municipais no país e a inexistência de um referencial teórico preciso

impõem uma série de dúvidas tanto aos pesquisadores quanto aos gestores

públicos municipais.

Há que se registrar, inicialmente, a partir das experiências municipais em

curso no país, a crença de que é possível reduzir a violência criminal nas cidades

através da implementação de uma política de segurança municipal, baseada,

simultaneamente, em projetos preventivos, de natureza social, e em ações

preventivas de controle, vinculadas à fiscalização da sociedade - vide,

especialmente, in casu, a experiência de Porto Alegre no que se refere ao Conselho

93

Municipal de Justiça e Segurança, e ao respeito às leis e aos direitos humanos - por

parte da Guarda Municipal.149

Constituem pressupostos básicos para a consecução de uma política de

segurança municipal, o enfrentamento dos seguintes aspectos:150

1) Reformas organizacionais na estrutura dos governos e da Guardas Municipais: aplicação de programas multissetoriais, superando a tendência à fragmentação dos projetos e das ações. Além da criação de um núcleo gestor voltado especificamente para a área de segurança pública, seria necessário alterar o modelo organizacional que engessa e atomiza a gestão das políticas sociais, em vista da construção de políticas públicas inteligentes e articuladas, intersetoriais e criativas, com enfoque prioritário nos jovens, as maiores vítimas e perpetradores da violência, e na interceptação das dinâmicas geradoras da violência;

2) Capacitação de um novo sujeito da gestão pública, sensível à complexidade que caracteriza essa nova abordagem e apto para implantar políticas multidimensionais e multissetoriais;

3) Formulação e implementação de políticas específicas de segurança com base no tríptico: modernização (tecnológica e, sobretudo, gerencial, orientada para o planejamento e a avaliação); moralização (via introdução de novos mecanismos institucionais não-corporativos de controle interno - ouvidoria, e externo - Conselho Municipal de Justiça e Segurança, por exemplo); e participação comunitária (visando à transparência do processo e à recuperação da confiança da sociedade nas instituições policiais renovadas), ou ainda, no mesmo sentido, preservando a interdisciplinaridade, interagencialidade, participação e descentralização.

4) Nova abordagem da violência criminal: reconhecimento da diversidade dos níveis de realidade que envolve (desde a auto-estima, a dinâmica dos afetos, o universo imaginário e de valores e a construção identitária até as questões de aprendizado, acesso à escola, ao lazer, ao emprego, como também fomento a experiências familiares e comunitárias de acolhimento, crise, estigmatização e rejeição) e ênfase em políticas públicas de caráter preventivo;

5) Estímulo a uma nova aliança com a sociedade, marcada pela transparência, participação e pela assunção de responsabilidades.

149 SOARES, 2005 In: SENTO-SÉ, 2005, p. 15-44. 150 Inspirei-me, sobretudo, nos seguintes autores: SOARES, 2005. In: SENTO-SÉ, 2005, p. 15-44;

DIAS NETO, 2005, p. 102-136; GARLAND, GARLAND, David. La Cultura del Control: Crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona: Editorial Gedisa, 2005, p. 14-50; SENASP. Guia para a prevenção do crime e da violência nos municípios. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/senasp/ prevenção/GUIA%20PREVENÇÃO%20JULHO-2005.pdf>. Aceso em: 30 out. 2005ª; SENASP. Plano Nacional de Segurança Pública. Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/noticias/2003/abril/pnsp.pdf>. Acesso em: 30 out. 2005b.

94

As limitações impostas aos municípios nessa seara, em virtude de uma

interpretação literal do texto constitucional, notadamente do art. 144 da Constituição

Federal, poderiam ser superadas, mesmo que em parte, já que permaneceriam as

especificidades do escopo institucional da Guarda Municipal, através de um novo

arranjo hermenêutico da Constituição, esboçado ao longo do segundo capítulo.

Refiro-me a uma leitura não-criminal (criminalizante) do conceito de segurança, a ser

entendido como um direito social fundamental, ínsito no rol dos direitos sociais

previstos no art. 6° da Constituição Federal de 1988 e, como tal, atrelado à proteção

integral de direitos.151

Em linhas gerais, a questão da segurança pública a ser enfrentada também

pelos municípios envolve duas frentes, diversas e complementares, a serem

manejadas de forma combinada e simultânea: a de natureza social e a de natureza

policial.

A primeira delas centra-se na intervenção preventiva que consiste na

concepção e aplicação de políticas públicas de segurança voltadas a alterar as

condições propiciatórias imediatas do crime e da violência. Observe-se que essas

ações não se confundem, até porque não têm este objetivo, com mudanças

estruturais da sociedade, que, embora necessárias, exerceriam um impacto somente

futuro na redução das dinâmicas criminais152. Como lembra Rolim:

151 Fundamental para essa compreensão a leitura de BARATTA, 1999. 152 Dias Neto trata da questão a partir do reconhecimento de medidas preventivas envolvem muitas

atividades não estritamente defensivas, tais como a realização de campanhas de informação sobre drogas, Aids, controle de corrupção, violência doméstica ou incivilidades no trânsito, melhoria na qualidade de vida social e de mediação de conflitos (organização de eventos culturais e esportivos – cite-se o trabalho desenvolvido pela CUFA – Central Única de Favelas; Instituto Sou da Paz; Viva Rio; Afroreggae; Projeto Cidadania sobre Rodas RS, realização da Associação de Jovens Empresários de Porto Alegre, Associação Brasileira de Recursos Humanos e Associação de Educação São Carlos – Grupo Mãe de Deus, em parceria com o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular), ou ações de recuperação de áreas públicas. DIAS NETO, 2005, p. 128-129.

95

No Brasil, normalmente, quando se fala em prevenção da violência ou da criminalidade, imaginam-se possibilidades vinculadas diretamente às chamadas “políticas sociais”. Em função disso, as chances de redução da criminalidade e da violência estariam na dependência de mudanças significativas nas oportunidades de emprego, educação, habitação, etc., a partir da extensão efetiva desses direitos a todos. É certo que mudanças desse tipo afetam largamente as taxas de criminalidade, produzindo resultados positivos e importantes. Essa maneira de encarar o tema da prevenção, não obstante, carrega consigo várias limitações.153

Essas limitações dizem justamente com a segunda frente: a policial. Em se

tratando da atuação municipal na área de segurança pública, é fundamental uma

política de constituição ou reforma das Guardas Municipais, tendo como diretrizes

estratégicas:

[...] a formação e valorização profissional; gestão do conhecimento; reorganização das estruturas administrativas e dos processos de trabalho, de tomada de decisão, de comunicação e de interconexão intra e extragovernamental; investimento na perícia (em sua descentralização com integração sistêmica); na prevenção (em harmonia com outros segmentos governamentais - a ponto de integrar-se com eles, formando um novo sujeito da gestão pública, com as características descritas acima, e com setores da sociedade; e no controle externo (o qual, associado aos controles internos e à participação da sociedade, confere às polícias e às Guardas Municipais transparência e lhes devolve confiabilidade).154

Finalmente, uma nova agenda municipal de segurança, organizada em torno

de uma unidade, uma agência ou um organismo central, deve abordar

preferencialmente ações preventivas, articuladas com departamentos e secretarias

importantes da administração pública (educação, saúde, serviços sociais, habitação,

transporte, planejamento urbano, comunicação, esporte, lazer e cultura) - políticas

específicas de segurança preocupadas com a proteção integral de direitos, com o

153 ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha. Policiamento e segurança pública no século

XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 110. 154 SOARES, Luis Eduardo. Segurança municipal no Brasil - sugestões para uma agenda mínima. In:

SENTO-SÉ, 2005, p. 35-36. Rolim enfatiza, ainda, três tipos de políticas de prevenção associadas a fatores de risco: “aquelas destinadas a contornar os condicionantes individuais da criminalidade; aquelas que procuram tratar dos fatores associados à família; e aquelas voltadas às tarefas de prevenção na escola.” (ROLIM, 2006, p. 115).

96

sistema de persecução criminal (também e sobretudo com a Guarda Municipal),

incluindo, ainda, entidades da sociedade civil, associações comunitárias, cidadãos

de forma geral - reside aí a importância da instituição e funcionamento de um

Conselho Municipal de Justiça e Segurança, como o existente em Porto Alegre.

