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editorial

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O primeiro número da Food Files recebeu o prêmio de Melhor Publicação da ActionAid. Atingiu mais de 30 países da África, Américas, Europa e Ásia. A re-vista foi apresentada em eventos internacionais chave, incluindo o Dia Mundial da Alimentação, em Roma, a Cimeira EU-África, em Lisboa, e a XII Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), em Accra. Ela também chegou às mãos de nossos mais importantes parceiros, bem com de Jacques Diouff (Secretário Geral da FAO), Koffi Annan (ex-Secretário Geral da ONU), e representantes de importantes órgãos financiadores, tais como a Comissão Européia e a Global Donors Platform (GDPRD, na sigla em inglês). Recebemos comentários muito positivos, em geral, e um enorme número de artigos a serem publicados pela revista. Food Files está se tornando um sucesso e – para nosso grande prazer – um desafio ainda maior.

O segundo número de Food Files traz algumas das discussões chave em torno da crise mundial causada pela alta dos preços dos alimentos, aprofun-dando o debate acerca das causas de tal fenômeno e suas soluções, por meio de três artigos: Biocombustíveis e segurança alimentar: questões para um de-bate crítico; A aliança para uma Revolução Verde na África: fazendo da África um repositório de tecnologias agrícolas falidas; e Direito à alimentação e ajuda alimentar: um casamento na prática. Temos a intenção de dar continuidade à nossa discussão acerca da crise mundial envolvendo os preços dos alimentos em nosso próximo número.

As mudanças climáticas e as formas de mitigar seus efeitos também são discutidas nos artigos Sistemas agroecológicos: contribuindo para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, e Tecnologias sociais: aprendendo com as comunidades locais.

Os efeitos negativos, efetivos e potenciais, de um ambiente internacional de crescente liberalização do comércio no cumprimento progressivo do direito à alimentação também são apresentados e analisados em Altas abruptas na importação de arroz e aves em Gana, e, no artigo de capa, Acordos de parceria econômica: destravando o desenvolvimento dos ACP ou encerrando-os na po-breza?

Experiências positivas na luta pelo direito à alimentação são apresentadas em Política, legislação e fome: avanços legislativos no combate à desnutrição na América Latina e no Caribe; Movimentos sociais na África e a luta pelo direito à alimentação; Podemos ter acesso a um pouco desse crescimento? Uma ex-periência da ActionAid na Tanzânia no combate em favor do direito à alimenta-ção; Desafios à segurança alimentar no Malawi e o engajamento da sociedade civil; e Construindo uma rede comunitária de proteção e aproveitamento dos recursos naturais.

Nosso propósito, com estes artigos, é estimular o debate crítico acerca de questões emergentes, e apresentar e compartilhar experiências de boas práticas que contribuem para o cumprimento do direito à alimentação. Esperamos que Food Files os inspire em sua prática e reflexão cotidianas! Ficaremos felizes de ter sua opinião e esperamos receber mais comentários e sugestões. Sinta-se à vontade de escrever-nos através do e-mail [email protected].

Francisco Bendrau SarmentoDiretor Internacional do tema Direito à Alimentação/ActionAid

Editorial

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Jose Luis Vivero Pol1Responsável técnico da Iniciativa América Latina y Caribe Sin Hambre Escritório Regional da FAO para América Latina e Caribe, Santiago, Chile

Política, legislação e fome

Desde 2003, a América Latina e o Caribe têm visto um notável desenvolvimento nas estruturas legais e institucionais destinadas a assegurar o direito a estar livre da fome e à alimentação adequada de todos os cidadãos dos países da região.

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Desde 2003, a América Latina e o Caribe têm visto um notável desenvolvi-mento nas estruturas legais e institucionais destinadas a assegurar o direito a estar livre da fome e à alimentação adequada de todos os cidadãos dos países da região. Ainda que não se tenha atendido à urgência demandada pela sociedade, a questão da combate à fome tem adquirido gradualmente uma presença mais forte nas agendas públicas nacionais e regionais da América Latina. Apesar da persistência de significantes desigualdades na região, a América Latina e o Caribe estão atravessando um período econômico extremamente positivo. De acordo com os dados da Comis-são Econômica para América Latina e Caribe das Nações Unidas (CEPAL), enquanto o crescimento econômico anual médio na década de 1980 foi de apenas 9%, subiu para 33%, no período de 1991-2000 e, subseqüente-mente, para 41% no período 2000-20052. O momento histórico oferecido por esta bonança na renda pública e a vontade política de assegurar o direi-to à alimentação apresentam sólidas bases para a redução da desnutrição e eliminação do flagelo da fome. Todavia, na América Latina e no Caribe, 524 milhões de pessoas, ou 10% da população, ainda carecem de acesso adequado à alimentação. Embora a região esteja avançando no sentido de cumprir a primeira Meta de Desenvolvimento do Milênio para 2015 (reduzir a fome), o compromisso assumido por todos os países da região durante a Cimeira Mundial da Alimentação (CMA), em 1996, de reduzir à metade o número de pessoas com fome ainda está de certa forma distante: se as tendências atuais de redução da subnutrição e de crescimento da popula-ção se mantiverem, até 2015, pode-se esperar que o número de pessoas desnutridas na América Latina e no Caribe seja de cerca de 41 milhões, ao passo que a meta determinada na CMA foi de 30 milhões3.

O RETORNO DOS TEMAS DA FOME E DA DESNUTRIÇÃO ÀS AGENDAS SOCIAIS DA REGIÃOVários governos latino-americanos e caribenhos reafirmaram seu apoio ao combate à fome na região nos últimos meses. A lista inclui Argentina, Bar-bados, Bolívia, Brasil, Chile, Guatemala, Paraguai e Uruguai, países cujos líderes confirmaram que o tema é uma prioridade para seus governos.

Avanços legislativos no combate à desnutrição

na América Latina e no Caribe

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LEIS CONTRA A FOME NA AMÉRICA LATINA

Argentina:Lei criando o Programa nacional de nutrição e alimentação17 de Janeiro de 2003.9

Guatemala:Sistema legislativo nacional de Segurança alimentar e Nutricional6 de Abril de 2005.10

Ecuador:Lei da Segurança alimentar e Nutricional27 de Abril de 2006.11

Brasil:Lei criando o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional15 de Septiembre de 2006.12

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Tal como a FAO tem defendido, há muitos anos, o primeiro compromisso necessário para eliminar a fome é político. Governos têm se tornado cada vez mais conscientes deste fato no últimos anos. Ao ser em-possado, em Barbados, o Primeiro Ministro Thompson enfatizou a promoção da segurança alimentar como sendo uma prioridade. O mesmo compromisso foi feito pelo Presidente da Guatemala, Álvaro Colom, em sua cerimônia de posse. Esta confirmação de que o com-bate à fome é hoje uma prioridade neste país centro- -americano sinaliza a transformação de uma política de governo em uma política de Estado.

Em Dezembro de 2007, o comunicado conjunto dos presidentes do Estados Membros do MERCO-SUL (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), emitido ao final da 34a Reunião do Conselho, à qual também compareceram os presidentes da Bolívia e do Chile, reitera o compromisso dos países de eliminar a fome e combater à pobreza, e seu apoio à iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome (ALCSH, na sigla em espa-nhol)4. O combate à fome também foi ressaltada na Declaração de Paz assinada durante a visita de Presi-dente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva a seu colega boliviano, Evo Morales.

A INICIATIVA AMÉRICA LATINA E CARIBE SEM FOME SE TORNA PARTE DA AGENDA O Brasil e a Guatemala desempenharam um impor-tante papel na promoção do combate à fome enquanto prioridade política em nível regional. Estas medidas se concretizaram por meio da iniciativa ALCSH5, um pro-jeto mais tarde apoiado por outros países e cujo es-critório técnico é gerido por um escritório regional da FAO, com apoio financeiro da Espanha. Este coorde-na os esforços para garantir que nossa região seja a primeira, dentre as regiões em desenvolvimento, a es-tar livre da fome.

Tal como o suporte explícito dos Chefes de Es-tado de alguns países no sentido de alcançar-se uma América Latina livre da fome(i.e., Brasil, Bolívia, Guate-mala, Panamá, Paraguai), a idéia de que a região pode livrar-se de uma vez por todas do flagelo que a parece ter retido, desde a idade média, também foi expressa em declarações políticas durante reuniões regionais. Ao final da declaração da 16a Cimeira de países Ibero--Americanos, realizada em Outubro de 2006, no Uru-guai,6 todos os Chefes de Estado e Governos mostra-ram seu apoio específico à iniciativa ALCSH (ponto 5 da Declaração).

Outras provas de suporte político tiveram lugar na Guatemala, durante o 5o Fórum Regional de Segurança

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altos níveis de fome, e também exporta carne e grãos de consumo geral para o mercado mundial. Atual-mente, existem quatro países com Leis de Segurança Alimentar (Argentina, Brasil, Equador e Guatemala), e nove em que projetos de leis estão em tramitação no parlamento (Haiti, México, Panamá, Honduras, Costa Rica, Nicarágua, Paraguai, Peru e Bolívia)13. Esta ini-ciativa legislativa para assegurar o direito a estar livre de fome e ter alimentação adequada não encontra paralelo em outras regiões do mundo.

Durante o ano de 2007, a iniciativa “América Latina e Caribe Sem Fome” promoveu uma variedade de ativi-dades relacionadas ao direito à alimentação, dentre as quais podemos mencionar todo o apoio dado aos países da região e representantes da FAO no sentido de orga-nizar atividades em torno do Dia Mundial da Alimenta-ção 2007, cujo tema chave foi o direito à alimentação. Neste contexto, foi autorizada a elaboração de estudos acerca dos “Avanços e desafios na implementação do direito à alimentação” em cada um dos setes países definidos como prioritários; tais relatórios foram pro-duzidos por sete nacional ONG’s nacionais, com o apoio de quatro ONG’s internacionais que trabalham em favor do direito à alimentação (ActionAid, FIUMA International, Action Against Hunger e Prosalus). Estes relatórios pode ser encontrados no website da iniciativa ALCSH: http://www.rlc.fao.org/iniciativa/infda.htm

ASPECTOS POSITIVOS DAS LEIS DE SEGURANÇA ALIMENTARAs leis de segurança alimentar e para o direito à ali-mentação refletem o interesse de Estados em alcançar gradualmente este direito, na medida em que o desen-volvimento de enquadres legais já aparece no Comen-tário geral no. 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), e nas Dire-trizes Voluntárias14. Mais recentemente, o documento final do Protocolo Opcional do PIDESC foi enviado à Assembléia Geral da ONU para aprovação final. Este protocolo permitirá que queixas relacionadas à viola-ção de quaisquer destes direitos sejam apresentadas em cortes internacionais, uma possibilidade de ex-trema importância para o direito à alimentação.

As Leis de SAN aprovadas até o momento repre-sentam um corpo de importantes avanços capazes de tornar o direito à alimentação uma realidade para os cidadãos mais desfavorecidos da região. Dentre os as-pectos ressaltados, podemos dizer que:a. Todas as leis incorporam a referência ao direito à ali-mentação na condição de princípio legal orientador da natureza da lei. Entretanto, existem divergências nas

alimentar e nutricional, organizado pelo Parlamento Centro-Americano (PARLACEN) e o Secretariado Centro-Americano Integração Social (SISCA), em que foi mais uma vez feita menção expressa à iniciativa ALCSH. Por fim, na declaração final do 3o Fórum Parlamentar Ibe-ro-Americano,8 reunido em Valparaíso, Chile, nos dias 11 e 12 de Novembro de 2007, foi feita uma referência explicita, no ponto 3, a “incitar os parlamentos Ibero--Americanos a tornarem possível a aprovação de leis específicas sobre segurança alimentar, com o objetivo de darem assistência aos governos nacionais no com-bate à fome e à extrema pobreza.”

BOAS PERSPECTIVAS PARA AS LEIS SOBRE SEGURANÇA ALIMENTAR O objetivo de uma política nacional de alimentação, no âmbito dos direitos humanos é garantir o direito de to-dos os cidadãos do país à alimentação de quantidade e qualidade suficientes. Uma das formas de exprimir este direito em alguns países é através da promulga-ção de Leis referentes à Segurança Alimentar e Nu-tricional, que estabeleçam o marco regulatório para o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), e determine um orçamento mínimo para a ope-racionalização deste sistema.

A Argentina foi o primeiro país na região a introduzir uma lei de segurança alimentar, algo de certa forma paradoxal dado que não é um dos países com os mais

AMÉRICA LATINA E CARIBE, NA LIDERANÇA DO COMBATE EM FAVOR DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO Entre os dias 21 e 24 de Janeiro de 2008, um Workshop Regional foi realizado em Manágua acerca da Legislação sobre os Direitos à Alimentação, que serviu para enfatizar a robusta saúde das campanhas para garantir o direito à alimentação em muitos dos países da região7. A riqueza das discussões forneceu valiosas contribuições para aprimoramento do Guia e permitiu que se fizesse uma comparação e uma discussão acerca de uma ampla gama de processos legais com respeito a este direito na região. O workshop demonstrou amplamente que a América Latina é atualmente a região mais avançada em termos de leis, instituições e consciência pública acerca do direito à alimentação. O fato de que o público latino-americano esteja tão amplamente consciente dos problemas causados pela fome, e demande a implementação de soluções e o respeito dos direitos humanos tem conseqüências que vão além de sua área – oferecendo valiosas lições para outras regiões tal como Ásia e África.

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definições adotadas, na medida em que é raramente feito uso de definições de segurança alimentar, dire-ito à alimentação e soberania alimentar adotadas em tratados internacionais e nos documentos assinados pelos próprios países.b. Todas as leis criam um sistema nacional de se-gurança alimentar15 destinado a coordenar os vários ministérios com o propósito de eliminar a fome e a desnutrição. É criado pelo sistema um Conselho Na-cional de Segurança Alimentar como órgão norteador, ligado ao mais alto nível hierárquico (Presidência ou Vice-Presidência) e formado por ministros e repre-sentantes da sociedade civil. No caso do Brasil, este Conselho tem uma natureza consultiva, ao passo que, na Guatemala e no Equador, o órgão pode tomar de-cisões finais. É recomendado que a presidência deste órgão seja assumida pelo Presidente ou Vice-Presi-dente, para assegurar que esteja ligado ao mais alto nível hierárquico, e que seus membros sejam Ministros ou representantes dos Ministros.c. Todas as leis priorizam grupos vulneráveis, em unís-sono com uma das dimensões do direito (estar livre de fome), embora apenas Argentina e Brasil mencionem a segurança destes grupos, um dos aspectos universais do direito relativo à alimentação adequada.d. A elaboração de todas as quatro leis compreender-am um processo participativo, e a participação da so-ciedade civil organizada em suas estruturas decisórias é enfatizada, especialmente no Brasil, onde o CONSEA (o órgão consultivo) é composto principalmente da sociedade civil. Na Guatemala e no Equador, a socie-dade civil e o setor privado têm ambos representa-ção no Conselho Nacional de Segurança Alimentar, o órgão norteador e decisório em assuntos relacionados ao tema. e. Algumas leis (Guatemala e Equador) mencionam de forma expressa os mecanismos de monitoramento e análise da segurança alimentar; entretanto, nenhum deles incorpora atividades preventivas ou de repara-ção imediata em casos de fome.

DESAFIOS QUE RESTAM A SER INCORPORADOS ÀS LEIS PROPOSTAS EM DEBATETal como mencionado anteriormente, novos projetos de lei sobre segurança alimentar e o direito à alimenta-ção estão sendo agora debatidas, revistas e em trâmite em vários parlamentos da região para aprovação final. Nestas propostas, recomendamos levar em conta cer-tos aspectos que parecem expor fragilidades em qua-tro das leis já aprovadas e que podem ser aprimorados em projetos de leis futuras.

a. As leis não envolvem meramente estabelecer pro-cedimentos e mecanismos para queixas de violações do direito à alimentação. Órgãos judiciais, para-judici-ais e administrativos têm que ser designados, aos quais queixas e apelos relacionados à violação de direitos da alimentação possam ser apresentados. Também é necessário determinar penalidades no código penal.b. As leis deveriam incorporar uma alocação orça-mentária de acordo com a magnitude do problema, fazendo distinção entre o orçamento necessário para a operacionalização do sistema nacional de segurança alimentar, e o orçamento para a implementação dos pro-gramas concretos de combate à desnutrição. Ademais, a instituição de gastos progressivos – evitando-se gas-tos não regressivos – não está garantida em nenhuma das leis, apesar das diretrizes do PIDESC e da obriga-ção de implementação progressiva, ou constante. A lei guatemalteca determina um orçamento mínimo, ao passo que, no Equador, a lei estabelece um fundo para combate à fome (que nunca foi levado a efeito), embora nenhuma das duas faça menção a gastos sociais pro-gressivos para garantir o direito à alimentação.c. Litigação estratégica e desenvolvimento de juris-prudência, dado que pouquíssimos casos envolvendo a violação deste direito foram levados a uma corte16. Com efeito, existem apenas seis casos documenta-dos de uso do direito à alimentação como argumento jurídico que tenha sido tentado com sucesso. Alguns destes casos apenas usam o direito à alimentação de forma oblíqua, mais como um tema central do que como argumento legal. Muito mais litigação estratégica é necessária por parte dos advogados, associações e ONG’s de defesa dos direitos humanos para que seja criada uma jurisprudência. Recentemente, outro caso interessante teve lugar na Argentina (Setembro de 2007)17, em que a Corte Suprema determinou como me-dida precaucionária que o Estado nacional e o governo da Província do Chaco deveriam fornecer alimentos e água potável para as comunidades indígenas Toba da província, bem como meios adequados de transporte e comunicação para cada um dos postos de saúde, na medida em que são os principais responsáveis por efetivamente assegurar os direitos dos grupos indíge-nas. Esta resolução foi provocada por uma ação legal impetrada pela instituição pública de Defensoria do Povo da Nação no sentido de modificar as deploráveis condições de vida destes grupos indígenas, que regu-larmente são mencionados em notícias em virtude da morte de suas crianças por desnutrição severa.