Além disso, uma política de segurança deve privilegiar ações preventivas

destinadas a atender, tanto as dimensões materiais quanto simbólico-afetivas ou

cultural-psicológicas exercidas pelo crime, de que é exemplo o tráfico de drogas

junto aos jovens, não por acaso, a faixa etária em que se encontram os maiores

índices de vitimização letal e na qual políticas próprias devem ser concebidas e

desenvolvidas com prioridade.155

Resta claro que esses pressupostos, embora não exaustivos, representam os

primeiros passos para um novo enfrentamento da violência e da criminalidade a

partir da experiência local das cidades no campo da segurança pública.

155 SOARES apud SENTO-SÉ, 2005, p. 32.

97

3.3 O Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre: notas para

um estudo de caso

3.3.1 Metodologia

3.3.1.1 Método de Abordagem

O método de abordagem utilizado foi o dialético. Além da contraposição das

idéias de autores de diversas áreas do conhecimento (Ciências Políticas, Sociologia,

Antropologia, Sociologia Jurídica, Criminologia, Direito Constitucional e Direito

Administrativo) acerca da temática apresentada, o reconhecimento da complexidade

do presente objeto de pesquisa, a falta de sistematização das recentes experiências

de políticas de segurança levadas a efeito pelas administrações municipais no país,

notadamente aquelas que se referem à instituição dos Conselhos Municipais de

(Justiça e) Segurança, e a inexistência de um referencial teórico consolidado

demandaram uma metodologia que permitisse o surgimento de novas construções

teóricas, decorrentes das próprias contradições presentes na realidade social. Por

isso, a transdisciplinaridade constituiu-se em uma opção de abordagem da temática

em tela.

98

3.3.1.2 Método de Procedimento

O método de procedimento a que se recorreu foi o histórico, o comparativo e

o estudo de caso.

Histórico e comparativo, na medida em que se analisou, mais detidamente no

primeiro e segundo capítulos, a formação do Estado Liberal de Direito, a crise do

Estado Social e a necessidade de refundação solidária e participativa do Estado, as

novas teorias do pluralismo (surgimento de novos núcleos de poder além do estatal)

e da democracia (participativa), as (re)definições dos conceitos de esfera pública,

perpassado por elementos públicos e privados, no bojo das reformas por que passa

o Estado Contemporâneo, a partir da valorização da participação da cidadania e da

sociedade civil organizada na busca por novas formas de compreensão e

administração das políticas públicas de segurança em âmbito municipal

(transversalidade-ampliação e deslocamento do enfoque criminal da questão da

segurança para uma nova leitura do problema da violência e da criminalidade

baseada nos direitos sociais fundamentais e na proteção integral dos direitos à

coletividade).

Ao final, adota-se a metodologia do estudo de caso do Conselho Municipal de

Justiça e Segurança de Porto Alegre, de forma a investigar in loco os limites e as

possibilidades de estabelecer-se um novo arranjo sócio-político para a proposição, o

monitoramento e a fiscalização de políticas públicas de segurança, a partir do

reconhecimento da importância e da repercussão sócio-jurídica da gestão

participativa da segurança pública nos municípios.

99

3.3.1.3 Técnicas de Pesquisa

O método do estudo de caso em Ciências Sociais possui um propósito duplo.

Por um lado, favorece uma compreensão mais abrangente do grupo em exame, no

caso, o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre. Por outro,

oportuniza o desenvolvimento de declarações teóricas mais gerais sobre

regularidades do processo e de sua estruturas sociais.156

Quanto às técnicas de pesquisa, para a análise teórica será utilizada a

documentação indireta em fonte secundária bibliográfica e, na pesquisa de campo,

por meio do estudo de caso antes referido, as técnicas de documentação direta a

partir da observação participante (pré-conferências municipais de segurança urbana

e I Conferência Municipal de Segurança Urbana) não-participante (coleta de

documentos) e, ainda, realização de entrevistas com um dos primeiros gestores da

Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SDHSU) de Porto

Alegre, com o atual Secretário Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana,

bem como com o presidente do Conselho Municipal de Justiça e Segurança de

Porto Alegre.

156 BECKER, Howard S. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Editora Hucitec,

1994, p. 118. Servi-me, neste trabalho, do estudo de caso como uma estratégia de pesquisa abrangente, composta, fundamentalmente, pela análise documental e das entrevistas realizadas com atores importantes no processo de instituição e de manutenção do Conselho Municipal de Justiça e Segurança de Porto Alegre, concebido com uma esfera pública não-estatal de participação da cidadania e da sociedade civil organizada para a gestão participativa de políticas públicas de segurança em âmbito municipal. (YIN, Robert. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman, 2005, p. 33).

100

3.3.2 Breves Considerações sobre o Processo de Municipalização da

Segurança Pública em Porto Alegre

A criação da Secretaria Municipal de Segurança Urbana e Direitos Humanos

(SDHSU) de Porto Alegre começou a ser gestada, ainda em 2001, no mandato do

então prefeito Tarso Genro (Partidos dos Trabalhadores - PT), por força da

elaboração de um programa de segurança pública municipal e da aplicação de

projetos-piloto, entre os quais se destaca o que foi desenvolvido no bairro Restinga,

como resultado da consultoria prestada por Luiz Eduardo Soares e equipe de março

a dezembro daquele ano.

O reconhecimento de que ações preventivas de segurança podem e devem

ser implementadas pelos municípios, entre outros fatores indicados ao longo desta

monografia, especialmente no segundo capítulo157, conduziu a aprovação na

Câmara de Vereadores, em 27 de dezembro de 2002, do Projeto de Lei do

Executivo (PLE) n.° 38/02, que criou a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e

Segurança Urbana (SDHSU) de Porto Alegre (Lei n.° 9056/02).

A primeira gestora da Secretaria de Direitos Humanos e Segurança Urbana

(SDHSU) de Porto alegre foi a secretária Helena Bonumá (Partidos dos

Trabalhadores - PT). A vereadora Bonumá, anteriormente, havia coordenado a

Comissão de Segurança Pública na Câmara de Vereadores.

157 A realização da I e da II Conferência Municipal de Direitos Humanos nessa cidade, em 1998 e

2000, respectivamente, também foram importantes para disseminar publicamente a importância de um maior e melhor investimento por parte da Prefeitura Municipal na área de segurança urbana.

101

Na sua gestão, priorizou-se a organização institucional e jurídica da

SDHSU158 e a continuidade dos projetos-piloto legados pela equipe da consultoria

de Luiz Eduardo Soares, com destaque para o Programa Segurança Cidadã; para

as intervenções na Restinga, no Loteamento Cavalhada, na Vila Lupicínio

Rodrigues, entre outras localidades; para o Programa de Polícia Comunitária através

da reforma administrativa e organizacional da Guarda Municipal, com enfoque para

a mediação de conflitos; para a realização dos Seminários Regionais de Segurança

Urbana159; para a elaboração do Plano Municipal de Segurança Urbana; para a

criação dos Fóruns Regionais de Segurança e, ainda, para o Seminário Municipal de

Segurança Urbana, realizado nos dias 6 e 7 de junho de 2003.

Desde 2004, o gestor da Secretaria de Direitos Humanos e Segurança

Urbana (SDHSU) de Porto alegre é o secretário Kevin Krieger (Partidos Progressista

- PP). Deve-se ressaltar que o escopo institucional da SDHSU, concebido e

desenvolvido na/pela gestão anterior, foi mantido pela atual, a despeito das

diferenças programáticas partidárias, o que, pelo menos em tese, já que essa

158 Remonta daquele período o atual desenho institucional da SHSU de Porto Alegre, composta por

três Coordenações: Direitos Humanos - com os Núcleos de Políticas Públicas para o Povo Negro, Mulheres, Livre Orientação Sexual, Povos Indígenas e Defesa dos Direitos Humanos; Segurança Urbana - responsável pelo estabelecimento do Plano Municipal de Segurança Urbana, os Fóruns Regionais de Segurança Urbana, Sistema de Proteção Social e a Qualificação da Guarda Municipal e Formação e Pesquisa - com a Escola de Formação em Direitos Humanos, Observatório de Direitos Humanos, Núcleo de Pesquisas sobre a Violência e Incubadora de Projetos de Inclusão Social.