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1 Este documento reflete unicamente as opiniões e idéias do autor, e não representam de nenhuma maneira uma posição representativa da FAO em relação aos tópicos contidos no texto. Por este trabalho, o autor agradece a contribuição de Armando Aravena e de Andrés Pascoe.2 FAO/CEPAL/PMA (2007). Hambre y cohesión social: Cómo revertir la relación entre inequidad y desnutrición en América Latina y el Caribe. FAO, Santiago de Chile. www.rlc.fao.org/iniciativa/librocs.htm3 FAO (2006). El estado de la inseguridad alimentaria en el mundo. Roma.4 www.mercosur.coop/recm/IMG/pdf/comunicado_conjunto_mercosur.pdf5 A Iniciativa ALCSH foi lançada pelos Presidente Lula, do Brasil, e Berger, da Guatemala em setembro de 2005, na Guatemala, e busca sensibilizar os tomadores de decisão, informar administradores governamentais e divulgar informações para o público em geral, com relação à fome na região, visando colocar a questão nas agendas políticas dos países e da região como um todo. A iniciativa tem recebido apoio político de todos os presidentes da região, tanto individualmente quanto em declarações regionais. www.rlc.fao.org/iniciativa6 www.oei.es/xvicumbredec.htm 7 O evento recebeu o apoio da Unidade de Direito à Alimentação da FAO Roma (www.fao.org/righttofood) e da iniciativa “América Latina e Caribe Sem Fome” (www.rlc.fao.org/iniciativa), como parte de seus esforço para auxiliar na implementação do direito à alimentação em todos os países da região. 8 www.foro-chile.cl/prontus_foroiberoa/site/artic/20070913/asocfile/iii_foro__declaracion_de_valparaiso_2007.pdf 9 ARGENTINA, Lei do programa nacional de nutrição e alimentação, Janeiro de 2003. www.desarrollosocial.gov.ar/Planes/PA/normativa/ley25724.asp10 GUATEMALA, Lei do sistema nacional de segurança alimentar e nutricional, Abril de 2005. www.congreso.gob.gt/archivos/decretos/2005/gtdcx32-2005.pdf11 ECUADOR, Lei do segurança alimentar e nutricional, Abril de 2006. http://apps.congreso.gov.ec/sil/documentos/autenticos/22-631.pdf12 BRASIL, Lei n. 11346, criando o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Setembro de 2006. www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11346.htm13 COSTA RICA, Lei marco de segurança e soberania alimentar e nutricional (proposta). www.fao.o.cr/docs/propuesta_ley_marco_sam.pdf NICARAGUA, Lei de segurança e soberania alimentar e nutricional (proposta). http://legislacion.asamblea.gob.ni/sileg/iniciativas.nsf/01c00d5076037b5b062572d00072bee8/caf29f2bb00d13dd06256886005796dc?opendocument&tablerow=3.1#3.MÉXICO, Lei pela implementação da soberania e segurança agroalimentar e nutricional (proposta).http://desarrollo.diputados.gob.mx/camara/content/view/full/7575PERÚ, Lei pelo direito à uma alimentação adequada (proposta). http://www2.congreso.gob.pe/sicr/tradocestproc/tradoc_condoc_2006.nsf/porley/01390/$file/01390.pdf14 O desenvolvimento de Leis de NSA faz parte das Diretrizes Voluntárias, que foram ratificadas por 185 países, em 2004. Na América Latina e no Caribe, existem seis países que não ratificaram a ICESCR (Antígua e Barbados, Belize, Bahamas, Haiti, Saint Kitts e Nevis, e Santa Lúcia), embora todos tenham ratificado a Declaração Universal de Direitos Humanos e aprovado as Diretrizes Voluntárias como membros da FAO. Seu compromisso é mais moral do que contratual.15 A lei argentina se refere mais à criação do programa nacional segurança alimentar, e menos à coordenação do sistema nacional de instituições, responsabilidades, objetivos e fundos. 16 No website da Internacional Network for Economic, Social and Cultural Rights existem apenas seis casos de jurisprudência relacionados ao direito à alimentação: dois no Paraguai, dois na Índia, um na Nigéria e um na Suíça. Como argumento, os casos paraguaios usam em vez disso o direito à terra e uma vida digna.www.escr-net.org/caselaw/caselaw_results.htm?attribLang_id=13441 17 Como de litigação estratégica, podemos mencionar o caso do trabalho do Centro Argentino de Estudos Legais e Sociais (www.cels.org.ar), que gentilmente nos cedeu a recente sentença da Suprema Corte daquele país.

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EM CONCLUSÃOEstá claramente evidente para todos que o modelo neoliberal de mercado está enfrentando uma a crise em nível global, modelo esse que defende sacrificar o papel regulatório do Estado em favor do livre mercado mundial com um mínimo de regras que beneficiem as grandes multinacionais e os países do primeiro mun-do. Este sistema está mostrando sinais inequívocos de enfraquecimento em todo o mundo. Entretanto, na América Latina e no Caribe, a crise terá menos impacto do que nas outras regiões, na medida em que a região produz quantidades excedentes de alimentos. Não obstante, esperamos todos que estas indicações da crise de alimentos tenha mostrado o perfil político do direito à alimentação, no sentido de que deixe de ser um direito econômico e social de menor importância, pouco desenvolvido e pouco conhecido, e se torne o pilar das políticas de alimentação atualmente em de-senvolvimento na região.

Observamos que a região está progredindo com avanços que atingem todos os seus cidadãos e as-seguram aos que têm fome cumprimento do direito à alimentação. Este progresso pode ser identificado na maioria dos países em que é promovido por governos, sociedade civil e órgãos legislativos.

Para este fim, as leis de segurança alimentar são um passo importante na consolidação do combate à fome enquanto política de estado, mas não são o fim do processo, sendo meramente mais um passo à frente. O trabalho conjunto (cooperação sul-sul) é um aspecto chave desta meta. E na medida em que existem mais de 12 países envolvidos nestes proces-sos, acreditamos que seja extremamente importante cultivar uma troca de experiências entre eles com rela-ção à promoção do direito à alimentação.

Por fim, gostaríamos de ressaltar o papel desem-penhado pela sociedade civil latino-americana neste processo de consolidação do direito a estar livre de fome. Os que têm fome não conhecem este direito e, assim, nunca o reclamarão. Eles precisam de apoio para descobrir este direito e torná-lo em queixa formal de denúncia de violação de direitos.

É aqui que as organizações da sociedade civil de muitos países estão desempenhando um notável pa-pel ao ampliar a disseminação das bases deste direito, produzindo relatórios nacionais acerca dos avanços nos países da região, e levando os primeiros casos de denúncia contra a fome às cortes. O direito a estar livre da fome requer mais jurisprudência e maior reconheci-mento. Neste sentido, a sociedade civil, ONG’s, asso-ciações de produtores, universidades são fundamentais para levar adiante a idéia de que “comer é um direito.”

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7Mariano Iossa* e Wallie Roux***Consultor de alimentos e política comercial, ActionAid

**Analista independente de política comercial, baseado na Namíbia

Acordosde ParceriaEconômica

destravando o desenvolvimento ou encerrando os países na pobreza? M

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Os mais de 30 anos de acesso preferencial ao Mercado europeu fracassaram em dar os frutos esperados, e os Países da África, do Caribe e do Pacífico (ACP) ainda estão lutando para integrarem-se à economia mundial

INTRODUÇÃOOs mais de 30 anos de acesso preferencial ao Mercado europeu falharam em dar os frutos esperados, e os Países da África, do Caribe e do Pacífico (ACP) ainda estão lutando para integrarem-se à economia mundial. A par-ticipação do comércio entre os países ACP e a União Européia (UE) caiu de 67%, em 1976, para 29%, em 2003. A economia de vários destes países, particularmente na África, ainda é altamente dependente do comércio de algumas commodities agrícolas – tais como café, cacau ou tabaco –, e da cooperação internacional1.

No Burundi, São Tomé e Príncipe, Etiópia, Malawi e Uganda, a partici-pação nas exportações de uma única commodity é superior a 50 % do total de exportações de mercadorias. Em 2005, a cooperação internacional representava 468% do PIB no Burundi, 368% no Congo e 541% na Libéria, para citar apenas alguns países.

Tais fatos, ao lado da questão de compatibilidade com as regras do Organização Mundial do Comércio (OMC) (ver box sobre a compatibilidade entre os EPA’s e a OMC), têm sido os dois principais motivos por trás da negociação dos Acordos de Parceria Econômica (EPA’s, na sigla em inglês). Enquanto a necessidade de uma profunda mudança nas relações comer-ciais e econômicas entre a UE e os países ACP é amplamente comparti-lhada entre todas as partes, a direção de tal mudança tem sido objeto de intensas disputas.

Resumidamente, a Comissão Européia (CE) mantém seu foco no fato de que o sistema de preferências não contribuiu para promover uma diver-sificação econômica – daí, o motivo para suspendê-lo. Os países ACP en-fatizam o fato de que o sistema de preferências foi concebido de forma que relegaram os ACP’s ao papel de exportadores de commodities e matérias

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primas tropicais – daí a necessidade de mantê-lo mas com um diferente formato.

As negociações tiveram início em 2002, tendo por base os princípios estabelecidos pelo Acordo de Cot-onou (ver box sobre o Acordo de Cotonou), pelo qual as partes se comprometeram a substituir os antigos acordos comerciais com base em preferências unilat-erais, por novos acordos compatíveis com as regras da OMC, mas menos favoráveis do que os existentes.

O principal objetivo destes novos acordos era favorecer o desenvolvimento sustentável dos países ACP e sua gradual integração à economia mundial através da integração regional. As negociações esta-vam planejadas para acabar em fins de 2007, quando expiraria a cláusula isenção da OMC (“waiver”). Fechar o ciclo de todos estes compromissos mostraria-se um trabalho desafiador. Após uma fase inicial reunindo to-dos os ACP’s, foram iniciadas negociações entre a CE e seis regiões negociadoras.

A proposta comum feita pela UE foi de um acordo de livre comércio recíproco combinado a um programa de ajuste e uma pacote de cooperação comercial. Tais acordos de livre comércio precisam, segundo a CE, in-cluir uma ampla variedade de setores – liberalização de bens e serviços, bem como novas regras sobre investimento, concorrência e licitações públicas de forma a criar o necessário ambiente de negócios para

atrair os investimentos necessários − e evitar a fuga de capitais −, estimular políticas regionais de integração e, em última instância, favorecer o comércio intra-re-gional. Isso resultaria na diversificação de economias e promoveria um ciclo econômico virtuoso. A retórica da CE concernente a este ambicioso projeto pode ser bastante atraente. Contudo, olhada mais de perto, a proposta da CE tem poucas chances de mostrar re-sultados positivos. Tais proposições de livre comércio colocariam em concorrência direta parceiros em con-dições muito desiguais. A abertura das economias dos ACP’s significaria ameaçar a base produtiva agrícola e a indústria nascente nos ACP’s, com impacto direto no direito à alimentação das populações locais, ao mes-mo tempo em que ofereceria às indústrias européias acesso sem precedentes aos recursos naturais dos ACP’s, erodindo ainda mais os espaço político dos governos dos ACP’s.

Acima de tudo, as reais implicações destes acor-dos têm sido largamente ignoradas. O comércio não se dá em separado do âmbito dos direitos humanos. O direito à alimentação é um direito humano e uma obrigação legal bem estabelecida pela legislação in-ternacional, como a Declaração Universal dos Direi-tos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Tal legislação busca assegurar que todas as pessoas possam alimentar-se com dignidade. Ao assinarem as APE’s, os governos dos ACP’s terão que fazer face ao desafio de fracas-sarem no cumprimento de suas obrigações relativas ao direito à alimentação.

A seguir, alguns dos desafios colocados pelas APE’s de livre comércio propostos pela CE.Liberalização de comércio de bens: concorrência desigual A abertura dos mercados dos países ACP

ACORDO DE COTONOUO Acordo de Cotonou é um tratado entre a União Européia (UE) e o grupo de países da África, do Caribe e do Pacífico (ACP). Foi assinado em junho de 2000 e entrou em vigor em 2002, em substituição às Convenções de Lomé que foram a base de cooperação ACP-EU para o desenvolvimento, desde 1975. O Acordo de Cotonou teria uma validade de vinte anos, prevendo uma cláusula de revisão para cláusula adaptá-lo a cada cinco anos.O Acordo de Cotonou visava reduzir, e eventualmente erradicar, a pobreza, ao mesmo tempo em que contribuiria para o desenvolvimento sustentável e a gradual integração dos países ACP na economia mundial. Após a primeira revisão, em 2005, também passou a incluir o combate contra a impunidade e a promoção de justiça criminal através da Corte Criminal Internacional. O acordo baseia-se em cindo pilares interdependentes: uma dimensão política valorizada, maior participação, uma abordagem mais estratégica da cooperação focando em redução da pobreza, novas parcerias econômicas e comerciais, e maior cooperação financeira.

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irá colocar agricultores familiares e pequenas indús-trias nacionais em concorrência direta com produtos agropecuários subsidiados bem como bens e serviços industriais altamente competitivos provenientes da Eu-ropa. Produtos agrícolas europeus se beneficiam de subsídios direto ou indiretos – somando em torno de 90 bilhões de Euros por ano – o que os torna particu-larmente baratos, e favorece sua superprodução e o dumping dos mercados do 3o mundo.

Os casos de dumping de frango, na Gâmbia, to-mates, em Gana, e carne, na África Ocidental (ver o box sobre liberalização do comércio e dumping de ali-mentos na África Ocidental), nos revela que o dumping de produtos agrícolas baratos tem como resultado a perda de posição dos produtores locais e o fechamen-to de empresas locais, forçando, em alguns casos, os agricultores a abandonarem sua terra e cultivos. As APE’s irão exacerbar a concorrência desigual colocada pelos produtos europeus e os governos nacionais não serão mais capazes de renunciar a medidas tarifárias para proteger produtores locais.

As listas de “produto sensíveis” para sua proteção em transações comerciais recíprocas não são neces-sariamente adequadas, na medida em que suas pos-sibilidades são limitadas e não permitem que futuros produtos ‘sensíveis” sejam acrescentados, limitando efetivamente uma diversificação futura.

Para além das exigências de compatibilidade da OMC As exigências de liberalização da UE vão bem além das exigências de compatibilidade da OMC de incluir serviços, e regras sobre investimentos, concor-rência e licitações públicas. Segundo o Comissário Eu-ropeu para o comércio, Peter Mandelson, regras claras e transparentes representam o “pão com manteiga” de uma economia saudável capaz de atrair investimento e melhorar os serviços através da concorrência entre diferentes operadores.

Seus detratores argumentam que a CE se orienta, de fato, pelos interesses de poderosos lobbies cor-porativos europeus, em busca de novos mercados em setores competitivos, ao mesmo tempo em que mantêm o acesso preferencial aos ACP’s frente a nov-os atores globais tais como a China. Estas exigências também acarretam riscos aos direitos humanos bási-cos. A experiência de privatização da água na África do Sul mostra que a lógica do lucro pode implicar na redução do acesso à água e, potencialmente, outros serviços básicos em muitas comunidades pobres (ver box sobre privatização dos serviços de água na África do Sul).

Os ACP’s deveriam manter o direito a proteger gru-pos de população e setores vulneráveis, e salvaguard-arem espaço político para modular políticas de longo prazo, conforme suas prioridades econômicas e políti-cas evoluírem.

Antes de expor a indústria local à concorrência inter-nacional, por vezes é necessário poder desenvolvê-la em um ambiente protegido e com suporte. Em outros casos, se o setor é vulnerável e/ou estratégico, o país tem que ser capaz de manter sua proteção a longo prazo, tal como faz a Europa com a agropecuária e a indústria de cinema.

Integração regional Um dos objetivos acordados das APE’s é fortalecer e promover os processos existentes de integração regional dos ACP’s, por meio do estí-mulo à formulação de políticas econômicas/comer-ciais regionais, construindo melhores infra-estruturas e diminuindo a burocracia.

Contudo, a realidade das negociações no âmbito das APE’s está em contradição com tais objetivos. Uma intra-integração regional não é necessariamente compatível com a integração destas regiões com a Europa. A integração com a Europa irá, de fato, levar os países ACP a perderem mercados regionais para a Europa. A Comissão Econômica para África avalia que Gana perderia US$23 milhões de comércio intra-regional para Europa.

Além disso, as seis configurações de negociação dos ACP coincidem apenas em parte com as Comu-nidades Econômicas Regionais (CER’s) existentes, cri-ando, em alguns casos, novos grupos regionais que não correspondem aos existentes.

Exacerbando os problemas que já estão sendo pro-vocados por tais inconsistências, ao final de 2007, a CE forçou países individuais e grupamentos diferentes das configurações iniciais de negociação a entrarem em acordos bilaterais interinos. Tais países, julgando que não estavam em condições de assinar uma APE interina (APEI), foram ameaçados de interrupção das preferências segundo o Acordo de Cotonou, e de re-versão ao ainda menos generoso Sistema de Prefer-ências Generalizado da UE, uma eventualidade com grandes chances de engendrar a cessação das re-lações comerciais.

Outra “medida punitiva” usada pela CE tem sido a de impedir os países que tenham assinado um APEI de beneficiarem-se de novos acordos comerciais de produtos processados, quando as matérias para tais produtos tenham origem em países ACP que tenham deixado de assinar o APEI (regra de origem). Isso teve

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10LIBERALIZAÇÃO DO COMÉRCIO E DUMPING DE ALIMENTOS NA ÁFRICA Dumping de carne na África Ocidental e na África do Sul Na década de 1980, as exportações de carne da UE para os países da costa oeste africana aumentaram sete vezes, chegando a 54.000 tons em 1991. O apoio dado pela UE à exportação desta produção, em grande parte carne de baixa qualidade, foi de 2 Euros por quilo, equivalente a quatro vezes o valor reportado da carne propriamente dita, ao mesmo tempo em que a UE fornecia 100 milhões de Euros a empresas européias para exportação da carne para a África Ocidental, cujo valor era de 27 milhões de Euros. A carne foi vendida a dois terços do preço da carne fresca local. Durante décadas, produtores de produtos pecuários dos países da região do Sahel forneceram gado vivo para o consumo de carne na costa oeste africana. Este padrão foi mudado com a introdução da carne da UE, e o comércio regional de gado caiu 30% no começo da década. Ao mesmo tempo, a carne barata da UE também fez incursões nos mercados sul-africanos. Em 1993, o governo sul-africano substituiu uma restrição quantitativa às importações de carne por uma tarifa. Os exportadores de carne da UE beneficiavam-se de reembolsos dos custos com a exportação, para tornar a carne da UE mais barata e aumentar o volume exportado para a África do Sul. Entre 1993 e 1996, a oferta de carne congelada de baixa qualidade

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aumentou de 6.600 toneladas para aproximadamente 46.000 toneladas. Com 70% dos suprimentos sendo destinados ao setor de carne enlatada, a carne dos exportadores da UE se tornou predominante no mercado, com um impacto negativo nos fornecedores da Namíbia, principalmente compostos pelos segmentos mais pobres da população, tradicionalmente envolvidos com a criação de gado.O dumping do tomate em Gana O processamento de tomates, em Gana, teve início na década de 1960, quando três plantas foram instaladas em pontos estratégicos do país. Mas, após a liberalização do comércio, no princípio da década de 1980, as importações de molho de tomate subsidiado e barato da UE subiu seis vezes, entre 1993 e 2003. O Gana importava 27.000 toneladas de molho por 25 milhões de Euros em 2003. As reformas comerciais teriam sido implementadas com um programa de ajuste assessorado por instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.O resultado direto da liberalização foi que duas fábricas processamento de tomate foram obrigadas a fechar, ao passo que a terceira estaria trabalhando com apenas 10% de sua capacidade.In: MARk CURTIS, Trade Invaders, ActionAid 2005; e MICHAEL HALDERMAN e MICHAEL NELSON, EU CAP, the Doha Round and developing countries, 2004.

um impacto muito negativo nas dinâmicas de nego-ciação e políticas entre estas regiões.

O CUSTO DE AJUSTE ÀS APES E A PERDA DE RECEITAS ADUANEIRAS A maior parte dos governos dos ACP’s dependem intensamente das receitas aduaneiras para financia-rem políticas nacionais. O desmonte das tarifas aduaneiras significa basicamente perda de receitas governamentais.

Avalia-se que a Zâmbia poderá perder US$158 milhões por ano em receitas governamentais, o equi-valente a seus gastos anuais na rubrica HIV/AIDS. O governo do Burundi está prestes a perder cerca de 76 milhões de Euros em receitas – um dólar a menos por pessoa, que poderia potencialmente ser gasto em edu-cação ou serviços de saúde2.