159 Os Seminários Regionais de Segurança Urbana, iniciados em 7 de abril de 2003, tiveram como objetivo estabelecer canais de discussão permanentes com a comunidade sobre segurança, a partir de uma articulação das políticas sociais, de ações de inclusão social, de harmonização do ambiente coletivo, bem como da busca da necessária articulação dos órgãos responsáveis pela área de segurança pública. Os Seminários foram realizados nas 16 (dezesseis) regiões que havia sido dividida a cidade por obra do Orçamento Participativo (OP), implantado em Porto Alegre desde 1989, com o objetivo de fomentar a participação popular no debate acerca da eleição de prioridades na destinação do orçamento municipal por parte do governo. As 16 (dezesseis) regiões do OP compreendem: Noroeste, Eixo-Baltazar, Centro-Sul, Sul, Centro, Extremo-Sul, Nordeste, Lomba do Pinheiro, Restinga, Cristal, Glória, Norte, Partenon, Humaitá, Cruzeiro, Leste. (SOARES, Luiz Eduardo; GUINDANI, Miriam. Porto Alegre: Relatos de uma experiência. In: SENTO-SÉ, João Trajano (Org.). Prevenção da Violência: O Papel das Cidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 32).

102

análise extrapola os objetivos desta pesquisa, sinalizar a continuidade dos projetos

conduzidos pala Prefeitura Municipal nessa área ao longo dos últimos anos.

Dentre os projetos em andamento merecem referência, na Coordenação da

Guarda Municipal: a contratação de novos guardas municipais, a finalização dos

Convênios de Cooperação Técnica com a Brigada Militar, os esforços realizados

para a readequação técnica e operacional dos guardas municipais, por força da

entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento (Lei Federal n.º 10.826/03 e Decreto

Federal n.º 5.123/04), o projeto de implantação da ouvidoria e corregedoria, a

ampliação do Programa Vizinhança Segura com o estabelecimento de parcerias

com entes privados, tendo como contrapartidas a aquisição de equipamentos e o

financiamento de projetos sociais; na Coordenação de Direitos Humanos: a

elaboração da pesquisa de vitimização, em parceria com a Faculdade de Serviço

Social da PUC-RS, que traçará o perfil dos crimes cometidos na capital, a

participação na reestruturação da Casa Viva Maria, através do convênio firmado

com o Consulado do Japão e, na Coordenação de Segurança Urbana, a promoção

de cursos de qualificação profissional para jovens desempregados, na faixa de 18 a

24 anos, com Ensino Fundamental incompleto, por meio do Convênio celebrado com

o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC-RS), como também a

realização da I Conferência Municipal de Segurança Urbana de Porto Alegre, em

parceria com o Conselho Municipal de Justiça e Segurança da cidade, que será

detalhada posteriormente.

No que se refere aos Telecentros, sobressai-se a inauguração do Estúdio

Multimeios no bairro Restinga para a produção de vídeos, gravação de CD’s,

103

fotografia e materiais gráficos, financiado pelo Fundo Nacional de Segurança

Pública, atrelado à Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)160.

As breves considerações expendidas acerca do processo de municipalização

da segurança pública em Porto Alegre, por meio da criação da Secretaria Direitos

Humanos e Segurança Urbana (SDHSU), tem o objetivo de situar a discussão, que

será realizada adiante, acerca, sobretudo, da importância da atuação do poder

municipal para um aumento da participação da cidadania e da sociedade civil

organizada na gestão da segurança dessa cidade e, conseqüentemente, para a

concretização das atribuições legais do Conselho Municipal de Justiça e Segurança

da capital.

3.3.3 Análise do Suporte Legal do Conselho Municipal de Justiça e Segurança

(CMJS) de Porto Alegre

O Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de Porto Alegre foi

instituído pela Lei Complementar n.° 487, de 14 de janeiro de 2003, regulamentado

pelo Decreto n.° 14.487, de 4 de março de 2004, tendo seu regimento interno sido

aprovado pelo Decreto n.° 14.706, de 9 de novembro de 2004. As referidas

legislações criaram, regulamentaram e disciplinaram não apenas o CMJS de Porto

160 Para os fins deste trabalho não interessa perquirir a efetiva implantação dos projetos acima

descritos, na medida em que essa preocupação passa ao largo do nosso objeto de estudo. (Fonte: Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana de Porto Alegre).

104

Alegre, como também os Fóruns Regionais de Justiça e Segurança e os Conselhos

Comunitários de Justiça e Segurança161.

Como se pode inferir do texto de lei, trata-se de um arranjo político-

institucional de âmbito municipal, com o objetivo de favorecer a participação da

comunidade na proposição, no acompanhamento e na fiscalização de políticas

públicas de justiça e segurança e, dessa forma, subsidiar a atuação da novel

Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SDHSU) de Porto

Alegre.

Destarte, de acordo com a Lei Complementar n.° 487/03, compete ao CMJS,

nos termos do seu art. 6°, a sistematização e o encaminhamento das demandas da

população junto aos órgãos que compõem o sistema de Segurança Pública do

Estado, através da Secretaria de Justiça e Segurança do Estado do Rio Grande do

Sul (SJS) e do Conselho Estadual de Justiça e Segurança, bem como o

encaminhamento junto ao município das demandas relacionadas às políticas

públicas de justiça e de segurança.

161 Os Fóruns Regionais de Justiça e Segurança foram criados em cada uma das 16 (dezesseis)

regiões do Orçamento Participativo. Esses fóruns têm sua atribuição delegada pelo Conselho Municipal de Justiça e Segurança. Além disso, devem auxiliar no aperfeiçoamento das relações entre o município e as comunidades nos bairros e vilas organizados em torno do Conselhos Comunitários de Justiça e Segurança, tendo por isso a tarefa de estudar e debater a temática da segurança pública e da violência na sua região; elaborar registros estatísticos espaciais da sua região, além de índices de violência e criminalidade, realizando as necessárias análises; realizar eventos e reuniões de trabalho com órgãos públicos e comunitários, que, entre outras ações, promovam a reflexão de temas significativos e possibilitem a elaboração de planos de atividades conjuntos; desenvolver ações para estreitar o relacionamento entre os diversos segmentos da comunidade e os organismos públicos; criar espaços de manifestação dos cidadãos, das comunidades e dos segmentos sociais da região; propor programas de prevenção à violência e à criminalidade; contatar as autoridades públicas regionais para o encaminhamento de demandas, sugestões e denúncias das comunidades e estudar os programas veiculados na mídia que dão destaque à violência (art. 5°/LC n.° 487/03 c/c art. 4°,§2°/Dec. n.° 14.487/04). Os Conselhos Comunitários de Justiça e Segurança, por seu turno, são entidades criadas nas vilas e bairros da cidade de Porto Alegre com o objetivo de dar ensejo à participação direta dos cidadãos nas questões que envolvem a segurança social e os serviços de segurança pública prestados à comunidade em que residem (art. 2° e 3°/LC n.° 487/03 c/c art. 5°/Dec. n.° 14.487/04).

105

Às competências genéricas do CMJS, esboçadas pelo art. 6° da Lei

Complementar n.° 487/03, acrescem-se as atribuições previstas pelo art. 3° do

Decreto n.° 14.487/04 e pelos arts. 4° e 8° do Decreto n.° 14.706/04, a saber:

estimular a cooperação e o trabalho integrado dos organismos policiais, judiciais,

sociais e comunitários no desenvolvimento das atividades de segurança pública do

município; representar um espaço permanente de debate entre os órgãos públicos e

a comunidade; diagnosticar e avaliar as ações referentes à segurança pública no

município; estabelecer canais permanentes de comunicação com os órgãos públicos

para demandar serviços e providências; sistematizar e encaminhar as demandas da

população junto aos órgãos que compõem o sistema de proteção social e de

segurança pública; identificar as causas e conseqüências da violência urbana, com

vistas a contribuir na formulação da política municipal de segurança pública; cumprir

e fazer cumprir o Regimento Interno; prestar contas de suas atividades, anualmente,

à comunidade porto-alegrense; organizar e convocar a Conferência Municipal de

Segurança Urbana, a cada 2 (dois) anos, em conjunto com a Prefeitura de Porto

Alegre - ponto este que será aprofundado a seguir; promover a integração com os

demais Conselhos Municipais, em especial o de Direitos Humanos, para qualificar as

políticas públicas de prevenção à violência; designar representação para os Fóruns

Regionais de Justiça e Segurança, sempre que for solicitado, trabalhando para o seu

fortalecimento e, ainda, estimular a mobilização e a organização comunitárias, em

particular, apoiando a criação dos Conselhos Comunitários de Justiça e Segurança.

Por força do art. 1° do Decreto n.° 14.706/04, o CMJS deve ser concebido

como um espaço colegiado, permanente, de participação e integração comunitária e

governamental (de todas as esferas dos poderes públicos), corroborando, em

106

termos formais, o entendimento do autor de que este representa potencialmente

uma esfera pública não-estatal de participação da cidadania e da sociedade civil

organizada na proposição, no monitoramento e na fiscalização das políticas públicas

de (justiça e) segurança (a serem) desenvolvidas pelo poder executivo local

(SDHSU).