Enquanto a UE pede que os ACP’s desmontem suas tarifas em um período de tempo relativamente curto, não há um plano de ajustes claro para criação de fontes alternativas de receitas governamentais substi-tuindo pouco a pouco o antigo sistema.

Mais ainda, ao escopo deste projeto de liberaliza-ção do comércio não corresponde um programa claro de ajustes e igualmente ambicioso financiamento de ajuste. Os ajustes às APE’s acarretariam uma ampla transformação estrutural das economias dos ACP’s, com um custo total que tem sido estimado pelo Secre-tariado da Commonwealth em aproximadamente 9 bil-hões de Euros. Esta cifra contrasta com os parcimonio-sos 2 bilhões de Euros de cooperação para o comércio alocados pela UE (50% dos quais irão para os países ACP, sendo que, deste montante, apenas 700 milhões envolvem novos compromissos). E, talvez ainda mais importante seja o fato de que as etapas de liberalização não cumpridas sob a condição de terem sido alcança-dos marcos chave de ajuste.

ESTADO DO NEGOCIAÇÕESAté o presente momento, menos da metade dos ACP’s assinaram um APEI. Essencialmente, apenas os países que corriam o risco de cessação do comércio, caso não assinassem, o fizeram. Nenhum dos acordos foi notificado à OMC e ainda procede intensamente o de-

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11COMPATIBILIDADE ENTRE AS APE’S E A OMC Um dos princípios chave da Organização Mundial do Comércio (OMC) é o tratamento de Nação Mais Favorecida (NMF), segundo o qual os países não devem criar discriminações entre seus parceiros comerciais. Isso significa que um país não pode conceder condições especiais de acesso de mercado a um membro da OMC sem concedê-lo a todos os demais.

A questão do tratamento preferencial foi um princípio chave por detrás da política da UE nas sucessivas Convenções de Lomé. As preferências comerciais, segundo o Acordo de Cotonou, dava aos países ACP acesso ao mercado da UE com tarifa zero ou tarifas reduzidas, sem exigir reciprocidade. Tais preferências contrariavam o princípio da NMF, dependendo portanto da concessão de uma isenção a ser concedida pelos membros da OMC.

Duas grandes exceções ao princípio da NMF: Acordos de Livre Comércio (ALC) e a Cláusula de Habilitação (Enabling Clause). O Artigo 24 da OMC regulamenta a possibilidade de dois países ou agrupamentos de países concederem acesso especial de mercado desde que seja recíproco, abranja ‘substancialmente todas as transações” e tenha lugar durante um razoável período de tempo. Tais ALC’s são limitadas ao comércio de bens e definem condições especiais de mercado, que não precisam ser concedidas a outros membros da OMC. A cláusula de Habilitação, introduzida em 1979, permite que preferências tarifárias não-recíprocas sejam concedidas pelos países desenvolvidos para favorecer países em desenvolvimento (mas não permite tal favorecimento entre grupos de países em desenvolvimento).

Com as APE’s, a UE busca fechar acordos comerciais que sejam compatíveis com a OMC, por meio da formação de áreas recíprocas de livre comércio.

bate sobre a natureza destes acordos com difíceis im-plicações para os países que ainda têm que assiná-los.

A CE considera os acordos interinos como sendo a pedra fundamental das APE’s plenas, ao mesmo tem-po em que os ACP’s querem manter as portas abertas para renegociações. As queixas apresentadas pelos Chefes de Estado africanos, na Cimeira de Lisboa, acerca da pressão excessiva por parte da CE, levou o Presidente da mesma, Manuel Barroso, a assegurar aos governos africanos que as questões não resolvi-das nos APEI’s seriam revistas ao longo de 2008. A sensação de que os acordos interinos foram assinados

precipitadamente e sob muita pressão é amplamente compartilhada: Louis Straker, um congressista de São Vicente e Granadinas, no Caribe, disse recentemente na Assembléia Parlamentar Conjunta UE-ACP’s, na Eslovênia: ‘se não tivéssemos assinado os APE’s, es-taríamos sujeitos a tarifas muito mais altas. Não tive-mos escolha”. A promessa de rever os APEI’s tem sido rapidamente esvaziada pelo Comissário Europeu para o Comércio, Peter Mandelson. “Não acredito que Barroso tenha se comprometido a renegociar,” disse ele em Janeiro. Na última reunião UE-SADC3, em Bot-suana, um representante sênior da CE também disse: “Não vamos reabrir o que já foi negociado”.

As mais recentes informações recebidas acerca das reuniões com representantes da UE indicam que as questões contenciosas nos APEI’s poderiam ser revistas, mas apenas dentro do âmbito de um APE completo. Além disso, a CE estaria mais relutante a que países que não tenham ainda assinado os acordos fossem incorporados às transações interinas.

Entretanto, diversos países que ainda não assi-naram os acordos têm grandes reservas em relação ao conteúdo destes acordos. Na recente reunião UE-SADC, em Botsuana, a África do Sul disse que o texto acordado pelos países vizinhos contém “cláusulas que não são de nosso interesse,” referindo-se à cláusula de Nação Mais Favorecida (NMF) que os obriga a con-ceder à UE qualquer tratamento especial concedido em futuras transações comerciais com outros blocos.

CONCLUSÕES Nos últimos cinco anos, a comissão Européia tem encaminhado as negociações a um passo acelerado, mais aceleradamente do que os países ACP’s poderiam fazer, e tem ignorado o fato de que estas negociações divergem de espírito inicial do Acordo de Cotonou, desprezando os alertas de instituições internacionais tais como a Comissão Econômica das Nações Unidas para África e o Banco Mundial, e desconsiderando os pedidos de seus “parceiros” ACP’s.

Desta forma, a CE tem gradualmente desemanci-pado vastos grupos: está claro de que as negociações dos APE’s têm sido um “desastre”, em termos de re-lações públicas, e um “enorme fracasso de comuni-cação” – nas palavras de um representante sênior da CE – com implicações de longo prazo para a relação futura UE-ACP’s.

Mas será verdade que não há alternativas e que a acordo de livre comércio é a única opção de com-patibilidade com a OMC? E será correto que metas de desenvolvimento, respeito aos direitos humanos e

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A PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ÁGUA NA ÁFRICA DO SULOs projetos de privatização de água que foram desenvolvidos em três guetos negros da África do Sul, em meados dos anos 90, envolvendo as multinacionais Biwater e Suez, comprovaram ser desastrosas para as comunidades pobres e sem direito a acesso de fornecimento de água.

Depois que a Biwater instalou novos hidrômetros, em 2001, em dois guetos negros de Mpumalanga, as contas domiciliares de água aumentaram dramaticamente posteriormente à cobrança de uma taxa básica prévia de 7 Rand (ou 06,00 Euro), para 300 Rand por mês (ou 263,00 Euros) – um aumento de 4.185%. Muitos dos residentes pobres se viram rapidamente inadimplentes e seu fornecimento foi cortado.

1 Ver http://info.worldbank.org/etools/docs/library/57495/sgreport.pdf e http://siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/table6_11.pdf. foodsecurity/Files/NumberUndernourishment_en.xls2 The real costs and benefits of EPAs, Christian Aid, Traidcraft and Tearfund, April 20073 SADC é a sigla em inglês para Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. N.T.

boa governança venham em um distante segundo lu-gar para aplacar as exigências do paradigma de livre comércio?

A sociedade civil internacional denuncia a ortodoxia do livre comércio, lembra aos representantes europeus da primazia dos direitos humanos e mostra possíveis alternativas que demandam menos dos ACP’s e que podem permitir-lhes focar em sua integração política e econômica intra-regional. Mas a CE não parece apre-ciar a “intrusão” da sociedade civil e o Comissionário falou de uma campanha difamatória conduzida pela ONG’s internacionais.

Como resultado da privatização de serviços locais de água em Soweto, em 2001, por uma subsidiária da empresa francesa de água (Suez), hidrômetros pré-pagos – custando até 1.000 Rand (ou 877,00 Euros) – foram instalados e foram cobradas tarifas de até 272 Rand (ou 238,60 Euros) por 50 quilolitros extra de água por mês. As pessoas tiveram que usar menos água porque não podiam pagar tais contas.

À medida que os preços subiam, muitas pessoas pobres foram forçadas a recorrerem ao auto-aprovisionamento em fontes não-tratadas, tais como poços e rios, expondo-se a doenças transmitidas pela água. De maneira geral, cerca de 500.000 pessoas tiveram seus fornecimentos de água cortados por inadimplência, e outras mais sofrem com condições indignas e ameaças diárias à sua saúde.

In: ALEX WIJERATNA, Down the plughole, Outubro 2005, ActionAid.

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No fim das contas, trata-se apenas de uma questão de vontade política: o que está em jogo vai além das relações comerciais, abrangendo os vínculos políticos e históricos mais gerais entre a Europa e a África.

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CONFIGURAÇÕES INICIAIS DE NEGOCIAÇÃO DOS ACP’S E GRUPOS QUE ASSINARAM EPA’S ATÉ O FIM DE 2007

Configurações de negociação em 2002

Estados da Comunidade Econômica da África Ocidental (ECOWAS, na sigla inglesa) + Mauritânia: Mauritânia, Senegal, Gâmbia, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Gana, Togo, Benin, Nigéria, Burkina Faso, Mali, Niger

África do Leste e Austral (ESA, na sigla inglesa): Sudão, Eritréia, Etiópia, Djibouti, Quênia, Uganda, Ruanda, Burundi, Zâmbia, Zimbábue, Malawi, Seichelles, Comoros, Madagáscar, Ilha Maurício

Comunidade Econômica e Monetária da África Central (CEMAC, na sigla portuguesa) + São Tomé. Chade, Camarões, República Centro-Africana,DRC, República do Congo, Gabão, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe

Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) Angola, Namíbia, Botsuana, Moçambique, Tanzânia, Lesoto, Suazilândia. A África do Sul foi incorporada às negociações em Fev. de 2007

Região do Pacífico: Estado Federado da Micronésia, Ilha Cook, Fiji, Kiribati, Ilhas Marshall, Nauru, Niue, Palau, Papua N. G., Samoa, Ilhas Solomon, Tonga, Tuvalu, Vanuatu

CARIFORUM (Forum Caribenho) Antígua e Barbuda, Bahamas, Barbados, Belize, Dominica, Rep. Dominicana, Granada, Guiana, Haiti, Jamaica, Santa Lucia, São Vicente, São Cristóvão e Névis, Suriname, Trinidad e Tobago

Quem assinou (até Março de 2008)

Costa do Marfim (7 Dez) e Gana (13 Dez)

Comunidade da África do Leste (EAC, na sigla inglesa): Quênia, Uganda, Tanzânia, Ruanda e Burundi (27 Nov)

Seichelles, Zâmbia e Zimbábue (28 Nov), Ilha Maurício (4 Dez); Comoros e Madagáscar (11 Dez)

Camarões (17 de Dez/).

Botsuana, Lesoto, Suazilândia eMoçambique (23 Nov); Namíbia (12 Dez)

Papua Nova Guiné e Fiji (23 Dez)

CARIFORUM (Dez 16)

O quê?

Assinaram um APE “trampolim” em separado

Assinaram um APE Interino

Assinaram um APE Interino em separado

Assinou um APE Interino em separado

Assinaram um APE Interino único com o grupo de países

Assinaram um APE Interino conjunto

Assinou um APE completo com o grupo de países

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Sistemas Agroecológicos

Contribuindo para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas

Celso Marcatto* e Guilherme Strauch***Coordenador do Programa de Segurança Alimentar da ActionAid no Brasil**Engenheiro agrônomo, mestre em agroecologia pela Universidade Internacional de Andaluzia, na Espanha

As alterações climáticas são uma ameaça para o mundo em desenvolvi-mento, e podem comprometer os poucos avanços obtidos nas últimas dé-cadas na luta contra a fome e a desigualdade. Recentemente, os relatórios do IPCC1 e Stern2 indicam que as mudanças no clima são resultantes da ação humana, e que suas conseqüências serão sentidas de forma diferen-ciada nos países em desenvolvimento e desenvolvidos.

Há consenso em que estas alterações estão relacionadas com o cresci-mento das emissões de diversos gases responsáveis pelo efeito estufa. A América do Norte e a Europa são responsáveis pela produção de aproxi-madamente 70% de todas as emissões de dióxido de carbono (CO2), gás que mais contribui para o aquecimento global. Os países em desenvolvi-mento somados respondem por menos de ¼ dessas emissões.

Uma face extremamente perversa deste cenário indica que: os países provavelmente mais afetados serão exatamente aqueles que menos con-tribuíram para o aquecimento global e os que têm menos condições de se prepararem para reduzir os efeitos das mudanças climáticas.

Do ponto de vista geográfico, as regiões em desenvolvimento estão em desvantagem, pois são naturalmente mais quentes do que as desenvolvi-das e são freqüentemente afetadas pela alta variabilidade das condições de clima. Além disso, os países em desenvolvimento – em particular os mais pobres – são dependentes da agricultura, um dos setores econômicos mais vulneráveis às mudanças climáticas. São eles que vão sofrer de forma mais intensa com a redução drástica das atividades econômicas, a ampliação dos processos de desertificação, perdas freqüentes de safra, fome e migração provocadas pela escassez de água e de alimentos.

Para mitigar os impactos das mudanças climáticas, especialmente os que podem atingir a população mais vulnerável e empobrecida, além da redução imediata da emissão de gases, é essencial que se invista pesa-damente em políticas públicas voltadas para a construção de modelos de desenvolvimento e de sistemas alternativos de produção agrícola, que sejam mais resistentes e resilientes que os modelos convencionais.

A América do Norte e a Europa são responsáveis pela produção de aproximadamente 70% de todas as emissões de dióxido de carbono

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Famílias agricultoras de Vereda Funda, estado de Minas Gerais (Brasil), cultivam café com sistemas agroecológicos

Existe hoje um conjunto significativo de movi-mentos sociais e organizações da sociedade civil, espa lhadas em várias regiões do planeta, que estão apostando na Agroecologia como o instrumento que vai permitir a construção desse novo modelo.

Alguns exemplos são os sistemas de captação, armazenamento e distribuição de água potável; ampliação e descentralização dos estoques de ali-mentos; implantação de mecanismos de controle de desmoronamentos em encostas, de controle de enchentes, etc. É urgente a adoção de medidas que possibilitem às populações pobres adaptarem-se à nova situação climática de forma autônoma, soberana e sustentável.

Um dos efeitos da emissão de gases é o aumento da temperatura global e, consequentemente, o aumento do nível dos oceanos, a modificação no padrão das correntes marítimas e dos ventos, e a maior freqüência na ocorrência de eventos hidrológicos críticos, como secas, enchentes, furacões, etc. Segundo as tendências atuais, as temperaturas médias globais aumentarão de 1,4º C a 5,8ºC nos próximos cem anos, caso a emissão de gases não seja controlada. Ainda que medidas de controle sejam implementadas, é possível que a temperatura média do planeta se eleve em até 3ºC.

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maior retenção da renda gerada pelos agricultores em suas próprias comunidades, conferindo-lhes maior autonomia e estabilidade.

A agroecologia estimula atividades complementa-res à principal, na unidade de produção agrícola, como a criação de animais domésticos, o artesanato, a pesca e a instalação de hortas domésticas. Desta forma, pro-porciona mais opções às famílias de agricultores, tanto em termos de produtos para consumo próprio quanto de possibilidades de acesso ao mercado, diminuindo os riscos de insegurança alimentar e permitindo aos agricultores e agricultoras familiares experimentarem maior estabilidade e confiança em sua atividade.

Os sistemas agroecológicos tendem a ser mais produtivos do que os monocultivos especializados da agricultura convencional. A eficiência é medida a partir do total produzido na unidade, e não apenas pela análise de cada atividade especificamente. Um bom exemplo são as produções consorciadas de milho, feijão, mandioca e abóbora que, quando somadas, tendem a produzir mais por unidade de área do que o plantio de cada uma das culturas isoladamente.

Ao valorizar os saberes tradicionais, e incentivar a organização e a participação das famílias dos agricul-tores e das agricultoras nos processos democráticos de tomada de decisão, tanto em nível local quanto re-gional e nacional, a Agroecologia fortalece os atributos de equidade e autogestão das comunidades rurais.

AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A AGROECOLOGIAVárias experiências agroecológicas vêm sendo desen-volvidas em diversas partes do mundo por milhares de agricultores e agricultoras, comunidades, grupos e organizações de trabalhadores e trabalhadoras rurais que buscam a garantia da soberania, e da segurança alimentar e nutricional da população. São iniciativas geridas de forma autônoma e participativa, a partir da troca de experiências e da interação entre os conheci-mentos tradicionais e o científico.

No Brasil, existe uma multiplicidade de iniciati-vas em Agroecologia que permitem a manutenção de agroecossistemas diversificados, produtivos, es-táveis e resilientes. São experiências de implantação de sistemas agroflorestais, de manejo de pragas e doenças, de produção de animais, de uso de plantas medicinais, de resgate, preservação e disseminação de sementes de variedades locais, entre muitas outras, que têm originado diversas referências metodológicas e técnicas.• Na Paraíba, os bancos de sementes comunitários apoiados pela Rede Sementes da Articulação do Semi-

AGROECOLOGIA: CONSTRUINDO SISTEMAS DE PRODUÇÃO MAIS RESILIENTES E SUSTENTÁVEISA Agroecologia surgiu como um enfoque científico e estratégico para apoiar os processos de transição de uma agricultura convencional para uma agricultura realizada em bases ecológicas, a partir da aplicação de conceitos e princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas3 sustentáveis (Gliess-man, 2001). É uma metodologia multidisciplinar, volta-da para enfrentar a atual crise ambiental e social, que propõe o manejo dos recursos naturais de forma inte-grada e participativa. Com o objetivo de fortalecer a agricultura familiar de forma sustentável, o desenvolvi-mento em nível local é viabilizado por meio da valoriza-ção do conhecimento dos agricultores e agricultoras, e da exploração do potencial existente em cada sistema de produção.

Os sistemas agrícolas sustentáveis, que caracteri-zam-se pela diversificação de culturas e criações, têm demonstrado serem mais resilientes a graves pertur-bações ao longo do tempo.

O enfoque agroecológico promove agroecossis-temas sustentáveis, ao favorecer a produção não-especializada baseada no princípio da diversidade de recursos e práticas produtivas. Em um mesmo sistema produtivo são utilizadas diversas práticas combinadas, visando a integração dos diversos subsistemas e a reciclagem de materiais, energia, água e resíduos.

O fluxo de energia é direcionado para depender menos de recursos não-renováveis e atingir um mel-hor equilíbrio entre o uso da energia interna e externa no sistema. A resistência a pragas aumenta, pois a diversidade de habitat é favorecida assegurando-se a presença de inimigos naturais e antagonistas. A manutenção de ciclos “fechados” de nutrientes (re-ciclagem de nutrientes dentro do sistema produtivo) reduz as perdas no agroecossistema, fazendo retornar à unidade produtiva parte importante dos nutrientes extraídos.

Ao contrário da especialização em um só produto, a manutenção da diversidade protege os agricultores e as agricultoras dos riscos inerentes à atividade, como as flutuações de mercado e as condições climáticas adversas. Neste sentido, a Agroecologia promove e fortalece os atributos de adaptabilidade (ou flexibili-dade) e resiliência de um agroecossistema.