O CMJS é composto formalmente pelos seguintes conselheiros (fulcro art. 2°

do Decreto n.° 14.487/04 e no art. 5° do Decreto n.° 14.706/04) que terão mandato

de dois anos (vide o art. 6° do Decreto n.° 14.487/04 e o art. 23 do Decreto n.°

14.706/04): um representante da comunidade de cada Fórum Regional de Justiça e

Segurança (são ao todo 16 Regionais tais quais as Regiões do Orçamento

Participativo); um representante de cada órgão público que integra os Fóruns

Regionais de Justiça e Segurança (Guarda Municipal e Coordenação de Segurança

Urbana da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana -

SDHSU, Empresa Pública de Transporte e Circulação - EPTC, Fundação de

Assistência Social e Cidadania - FASC, Fundação de Assistência Sócio-educativa -

FASE, Brigada Militar, Corpo de Bombeiros, Polícia Civil, Ministério Público Estadual

- Sub-procuradoria para Assuntos Institucionais, Conselho Tutelar, Pode Judiciário);

um representante do Instituto Geral de Perícias (IGP); um representante da

Superintendência de Serviços Penitenciários (SUSEPE); um representante da

Defensoria Pública; um representante da Câmara de Vereadores; um representante

da União das Associações de Moradores de Porto Alegre (UAMPA); um

representante da Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul (OAB/RS); um

representante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); um

representante da Polícia Federal; um representante da Associação Riograndense de

107

Imprensa (ARI); um representante da Secretaria Municipal da Educação (SMED); um

representante da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul

(SEC/RS); um representante da Central dos Movimentos Populares; um

representante do Grupo de Diálogo Inter-religioso e um representante da Secretaria

Estadual de Justiça e Segurança do Estado do Rio Grande do Sul (SJS)162.

Embora os arts. 11 e 12 do Decreto n.° 14.706/04 determinem que as

reuniões do CMJS serão públicas e abertas à comunidade, a qual terá garantido o

direito a voz, deve-se salientar que os critérios para a indicação de novos

integrantes da comunidade e de representantes de órgãos públicos e de entidades

para participar formalmente do CMJS não se apresentam de forma clara. O art. 11 e

14 do Decreto n.° 14.706/04 e os arts. 6° e 27 do Decreto n.° 14.706/04 apenas

prevêem que a indicação de novos membros ocorrerá por adesão voluntária,

preferencialmente, no segundo semestre dos anos ímpares e a posse no primeiro

trimestre dos anos pares.

Nesse sentido, merece registro a inclusão da ONG Guayi no rol das entidades

que integram o Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de Porto Alegre.

A ONG Guayi é uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP)

que atua, desde julho de 2001, em cinco núcleos principais: Ecologia e Agricultura,

Democracia Participativa, Economia Solidária, Escola de Formação e Direitos

Humanos e Segurança Urbana. O dado interessante é que dessa entidade fazem

parte os dois primeiros gestores da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e

162 Maiores informações acerca da organização e funcionamento do CMJS podem ser encontradas do

art. 9° ao art. 30 do Decreto n.° 14.706/04 (Regimento Interno).

108

Segurança Urbana (SDHSU), Helena Bonumá e o Cel. Luiz Antonio Brenner

Guimarães.

Em outras palavras, apesar de o grupo que representam não estar mais no

poder executivo municipal, continuam a contribuir para o debate acerca da

segurança urbana como membros da sociedade civil organizada, através da

participação no Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) e nas atividades

por este desenvolvida, notadamente a realização das Pré-conferências Municipais

de Segurança Urbana e da I Conferência Municipal de Segurança Urbana, realizada

em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana

(SDHSU) de Porto Alegre, nos dias 19 e 20 de maio de 2006.

As reuniões ordinárias devem ocorrer, no mínimo, uma vez por mês, em

consonância com a determinação do art. 7º do Decreto n.° 14.487/04 e do art. 11 do

Decreto n.° 14.706/04163. A reunião plenária ordinária mensal constitui o órgão

máximo de deliberação do CMJS, o qual, como já se afirmou, deve operar como

uma instância pública não-estatal de caráter deliberativo, consultivo e fiscalizador

das políticas públicas de segurança e de justiça realizadas no âmbito do município

de Porto Alegre, na busca por alternativas para aperfeiçoar a segurança e a

prevenção à violência urbana (vide inteligência do art. 2° do Decreto n.°

14.706/04)164.

163 O art. 7° do Decreto n.° 14.487/04 e o art. 11 do Decreto n.° 14.706/04 facultam a realização de

sessões extraordinárias no caso de ocorrência de fatos novos, por convocação da Coordenação do CMJS, ou por manifestação da maioria absoluta de seus membros.

164 As deliberações do Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de Porto Alegre ficam, no entanto, sujeitas à homologação do Chefe do Executivo Municipal, o que, de certo modo, limita a eficácia vinculativa de suas decisões, seja perante a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SDHSU), seja perante a cidadania de forma geral (publicização).

109

O art. 11, §único do Decreto n.° 14.706/04 aponta que essas reuniões

precisam ser realizadas em local de fácil acesso, previamente determinado, com

ampla divulgação e fora do horário comercial. Na prática, geralmente essas reuniões

são realizadas nas dependências da Secretaria Municipal de Administração (SMA)

de Porto Alegre, localizada na Av. Siqueira Campos, n.° 1300, 14º andar - Centro da

cidade, em horário noturno.

A grande deficiência que se percebe, nesse particular, concentra-se na

divulgação desses encontros e na possibilidade de participação dos cidadãos. Como

o CMJS não dispõe de dotação orçamentária própria, qualquer medida que implique

a aplicação de recursos financeiros, por exemplo, investimentos em publicidade das

ações do Conselho, deve ser negociada com a Secretaria Municipal de Direitos

Humanos e Segurança Urbana (SDHSU), a qual o CMJS, como também os Fóruns

Regionais de Justiça e Segurança e os Conselhos Comunitários de Justiça e

Segurança165, está vinculado para fins de assessoramento técnico e suporte

administrativo (forte nos art. 15 do Decreto n.° 14.487/04 e art. 28 do Decreto n.°

14.706/04). A falta de dotação orçamentária própria para o custeio das atividades

capitaneadas pelo CMJS, atrelado financeiramente ao aporte eventual de recursos

provenientes da SDHSU, sobressai-se como um fator de destaque para explicar a

baixa publicização das atribuições e da importância da participação da população no

CMJS.

165 A Coordenação de Segurança da SDHSU é a responsável por trabalhar na mobilização das

comunidades no debate da problemática da violência, da criminalidade e das políticas públicas de segurança. Um grupo de sete guardas municipais fica responsável nesse setor por auxiliar o Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de Porto Alegre, os Fóruns Regionais de Justiça e Segurança e os Conselhos Comunitários de Justiça e Segurança a aproximar a desempenhar suas atribuições. (Fonte: Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana de Porto Alegre).

110

Em suma, há que se consensuar que, em termos estritamente legais, o maior

limite imposto ao CMJS refere-se à inexistência de um orçamento próprio, mesmo

que mínimo, o que o coloca numa posição, muitas vezes, de subserviência em

relação à SDHSU, ou, dito de outra forma, submetido às relações pessoais entre os

membros da Coordenação do CMJS e os atuais gestores da SDHSU.

Doravante, passará a ser analisado processo de organização das Pré-

conferências Municipais de Segurança Urbana e da I Conferência Municipal de

Segurança Urbana de Porto Alegre, denotando, em termos práticos, o impacto social

da instituição e funcionamento do Conselho Municipal de Justiça e Segurança

(CMJS) e as possibilidades de este se constituir em efetivo catalisador e articulador

das demandas sociais de/por segurança pública na esfera municipal.

3.3.4 Análise da Pesquisa de Campo (Pré-conferências Municipais de

Segurança Urbana, I Conferência Municipal de Segurança Urbana de

Porto Alegre e entrevistas)

Em atenção ao art. 12 do Decreto n.° 14.487/04 e aos arts. 8°, IV e 29 do

Decreto n.° 14.706/04, o Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de

Porto Alegre, em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e

Segurança Urbana (SDHSU) dessa cidade, propôs a realização da I Conferência

Municipal de Segurança Urbana, nos dias 19 e 20 de maio de 2006, com o tema:

111

“Construindo a Segurança Cidadã em Porto Alegre com a Integração Estado,

Município e Comunidade.”