Por dependerem menos de insumos externos (como agrotóxicos, fertilizantes industriais, sementes selecionadas e combustíveis fósseis), os sistemas agroecológicos tendem a diminuir os custos de produção e os riscos de endividamento. Isso significa

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Árido incentivam o uso das variedades locais adapta-das aos desafios climáticos da região, uma forma de promover o saber tradicional dos agricultores na con-servação da agrobiodiversidade;• Em Minas Gerais, o Centro de Tecnologias Alter-nativas da Zona da Mata promove a implantação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) na agricultura famil-iar. As árvores incorporadas aos sistemas produtivos favorecem a produção de biomassa e a reciclagem de nutrientes, disponibilizam lenha e madeira para as famílias, diminuindo a pressão sobre as unidades de conservação e fragmentos de mata atlântica da região, além de manter a umidade, diminuir a temperatura e proteger o solo contra a erosão; • Na região semi-árida do Nordeste, que sofre com secas freqüentes, a disseminação de sistemas descentra lizados de captação e manejo de água de chuva, como as cisternas de placa e as barragens subterrâneas, são exemplos de ações de conservação e manejo dos recursos hídricos que viabilizam a convivência com a grande variabilidade do clima da região.

Essas experiências contêm princípios e concei-tos que podem contribuir no processo de busca da sustentabilidade dos sistemas agrícolas, dentro dessa nova realidade de mudança do clima em nível global. Cabe às organizações governamentais e não-go-vernamentais, que estejam empenhadas e compro-metidas com a redução da pobreza e da fome no mundo, apoiar processos que busquem construir

REFERêNCIAS:CONOR, F. et al., Agricultura Familiar e Processos de MDL. É possível?, Edições Bagaço, Recife/PE. 2007.GARCÍA, A. et al., “Contribución de La Agricultura Ecológica a la Mitigación del cambio Climático en comparación con la Agricultura Convencional”. Revista Agroecología, Universidad de Murcia, Spain, vol.1, pp.75 – 88, 2006.GLIESSMAN, S.R., Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. 2nd edition. Ed. UFRGS/Porto Alegre, 2001.LONDRES, F. & ALMEIDA, P. (eds). Uso e conservação da biodiversidade. Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia. GT Biodiversidade da ANA. April 2007.MASERA, O. et al. Sustentabilidad y Manejo de Recursos Naturales. El marco de evaluación MESMIS. GIRA, Ed. Mundi-Prensa México, 2000.PETERSEN, P. Agroecologia e segurança alimentar e nutricional em Angola: alguns subsídios ao projeto. Mimeo, 2007.Relatório Stern. Aspectos econômicos das alterações climáticas. Resumo executivo. Available at http://www.inovacao.unicamp.br/report/inte-stern_longsummary_portuguese.pdf, accessed on 23/10/2007.TOLEDO, V. M. “La racionalidad ecológica de la producción campesina”. In: Ecología, campesinado y historia. Eduardo Sevilla-Guzmán & Manuel González de Molina. Ediciones La Piqueta, Madrid, 1993.1 IPCC: Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima, estabelecido pela Organização Mundial de Meteorologia e pelo PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, para avaliar informações sobre as mudanças climáticas, seus impactos, e opções de adaptação e mitigação. 2 Relatório Stern: Documento encomendado pelo Governo Britânico a Nicholas Stern, ex-economista chefe do Banco Mundial, sobre os impactos que o aquecimento global poderá provocar na economia mundial. O estudo, tornado público em outubro de 2006, apontou que o Produto Interno Bruto Mundial pode vir a sofrer uma queda de 3%, caso a temperatura média da Terra suba três graus Celsius.3 Agroecossistemas são como ecossistemas artificializados, já que são manipulados pelo homem para obtenção de alimentos, fibras e sementes. Dependem de aportes externos de materiais e energia para sua manutenção (Gliessman, 2001).

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sistemas de produção agrícolas que sejam realmente resis tentes, sustentáveis e menos vulneráveis às con-dições climáticas adversas.

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Aliança para uma Revolução Verde na África

Mariam MayetDiretora e fundadora do Centro Africano para Biossegurança, sediado na África do Sul

Fazendo da África um repositório de tecnologias agrícolas falidas

INTRODUÇÃOA pressão por uma “nova” Revolução Verde na África está toda voltada ao aumento da produção agrícola, entendida como a mais fundamental priori-dade de desenvolvimento para o continente1. Falando em um seminário de alto-nível em Adis Abeba, Etiópia, em 2004, o ex-Secretário Geral da ONU, Koffi Annan, fez um apelo por um resoluto esforço de combate à pobreza e criação de Revolução Verde na África. O discurso de Annan é comumente conhecido como o “Chamado à Ação de Adi”2. Com efeito, as Nações Uni-das continuam a bradar por uma “Revolução Verde do Século 21” para África na condição de pré-requisito necessário para alcançar a primeira Meta de Objetivos do Milênio: reduzir à metade a proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza e fome até 2015. Entre outros relatórios promovendo a regeneração setor agrícola da África, estão o Relatório do Conselho Inter-Academias (IAC 2004),solicitado por Koffi Annan, então Secretário Geral da ONU, e o Relatório da Comissão para África do Governo do Reino Unido (CfA 2005).

Chefes de estado africanos têm também, de várias maneiras, jogado seu peso no apelo por uma Revolução Verde enquanto pré-requisito necessário para tratar da pobreza e da fome na África. A Revolução Verde tem o en-dosso da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD, na sigla em inglês), através de seu Programa Amplo para o Desenvolvimento da Ag-ricultura na África (CAADP 2002) e do Modelo de Colaboração para a Prod-utividade Agrícola na África (FAAP)3. Na Cimeira Africana de Fertilizantes, reunida em junho de 2006 em Abuja, Nigéria, chefes de estado africanos se comprometeram a elevar a distribuição de fertilizantes inorgânicos de 8 kg/ha para 50 kg/ha, até 2015. Na Cimeira sobre Segurança Alimentar, em dezembro de 2006, eles se comprometeram também a apoiar a implemen-tação de uma Revolução Verde na África4.

A pressão por uma “nova” Revolução Verde, na África, dirige-se diretamente a aumentar a produção agrícola como a prioridade mais fundamental de desenvolvimento para o continente.

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Chefes de estado africanos têm também, de várias maneiras, jogado seu peso no apelo por uma Revolução Verde enquanto pré-requisito necessário para tratar da pobreza e da fome, na África

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Entretanto, o ator mais visível na investida da Re-volução Verde é a Aliança para uma Revolução Verde na África (AGRA, na sigla em inglês), uma parceria entre a Fundação Rockefeller e Fundação Bill e Melinda Gates (Fundação Gates)5. A AGRA destina-se a ajudar milhões de pequenos agricultores a saírem por si pró-prios da situação de pobreza e fome ao aumentarem, de forma significativa, a produtividade de suas lavou-ras com tecnologias do modelo da Revolução Verde6. Para este fim, a Fundação Gates comprometeu-se a dar US$100 milhões e a Fundação Rockefeller, US$50 milhões, nos próximos cinco anos7.

Neste ponto, apresentaremos um panorama geral da Revolução Verde na África liderada pela AGRA, e analisaremos algumas das prováveis implicações para a África.

ALIANÇA PARA UMA REVOLUÇÃO VERDE NA ÁFRICA (AGRA)O principal foco da AGRA é o melhoramento genético de plantas, para o que foi definida uma ambiciosa meta de desenvolver, em 5 anos, 100 novas variedades de plantas essenciais como milho, mandioca, sorgo e mil-heto. Em junho de 2007, três anos após seu famoso “Chamado à Ação de Addis”, Koffi Annan foi indicado como presidente da AGRA. Espera-se que um dos papéis básicos de Annan será recorrer às suas consi-deráveis conexões políticas, ampla base de trabalho e influência em general para estimular o desenvolvimen-to de políticas nacionais, regionais e globais, e para obter apoio para a AGRA e seus programas. Os mem-bros do conselho da AGRA recorrem intensamente às Fundações Rockefeller, e Bill e Melinda Gates, a pes-soas próximas ao Grupo Consultivo de Pesquisa Agro-pecuária Internacional (CGIAR, na sigla em inglês) e ao setor corporativo na África do Sul.

A AGRA tem apresentado um pacote altamente am-bicioso e aparentemente grandioso voltado para a dita revolução que explora:

uma variedade de formas de fortalecimento de mer-cados, inclusive através de sistemas informação de mercado pró-pobres; melhor armazenamento; proc-essamento e utilização de cultivos locais de plantas alimentícias; trocas de commodities que melhorem o comércio regional de grãos; e formas de estabili-zação dos preços de mercado e melhorar o acesso ao crédito dos agricultores. A AGRA irá explorar for-mas de melhorar a competitividade dos produtos agropecuários da África em mercados globais8.

Outro aspecto chave da estratégia da AGRA de au-mentar radicalmente a produtividade agrícola na África

são seus esforços de implementar um sistema especial de entrega baseado nas fontes de produção, segundo o qual um agricultor poderá “ir caminhando até uma loja ou quiosque em sua localidade rural e ter pronta-mente acesso a sementes certificadas de alta quali-dade”9. Dito de outra forma, a AGRA está decidida a instalar uma cadeia de valor inteira, começando pelas “provisões para os mercados”, que irá abrir o caminho para a emergência de um novo setor rural privado, com agro-comerciantes começando a fornecer aos agricultores suas provisões, comerciantes comprando produtos agropecuários, e agro-processadores e exportadores fazendo contratos com pequenos agri-cultores para produzirem colheitas para eles.

A ONG GRAIN explica a “lógica” do sistema agro-comerciante da seguinte maneira: a idéia é financiar agentes públicos de melhoramento genético para que desenvolvam novas variedades (na medida em que o setor privado não quer fazer isso), em seguida finan-ciar empresas privadas para vender as sementes para os agricultores e fornecer crédito para que as com-prem (pois, de outra maneira, eles não poderiam pagar por elas). A AGRA se resume à criação de uma efe-tiva demanda para seu próprio produto, prescrevendo um modelo de desenvolvimento que não é capaz de sobreviver por si mesmo10.

Como primeiro passo no sentido do estabelecimen-to de um projeto de agro-comerciantes para venda de sementes “melhoradas”, pesticidas e fertilizantes para agricultores pobres na África, a AGRA contratou uma ONG norte-americana chamada Rede de Cidadãos para Assuntos Internacionais para criar as condições de base. Agricultores no Quênia, Tanzânia e Malawi fo-ram definidos especificamente como público-alvo. Em dezembro de 2007, a AGRA lança seu Programa de Desenvolvimento Agro-comerciante (ADP, na sigla em inglês), destinado a fornecer provisões agrícolas es-senciais a 16 milhões de domicílios rurais envolvidos na produção de produtos agropecuários.

Para facilitar este objetivo, foram concedidos US$13 milhões em subvenções para estabelecer redes na-cionais de agro-comerciantes no Malawi, Tanzânia e Quênia oferecendo a pequenos varejistas emergentes em comunidades rurais − muitos dos quais eram por sua vez agricultores − treinamento, capital e crédito de que precisavam para tornarem-se agro-comerciantes certificados11.

A noção de que pequenos lojistas rurais irão de certa forma fornecer aos agricultores a assistên-cia técnica agronômica necessária para conservar o meio ambiente tem sido descrito como “ridícula”. Na

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melhor das hipóteses, estes lojistas irão ajudar algu-mas poucas empresas estrangeiras a aumentar suas vendas de fertilizantes, pesticidas e herbicidas caros, desnecessários, danosos e perigosos, e a vender grãos baratos para populações locais, vendendo a preços mais baixos que os agricultores locais e seus mercados domésticos12.

Os Programas de Desenvolvimento dos Agro-com-erciantes em todos os três países irão implementar uma variedade de ferramentas de financiamento “ino-vadoras” para aumentar o fluxo de crédito em áreas rurais, e oferecer capital inicial a agricultores e agro-comerciantes. Dentre estas ferramentas se incluem “facilidades de garantia” para compartilhamento de riscos igualmente (50-50) com empresas agrícolas que fornecem provisões agropecuárias para os agro-com-erciantes em áreas rurais.

Estima-se que os membros do conselho da AGRA irão fazer lobby junto a governos, organismos de financiamento e bancos comerciais para aumentar os empréstimos a estes agro-comerciantes em escala nacional.

MALAWI: A “GAROTA PROPAGANDA” DA AGRAO Malawi está sendo mostrado como caso de suces-so da Revolução Verde na África, em seguida a uma aparentemente miraculosa transformação em sua produção de alimentos.

Tendo por base um Relatório do Banco Mundial de Desenvolvimento de 200713, que mostra o início do crescimento agrícola na África subsaariana, Pedro Sanchez, Diretor de Agricultura Tropical do Instituto da Terra na Universidade de Columbia e co-líder do projeto Vilas do Milênio, disse recentemente que “a Revolução Verde pedida por Koffi Annan em 2004 está realmente começando a acontecer, na medida em que países como o Malawi se tornaram de importadores líquidos de alimentos a exportadores líquidos de ali-mentos”14. Segundo Sanchez, até o Banco Mundial, que tem agressivamente buscado a liberalização da agricultura na África, apóia os subsídios de sementes e fertilizantes, no que Sanchez descreve como “uma mudança de 180 graus para melhor”. A mensagem cen-tral, portanto, é de que simplesmente com o subsídio de fertilizantes e sementes para cultivo de variedades melhoradas de milho, países como o Malawi têm sido capazes de melhorar sua produtividade agrícola.

Em 2006/07, o governo do Malawi forneceu a agricultores cerca de US$60 milhões através dos cha-mados subsídios “espertos” ou “específicos”. Por este sistema, os agricultores podiam trocar bônus emitidos

pelo governo junto a agro-comerciantes certificados, em troca de provisões agropecuárias parcialmente subsidiadas. Segundo Richard Chapweteka, Diretor do Trust de Desenvolvimento Rural (RUMARK, na sigla em inglês), no Malawi, “Os resultados de todos estes es-forços − aliados a chuvas e a políticas do governo do Malawi − foram estupendos. Em 2006/07, o país gerou um excedente adicional de milho de 14 milhões do toneladas métricas. Vendeu US$160 milhões de milho e doou 10.000 toneladas métricas de alimentos para cooperação com os vizinhos Lesoto e Suazilândia”15. As facilidades de garantia também são relatadas como mostrando forte êxito inicial. Ao longo dos últimos cin-co anos, tendo sido o programa primeiro iniciado com financiamento da Fundação Rockefeller, cada dólar de crédito garantido gerou 16 dólares em provisões agropecuárias em áreas rurais, com uma taxa de ina-dimplência de pagamento dos empréstimos pelos agro-comerciantes certificados de menos de 15%16.

IMPLICAÇÕES DA PRESSÃO PELA REVOLUÇÃO VERDE NA ÁFRICATrês conjuntos de questões chave precisam ser respondidas pelos proponentes da nova Revolução Verde na África: 1) qual impacto teve a Revolução Verde na Ásia e na América Latina, e existe qualquer lição crucial no que se refere à uma revolução agrícola na África, apropria-da às realidades da agricultura no continente?2) apesar da opinião contrária amplamente difundida, a Revolução Verde não evitou a África; ainda existe pouco entendimento de por que deixou de ocorrer, no continente, ou por que um paradigma de desenvolvi-mento que de forma razoavelmente nítida tem sido incapaz de capturar a imaginação dos agricultores afri-canos e, que claramente comprovou ser inapropriada, é ainda perseguida; e3) um exame minucioso e rigoroso precisa ser feito acerca da adequação das inovações tecnológicas incluídas no pacote da Nova Revolução Verde e, mais especificamente, da filosofia político-ideológica subja-cente que busca integrar os sistemas agrícolas africa-nos na economia mundial.

As conseqüências da Revolução Verde têm sido for-temente contestadas, com muitas visões divergentes e conflituosas, resultando em posições altamente polari-zadas. A área de debate menos contestada é provavel-mente a questão do aumento da produtividade. Neste ponto, a maioria dos comentaristas parecem concordar que, em ambientes altamente manipulados em zonas ecologicamente produtivas, com acesso à irrigação e

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à correta aplicação de provisões de variedades de alto rendimento (HYV, na sigla em inglês) decorrentes da Revolução Verde, se produziriam rendimentos mais al-tos do que se tratasse de variedades tradicionais, em condições similar. Contudo, o desenvolvimento agrário não é simplesmente a auto-suficiência de alimentos.O debate acerca dos impactos negativos dos fertili-zantes artificiais e produtos químicos sob a forma de pesticidas e herbicidas são bem conhecidos. Existem preocupações adicionais de que as tecnologias da Revolução Verde tendem a favorecer o desenvolvimen-to da produção de monocultivos, levando ao abandono de inter-cultivos e de sistemas de cultivo tradicionais mais eficientes do ponto de vista ecológico. Outro fator chave, especialmente no contexto atual de mudança climática e crescentes custos de combustíveis, é a alta dependência de fontes de energia do modelo de desenvolvimento da Revolução Verde. Este fator está relacionado diretamente à ênfase na mecanização e sistemas de irrigação, e, mais indiretamente, à energia incluída na produção do vários produtos químicos e, especificamente, na produção de fertilizantes. Tal fator é exacerbado por um outro fator relacionado, o trans-porte. Não apenas transporte de provisões, mas tam-bém, em um mundo adicto de comércio, transporte de produtos. A questão dos biocombustíveis também tem que ser incluída nesta análise particular.Se a Revolução Verde for considerada parte integral do “desenvolvimento”, então uma séria consideração deve ser feita acerca de seus aspectos sociais, econômicos e de desenvolvimento.Existem importantes preocupação de que a Revolução Verde acelere a diferenciação entre os agricultores, leve a um aumento da perda propriedade de terras, a um conflito intensificado de classes e nem sempre prio-rize o valor nutricional das variedades de alta resposta. Mesmo o Instituto Internacional de Pesquisas Sobre o Arroz (IRRI, na sigla em inglês) observou que “ao mesmo tempo em que a Revolução Verde ajudou a as-segurar suprimentos de arroz, ela falhou em resolver o problema da ‘fome escondida’ em razão da ausên-cia de micronutrientes essenciais, ou desnutrição, que afetam mais de 2 bilhões de pobres do mundo”17. Um relatório do Secretariado do Conselho Científico do CGIAR reconhece que: “São encontrados pouquíssimos estudos que medem ou documentam os impactos sociais, na eqüidade, no meio ambiente ou na saúde, da pesquisa agrícola. Isso não é peculiar à região subsaariana, mas representa o perfil da literatura de avaliações de impacto global-mente e reflete o fato de que a metodologia para quan-

tificar os impactos na produtividade de produções e resultados das pesquisas é muito mais avançada do que a de quantificação de outros tipos de impactos de pesquisa.”18 Além disso, como declara Freebairn: “Resultados díspares acerca da influência da rápida introdução de variedades de alto rendimento, 25 anos depois de sua introdução, não fornecem bases de consenso para a comunidade acadêmica com relação aos efeitos de distribuição de renda desta estratégia tecnológica”19. O debate prossegue e, em análise mais recente so-bre o impacto da Revolução Verde no Paquistão, Niazi argumenta que20: “Ao passo que, em termos agrega-dos, é verdade que a Revolução Verde no Paquistão conseguiu atender as exigências nacionais de alimen-tação e alimentar o crescimento econômico, em termos desagregados ela não cumpriu, entretanto, as expec-tativas mantidas inicialmente e subseqüentemente de-fendidas. Por este motivo, a experiência no Paquistão tende a validar os contra-argumentos de seus críticos que, desde então, assinalam que a Revolução Verde iria meramente agravar a incidência da pobreza rural, e a distribuição desigual de rendas e bens rurais. Os dados “díspares” acerca dos vários impactos da Revolução Verde observados acima deveriam engen-drar prudência e, no mínimo, a aplicação do “principio precaucionário” da parte de qualquer tomador de de-cisões neutro. O continente africano não deveria ser visto como repositório de práticas de desenvolvimento questionáveis que não encontraram êxito absoluto em outras partes do globo.

1 Metas de Desenvolvimento do Milênio, em inglês: http://www.un.org/millenniumgoals/2 O seminário de Addis foi uma extraordinária reunião de chefes de estado e governantes africanos, líderes mundiais, especialistas sobre a fome e sobre desenvolvimento. Foi organizado pelo governo da Etiópia e pelo Projeto do Milênio das ONU. Com o título “A Revolução Verde da África: Um chamado à ação”, o seminário teve como foco abordagens inovadoras para cumprir a Meta do Milênio para Fome na África. 3 JONES, M. (2006). “A New Green Revolution: An answer to the challenge for Africa”, pp 140-141. Can Africa Feed Itself. Editado por Aksel Naerstad.4 Cimeira sobre segurança alimentar na África: disponibilidade, acessibilidade e possibilidade de compra. http://www.africa-union.org/root/au/Conferences/Past/2006/December/REA/summit/Food_Security.htm5 A Fundação Bill e Melinda Gates (BMGF) é uma empresa sediada em Seattle, fundada 2000 através da fusão da Fundação Gates de Ensino e da Fundação William H. Gates. A BMGF é a maior fundação de caridade, no mundo. Dados sobre a fundação: http://www.gatesfoundation.org/MediaCentre/FactSheet/default.htm 6 Aliança para uma Revolução Verde na África: http://www.agra-alliance.org 7 OCDE. Forum de Parceria com a África: www.oecd.org/dataoecd/37/1/39024069.pdf8 Aliança para uma Revolução Verde na África: AGRA at Work: http://www.agra-alliance.org9 ODHIMABO, A. (2007).”AGRA Takes Certified Seeds to Farmers in War on Hunger”. Business Day Nairobi (2 de outubro de 2007).10 GRAIN (2007). A new Green Revolution for Africa? P 3. GRAIN Briefing: http://www.grain.org

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11 Aliança para uma Revolução Verde na África: Rede Nacional de Agro-comerciantes lançada para atingir 16 milhões de domicílios rurais envolvidos na produção de produtos agropecuários na África fornecendo-lhes provisões agrícolas essenciais: Novas oportunidades para agricultores pobres no Quênia, Malawi e Tanzânia (release de 13 dezembro de 2007). http://www.agra-alliance.org/section/fr/pr12130712 HOLT-GIMINENz, E. et al. (2006). ‘Ten Reasons why the Rockefeller and Bill and Melinda Gates Foundation’s Alliance for Another Green Revolution will not solve the problems of poverty and hunger in sub-Saharan Africa’. Food First Policy Brief No. de 12 de Outubro de 2006.13 Relatório de Desenvolvimento Mundial 2008: Agriculture for Development: http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTARD/0,,menuPk:336688~pagePk:149018~piPk:149093~theSitePk:336682,00.html14 BIELLO, D. ‘Is a Green Revolution Finally Blooming in Africa?’ Scientific American. 1 de Novembro de 2007.http://scientificamerican.com/article.cfm?articleID=FD6F3117-E7F2-99DF 344D7916906A65CF&chanID=sa003 15 Op. cit., http://www.agra-alliance.org, 13 de diciembre de 2007.16 Op. cit., http://www.agra-alliance.org, 13 de diciembre de 2007.17 ‘Scientists tinker with nature to create “golden rice”.’ Deutsche Presse Agentur, 2 de dezembro de 2003, en AgBioView: 9 de dezembro de 2003.18 MAREDIA, M.k. and RAITzER, D.A. (2006). ‘CGIAR and NARS Partner Research In Sub-Saharan Africa: Evidence of Impact to Date’. Science Council Secretariat (Secretaría del Consejo de las Ciencias), pp vii.19 FREEBAIRN, D.k. (1995) ‘Did the Green Revolution Concentrate Incomes? A Quantitative Study of Research Reports’. World Development 23 (2).20 NIAzI, T. (2004). ‘Rural Poverty and the Green Revolution: The Lessons from Pakistan’. The Journal of Peasant Studies 31 (2).

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A luta pelo direito à alimentação na África

Amade SucáCoordenador regional de direito à alimentação na África/ActionAid

dos movimentos sociais

O direito à alimentação em África é premente, urgente e obrigatório. Todos são chamados a contribuir de forma a que esta seja uma realidade, com especial ênfase para os governos. E, um dos actores-chave neste processo são os movimentos sociais.

A ÁFRICA E A FOMEÁfrica é o continente mais afectado pela fome crónica e aguda no mundo. De acordo com a FAO, 852 milhões de pessoas sofrem de fome e malnu-trição no mundo. Destes, 206 milhões estão na África. A causa primária é a falta de acesso a meios de produção tais como terra, água, sementes e instrumentos adequados de produção. Aliás, de acordo com Vandana Shiva1 as causas da fome são “a combinação de perda da terra e do con-trole dos recursos locais tais como água, semente e biodiversidade, básicas para a agricultura das comunidades, mas agora nas mãos de corporações globais”. Partindo desta realidade, o direito à alimentação em África é pre-mente, urgente e obrigatório. Todos são chamados a contribuir de forma a que esta seja uma realidade, com especial ênfase para os governos. E, um dos actores-chave neste processo são os movimentos sociais. Porque em África reconhece-se o papel desempenhado pelos movimentos sociais na construção e condução da luta pelo direito à alimentação, faz-se aqui o relato do seu contributo.

O DIREITO À ALIMENTAÇÃO E OS MOVIMENTOS SOCIAISO marco histórico do Direito Humano à Alimentação Adequada pode ser situ-ado na aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Este facto fez com que o mesmo pudesse estar plasmado em tantos outros instrumentos legais como o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) em 1966, em diversas Constituições nacionais (ex.: África do Sul, Malawi, Namíbia e Uganda) e em inúmeras declarações regionais e internacionais. Menção especial ao comentário-interpretação número 12 do comité dos direitos económicos, sociais e culturais em rela-ção ao direito à alimentação plasmado no PIDESC, artigo 11 número 2.

“O direito à alimentação constitui o direito de toda a pessoa humana (mul-her, homem, criança) quer na sua singularidade quer na colectividade a ter acesso físico e económico a todo o momento a uma alimentação adequada (quantidade e qualidade) ou a ter meios que lhe possibilitem a aquisição do mesmo através de mecanismos e formas humanamente dignas”2.

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Este processo implica necessariamente uma visão política de longo prazo, uma larga base de apoio para a construção deste projecto, um grande sentimento de propriedade deste desafio e uma capacidade cumu-lativa de produzir conhecimento e alternativas. Para além do Estado, alguns dos actores que cumulativa-mente albergam estas pré-condições são os movimen-tos sociais. Neste artigo, entendemos por movimentos sociais uma forma colectiva de organização de grupos específicos com objectivos comuns, basea dos na soli-dariedade, interacções e justiça social3. Os movimentos sociais fundamentalmente resistem e combatem uma dada ordem social injusta e exclusivista. Para tal, desa-fiam as elites, autoridades e estruturas que propiciam o empobrecimento dos povos e afectam negativamente o meio ambiente. Os movimentos sociais devem “interferir decisivamente no debate e nos rumos das políticas públicas”4. Por este meio, as áreas de gov-ernação, de comércio, do meio ambiente e de capital social e humano são tidas como centrais para as mu-danças sociais necessárias para o alcance do direito à alimentação adequada.

O direito à alimentação, apesar de estar plasmado em instrumentos legais de carácter vinculativo e não só, aparece em muitos casos como letra morta. Daí que constitui acção prioritária a permanente luta para que os governos e as instituições competentes a todos os níveis coloquem na sua agenda o alcance e ma-nutenção do direito a alimentação para todos os povos e a todo o momento.

O CONTExTO POLíTICO E ECONóMICO EM ÁFRICA E OS MOVIMENTOS SOCIAISOs movimentos sociais, pela sua natureza, associam- -se a lutas de resistência. Em África, a resistência e a luta pelos direitos mais elementares, como o de ali-mentação, foi sempre parte da história dos movimentos sociais. A história reconhece e documenta a resistência dos africanos à ocupação estrangeira, desde a Etiópia (1450) até a Namíbia (1990). Durante a colonização, foram os movimentos “sociais” o embrião para o surgi-mento e consolidação dos movimentos de luta pelas independências. Estes movimentos iniciaram as suas acções com a tomada de consciência da necessidade de luta contra a exploração e as injustiças sociais a que estavam sendo sujeitos pelos regimes coloniais. Foi, portanto esta luta que em grande parte, culminou com a independência dos países africanos.

Após as independências, o desafio da reconstrução nacional contou fortemente com as intervenções dos movimentos. Estes muito fizeram para a ajuda ao reas-

sentamento das populações, distribuição de víveres e mantimentos em casos de emergências e calamidades e mesmo em situações de conflitos armados quer internos quer de e com orientação externa. Contudo, há uma forte corrente de africanos que defende que até este momento (anos 50-70) não se pode falar de movimentos sociais no seu strictus sensus. Ora até aqui a luta pelas independências era um projecto de todos, onde os movimentos de libertação eram, na sua plenitude, o povo organizado. Inclusive logo de-pois das independências, continuava a construção do projecto da unidade africana.

Foi na década de 1980 que os povos africanos sentiram que seus líderes não mais comungavam dos mesmos ideais para a construção do projecto de África unida, solidária, próspera e em paz. Os líderes africa-nos fizeram opções estratégicas à margem dos seus povos. Alguns países mergulharam em conflitos inter-nos sangrentos (ex.: Moçambique, Somália, Ruanda, Burundi, República Democrática do Congo), outros iniciaram reformas democráticas cuja implementação foi negada, gerando tensões e conflitos violentos (ex.: Madagascar, Nigéria e Zimbabwe). Outros ainda mer-gulharam em golpes de Estado (ex. Burkina Faso, Togo e Guiné Bissau). Ao mesmo tempo, as economias africanas não conseguiram um crescimento económi-co que pudesse responder às demandas internas, acabando por se endividar até ao extremo.

Em consequência, tiveram que manter uma forte relação de dependência com as ex-potências coloniza-doras e adoptaram políticas e reformas impostas pelas instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI), apelidadas de programas de ajustamento estrutural, visando a adopção de um sistema sócio-económico de mercado livre.

É neste contexto político e económico africano que surgem os movimentos sociais como alternativa para a restituição do sonho de Kwame Krumanh (África livre, próspera, unida e solidária). O primeiro presidente do Gana indicava que seu sonho não era apenas a inde-pendência do Gana senão de todo o continente. Dai a ideia da criação dos Estados Unidos de Africa ou seja a União Africana

A LUTA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS EM ÁFRICAOs movimentos sociais em África têm desempenhado um papel decisivo para a construção do projecto da “renascença africana”, que contempla o direito à ali-mentação através do combate à fome. Os movimentos sociais em África actuam em áreas-chave que visam a garantia de acesso a alimentos e a habitação condigna,

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à promoção da igualdade de género, ao acesso à edu-cação e à saúde, com especial atenção à mulher. Só a título de exemplo, temos movimentos como ROPPA (Rede de Orgamizações Camponesas e de Produtores Agrícolas do Oeste da Africa) que trabalham em áreas de justiça económica; Via campesina, que intervém na promoção da voz política dos pequenos e médios camponeses; a ESAFF (Federação dos Agricultores da África Austral e do Este), que desenvolve acções em áreas como a criação de capacidades produti-vas dos agricultores e sua ligação com o mercado; o LPM, que actua no acesso à terra pelos sem terra; a FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comuni-dade), que actua no desenvolvimento de acções que garantam proteção da criança e promovam o desen-volvimento comunitário nas suas múltiplas facetas e; o Fórum Mulher, que é a congregação das diversas organizações que trabalham na área de promoção dos direitos da mulher.

Para o acesso a alimentos, várias são as estraté-gias adoptadas pelos movimentos sociais. De um modo geral, os movimentos de pequenos agricultores, de pescadores e de ambientalistas resistem às várias tentativas de manipulação e de adopção de políticas inapropriadas (fundamentalmente de carácter neoli-beral). Em África, estes movimentos reivindicam a implementação de uma política de soberania alimentar para o desenvolvimento agrário. Defendem um inter-vencionismo necessário do Estado uma vez que está claro que o sistema neoliberal de mercado livre não funciona. O mercado não se regula por si só. Aliás a actual crise alimentar provocada pelo aumento dos preços dos produtos alimentares é o exemplo ilustra-tivo dessa incapacidade de resposta justa do merca-do. Esta intervenção deve-se materializar através do investimento em capital tecnológico, capital humano, capital físico, no fortalecimento das instituições públi-cas e na criação de condições objectivas para um equilíbrio entre a procura e a oferta, livre de especu-lações, assim como pela adopção de uma atitude de transparência e boa governação pelos Estados e pelas corporações transnacionais. Aqui chamamos a aten-ção para a necessidade de regulamentação específica dos mercados, uma vez que as empresas transnacio-nais detém o controlo sobre o mercado.

Os movimentos sociais, com a sua larga base de produtores, demonstraram através do uso de técnicas e tecnologias adequadas, como a agroecologia, escola do camponês na machamba (campo) e controle natural de pragas, que é possível aumentar a produtividade, a qualidade e competitividade dos seus produtos. Isso

reforça a necessidade e viabilidade de modelos alter-nativos de agricultura e um modelo de desenvolvimen-to endógeno e sustentável para África. Exemplo disso são as acções desenvolvidas por organizações como a Actionaid e o Movimento da Federação Internacional para a Agricultura Orgânica (IFOAM).

Por um lado, os movimentos sociais africanos, através da mobilização e da sua organização interna e externa de formação, permitem a produção e partilha do conhecimento sobre boas práticas de produção, conservação e alimentação nutritiva. Por outro lado permitem, através da mobilização, a realização de acções de âmbito político visando maior poder político para os pequenos e médios produtores, assim como a contemplação do direito à alimentação no quadro das normas africanas. Com estas acções, alguns países adoptaram legislação mais condizente com as normas e práticas costumeiras positivas, valorizando o conhecimento local e melhorando a participação da sociedade civil nos processos de formulação de políti-cas agrárias. Foi igualmente possível a construção de uma base comum para a luta contra políticas que prejudiquem a materialização do direito à alimentação. Por isso a rejeição em bloco do uso das sementes transgénicas, da adopção dos Acordos de Parceria Económica (APEs) e da Revolução Verde.

As acções dos movimentos sociais em África, tais como da ROPPA (Rede de Organizações de Campone-ses e de Produtores Agrícolas), da Via Campesina Áfri-ca, da CNOP (Coordenação Nacional de Organizações de Camponeses), da NASFAM (National Smallholder Farmers´ Association of Malawi), da UNAC (União Na-cional de Camponeses), do Indaba e de tantos outros está a permitir um melhor conhecimento da complexa realidade africana no que tange à reforma agrária e ao direito à alimentação. O direito à alimentação é uma preocupação dos movimentos sociais africanos daí que, hoje, estão sendo estabelecidos mecanismos para uma melhor coordenação, intercâmbio e partici-pação pública dos diferentes grupos nas comissões de trabalho, nos fóruns de planificação, avaliação e monitoria das políticas agrárias e comerciais. Os mo-vimentos sociais africanos apresentam actualmente propostas alternativas de como aumentar a produção e produtividade para que todos tenham acesso condi-gno a uma alimentação adequada.

As críticas tecidas pelos movimentos sociais, em eventos como os fóruns sociais e as conferências internacionais, sobre aspectos ligados à reforma agrária denotam análise das acções e estratégias adoptadas pelos Estados e organismos internacionais

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para a promoção do desenvolvimento. Os objectivos enunciados destes planos são, na essência, positivos. No entanto as estratégias, os planos e a implemen-tação revelam a não colocação do ser humano como o epicentro do processo e limitam a plena e efectiva participaçãos dos povos na condução das iniciativas que visam o alcance do direito à alimentação ade-quada. Os movimentos sociais defendem estratégias inclusivas que assentem em princípios de participa-ção e de liberdade de escolha das opções a seguir para a construção do desenvolvimento. Portanto, os movimentos sociais africanos estão a produzir uma consciência analítica crítica sobre os contornos ligados à liberdade de alimentação. Isto cria, nos diversos seg-mentos da sociedade, a apropriação da luta por mais e melhores condições que visem o alcance, manutenção e melhoria do direito a alimentação adequada.

Os movimentos sociais trouxeram à mesa de nego-ciações, para além do conceito de soberania alimen-tar, a premente necessidade de localizar as iniciativas

de desenvolvimento. Defendem que estas devem ser baseadas na realidade concreta do território – daí a necessidade de diagnósticos territoriais feitos de forma participativa e negociada, onde os produtores são a força motriz. É na combinação dos recursos existentes e nas oportunidades que se podem gerar que o Estado deve facilitar o acesso a recursos para a produção de alimentos, por parte dos produtores nacionais e não só. O trabalho conjunto das redes, não apenas africanas mas também com suas congéneres da Asia, America e da Europa, conclui sobre a necessidade de localizar o desenvolvimento. Quer dizer, a acção de construção do desenvolvi-mento implica o diagnóstico do meio lo-cal (o território) e implica a efectiva par-ticipação dos locais.

Contudo, falta ainda melhorar alguns aspectos, por parte dos movimentos sociais africanos, tais como a necessi-dade de incluir nas formas tradicionais de mobilização e de luta dos marginal-izados o uso de técnicas mais agressivas nos média, o reforço da coope ração, co-ordenação e de alianças inter-temáticas.

O DIREITO À ALIMENTAÇÃO: O QUE QUEREM OS MOVIMENTOS DE CAMPONESES AFRICANOS 1. Disponibilidade de alimentosOs movimentos sociais quando advogam pela sobera-nia alimentar fazem-no na perspectiva clara de que o seu alcance passa necessariamente pelo aumento da produção. Aqui reside a questão central sobre como provocar este aumento. Na óptica dos movi-mentos sociais, este aumento da produção deve, em primeiro lugar, ter em vista a resposta aos pro blemas de alimentação humana – comer. O objectivo não é a produção para a obtenção do lucro, mas para a rea-lização de um direito nato – a alimentação da qual depende a existência da pessoa. Assim, esta produção deve ser feita em harmonia com a mãe natureza e observando as regras elementares da cultura e do respeito pelos limites estabelecidos pela natureza. O aumento da produção de uma forma escalonada responde às necessidades da família, da aldeia, da co-munidade, do território, do país, da região e do mundo.