A I Conferência teve como objetivo avaliar a política de segurança urbana de

Porto Alegre, tendo em vista a mobilização da participação da comunidade e dos

diferentes atores responsáveis pela segurança pública na cidade, a partir do sistema

criado pelo CMJS, Fóruns Regionais e Conselhos Comunitários de Justiça e

Segurança, SDHSU, juntamente com os demais órgãos municipais que participam

do Conselho Municipal, em torno do debate sobre a problemática da violência e da

criminalidade e sobre o desenvolvimento de ações de prevenção e execução de

políticas públicas de segurança.

O processo de preparação da I Conferência Municipal de Segurança Urbana

previu o envolvimento da comunidade, de instituições públicas e privadas, do

Orçamento Participativo, dos Conselhos Municipais, de organizações não-

governamentais (ONG’s), de movimentos e diferentes segmentos sociais, por meio

da promoção de Mini-conferências, em bairros e vilas; de Pré-conferências, nos 16

Fóruns Regionais de Segurança, e de debates temáticos, culminando com uma

Conferência Magna e com a elaboração da Carta de Porto Alegre, através da qual

restou registrado o compromisso público e coletivo de lutar pela construção de

políticas públicas de segurança capazes de tornar a cidade mais segura, mais

inclusiva e mais democrática.

As propostas da população foram agrupadas em três eixos temáticos:

112

a) Sistema Único de Segurança Pública em Porto Alegre: Guarda Municipal,

Brigada Militar, Polícia Civil, Serviço Prisional, Ministério Público, Poder

Judiciário e Polícia Federal;

b) Sistema de Proteção Social em Porto Alegre: O Conselho Municipal de

Justiça e Segurança (CMJS), Fóruns Regionais e Conselhos Comunitários

de Justiça e Segurança.

c) Políticas de Prevenção e de Enfrentamento da Violência, do Crime, da

Mediação de Conflitos e Direitos Humanos.

Durante o processo de preparação da I Conferência Municipal de Segurança

Urbana foram realizadas reuniões, durante os meses de fevereiro, março e abril de

2006, nos Conselhos Comunitários de Justiça e Segurança, em associações,

entidades e instituições comunitárias e escolares, com a finalidade de que fossem

construídas propostas para serem apresentadas nas Pré-conferências e na própria

Conferência Municipal de Segurança Urbana.

Durante os meses de abril e maio de 2006, ocorreram as Pré-conferências

Municipais de Segurança, uma em cada um dos Fóruns Regionais de Justiça e

Segurança, localizados nas 16 (dezesseis) regiões que compõem o Orçamento

Participativo (O.P.), quais sejam: Noroeste, Eixo-Baltazar, Centro-Sul, Sul, Centro,

Extremo-Sul, Nordeste, Lomba do Pinheiro, Restinga, Cristal, Glória, Norte,

Partenon, Humaitá, Cruzeiro, Leste.

Dentre as 16 Pré-conferências, a presente análise contemplará algumas

impressões dos pesquisadores do Grupo de Políticas Públicas de Segurança,

113

Justiça e Cidadania (GPESC)166, que procederam à observação participante das

Pré-conferências do Eixo-Baltazar, Centro e Humaitá, nos dias 8 e 27 de abril e 9 de

maio, respectivamente167.

A média de público nas três Pré-conferências observadas foi de 28 (vinte e

oito) pessoas, que pode ser considerada baixa, sobretudo em se tratando do tema

da segurança pública de grande visibilidade e importância no cenário municipal,

regional e nacional, notadamente desde a década de oitenta, e da concentração

populacional das três regiões que compõem as Regionais do Eixo-Baltazar, Centro e

Humaitá. A mesma inferência pode ser feita em relação à participação da população

de Porto Alegre na I Conferência Municipal de Segurança Urbana, que se seguiu à

realização das Pré-conferências Municipais, a qual reuniu cerca de 250 (duzentos e

cinqüenta pessoas).

Inúmeros fatores podem ser suscitados para compreender o déficit de

participação da cidadania e da sociedade civil organizada nas Pré-conferências e I

Conferência Municipal de Segurança Urbana propostas pelo CMJS, em parceria

com a SDHSU. Dentre elas se destacam:

166 O Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança, Justiça e Cidadania (GPESC) foi

criado pelo Professor do PPG-Ciências Criminais/PUCRS, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, com a colaboração do autor, bolsista de iniciação científica do programa BPA/PUCRS, com a pesquisa: “A Municipalização da Segurança Pública - Bases Legais e Teóricas e Experiências de Implementação no RS”. O GPESC visa à análise das recentes experiências de municipalização das políticas públicas de segurança no país e ao levantamento de práticas democráticas e plurais de gestão do sistema de justiça brasileiro, no contexto da democratização dos espaços públicos (estatais ou não) de exercício da cidadania. O Grupo congrega uma série de pesquisadores de níveis de graduação e pós-graduação, de diferentes Instituições de Ensino Superior (UFRGS e PUCRS) e de várias áreas do conhecimento (Direito, Sociologia, Psicologia), em sua maioria orientandos do Professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.

167 A Pré-conferência da Regional Eixo-Baltazar (08/04/06) foi acompanhada pelo autor; a pré-conferência da Regional Centro (27/04/06), por Andréa Lucas Fernandes, Mestranda em Sociologia (PPG-UFRGS) e a pré-conferência da Regional Humaitá (09/05/06), por Maura Gisele Rozado Basso, Mestranda em Ciências Criminais (PPG-PUCRS), ambas integrantes do GPESC.

114

1) A baixa tradição participativa em canais de controle do investimento público

e de eleição de prioridades de políticas públicas a serem implementadas pelo Poder

executivo local.

A despeito da experiência do instrumento do Orçamento Participativo (O.P.)

em Porto Alegre, a curta trajetória de existência do Conselho Municipal de Justiça e

Segurança de Porto Alegre (e dos Fóruns Regionais e Conselhos Comunitários de

Justiça e Segurança), bem como a falta de exercício prático de participação da

maioria dos cidadãos e de diversos representantes estatais, contribuem para esse

panorama.

O retorno das entrevistas realizadas com o Cel. Luiz Antônio Brenner

Guimarães, Ex-secretário Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana e

atualmente um dos Conselheiros do CMJS, como representante da ONG Guayi, com

o Sr. João Helbio Carpes Antunes, Presidente do CMJS, e com o Sr. Marco Antônio

Seadi168, atual Secretário Adjunto da SDHSU, apontam, ainda, um outro elemento

que teria corroborado para a reduzida participação da população nesse processo.

Assim:

[...] Primeiro, por ter participado como cidadão e representante de uma ONG durante todo o processo, tenho a convicção de que a Conferência somente foi realizada em razão do movimento comunitário, que a partir de um grupo de Conselheiros e integrantes dos Fóruns Regionais tiveram uma participação ativa e decisiva na realização do evento. A parte do Poder Público Municipal deixou muito a desejar, inclusive no campo do apoio administrativo. Pelo movimento do Poder Público Municipal a conferência provavelmente não teria saído. Houve problemas na divulgação, na mobilização e na sistematização das propostas das plenárias regionais e

168 O questionário foi encaminhado por e-mail, em 25/09/06, aos cuidados do Secretário Municipal de

Direitos Humanos e segurança Urbana de Porto Alegre, Sr. Kevin Krieger. No entanto, este designou ao Secretário Adjunto a tarefa de responder às indagações do autor como representante da SDHSU. Dessa forma, pode-se concluir que as respostas indicam uma posição institucional da atual gestão acerca da temática em estudo.

115

locais. Pela dificuldade de mobilização e divulgação e o pouco envolvimento do poder público municipal que praticamente não fez nenhum esforço neste sentido, pode-se dizer que em termos de número de participante a conferência ficou muito aquém do esperado. Posso comparar com a 3ª Conferência Municipal de Direitos Humanos (Março de 2004) realizada durante o período que estive na SMDHSU, cuja participação contou em torno de um mil cidadãos(ãs), sem considerar as pré-conferências e os debates temáticos. Ou, os Seminários Regionais de Segurança Urbana, no segundo semestre de 2003 e as Plenárias Regionais para definir as normas do Conselho Municipal e dos Fóruns Regionais, cujo processo todo movimentou em torno de um mil e seiscentas pessoas e o Seminário Municipal Final, bem como, a Plenária Municipal Final, contaram com a presença de aproximadamente 230 pessoas. (Cel. Luiz Antônio Brenner Guimarães, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06)169.