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Bibliografía

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STEIN, Lorenz von. History of the French Social Movement from 1789 to the present, 1850.www.rigthtofood.orgwww.ifoam.orgwww.actionaid.orgwww.africa-union.org

Nunca o inverso. A pre missa básica da independência é a capacidade de auto-alimentar-se, pelo menos em bens primários. 2. Acesso a alimentosA produção de alimentos é sim para servir a espécie humana em primeiro lugar. Assim, o consumo de ali-mentos é o epicentro de toda a cadeia de produção. Os alimentos são produzidos para que as pes-soas possam alimentar-se. Do mesmo modo que a produção precisa responder aos limites da natureza, o consumo precisa responder aos limites da justiça so-cial. Os alimentos devem estar a um preço acessível, de forma a que os consumidores possam ter acesso aos mesmos. O acesso a alimentos nutritivos e sãos não pode ser apanágio de alguns. Os movimentos so-ciais defendem a valorização das formas tradicionais de concepção de ementas. As pessoas devem ter a liberdade de escolher o tipo de alimentos que preten-dem para a sua nutrição3. Uso de alimentosOs alimentos, na dimensão atribuida pelos movimen-tos sociais são igualmente essenciais em outras apli-cações, como a cura e a transformação em outras matérias necessárias para a produção de energia. No entanto, em nenhum momento as outras funções dos alimentos podem perigar o seu objectivo primário - ali-mentar o ser humano.4. SustentabilidadeA produção, conservação, transformação e comercia-lização de alimentos deve ser feita de forma a permitir que todos os sujeitos involvidos tenham benefícios equitativos deste processo. A criação de riqueza deve ser acompanhada de distribuição desses rendimentos ao conjunto de actores involvidos. Para o alcance e manutenção do direito à alimentação, os movimentos sociais advogam, entre outros aspectos, a necessidade de intervenção do Estado na regulação dos processos de produção, conservação, transformação e comercia-lização de alimentos. O Estado, no seu papel interventi-vo e de distribuição estratégica de recursos, deve olhar os produtores (que constituem 80% da população em África) como sendo as unidades básicas de cons-trução do desenvolvimento. Para isso, os movimentos sociais defendem que o Estado deve criar condições propícias, através da adopção de medidas apropriadas que promovam a aquisição de conhecimento e de tec-nologias pelos pequenos e médios produtores. Deste modo, o conhecimento transformativo e inovativo de homens e mulheres camponeses, jovens, produtores de gado, pescadores, sem terra, sem tecto e demais grupos vulneráveis, é aplicado para gerar capital que

transforma a comunidade num actor protagonista do seu próprio desenvolvimento. A sustentabilidade do direito à alimentação reside na capacidade da comu-nidade controlar os 4 níveis acima descritos. Só assim o alimento cumprirá o seu papel de manter a espécie humana enquanto o produtor cumpre o seu papel de produzir os alimentos.

EM JEITO DE CONCLUSÃOO direito à alimentação contribui decisivamente para o aumento das capacidades e das habilidades dos produtores (detentores de direitos), de forma a melho-rar o rendimento familiar, a suficiência alimentar e a independência económica. Contudo, para que tal acon-teça, as comunidades devem ter acesso e controlo de recursos naturais tais como terra, água, sementes, flo-restas e fauna. Esta continua a ser uma área de batalha em muitos países africanos. Os movimentos sociais procuram igualmente que o Estado retome o controlo sobre os mercados, ou pelo menos sobre como estes são regulados.

Os movimento sociais africanos estão, de forma gradual, a construir a sua capacidade de influenciar o modo como a actividade económica é desenvolvida nos países e no continente como um todo.

Os produtores africanos a cada dia fortalecem também a sua consciência política da necessidade de uma luta global para a resoluçãos dos problemas nacionais. Os resultados são visíveis nos fóruns so-ciais e nas transformações estruturais em curso em muitos países de África

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VISÃO DA CNFSC Todas os cambodjanos têm o direito à uma alimentação segura, regular e de qualidade.MISSÃO DA CNFSC Trabalhar em cooperação com outras redes que tenham relevância em nível local, nacional e internacional para que todos cambodjanos tenham acesso ao direito à soberania alimentar, através dos mecanismos adequados.OBJETIVOS DA CNFSC 1. Mobilizar da comunidade, reunir informações e analisar de questões relacionadas à fome, bem como encontrar soluções adequadas a suas próprias comunidades.2. Desenvolver relações de solidariedade dentro e fora das comunidades para combater a fome conjuntamente.3. Desenvolver a capacitação da comunidade quanto ao direito à atividade de subsistência, através de negociação, coordenação, e diálogo em níveis nacional e internacional, assim como ampliar a rede para instituir uma voz mais forte.4. Criar espaços e oportunidades de diálogo com stakeholders relevantes em relação a políticas de alimentação no Cambodja, bem como compartilhar e aprender outras experiências.5. Apoiar mecanismos de participação em nível local, nacional e internacional.

29Kimtheng Sen* e Khy Lim*** Assessora de Segurança alimentar / ActionAid Cambodja

** Assessor de Comunicação / ActionAid Cambodja

Construindo uma rede comunitária de proteção e reinvindicação dos recursos naturais no Cambodja

Em fins de 2006, um grupo de 15 organizações parceiras da ActionAid que desenvolvem trabalho em comunidades implantou a Rede Comunitária para Soberania Alimentar no Cambodja (CNFSC, na sigla em inglês). A rede é constituída por 32 membros vindos de 15 diferentes províncias e cidades, e por um núcleo central de 11 representantes das organizações e comunidades parceiras com experiência em organização e mobilização de pessoas em torno de questões relacionadas ao direito à alimentação. Todos os membros da CNFSC se reúnem duas vezes por ano, para compartilhar idéias e informações referentes a seu trabalho de campanha, bem como desenvolver capacidades entre seus grupos. O núcleo central se reúne trimestralmente para coordenar o acompanhamento das atividades e atualizar planos de apoio, assim como estabelecer novos planos em apoio a qualquer membro que esteja enfrentando problemas graves.A CNFSC claramente definiu estratégias para desenvolver seu trabalho e contribuições para um Cambodja em que “todos os cambodjanos tenham o direito à uma alimentação segura, regular e de qualidade”.

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• Análise crítica, por parte das comunidades, das causas da fome. A fome é causada por exclusão, injustiça e discriminação. Tratar da questão da fome significa lidar com as causas na raiz da fome. O trabalho deve, portanto, orientar-se no sentido de combater estas causas, ainda que algumas necessidades imediatas também tenham que ser necessariamente atendidas.• Desenvolvimento da capacitação dos membros das comunidades da rede: é crucial fortalecer a capacidade dos membros das comunidades de tratarem de outras questões chave, inclusive políticas e legislação.• Vinculação e integração com o processo de Organização da Comunidade: a CNFSC não é um projeto de rede, mas um processo contínuo destinado a mobilizar habitantes locais para analisarem as causas e raízes da fome, bem como encontrar soluções adequadas para tratarem destes problemas. • Solidariedade entre os membros das comunidades (tanto dentro quanto fora delas): sabemos, por experiência prática, que o desenvolvimento de campanhas pode ter êxito apenas se houver um alto nível de compromisso, organização entre as comunidades,

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Pescadores no Cambodja

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e solidariedade entre os participantes das campanhas.• Vinculação à rede em diferentes níveis: a rede deve estar orientada para a comunidade, e suas atividades estratégicas devem ser implementadas em diferentes níveis: local, provincial, nacional e internacional, dependendo das exigências.• Suporte: ONG’s parceiras, outras redes que tenham relevância, e outras ONG’s internacionais e ONG’s locais irão dar suporte à rede.

O que fazem os membros da CNFSC em suas comunidades para promover mudanças? Ao capilarizar as atividades de segurança alimentar da rede, ActionAid e seus parceiros têm ajudado o núcleo central e os membros da CNFSC a fortalecer sua rede, desenvolver a capacitação da equipe focal e dos habitantes locais em relação a questões relacionadas à fome, a organização entre as comunidades, e para reunião de informações e análise das questões. Um exemplo são os trabalhos desenvolvidos por ActionAid e SAMAKY (solidariedade), na província de Kampong Cham. A pesca é a principal atividade de subsistência, seguida por atividades agro-pecuárias, nos 20 vilarejos em que SAMAKY e ActionAid desenvolvem seu trabalho pelo direito à alimentação. Em Kampong Cham, três pessoas focais foram escolhidas, e suas capacidades foram aprimoradas através de várias reuniões sobre segurança alimentar da comunidade com o núcleo central. Estas três pessoas – umas das quais é de uma organização parceira, enquanto as duas outras são da Comunidade de Mien – têm um papel de facilitação na organização de grupos de pessoas da comunidade, aprofundando sua consciência acerca de questões relacionadas à fome, especialmente em termos de seu acesso aos recursos naturais e controle dos mesmos. Elas também criaram oportunidades para que as pessoas comuniquem questões e enviem mensagens a autoridades governamentais de diferentes níveis e aos responsáveis pela exploração dos recursos da comunidade. Este trabalho é muito importante na medida em que tem contribuído para que as pessoas identifiquem as causas

e as raízs da fome e compreendam que têm direitos, e possam trabalhar em conjunto para assegurar que estes direitos sejam cumpridos.

MOBILIZAÇÃO DAS COMUNIDADES E DESENVOLVIMENTO DE SUA ANÁLISE CRíTICA. Reinvindicação de acesso ao Lago Thom. Medindo 3 km de largura e 7 km de comprimento, Thom é o segundo maior lago do Cambodja, depois do Lago Tonle Sap. 12.000 famílias vivendo em três distritos diferentes se beneficiam do Lago Thom. SAMAKY tem trabalhado com 1.500 famílias de nove vilarejos, na Comunidade de Mien para reivindicar acesso ao lago. Isso significa consertar a Barragem de Rolum Por (50 m de largura, 50 m de comprimento e 7 m de altura) e ampliar os espaços de pesca da comunidade. A represa foi construída durante o regime de Pol Pot para aumentar o volume de água retido no lago, liberando-a através de duas caniçadas. Durante anos isso permitiu que a comunidade controlasse o nível de água e peixes de forma sustentável. Entretanto, a represa foi rompida por pessoas em conluio com autoridades locais e distritais para explorarem os recursos pesqueiros.

“Se o lago secar, não teremos peixe ou água suficiente para irrigar os campos de arroz. Para acabar com a fome local, a represa tem que ser consertada urgentemente. Mas a autoridade pesqueira sempre nos impede de fazer isso.” So Ann, 44 anos, uma das pessoas que trabalha como ponto focal em segurança alimentar

Se a represa for novamente impermeabilizada, haverá mais água e, assim, mais espaço de pesca para a comunidade e mais floresta aquática – o que significa mais peixe no lago. Caso contrário, como resultado das fissuras na represa, haverá pouca água remanescente, não haverá peixe e o crescente acúmulo de depósitos de terra aluvial do lago nas proximidades da comunidade, o Lago Keh, que também seca durante a estação seca.

Em 1998, 64% dos lotes de pesca foram distribuídos para acesso privado.O principal proprietário de lotes de pesca, que comprou todo o lago de

uma autoridade distrital, é conhecido simplesmente como Huch, pelos habitantes locais, inclusive pela equipe da SAMAKY. Ele é proprietário de todos os lotes de pesca do lago. O único homem que eles conhecem pelo nome é Tith Try, de 43 anos, que supostamente comprou uma parte do lago situado na Comunidade de Mien, o que significa que ele agora controla as áreas de lotes de pesca na comuna. Lotes de pesca também foram vendidos para outros dez proprietários de lotes de pesca.Como resultado, os vilarejos, que dependem fundamentalmente da pesca para sobreviver, apenas têm acesso à parte central do lago, longe da margem, já que o resto foi distribuído na forma de lotes de pesca de propriedade privada. Desde então, as pessoas pescaram apenas um ou dois quilos de peixe por dia, enquanto alguns pescadores retornam de mãos vazias. Alguns usam o chhib (um instrumento de pesca manual previamente permitido até nos lotes de pesca privados). Usando este instrumento, as pessoas podem passar horas pescando, mas conseguem pescar apenas uma quantidade muito pequena de peixe ou camarão. Esta situação se agravou quando os proprietários começaram a explorar suas redes de pesca e baniram até mesmo a pesca com o chhib.

Apoiei, colocando minha digital no documento, a solicitação da comunidade para que a represa seja consertada e garanta mais água. Mais água para mais peixe. Água para irrigar as hortaliças e para que os animais possam beber. Caso haja mais água represada, haverá mais peixes na floresta aquática. Se o nível da água for mais baixo, eles pegarão com facilidade todos os peixes. Chhoeurn Rein, uma viúva de 50 anos de idade

Existem duas opções para as pessoas “comprarem” o acesso aos lotes privados. Pela primeira, a autoridade pesqueira do distrito permite às pessoas pescarem em lotes de pesca privados se elas pagarem uma taxa anual por família pelo uso das redes de pesca e um bote, ou para uma samrah (barricada).A segunda opção é pagarem pela pesca com seu próprio trabalho: os pescadores recebem 2 porções

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enquanto as outras 8 porções vão para o proprietário dos lotes de pesca.Entretanto, as pessoas podem pagar e entrar nos lotes de pesca apenas durante um período de menos de 4 meses, entre 26 de fevereiro e 1º de junho. De junho em diante, o Departamento da Pesca proíbe toda pesca.

Reinvindicação de acesso ao braço da represa Takot A represa de Takot foi construída durante o regime de Pol Pot, em 1978. Ela foi usada para irrigar arrozais em dois distritos e deveria irrigar cerca de 2.000 hectares de campos de arroz na Comunidade de Mien. Atualmente, o braço da represa beneficia três comunas: Comunas de Mien, Prek Krabao e Chhrey (que pertence a dois distritos: Prey Chhor e Kang Meas).O braço da represa Takot esta situada no vilarejo de Keh, onde residem 118 famílias (515 pessoas). As pessoas sobrevivem da pesca, e do cultivo de arroz e hortaliças.Em 2004, um indivíduo chamado Chuon Vuthy, em conluio com autoridade local, ludibriou as pessoas da Comunidade de Mien fazendo-as assinarem ou aporem sua impressão digital em um arrendamento de 5 anos (vigorando de 9 de outubro 2004 a 25 de abril de 2009), para explorar os recursos do braço da represa. Em troca, foi feita a promessa de construir um canal para que a comunidade irrigasse seus campos de arroz – o que nunca foi feito.

Um homem do local chamado Srun foi contratado para administrar o uso do braço da represa. O arrendatário explorou os recursos do braço da represa todos os anos e proibiu as pessoas comunidade de lá pescarem, contrariamente ao acordo.O arrendatário solicitou uma prorrogação do acordo para a autoridade local, mas as pessoas rejeitaram a proposta. Em vez disso, pediram que o proprietário construa o canal como prometido no acordo de arrendamento. O canal está previsto para ter 15.000 metros de comprimento, 2 metros de largura e 1 metro de profundidade.

Havendo água, as pessoas podem plantar seus cultivos duas vezes por ano. Nós também encorajamos as pessoas a semearem cultivos como

o de milho, que oferece rendimentos mais altos. Elas podem fazer cultivos de subsistência uma estação, ao mesmo tempo em que semeiam cultivos para venda, na estação seguinte. Elas terão água, peixes e colheitas posteriores. Depois de cultivarem arroz, elas poderão pescar peixe em quantidade suficiente para uma refeição, caso o braço da represa seja recuperado e conservado.Sun Chantha, 51, membro da comunidade de pesca SAMAkY e da Comissão de Conservação de Água de Takot

Reinvindicação de terra pelos sem- -terra Além de solicitarem o reparo da barragem de Rolum Por e a construção de um canal adjacente ao Lago Takot, a equipe de segurança alimentar também ajudou as pessoas a pedir terra para ser distribuída aos sem-terra. Cento e sessenta das 207 famílias locais não possuem terra. Na primeira etapa, foi formulado um plano para solicitar terra para 100 famílias.Até agora, os representantes da comunidade recolheram assinaturas sob a forma de impressão digital de 50 famílias. O documento será carimbado pelo chefe do vilarejo e enviado para o chefe da comunidade, para o governador do distrito e, por fim, para o governador da província. A base para esta ação é uma declaração feita pelo primeiro-ministro, Hun Sen − mencionada no jornal publicado em inglês The Cambodja Daily, no ano passado −, ordenando ao governador da província que distribuísse lotes de terra às pessoas sem terra.

DESENVOLVENDO RELAÇÕES DE SOLIDARIEDADE Para assegurar os direitos de ter acesso aos recursos e controle sobre os mesmos, SAMAKY deu suporte para a mobilização de comunidades, bem como para que trabalhem em conjunto com a autoridade local. Até agora, os habitantes locais receberam considerável apoio dos líderes de seus vilarejos. 1.864 moradores de vilarejos, de dez vilarejos diferentes, tomaram parte no processo de solicitação destas ações. Eles enviaram suas petições à comuna em novembro, e ao distrito em dezembro. Contudo, as mesmas foram devolvidas. Os representantes então apresentaram sua petição diretamente

ao Departamento da Província. Eles ainda estão acompanhando os procedimentos de sua solicitação. Os líderes dos vilarejos têm dado muito apoio ao processo.

Quero que todos os moradores do vilarejo façam a solicitação em conjunto. Caso contrário, os representantes do departamento podem não acreditar que nós somos os verdadeiros representantes. Quem sabe, milhares de pessoas pedindo juntas poderão ter êxito.” Chhoeurn Rein

Como chefe do vilarejo, posso apenas aconselhar as pessoas a darem seu apoio. Nós não plantamos. Mas nós pescamos. Se pudermos fazer os reparos na represa, poderemos conservar os recursos pesqueiros. Se você quiser que as pessoas coloquem suas impressões digitais no documento, você só precisa dizer e as informarei publicamente. Estamos ajudando as pessoas em sua tentativa de conservar o lago e beneficiar as jovens gerações. Chea Sok, 56 anos, líder do vilarejo de Chea Sok.

FORTALECER A CAPACIDADE DE DEMANDA DA COMUNIDADE O desenvolvimento das capacidades das pessoas da comunidade – aqueles que realmente sofrem com a exploração de seus recursos pelos proprietários – é uma parte extremamente importante da amplificação de suas vozes e para permitir que se apropriem do processo. Dado o necessário apoio técnico e legal das organizações parceiras, as pessoas que são ponto focal podem auxiliar a recolher informações e a identificar as autoridades pertinentes a quem se deve endereçar as exigências. O conhecimento da Lei de Pesca e seus direitos aos recursos naturais têm sido enfatizados, e tem sido oferecido treinamento sobre pesca comunitária. Ajudar os habitantes locais a entender seus direitos, bem como as causas que estão na raiz da pobreza, e suas implicações, é uma parte importante e integral do trabalho. Quando as pessoas do braço da represa Takot colocaram sua impressão digital no acordo de transferência do rio para que fosse controlado por pessoas privadas, em 2004, elas não tinham idéia dos impactos de sua decisão.

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Nós plantamos aqui, mas compramos peixe no mercado. Isso não tem lógica. Precisamos considerar as causas e a raiz da pobreza das pessoas. Por que o arrozal deixa de ser fértil? Por que as pessoas não podem ter acesso ao braço da represa? Eles não ouvem nossas pessoas. Se a Comunidade Pesqueira de Mien (SAMAKY) – todos os 19 vilarejos – e a mídia não trabalharem juntas, não teremos êxito. O mandato de cinco anos ainda não expirou, mas precisamos começar. Queremos que as pessoas erradiquem a pobreza. Não queremos que empresários nos explorem. Queremos que as pessoas saibam seus direitos e protestem. Nós informamos as pessoas, reunimos informações, reunimos as pessoas para que analisem as causas na raiz de seus problemas e seus impactos. Precisamos ajudar as pessoas a entenderem bem a questão. Cada um se tornou consciente do problema e todos têm dado sua aprovação através de sua impressão digital. Se fosse apenas alguns de nós, eles nos acusariam de rebelião. Mas se somos muitos, eles não terão espaço suficiente na cadeia para prender todos. Trabalho como facilitador da comunidade nas áreas de trabalho da SAMAKY, e a organização me deu treinamento. Não tenho muita escolaridade. Eu não saberia de nada se não tivesse me juntado a eles. Depois de ter ingressado na organização, estou mais consciente. Antes, eu nem mesmo sabia a quem me dirigir para obter cooperação legal.” Much Nim, 55, uma das três pessoas da comunidade que é ponto focal em segurança alimentar

Agora elas entendem as causas e conseqüências. Elas entendem que, se permitirem a continuação da propriedade privada, os benefícios serão ainda maiores para o indivíduo proprietário, em vez da comunidade. Elas aprenderam que têm o direito a pedir o acesso e o direito à sua atividade de subsistência. E elas aprenderam a ter confiança na luta por esses direitos.

Criar oportunidades para o diálogo: promover a mudançaDepois que as pessoas têm consciência de seus direitos e da necessidade de reivindicá-los, foi-lhes dada ajuda para implementar o mecanismo de solicitação destes direitos.Em outubro de 2007, 27 pessoas da comunidade foram selecionadas para um curso de treinamento de dois dias de duração sobre o projeto de estatuto da comunidade pesqueira. Em 27 de novembro de 2007, a Comissão da comunidade pesqueira foi eleita com a assistência e o reconhecimento do Departamento da pesca da província. Seu objetivo é coibir as práticas de pesca ilegais e conservar as áreas de pesca locais. Um grupo de onze representantes (três dos quais mulheres) dos 9 vilarejos da Comunidade de Mien foi eleito. Contudo, mobilizou-se apoio em dez vilarejos. Em março, foi formulado um plano para organizar uma assembléia da comunidade representando as pessoas de nove vilarejos. A assembléia da comunidade – junto com a autoridade local e o Departamento da Pesca – irá formalmente aprovar o estatuto da comunidade pesqueira. O estatuto está sendo finalizado com informações que estão sendo atualmente compiladas para serem incluídas nos 24 artigos do estatuto. Serão definidas contribuições para o uso e conservação dos recursos da comunidade, tais como, por exemplo, o pagamento de 2 quilos de arroz por hectare cultivado para pagar os membros da comissão de conservação da água. O estatuto da comunidade pesqueira permite o uso de instrumentos familiares (redes de pesca com 100 metros de comprimento, arrastões com 20 metros de comprimento ou redes de laço de 5 metros de comprimento). Os habitantes locais concordaram com estes planos.

Kampong Samnagn, chefe do vilarejo, afirma que caso a autoridade da comunidade não intervenha, eles se dirigirão ao distrito e a outros níveis de autoridade. As pessoas levarão alimentos para o protesto. A comunidade organizará um fórum e convidará o Governador da província a tomar parte na discussão acerca da reparação da barragem de Rolum Por, que margeia o Lago Thom e o Lago Keh.O fórum será o espaço para levantar os problemas. O governador será solicitado a visitar a represa para ver o que realmente está acontecendo lá.Em seguida à instituição da comunidade pesqueira, as pessoas do vilarejo em que está situado o braço da represa Takot também escolherão cinco pessoas para trabalharem na conservação de Lago Takot. Além de administrar a água no braço da represa, a comissão tem acompanhado recentemente o cumprimento da promessa. No início de fevereiro, foi lançada uma petição

para responsabilizar as autoridades locais, especialmente a autoridade da comunidade e o arrendatário. Foi pedido ao arrendatário que construa o canal tal como prometido e devolva o braço da represa às pessoas até abril de 2009.

Se eles não concordarem em cumprir sua promessa, iremos bloquear as águas usando varas de bambu. Nós trabalhamos com as pessoas. Temos o direito de prendê-los. Sozinhos somos fracos. Se as pessoas se unirem, podemos fazê-lo. Iremos nos reunir com Srun cara-a-cara. Se eles não concordarem com nossa exigência, partiremos para a ação. Anos se passaram e eles ainda não cumpriram sua promessa. Iremos usar meios pacíficos desde o princípio. Evitamos a violência, ela é contra nossos princípios. Nós trabalhamos para fortalecer nossa comunidade. Se todos forem ricos, seremos ricos por um longo tempo. Estou comprometido a realizar isso.Sun Chantha

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Membro do núcleo central IFSN durante visita de campo.

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33Eduardo Vallecillo Barberena*, Marta Antunes** e Ronnie Palacios***

* Coordenador da REDCASSAN** Coordenadora Global do IFSN / ActionAid

*** Coordenador da REDSSAG

Direito à Alimentação e Ajuda Alimentar: um casamento a desenvolver

O direito à alimentação é um direito humano e uma obrigação bem estabelecida pelas leis internacionais tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e a Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres. O direito à alimentação busca assegurar que todas as pessoas possa alimentar-se com dignidade, e obriga os Estados a respeitarem, protegerem e cumprirem o direito à alimentação.

Uma vez que a fome tem diferentes faces, o direito à alimentação transita na intersecção das identidades das pessoas que passam fome – mulheres, povos indígenas, afrodescendentes, populações rurais/urbanas, camponeses, populações que vivem da pesca artesanal, extrativistas, jovens, pessoas vivendo com HIV e AIDS (PLWHA, na sigla em inglês), e outros.

A combinação da liberalização do comércio agrícola e sua desregulamentação, a concentração e o controle corporativos de mercados agrícolas, o aumento das pressões decorrentes dos efeitos das mudanças climáticas que resultam em colheitas menores, o aumento da demanda global por alimentos, o aumento da especulação em torno das colheitas

de alimentos, aumentos nos preços do petróleo e outros insumos, junto com a febre dos biocombustíveis, fizeram da agricultura uma vez mais o foco das discussões sobre a política internacional de desenvolvimento no seio de um contexto de alta dos preços dos alimentos.

Segundo a FAO, trinta e sete países enfrentam uma assumida crise de alimentos que exige urgente cooperação externa. Como resultado desta crise, os preços mundiais dos alimentos sofreram uma alta de 40% nos últimos 9 meses1. Os preços reais de arroz atingiram o preço mais alto dos últimos 19 anos, em março − um aumento de 50 % em apenas duas semanas semanas − enquanto os preços reais do trigo atingiram os valores mais altos em 28 anos2.

A ajuda alimentar está sendo proposta como uma das soluções de emergência para esta situação, e concordamos que fornecer alimentos em um contexto de urgência e fome extrema deve ser visto como um passo positivo para o cumprimento do direito à alimentação. Não obstante, a ajuda alimentar tem tido um impacto negativo na vida das pessoas mais vulneráveis nos países que recebem ajuda, trazendo danos à segurança e soberania alimentar locais.

Ademais, a transparência relativa ao tipo de alimento fornecido não é respeitada, particularmente no caso de alimentos geneticamente modificados, obrigando as pessoas pobres a consumirem alimentos sem segurança e não adaptados à suas culturas, sem nenhuma opção.

Os países centro-americanos estão particularmente vulneráveis às altas de preços. “No atual estágio, ainda é prematuro fornecer dados, mas tememos um aprofundamento da crise nutricional entre os segmentos mais pobres da população, aqueles que já sofrem com a insegurança alimentar e nutricional,” comenta o Diretor do

Programa Mundial de Alimentação em El Salvador, Carlo Scaramella, que coordena um estudo regional sobre o impacto dos recentes aumentos de preços na América Central. “Ao mesmo tempo, vemos a emergência de um novo grupo de pessoas atingidas pela insegurança alimentar e nutricional entre as camadas mais pobres da população. Estas pessoas tem tido seu acesso à alimentação diminuído em resultado do aumento de preços de gêneros básicos como milho, trigo, arroz e feijões. É um novo fenômeno que pode potencialmente afetar muitas pessoas em toda a América Central”3, acrescenta ele.

“A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), em seu relatório O estado de Insegurança alimentar no mundo 2003 mostra que o progresso na redução da fome ‘está virtualmente parado’. Segundo declaração de seu Diretor General, Jacques Diouf, ‘o problema não é tanto a falta de alimentos, mas a falta de vontade política’. Cinco anos depois, a vontade política dos mais ricos é imposta por eles, na medida em que decidem produzir agrocombustíveis apesar das graves conseqüências para o sistema global de alimentação. Hoje, eles estão preocupados com os preços dos alimentos, mas a especulação em torno dos preços de commodities básicas prossegue. Hoje eles exploram a necessidade de alimentar os pobres como uma desculpa para defender a necessidade de aumentar a produção de alimentos através do uso de organismos geneticamente modificados”. Eduardo Vallecillo, Coordenador da REDCASSAN.

OGM’S E AJUDA ALIMENTARNão sabemos o suficiente acerca dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM’s) para declarar categoricamente se serão perigosos,

A Rede Internacional de Segurança Alimentar (IFSN, na sigla em inglês) reúne 23 redes nacionais envolvidas com segurança/soberania alimentar na Ásia, África e América Latina, e três redes sub regionais na região centro-americana (RedCASSAN), região andina e países africanos lusófonos, tendo a ActionAid Internacional como parceiro coordenador. Uma das principais metas da rede é promover diálogos políticos entre redes da sociedade civil que desenvolvem campanhas em torno da questão da segurança alimentar, governos nacionais e instituições internacionais.

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inócuos ou benéficos em termos de saúde humana e meio ambiente a longo prazo. Isso se aplica aos OGM’s em alimentos, comida animal e sementes. Qualquer organização que promova distribuição de alimentos e sementes, ou apóie tal trabalho, tem uma alta responsabilidade para com as pessoas que recebem esta ajuda, no sentido de assegurar a segurança alimentar e a biodiversidade. As agências que distribuem os produtos derivados da ajuda alimentar têm a obrigação de certificarem-se de que tais alimentos não provoquem danos àqueles que os consomem, e de colocar rótulo nos produtos que contenham OGMs, de

maneira que os consumidores sejam informados e possam decidir se querem consumi-los ou não.

REDCASSAN (Rede Centro-Americana para a Soberania e a Segurança Alimentar e Nutricional) − rede subregional do IFSN na América Central −, que reúne mais de 200 organizações de pequenos produtores, organizações de mulheres, grupos indígenas e ONG’s, relatou diversos casos de OGM’s sendo introduzidos na América Central através da ajuda alimentar.

As atividades de monitoramento, efetuadas pelo Centro Humboldt na Nicarágua desde 2001 como parte da “Campanha de Biodiversidade”

revelaram que o Programa Mundial de Alimentação (WFP, na sigla em inglês) tem distribuído sistematicamente alimentos OGM para grupos altamente vulneráveis através, entre outros, de programas para grávidas, crianças e alimentos para trabalhadores, expondo--os a riscos de saúde. Dentre os cereais introduzidos através de programas de ajuda alimentar se incluem variedades de milho transgênico − produzidas pela multinacional Monsanto e não aprovadas para cultivo ou consumo humano −, e importações da UE.

“Lutamos contra a fome e a desnutrição, e pelo Direito Humano à Alimentação Adequada, que é um direito humano fundamental. Todos os seres humanos têm o direito a exigir que seus governos provejam programas especiais contra a fome em períodos de emergência, estratégias sustentáveis para a produção de alimentos, e os meios de obtenção de alimentos adequados, seguros e culturalmente aceitáveis, livres de todos os tipos de poluentes. Nós também temos o direito à negar a introdução de organismos geneticamente modificados em programas de ajuda alimentar, e o direito a produzirmos nosso spróprios alimentos e protegermos nossos recursos naturais, salvaguardando assim, no processo de produção, nosso meio ambiente e a biodiversidade” Eduardo Vallecillo, REDCASSAN.

A REDSSAG (Rede para a Segurança e a Soberania Alimentar da Guatemala), membro da RedCASSAN, também tem repetidamente denunciado a presença de variedades inadequadas para consumo humano, tais como o milho amarelo Stalink, distribuído em 2005, em Camotán e Jocotán. Em 2007, a presença de 3 variedades de milho transgênico foram detectadas em um “atol” (mistura de farinha de milho com água ou leite) tipicamente fornecido por programas de ajuda alimentar e comercialmente conhecido como Vitacereal, com uma concentração de 62% de produtos transgênicos.

A REDSSAG recebeu vários depoimentos de pessoas que estão usando este “atol” para a recuperação nutricional de crianças com menos de 5 anos, relatando que as crianças sofrem de desinteria. Embora não tenha sido

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Romper o ciclo de dependência da ajuda alimentar significa investir no sistema agrícola do país. Assim, ao mesmo tempo em que a ajuda alimentar é necessária, e bem vinda em casos de emergência (quando seguir critérios específicos), é crucial ajudar os países que são altamente dependentes da ajuda alimentar a promoverem mudanças estruturais em seus sistemas de produção, processamento, armazenamento e distribuição de alimentos

Eduardo Vallecillo Barberena, Marta Antunes e Ronnie Palacios

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1 Humanitarian challenges related to current food trends, documento de discussão da OCHA (Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários, na sigla em inglês). Abril de 2008.2 Food Price Crisis: A Wake Up Call for New Policies to Eradicate Hunger, Anuradha Mittal.3 http://www.wfp.org/english/?ModuleID=137&key=27774 Painel temático “Ajuda alimentar na região”, realizado em 12 de abril de 2008 na Conferência do IPC (Comitê internacional de planejamento, na sigla em inglês) que precedeu a 30a Reunião Regional da FAO em LAC, organizado por Javier Pasquier da organização More and Better Aid e do IPC. CONAVIGUA e ActionAid foram convidadas a fazerem apresentações neste painel.

clinicamente comprovado que estas reações são causadas pelo consumo da mistura, esta é uma fonte adicional de preocupação.

Por estes motivos, a REDCASSAN e a REDSSAG consideram que o direito das pessoas à alimentação adequada está sendo violado pela exposição a transgênicos através de programas de ajuda alimentar, e estão preparando uma queixa em conjunto com as comunidades afetadas.

Nesta situação, deve ser aplicado um princípio precaucionário. Portanto, a União Européia, os EUA e outros doadores devem assegurar que OGM’s não sejam usados em alimentos de ajuda alimentar (p. ex., em programas de ajuda alimentar do Programa Mundial de Alimentos – WFP por sua sigla em inglês), nem introduzidos através de nenhum de seus programas de cooperação, e devem pró-ativamente pressionar agências tais como o WFP no que se refere a esta questão.

DIREITO À ALIMENTAÇÃO E AJUDA ALIMENTAR“A ajuda alimentar chegou na Guatemala quando já estávamos em uma situação de perigo total e extrema vulnerabilidade. Não houve ações preventivas. A solução foi dar uma cesta de alimentação, mas o problema era que não sabíamos como usar estes alimentos. Como cozinhá-los? As mulheres não sabiam como preparar os alimentos que recebiam e ficavam muito tristes com isso. Além disso, o gosto e a consistência eram inapetentes. Me lembro que o óleo que recebemos tinha uma coloração rosada. As mulheres olharam para aquilo e perguntaram: ‘... de onde vem este óleo? Como você o usa?’ Perguntávamos às nossas vizinhas”, conta Magdalena Sarat, uma mulher indígena e coordenadora da CONAVIGUA (Coordenação Nacional de Viúvas da Guatemala).

Ao contar a história de sua experiência com programas de ajuda alimentar na Guatemala, Magdalena Sarat lembra da necessidade de incorporação de critérios de: respeito pela cultura local, respostas permanentes a situações emergenciais, promoção de modelos agro-ecológicos de produção, e participação local em políticas e programas de ajuda alimentar. Ela concluiu seu relato com

a declaração de que “a ajuda alimentar requer uma abordagem sensível à cultura e à identidade”.

QUE TIPO DE AJUDA ALIMENTAR QUEREMOS?A ajuda alimentar deve ser enviada aos países sob a forma de dinheiro em vez de alimentos, e sem imposição de nenhuma condição. A ajuda deve vir através de linhas de cooperação internacional que contribuam para cumprir e proteger o direito à alimentação das pessoas em situação de vulnerabilidade sem discriminação.

Os países precisam ter autonomia para decidir:

• Onde comprar: apenas eles podem decidir obter a alimentação em um país (de uma região não afetada pela situação de emergência ou pelo fracasso da colheita) ou na subregião (favorecendo comércio interfronteiriço).

• Quais alimentos comprar: a transparência no tipo de alimento distribuído é essencial para assegurar os direitos à saúde e o respeito à cultura e à identidade.

• De quem comprar: o uso de licitações públicas como política de desenvolvimento rural é possível apenas se os países receberem a cooperação na forma de dinheiro, em vez de alimentos. Isso permite que os governos introduzam programas de licitações públicas junto a agricultores familiares (incluindo pequenos agricultores e camponeses, pescadores artesanais, afrodescendentes, grupos indígenas e extrativistas), como já fazem o Brasil e o Equador. Estes programas podem ser expandidos se a cooperação vem na forma de dinheiro e tiver base nas lições aprendidas junto a estes dois países.

• Promoção da agricultura sustentável: ao escolher onde comprar, de quem comprar e que tipo de produto comprar, os estados nacionais podem usar a ajuda alimentar para promover uma produção agro-ecológica, pagando uma sobretaxa por produtos social, cultural e ambientalmente sustentáveis.

Romper o ciclo de dependência da ajuda alimentar significa investir no sistema agrícola do país. Assim,

ao mesmo tempo em que a ajuda alimentar é necessária, e bem vinda em casos de emergência (quando seguir critérios específicos), é crucial ajudar os países que são altamente dependentes da ajuda alimentar a promoverem mudanças estruturais em seus sistemas de produção, processamento, armazenamento e distribuição de alimentos, no sentido de:

• Prevenir a vulnerabilidade a situações de emergência: reduzir os impactos das mudanças climáticas e aumentar a resiliência do sistema produtivo;

• Aumentar os estoques de alimentos do país (permitindo que o governo regulamente preços e responda a situações de emergência) através licitações públicas dirigidas para pequenos agricultores e camponeses, pescadores artesanais, afrodescendentes, grupos indígenas e extrativistas;

• Redirecionar os investimentos estatais e multilaterais para promoção da agricultura camponesa e um desenvolvimento rural baseado em tecnologias social, cultural e ambientalmente adaptadas;

• Promover e respeitar os direitos das mulheres, assegurando seu acesso à terra, e aos recursos naturais e produtivos − bem como seu controle − para assegurar sua atividade de subsistência e autonomia de maneira eqüitativa;

• Regulamentar as corporações transnacionais e priorizar a promoção de mercados locais e nacionais.

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p o S t i tRenata Neder FarinaGeógrafa, produtora executiva da revista Food FilesCom a colaboração de Carol kayira / ActionAid - Malawi

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MALAWI Desafios à segurança alimentar e a participação da sociedade civil

INTRODUÇÃO: FOME E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS NO MALAWIRecentemente, o Malawi se tornou conhecido internacionalmente por seu “milagre” no aumento da produção de alimentos através da introdução de subsídios governamentais para fertilizantes e sementes. Contudo, apesar do “milagre”, o país ainda enfrenta grandes desafios para alcançar a segurança alimentar e promover uma agricultura sustentável.A economia do Malawi é fortemente baseada na agricultura. As atividades agro-pecuárias respondem por 36.4% do PIB, mais de 85% da população vive em áreas rurais, e mais de 90% das residências nestas áreas pertencem a agricultores de subsistência. Entretanto, o país enfrenta graves problemas de fome, e permanece o desafio de atingir a segurança alimentar domiciliar.Ao longo das últimas décadas, o Malawi teve déficits de alimentos, dependendo de importações de alimentos e ajuda alimentar para combater a fome.“O Malawi está em um perpétuo estado de emergência alimentar. A maior parte dos agricultores não produz alimentos por mais de quatro meses. Estamos

vivendo no limite, todo tempo. Resolver a crise transitória de alimentos não resolve o problema subjacente, que é a baixa produtividade da agricultura”. (Devereux, 2002)

Governo e sociedade civil estão tentando fazer frente aos desafios de aumentar a produção agrícola e promover a segurança alimentar.