O Presidente do CMJS, Sr. João Helbio Carpes Antunes, sinaliza na mesma

direção, qual seja, o reduzido envolvimento da SDHSU:

[...] Quanto a Sociedade como um todo não ficou sabendo por falta de divulgação, por parte da SDHSU/PM, acredito que se houvesse interesse nessa discussão haveria um público muito maior, creio que questões políticas partidárias afetaram esse momento. (Sr. João Helbio Carpes Antunes, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

169 Um outro fator importante para a baixa participação da comunidade no CMJS deve-se a questões

de ordem cultural acerca da concepção de segurança que povoa o imaginário social (senso comum), em geral bastante limitado à associação direta entre polícia e segurança. A despeito da necessidade de implementação de políticas públicas de segurança, em que são fundamentais os policiais (no caso, a guarda municipal), não se pode olvidar a dimensão social do problema da violência e da criminalidade. Conforme o entendimento do Ex-gestor da SDHSU de Porto Alegre e hoje Conselheiro do CMJS: “Isto tudo contribui para outra parte do problema, que é a baixa participação comunitária. Por parte da sociedade um dos obstáculos centrais é cultura, no sentido de conceber a segurança somente do ponto de vista da polícia e de suas ações e de acreditar que este problema social é um problema para resolver pelos profissionais da polícia e justiça. Acreditam que nada a sociedade pode fazer. Um significativo número de pessoas, quando participam, o fazem na busca da dimensão repressiva, o que, por um lado, provoca desestímulo, pois tem a expectativa de respostas imediatas ao problema apresentado por parte dos organismos policiais, que na maioria das vezes não acontece ou não é viável acontecer. E, por outro lado, provoca o medo, pois considera sua participação no Conselho ou Fórum, como uma extensão da atividade da polícia, especialmente no campo da denuncia, o que o torna vulnerável diante da criminalidade. Assim, temos uma participação dos organismos públicos de muita baixa qualidade, pois não há uma proposta política de privilegiar a participação social e a integração e coordenação das diversas dimensões. E, uma participação comunitária muito pequena, não chegando a constituir-se um movimento mais coeso capaz de disseminar o debate do problema na cidade e de pressionar a participação do poder público. (Cel. Luiz Antônio Brenner Guimarães, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06)

116

A posição institucional da SDHSU destoa das análises anteriores, na medida

em que existe a crença de que o poder local auxiliou em no processo de

organização das Pré-conferências e da I Conferência Municipal de Segurança

Urbana da forma que legalmente lhe incumbia, qual seja, o suporte administrativo e

financeiro:

SMDHSU forneceu apoio administrativo e financeiro para elaboração e execução da 1ª Conferência Municipal de Segurança urbana. A mobilização comunitária se desenvolveu nas 16 regiões dos FRJS e culminou na Conferência com um número de lideranças comunitárias expressivo. (Sr. Marco Antônio Seadi, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 02/10/06).

As observações realizadas pelo autor no processo preparatório e ao longo da

I Conferência Municipal Segurança Urbana permitem concluir de que efetivamente a

população de Porto Alegre não foi suficientemente esclarecida da importância e das

formas de participação nesse processo de gestão participativa da segurança urbana

na cidade. Apesar disso, não se pode desconsiderar os resultados positivos

logrados pela I Conferência Municipal de Segurança Urbana, especialmente a

elaboração da Carta de Porto Alegre, instrumento que sistematiza as diversas

propostas e resoluções da cidadania relativamente às políticas públicas de

prevenção à violência e à criminalidade na cidade de Porto Alegre. Nesse ponto, as

opiniões antes divergentes, sobretudo dos representantes da SDHSU e CMJS,

afinam-se.

Segundo o Presidente do CMJS:

[...] a Comunidade que participou da 1ª Conferência Municipal de Segurança Urbana de Porto Alegre, demonstrou um grau de maturidade e conhecimento das causas e conseqüências dos problemas que afligem a

117

nossa Cidade, visto que o instrumento Carta de Porto Alegre é um documento a ser seguido por todos, diria que é a sabedoria do povo que sabe o que quer e o que o aflige. [...]. (Sr. João Helbio Carpes Antunes, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

Nesse mesmo sentido, a posição institucional da SDHSU e, de forma mais

ampla, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre:

[...] Pensamos ser fundamental a análise das demandas advindas da Carta de Porto sendo compromisso do Sr. Prefeito José Fogaça para implantação de políticas públicas em consonância com a Carta de Porto Alegre. (Sr. Marco Antônio Seadi, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 02/10/06).

2) A falta de capacitação técnica na área de segurança urbana de alguns dos

conselheiros do CMJS, que atuam na condição de voluntários, com todas as

implicações de limitação de tempo e envolvimento que essa condição implica, falta

de capacitação essa que se estende à parcela significativa dos gestores públicos

que atualmente integram a SDHSU, muitos dos quais não possuem nenhuma

experiência profissional pregressa nessa temática, nem mesmo experiência na

gestão participativa da Administração Pública.

Essa preocupação restou consignada na entrevista realizada com o

Presidente do CMJS:

[...] Queria lembrar que todos os Conselheiros Comunitários atuam como voluntários não recebendo nenhum apoio financeiro para participarem ou mesmo para divulgarem as reuniões (Sr. João Helbio Carpes Antunes, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

No caso em exame, é preciso salientar que, apesar da enunciação dessas

dificuldades, parece haver um senso de responsabilidade bastante aguçado da

118

importância da participação da comunidade na definição e acompanhamento das

políticas públicas de segurança por parte, sobretudo, do representante do CMJS:

A Criação do CMJS é um avanço na discussão das políticas públicas de segurança, fazendo com que a Comunidade principal interessada na melhoria dessa situação, possa se fazer representar junto às instituições que realizam as ações de segurança na nossa cidade, o CMJS proporciona que sentemos todos Comunidade e Instituições, para juntos apontar o caminho para a melhoria da segurança em nossa cidade. É a primeira gestão do CMJS, ainda há muitos caminhos a trilhar para que a Sociedade e a Instituições possam assimilar e reconhecer no CMJS uma ferramenta de representatividade e um instrumento para encurtar caminhos para as soluções que dependem de todos nós. Os próprios organismos responsáveis pela Segurança, mesmos isolados com áreas de atuação distintas, passaram a entender que a sociedade precisa envolver-se para termos resultados positivos. [...] Entendo o CMJS como uma forma de tratar a Segurança, com uma compreensão ampliada de ações preventivas, com políticas sociais, urbanas e comunitárias, voltadas para a harmonia do coletivo, favorecendo a comunidade primeiramente e depois a propriedade. [...] Sabemos das nossa limitações enquanto Conselheiros que precisamos desenvolver um trabalho em parceria com todas as partes envolvidas, a implementação gradual desse projeto é a criação da possibilidade que as comunidades terão para realizar a efetiva fiscalização e controle social das políticas relacionadas à segurança pública. Com certeza é o único instrumento de articulação da Comunidade que fortalecido será uma grande ferramenta a favor do povo Porto Alegrense. (Sr. João Helbio Carpes Antunes, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

3) O acesso dificultado às atribuições e às formas de participação no CMJS

por amplo espectro da população, em virtude da inexistência de previsão

orçamentária para gastos, por exemplo, em publicidade institucional - maior falha

legislativa do suporte legal do CMJS.

Por isso, para além de uma reforma na legislação que estabelece a

organização e o funcionamento do CMJS, impõe-se uma participação mais ativa dos

gestores públicos da SDHSU, tendo em vista o incremento da concretização das

atribuições legais do CMJS.

Essa é a percepção do Presidente do CMJS:

119

Entendo que falta profundidade por parte dos gestores quanto ao CMJS e aos Fóruns Regionais de Segurança, fazem a parte administrativa, assim mesmo com muitas falhas. Queria lembrar que todos os Conselheiros Comunitários atuam como voluntários não recebendo nenhum apoio financeiro para participarem ou mesmo para divulgarem as reuniões. (Sr. João Helbio Carpes Antunes, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

A posição institucional da SDHSU denota, todavia, o necessário, mas

insuficiente, subsídio administrativo fornecido ao CMJS:

A SMDSU fornece suporte administrativo e encaminha demandas dos 16 Fóruns Municipais de Justiça e Segurança que é foco deliberativo comunitário do CMJS, e paralelamente atua com ações sociais (oficinas, cursos, etc.) para prevenção ao crime e à violência. (Sr. Marco Antônio Seadi, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 02/10/06).

Daí decorre o registro do Presidente do CMJS de que existe a necessidade

de uma maior aproximação entre o Conselho e a SDHSU, a fim de que as decisões

do Conselho possam conquistar maior efetividade, bem como estarem em maior

sintonia com os projetos desenvolvidos pelo poder local na área de segurança

urbana:

O CMJS nunca foi chamado para discutir um Projeto ou um Programa implementado pela SDHSU, tudo sempre foi apresentado pronto, quando foram apresentados. Projetos ou Ações desenvolvidas pela Secretaria poderiam ser melhor implementados pela Prefeitura quando tivesse interlocutores da Comunidade. (Sr. João Helbio Carpes Antunes, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

Essa interface do CMJS com a SDHSU, de acordo com a posição institucional

da Secretaria, estaria sendo convenientemente garantida, seja pelo suporte

administrativo, seja pela presença de representantes dessa área do poder municipal

nas reuniões ordinárias do Conselho:

120

Há uma boa interlocução entre a SMDHSU e o CMJS, tendo em vista que temos uma Assessoria Comunitária, setor da Secretaria composta por 07 assessores comunitários (servidores de carreira) com a função de encaminhar e articular administrativamente os FRJS, bem como temos a Coordenação de Segurança Urbana que presta apoio em situações de maior urgência dentre as demandas advindas do FRJS. [...]. A SMDHSU tem representação no CMJS com conselheiro titular (Secretario) e suplente (Coordenação de Segurança Urbana). Nas reuniões do CMJS há sempre um representante da Secretaria. Seja o titular, o suplente, o Secretário Adjunto, algum representante da CSU ou da Assessoria Comunitária. Quanto a Guarda Municipal, esta também tem assento no CMJS e se faz presente nas reuniões, em que pese também pertencer a estrutura organizacional desta Secretaria. (Sr. Marco Antônio Seadi, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 02/10/06).

Em síntese, embora exista, em tese, um reconhecimento por parte dos

representantes do CMJS e da SDHSU da importância que o Conselho (pode vir a)

exerce(r) como uma instância pública de participação da cidadania na proposição e

acompanhamento de políticas públicas de segurança170, na prática, é inegável que

fatores político-partidários acabam por influir e dificultar a consecução desse

processo de gestão participativa da segurança na capital.

Ademais, não se pode esquecer que, como uma esfera pública, o CMJS não

está infenso ao embate político entre diferentes projetos de sociedade e de

concepções de modelos de segurança pública.

170 Essa percepção é também compartilhada pelo Ex-secretário Municipal de Direitos Humanos e

Segurança Urbana de Porto Alegre, com a ressalva de que este atribui um papel mais ativo à SDHSU no que se refere a uma maior efetividade do CMJS na gestão participativa da segurança, eis que: “A criação do Conselho Municipal e dos Fóruns Regionais deve ser concebido com uma política pública municipal de enfrentamento da violência e a da insegurança, concebida a partir de inúmeros debates com a sociedade porto-alegrense, no transcorrer do ano de 2003 [seminários regionais, seminário municipal, plenárias regionais, plenária municipal]. Assim, a administração municipal através da Secretaria Municipal é fundamental para criar as condições de funcionamento e fortalecimento destes espaços, para articular e garantir a participação dos organismos públicos, tanto os municipais, quanto os dos outros níveis, para ampliar a participação da sociedade e para dar qualidade a estes espaços no sentido que cumpram a finalidade proposto na discussão com a comunidade. Quem deve e quem pode fortalecer e solidificar estas instâncias como uma política alternativa eficiente é a SMDHSU, que possui a estrutura pública e o poder político do executivo municipal.” (Cel. Luiz Antônio Brenner Guimarães, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

121

4) O fato de as deliberações do CMJS estarem sujeitas à homologação e

cumprimento por parte do Poder Executivo (SDHSU) (vide Art. 3°/Decreto n.°

14.706/04).

Outrossim, inexistem estruturas jurídicas que vinculem o Executivo às

decisões do Conselho, mormente nos casos em que essas decisões contrariam

interesses eventualmente divergentes do grupo político que administra a SDHSU,

independentemente da filiação partidária.

Observe-se o discurso do Presidente do CMJS a esse respeito:

A SDHSU tem importância fundamental no crescimento e fortalecimento do CMJS e dos Fóruns de Segurança Urbana e Conselhos Comunitários de Segurança. Prova que o atual estágio que se encontra nossa Rede poderia ser bem melhor. Só obteremos o respeito da Comunidade e das Instituições de Porto Alegre, se adquirirmos o respeito dentro de casa, precisamos assumir a responsabilidade como Conselheiros dos atos de nossas Entidades e do Conselho com nossas Entidades. (Sr. João Helbio Carpes Antunes, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

Ressalte-se que essa já se constituía em uma preocupação da primeira

gestão da SDHSU de Porto Alegre:

Fazendo esta síntese da síntese da compreensão deste problema social - a insegurança - pode-se afirmar que o poder local tem um importante papel a conquistar na elaboração de políticas alternativas de enfrentamento à violência e a insegurança, especialmente nesta área colocada historicamente em segundo plano na elaboração das políticas de segurança que consiste as ações de prevenção primária. Primeiro, trabalhando as ações focadas e direcionadas para áreas de vulnerabilidade e de violência no fortalecimento da coesão social, da organização do ambiente, do oferecimento de oportunidades legítimas, da melhoria das condições de vida. Segundo, constituindo um ponto de referência e articulador para trabalhar a complementaridade e a coordenação das ações preventivas e repressivas, bem como, a ampliação do envolvimento das comunidades no debate do tema. Terceiro, na garantia da convivência das diferenças e mediação dos pequenos conflitos nos espaços públicos E, quarto, criando os espaços de participação social, que possibilite o efetivo controle social da

122

sociedade em relação às políticas públicas de segurança desenvolvidas e a qualidade da prestação de serviço dos órgãos de polícia e justiça, possibilitando o crescimento da transparência. (Cel. Luiz Antônio Brenner Guimarães, Entrevista enviada por e-mail em 25/09/06 e respondida em 29/09/06).

Assim, por mais que a participação da cidadania e da sociedade civil

organizada dê-se de forma massiva a implementação das resoluções do CMJS

dependerá da chancela da SDHSU, bem como da existência de recursos

orçamentários para tanto, o que novamente reforça a necessidade de a Secretaria e

transcender o cumprimento meramente formal do apoio administrativo e técnico ao

CMJS, previsto pela legislação que regula a matéria, em face de uma maior

integração entre o poder local e este último.

5) A disparidade de condições para participar do CMJS entre os membros

advindos do governo e os oriundos da sociedade civil. Enquanto aqueles trabalham

nas atividades do Conselho, de forma remunerada, durante o período de expediente

normal, tendo acesso a dados e informações sobre a temática e à infra-estrutura

administrativa do Estado, do qual dominam, ou deveriam dominar, a linguagem

tecnocrática e a organização interna, os demais conselheiros que atuam no CMJS

como voluntários, no período inverso ao que exercem suas atividades profissionais,

muitas vezes, não detém essa expertise.

A falta de domínio da lógica burocrática estatal pode acarretar sérios

problemas tanto no encaminhamento quanto no acompanhamento das políticas

públicas de segurança deliberadas no âmbito do CMJS, fator de severo desestímulo

a um aumento da participação da coletividade no Conselho.

123

6) A dificuldade de se estabelecer uma agenda de trabalho comum entre o

CMJS e a SDHSU, o que fica evidente pela análise das entrevistas, embora exista o

comprometimento mútuo de levar a efeito as resoluções auferidas na I Conferência

Municipal de Segurança Urbana, expressas na Carta de Porto Alegre;

7) O absenteísmo de setores e membros governamentais importantes nas

reuniões do Conselho171;

No que se refere às possibilidades de atuação do CMJS na proposição, no

monitoramento e na fiscalização de políticas de segurança, destacam-se as

sugestões apresentadas nas Pré-conferências em comento172.

Nesse sentido, foram apontadas várias sugestões concernentes à prática de

ações preventivas e de integração entre os diversos organismos estatais e a

SDHSU, como também entre esta e entidades da sociedade civil: criação das Áreas

Integradas de Segurança Pública (AIP’s), estruturada a partir do Centro de

Referência de Segurança Urbana, do Banco de Dados de Segurança, da Ouvidoria

Comunitária, garantia do espaço físico para o funcionamento do Fórum Regional de

Justiça e Segurança, potencializando a rede de proteção social municipal e

Programas para a Juventude (vide Telecentros); aperfeiçoamento da segurança

viária (sinais de trânsito, semáforos, etc.); qualificação permanente dos agentes de

171 Trata-se de uma afirmação possível dos diálogos estabelecidos com o Presidente do CMJS ao

longo da elaboração da pesquisa que, no entanto, carece de um estudo sistemático mais aprofundado, tendo por base a observação participante, de pelo menos, das reuniões ordinárias do Conselho - o que não foi possível na feitura deste trabalho.

172 A maioria das propostas dão conta de que o problema da segurança urbana não se restringe ao reforço da atuação policial, mesmo que essa seja uma medida necessária para facilitar o enfrentamento da violência e o controle da criminalidade e aquela não seja uma opinião corrente da maioria da população brasileira (senso comum).

124

segurança para a abordagem de crianças e adolescentes em situação de risco

social nas ruas; atuação mais pró-ativa da SDHSU na qualidade de articuladora de

todos os órgãos municipais que trabalham junto à proteção social; estímulo para que

outras secretarias tenham planejamento e projetos de atenção a crianças e

adolescentes; realização de palestras/seminários/diálogos para a aproximação dos

profissionais de segurança com o corpo docente e discente das escolas públicas;

investimento em áreas de lazer; qualificação do projeto Escola Aberta; estímulo à

participação de voluntários em projetos sociais de prevenção (cultura da paz);

implementação de atividades culturais, educacionais e sócio-econômicas para

resgate de auto-estima de jovens; aumento do número de projetos de geração de

emprego e renda; cumprimento da legislação referente à utilização de mesas na rua

para bares em zonas de grande concentração populacional; limitação do horário de

funcionamento e de venda de bebidas alcoólicas em bares e restaurantes (Lei Seca)

até as 24h; maior participação do setor empresarial na promoção e divulgação de

projetos sociais, entre outros.

As propostas suscitadas nas Mini-conferências e nas Pré-conferências

Municipais de Segurança Urbana foram encaminhadas pelos coordenadores dos

Fóruns Regionais de Justiça e Segurança para a organização da I Conferência

Municipal de Segurança Urbana de Porto Alegre, que ocorreu nos dias 19 e 20 de

maio de 2006. Essas sugestões foram sistematizadas nos três eixos temáticos que

nortearam o processo de participação popular no debate acerca da problemática da

segurança pública na cidade. Totalizaram aproximadamente 240 (duzentos e

quarenta) ações e 5 (cinco) moções.

125

O conjunto de propostas e resoluções da Conferência Municipal podem ser

resumidas nas seguintes diretrizes173:

a) Integração das esferas governamentais (Federal, Estadual e Municipal),

articulando ações que efetivem o Sistema Único de Segurança Pública na

cidade, a partir da implantação das Áreas Integradas de Segurança

Pública (AIP’s) e de seus mecanismos de apoio;

b) Compromisso dos poderes públicos constituídos (Legislativo, Executivo,

Judiciário e Ministério Público) com uma maior aproximação com as

comunidades;

c) Efetiva participação das comunidades organizadas na construção de

políticas, programas e ações públicas e não-governamentais que busquem

a superação dos problemas detectados;

d) Comprometimento da iniciativa privada como organizações econômicas e

meios de comunicação de massa na implementação de uma cultura de

paz e desenvolvimento social;

e) Garantia de investimento nas políticas de prevenção e enfrentamento da

violência e da criminalidade com prestação de contas públicas e controle

social;

f) Desenvolvimento de programas permanentes de prevenção e

enfrentamento da criminalidade articulados com a sociedade e discutidas

no âmbito do CMJS;

173 Essas diretrizes deverão favorecer a atuação do Conselho Municipal e dos Fóruns Regionais de

Justiça e Segurança, em consonância com o que dispõem o art. 12 do Decreto n.° 14.487/04 e os arts. 8°,IV e 29 do Decreto n.° 14.706/04.

126

g) Consolidação do CMJS como órgão representativo na deliberação,

consulta, fiscalização e articulação das políticas públicas de justiça e

segurança de Porto Alegre.

Resta evidente que a instituição e o funcionamento do CMJS significaram

expressivos avanços no campo do fortalecimento da gestão participativa da

segurança pública em âmbito municipal, embora esses resultados, por uma série de

razões, entre as quais a curta experiência de implantação e funcionamento do CMJS

e as dificuldades inerentes à criação de indicadores e a quantificação objetiva dos

resultados das ações desencadeadas pelo processo de municipalização da

segurança pública, há que se consensuar acerca de sua importância para um

amadurecimento da participação da cidadania e da sociedade civil organizada na

gestão da segurança e, de modo mais amplo, do controle público do Estado.

O processo preparatório e os resultados da I Conferência Municipal de

Segurança Urbana (vide Carta de Porto Alegre) atestam as potencialidades de o

Conselho Municipal de Justiça e Segurança (CMJS) de Porto Alegre afirmar-se

como uma instância pública não-estatal de efetiva participação da população na

busca por formas alternativas e preventivas de enfrentamento da violência e controle

da criminalidade desde o poder o local.

127

CONCLUSÃO

As alterações por que passou o Estado contemporâneo, mormente o

brasileiro, a partir da década de oitenta, no bojo do processo de redemocratização,

deram ensejo ao fortalecimento do poder local (governança local) e, à criação de

novos mecanismos políticos e jurídicos de participação democrática da cidadania na

gestão e no controle públicos estatal (Conselhos Municipais).

Foi nesse contexto mais amplo que se procurou analisar a recente tendência

de municipalização da segurança pública e a conseqüente incorporação de novas

possibilidades sócio-políticas de gestão e mediação do crime e da violência,

representadas aqui pela experiência do novel Conselho Municipal de Justiça e

Segurança de Porto Alegre.

Para tanto, afigurou-se imprescindível a compreensão teórico-conceitual da

segurança como um direito social fundamental, inscrito no rol dos direitos sociais

previstos no art. 6° da Constituição Federal de 1988174.

174 Registre-se, no entanto, que não se ignoram as limitações do texto constitucional relativamente à

municipalização da segurança pública (vide art. 144 da Carta Política, notadamente a abertura para a atuação dos municípios nessa temática através do §8°). Vide, ainda, a nota de rodapé número setenta e dois.

128

Ao se deslocar o foco de análise do modelo repressivo e reativo da dogmática

do Direito Penal, adstrito ao controle do sistema de justiça criminal, para o modelo

preventivo, tornou-se possível repolitizar o debate da segurança e, assim, incorporar

uma maior participação da cidadania e da sociedade civil organizada.

Acredita-se, pois, que é preciso avançar para a garantia da segurança dos

indivíduos em todos os seus direitos fundamentais, o que inclui os direitos de

prestação positiva por parte do Estado, promovendo ou garantindo as condições

materiais de gozo efetivo desses bens jurídicos (ações positivas fáticas), e extrapola

o escopo dos tradicionais direitos de defesa do cidadão frente ao sistema punitivo

estatal, ou mesmo, dos direitos de prestação positiva estatal, de ordem normativa,

previstos pela legislação penal para proteger os direitos fundamentais do cidadão

contra a atividade de terceiros.175

Esse novo arranjo hermenêutico subsidia, ademais, uma fundamentação

constitucional da atual tendência de intervenção das administrações municipais na

gestão da segurança pública e fortalece a importância da emergência de esferas

públicas não-estatais de gestão participativa da segurança por parte da coletividade.

Tendo por base esse escopo preliminar, investigou-se, por meio da realização

de uma pesquisa documental (suporte legal) e de campo (estudo de caso), o papel,

os limites e as possibilidades de o Conselho Municipal de Justiça e Segurança de

Porto Alegre constituir-se efetivamente em um ator/sujeito importante nesse

processo.

175 O conceito de garantismo positivo de Alessandro Baratta, erigido no contexto do movimento da

nova prevenção, resume a tese aqui sustentada. (BARATTA, 1999).

129

Pode-se inferir, ao final, que a instituição e funcionamento do Conselho em

questão significou expressivos avanços no campo do fortalecimento da gestão

participativa da segurança pública, na cidade de Porto Alegre, embora esses

resultados, por vários fatores, entre os quais sua curta experiência de implantação e

funcionamento, deficiências no relacionamento entre o Conselho Municipal de

Justiça e Segurança e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança

Urbana, inexistência de provisão orçamentária própria, as dificuldades inerentes à

criação de indicadores para quantificar de forma objetiva os resultados das ações

desencadeadas pelo processo de municipalização da segurança pública, não sejam

ainda plenos.

O processo preparatório e os resultados da I Conferência Municipal de

Segurança Urbana (vide a elaboração da Carta de Porto Alegre) atestam, todavia,

as potencialidades de o Conselho Municipal de Justiça e Segurança afirmar-se como

uma instância pública não-estatal de efetiva participação da população na busca por

formas alternativas e preventivas de enfrentamento da violência e de controle da

criminalidade desde o poder o local.

130

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ANEXOS