Diferentes políticas têm sido implementadas para resolver problemas de abastecimento e reduzir a fome.As duas últimas estações de colheita (05/06 e 07/08) têm sido as melhores da última década no Malawi, produzindo 23.5 e 32 milhões de toneladas (Mt), respectivamente, frente a uma demanda nacional de 22 Mt. Este aumento maciço da produção agrícola se tornou conhecido como o Milagre do Malawi.Em 2005/06, o governo decidiu investir em subsídios agrícolas para fertilizantes usados nos cultivos de alimentos. Estes subsídios foram agora estendidos também para sementes, constituindo um “pacote da Revolução Verde” para agricultura.As conseqüências negativas da adoção do modelo agrícola da Rev. Verde na Ásia e na América Latina são bem conhecidas, e sua implementação como resposta à fome e à crise de alimentos deve levar em consideração estes problemas.O trabalho de promoção do desenvolvimento enfrenta muitos desafios, mas é particularmente difícil confrontar os aspectos estruturais e emergenciais da

IFSN e FOSANET

A Rede de Avocacia pela Segurança Alimentar (FOSANET, na sigla em inglês) foi instituída em julho de 2004, e lançada em 15 de março de 2005 como parte da iniciativa do IFSN de criar e fortalecer redes de luta pelo direito à alimentação. Hoje, 67 organizações e associações de produtores de gêneros básicos estão representadas na rede. As principais atividades desenvolvidas pela rede são: pesquisa; advocacia e lobby; desenvolvimento de capacidades da sociedade civil; e política de influência.

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Agricultores da Cooperativa Bwayaya no Malawi

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A Cooperativa Bwayaya

Durante uma reunião com a ActionAid, 25 agricultores da Cooperativa Bwayaya falaram acerca dos desafios para a produção agrícola e para a segurança alimentar. Eles ainda passam por períodos de fome e as principais limitações que identificaram são a baixa produtividade, os baixos preços do mercado e baixa renda. Eles identificaram alguns elementos chave que ajudariam a acabar com sua vulnerabilidade e sua fome: acesso a sementes e fertilizantes, e acesso a mercados e a preços justos.

Promoción de la producción agrícola de alto valor

Total Earth Care, organização parceira fundada em 1998/1999, implementa projetos de irrigação, reflorestamento e acesso a mercado. Seus esforços se concentram na promoção de uma produção agrícola de alto valor e de maior renda familiar. A estação das chuvas na região dura cinco meses e se as atividades de cultivo dependerem apenas da água da chuva, a produção ficará restrita a este período. Com a irrigação, tomate, milho, batata doce, alface, feijões e tabaco podem ser colhidos mais de uma vez por ano.O acesso aos mercados é outra área chave do projeto. Os agricultores são encorajados a plantar cultivos de alto valor e a vender diretamente ao mercados em Lilongwe, evitando intermediários. Os agricultores da comunidade também planejam previamente o cultivo que cada um irá colher, de maneira que há suprimento contínuo do mercado.

pobreza simultaneamente. Não é fácil responder a uma emergência ou a uma necessidade imediata e, ao mesmo tempo, concentrar esforços para mudar as causas que estão na raiz da pobreza e da fome.Neste artigo, gostaríamos de fornecer alguns exemplos do combate à fome nestes dois fronts.

ACTIONAID NA LUTA PELA SEGURANÇA ALIMENTAR NO MALAWIA ActionAid começou a trabalhar no Malawi em 1991, e uma de suas áreas temáticas iniciais foi a da Segurança Alimentar e Nutricional. Nesta época, o trabalho estava focado no oferecimento de serviços básicos e infra-estruturas, produção agrícola, água e saneamentoe os primeiros contatos com agricultores seguiram o mesmo caminho.Msakambewa, em Dowa, foi a primeira Área de Desenvolvimento (DA) em que a ActionAid começou a trabalhar no país. Os agricultores da DA salientaram que os principais problemas que enfrentavam na produção agrícola eram a baixa produtividade, a falta de fertilizantes, falta de sementes, secas, enchentes e falta de terra.ActionAid encorajou as comunidades a plantarem cultivos nas estações secas usando irrigação e deu assistência às famílias quanto ao uso de sistemas de irrigação, tais como head loads, watering cans, bombas manuais e motorizadas, gotejamento, e assim por diante. Apesar da diversidade de cultivos – tais como milho, feijões, batata, mandioca,

soja e tabaco –, quando se trata dos hábitos alimentares, as pessoas dão prioridade ao nsima, um produto feito à base de farinha de milho, que constitui a base da dieta diária nas áreas rurais. Como introduzir educação nutricional e diversificar as receitas das pessoas, ao mesmo tempo em que se respeita a cultura tradicional, ainda é um desafio.O acesso ao mercado é outro componente essencial para o êxito das atividades agrícolas geradoras de renda e, conseqüentemente, para melhorar os meios de vida das famílias rurais. Permanece sendo um desafio empoderar economicamente os agricultores para que possam planejar a venda de seus cultivos, em particular o milho, de forma a obterem melhores preços em vez de venderem tudo imediatamente após a colheita a preços baixos. ActionAid também desenvolveu na DA atividades para melhorar o acesso a crédito e o comércio dos produtos agrícolas.Por volta de 2003, a ActionAid mudou sua maneira de trabalhar e adotou uma abordagem baseada nos direitos

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humanos. Era tempo de focar nas causas estruturais da pobreza e da fome.Em nível local, isso significa que alguns serviços chave ainda seriam oferecidos, mas, ao mesmo tempo, o foco seria empoderar as comunidades de forma a promover mudanças sustentáveis e de longo prazo em relação às causas na raiz da pobreza e da fome. As pessoas devem estar capacitadas para reivindicar seus direitos e construir soluções para assegurar sua segurança alimentar e nutricional, melhorar a produção agrícola e aumento da geração de renda.Em Msakambewa, os agricultores se organizaram em oito cooperativas. A ActionAid promoveu cursos de treinamento e atividades de capacitação junto a eles, focando no aumento da produção agrícola e no acesso ao mercado. Estas cooperativas estão hoje vinculadas à NASFAM (Associação Nacional de Pequenos Agricultores do Malawi, na sigla em inglês) e prevê-se que isso melhorará seu acesso aos mercados e oferecerá oportunidades de melhores preços, aumentando sua renda e valorizando sua atividade de subsistência.

FOSANET E O DIREITO À ALIMENTAÇÃOOutro front na luta pela segurança alimentar e nutricional é a implementação, a nível nacional, da estrutura legal do direito à alimentação, assegurando o direito à alimentação e definindo as responsabilidades dos detentores de direitos e dos entes obrigados. A sociedade civil e os movimentos sociais têm sido importantes atores nesta luta. No Malawi, o engajamento da sociedade civil oferece um exemplo do sucesso deste trabalho de advocacia. Desde o advento de uma democracia multipartidária, em 1993, o Malawi tem visto um crescimento substancial das organizações da sociedade civil. O governo do Malawi abriu espaço e convidou a sociedade civil a participar e a juntar forças para combater a fome no país.

“O problema da fome e falta de alimentos no país era grave e constituía uma questão tão complexa que não poderia ser plenamente tratada por

uma única instituição ou organização. Era um problema que afetava a todos e era essencial confrontá-lo. Assim, o governo começou a abrir espaço para o engajamento da sociedade civil e para o trabalho de advocacia, e precisávamos ocupar este espaço.” (Edson Musopole / ActionAid Malawi)

As organizações da sociedade civil se engajaram em diferentes processos que englobavam aspectos distintos do desenvolvimento rural (incluindo a segurança alimentar) e advocacia política. Um aspecto importante de engajamento da sociedade civil no Malawi é sua participação nas discussões e na redação do projeto da Lei da Terra, da Lei de Biossegurança e da Lei de Direito à Alimentação. A FOSANET e outras redes e organizações nacionais têm parte ativa neste processo e já obtiveram importantes resultados.O esboço da Lei de Segurança Alimentar e Nutricional (FNS, na sigla em inglês, ou Lei do Direito à Alimentação) começou em 2006. Um primeiro esboço já estava pronto em dezembro de 2006, e reuniões de revisão foram feitas ao longo de 2007. A proposta final foi finalizada em 31 de outubro de 2007. FOSANET e outras organizações tiveram um papel chave em todo o processo. Esta lei, tal como está atualmente redigida, será um passo importante no sentido de assegurar o direito à alimentação no país. Ela foi redigida dentro do âmbito do direito à alimentação, e estabelece e define:• a obrigação do governo de salvaguardar o direito à alimentação,• as responsabilidades dos atores não-estatais, • políticas para acelerar a efetivação do direito à alimentação, e• a instituição do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional.

Os próximos passos incluirão a apresentação da Lei FNS ao Gabinete de aprovação do Ministério da Justiça, apresentação à Assembléia Nacional na condição de lei governamental e, por fim, sua promulgação. Estima-se que o processo como um todo esteja finalizado em 2009.Tão importante quanto o engajamento da FOSANET,no processo de

implementação do direito à alimentação no Malawi, é o envolvimento das organizações parceiras e de base. Um importante aspecto ressaltado pela rede é a necessidade de melhorar as iniciativas de desenvolvimento de capacidades no país. Embora o governo tenha oferecido um considerável espaço para o envolvimento público, muito freqüentemente a sociedade civil estava insuficientemente preparada para ocupar este espaço. Tendo identificado esta carência, a FOSANET deu início a diversas atividades de capacitação para o aumento da consciência e acesso a informação acerca do direito à alimentação, de forma a melhorar a qualidade de seu engajamento no processo, bem como a de seus parceiros.

ConclusãoAinda há muito a fazer para alcançar a segurança alimentar das famílias no Malawi, incluindo o empoderamento das bases, o aumento da consciência das pessoas acerca de seu direito à alimentação, discussão de seus hábitos alimentares e da diversificação de seu consumo/produção, construção de alianças, de redes, campanhas e engajamento crítico com o governo.A ActionAid no Malawi está contribuindo para enfrentar este enorme desafio e fazer com que o milagre do Malawi esteja mais centrado nas pessoas.

p o S t i tRenata Neder Farina38

R. Phiri, M. Alexander, “Progress and Challenges in Reducing the Number of Hungry People in Malawi in Accordance with the 1996 World Food Summit Plan of Action”, apresentação feita no Workshop sobre o direito à alimentação, 24 de janeiro de 2008, Lilongwe.

ActionAid Malawi, “Msakambewa Evaluation Report” Mwenifumbo, Anganile W.A., (Centre for Environmental Policy and Advocacy)

“The food and nutrition security bill: background, progress and the way forward”, Workshop sobre o direito à alimentação, idem.

FOSANET, Technical Report for 2003.

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39Anna Antwi Assessora de Direito à Alimentação / ActionAid - Gana

GhANA Aumentos repentinos

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de importação de arroz e aves

ActionAid era demonstrar a ocorrência de surtos de importação de produtos agrários no Gana e, caso tenham havido algum, avaliar seu impacto nas perspectivas de desenvolvimento e seus efeitos na atividade de subsistência dos domicílios e comunidades, em termos de segurança alimentar e redução da pobreza.

A liberalização do comércio levou a consideráveis aumentos do comércio global com benefícios acumulados principalmente pelas nações desenvolvidas, com poucos ou nenhum benefício para os países em desenvolvimento, tais como o Gana.

A principal razão para isso rside no fato de que a liberalização do comércio resultou em importações mais altas de produtos baratos subsidiados, competindo com produtos locais e, na maioria dos casos, ocupando o lugar dos produtos vendidos por produtores menores, principalmente agricultores de pequena escala, em seu próprio mercado doméstico. Mais recentemente, os surtos de importações atrairam considerável atenção em

As reformas políticas em Gana desde o princípio da década de 1980 – incluindo Programas de Ajustes Estruturais (SAP’s, na sigla em inglês), mudanças tarifárias, políticas agrícolas e comerciais, bem como as Estratégias para Crescimento e Redução da Pobreza no Gana (GPRS, na sigla em inglês) I e II – tiveram como resultado políticas de liberalização que levaram a significativos aumentos na importação de produtos agrícolas baratos e subsidiados. Para contribuir para o debate sobre os aumentos repentinos de importações, a ActionAid e a Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) colaboraram para a realização de um estudo sobre a extensão e o impacto dos surtos de importação de produtos agrários em países em desenvolvimento. A ActionAid no Gana tem trabalhado em questões em torno da liberalização do comércio e suas consequências para os produtores locais devido às evidentes privações provocadas aos pequenos agricultores rurais. O objetivo geral do trabalho de

círculos de desenvolvimento devido aos grandes aumentos, tanto em volume quanto em valor, de exportações de alimentos do mundo desenvolvido para países em desenvolvimento.Ademais, os surtos de importações se tornaram um tema em evidência devido a seus efeitos deletérios com relação a agro-indústrias, rendas e atividades de subsistência domiciliares em países pobres, dentre os quais se incluem o Gana. Os subsídios agrícolas, no mundo desenvolvido, são em parte responsáveis pela superprodução, resultando em excedentes que são descarregados no mercado mundial. Conseqüentemente, pequenos agricultores não-subsidiados de países em desenvolvimento estão sendo empurrados para fora do mercado, até mesmo em seus próprios países.

O estudo da ActionAid no Gana foi dividido em duas etapas.

A primeira consistiu em uma consulta a stakeholders aos níveis comunitário, regional e nacional, para determinar se havia algum problema relacionado a surtos de importações

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e, caso houvesse, que commodities ou gêneros estariam envolvidos. Estas consultas levaram à seleção de alguns gêneros que foram objeto de surtos de importação recentemente no Gana, dentre os quais se incluem o arroz, aves (ou carne de frango), molho de tomate, óleo vegetal, e carne importada. ActionAid selecionou os dois gêneros mais citados, nomeadamente o arroz e carne de frango. A segunda etapa do estudo envolveu uma análise dos surtos de importação de arroz e carne de frango no Gana e seus impactos nos níveis familiar e comunitário. Comunidades selecionadas em todas as regiões do país foram visitadas para entrevistas e recolhimento de dados. Também foram realizadas entrevistas em níveis regional e nacional.

Surtos de importação de arrozAs importações de arroz, no início da década de 1990, chegavam a mais de 250.000 milhões de toneladas (Mt) por ano, mas caíram para menos de 100.000 Mt por ano, em 1996 e 1997, e posteriormente começaram novamente a aumentar. Desde 2001, quando as importações chegaram a mais de 300.000 Mt, as importações de arroz têm permanecido continuamente altas. Contrastando com isso, os números da produção doméstica de arroz se mantiveram em torno de 150.000 Mt por ano, sugerindo que os níveis da produção doméstica permaneceram estagnados, na última década, ao mesmo tempo em que os volumes de importação continuam a subir. A relação entre os preços do arroz importado e os volumes anuais importados também nos ajudam a dizer se há algum problema relacionado a surtos de importação de arroz no Gana. Os preços por tonelada do arroz importado no Gana se mantiveram os mesmos e, até mesmo, caíram na década de 1990 e princípios de 2000, o que pode ter sido um dos fatores que encorajou os aumentos das importações durante o período. Além disso, os preços médios do arroz local têm sido continuamente mais altos do que a média dos preços de arroz importado, que trouxe para o primeiro plano a perda da vantagem competitiva da indústria de arroz do Gana, tornando o cultivo pouco atraente para os produtores locais.

O empobrecimento de produtores de arroz

O alto preço de arroz local se deve aos altos custos dos insumos que os agricultores não podem pagar, resultando em baixas produções e conseqüentes baixas receitas. Em segundo lugar, os preços pagos aos agricultores pelo arroz têm sido continuamente baixos, uma vez que o mercado está saturado pelas importações, de tal forma que os níveis de renda obtidos pelos agricultores que têm retornos positivos são bastante baixos. Os baixos preços do arroz importado e os preços reçativamente altos do arroz local, levaram a aumentos de importações de arroz, uma vez que os consumidores passaram a consumir o arroz importado barato (embora não tão nutritivo). Por exemplo, a produção local entre 1994 e 2004 foi de 150.000 toneladas em média, ao passo que o volume médio de arroz importado foi de aproximadamente 260.000 toneladas.

O efeito direto das altas nas importações de arroz foram, portanto, rendas decrescentes para os produtores de arroz, com suas implicações correlatas em termos de pobreza. Tal como em 2004, as quedas nos preços de arroz importado resultaram em um aumento no número de produtores locais com retornos negativos (66%).

As altas importações de arroz no Gana afetaram negativamente os níveis e a estabilidade da renda obtida com a produção doméstica de arroz. Conseqüentemente, mais agricultores envolvidos com o cultivo de arroz ficaram empobrecidos.

A insegurança alimentarTradicionalmente, a principal fonte de arroz consumido pelos produtores de arroz era produzida localmente e, assim, a redução na produção implicava em problemas de insegurança alimentar para estes domicílios. Para 84% dos domicílios, sua própria produção de arroz era consumida durante os três primeiros meses de colheita.

A renda consideravelmente baixa dos agricultores locais envolvidos com o cultivo de arroz, implicava também na falta de poder de compra para garantir um acesso regular à alimentação ao longo de todo o ano. Em particular, este estudo confirmou que o arroz é tanto

um cultivo que produz renda quanto alimento para os produtores locais do Gana. Se os agricultores auferirem baixas rendas com a produção local de arroz, devido ao efeito provocado pela alta nas importações de arroz, então eles também perdem seu poder de compra sempre que sua própria produção fracassa.

Condições vulneráveis de subsistência O estudo avaliou as atividades de subsistência dos habitantes locais, em termos de capital humano e social, e como este é afetado por altas na importação de arroz. O baixo índice de alfabetização entre os produtores locais de arroz limita sua habilidade no uso das informações e do conhecimento científico para desenvolverem sua capacidade de atender suas necessidades básicas. Isso pode ser atribuído aos baixos níveis de renda e poupança que resultam dos consideravelmente baixos retornos oriundos da produção de arroz, na medida em que arroz é o principal cultivo gerador de renda para a maioria destes agricultores. Assim, o principal impacto de altas nas importações de arroz é a desvalorização da atividade de subsistência dos produtores. Além disso, as várias análises de sistemas de produção agro-pecuária, realizadas durante o estudo, indicam que o arroz é um importante cultivo tanto para homens quanto para mulheres, e em torno da qual giram suas atividades de subsistência.

A renda financeira obtida com o arroz é usada como suporte para muitas atividades de subsistência, tornando o arroz um cultivo muito importante para estes domicílios. Ademais, grande parte dos domicílios distribuem arroz como “presente “ que, por este motivo, ajuda as comunidades a construírem e manterem sua coesão social. Uma ameaça à indústria local de arroz é, portanto, uma ameaça a esta importante função social.

A indústria de arroz, no Gana, tem sido assediada por importações e requer intervenção pública para criar o ambiente que permita tornar competitivo o arroz local.

A ActionAid apóia os pequenos agricultores e está particularmente

Anna Antwi

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p o S t i t

41

“Me chamo Iddrisu Neidow, tenho 52 anos e sou um agricultor de arroz em Tamale, na região norte do Gana. Tenho estado envolvido com atividades agro-pecuárias há 32 anos. Meus pais cultivavam arroz para pagar nosso ensino e as outras necessidades sociais da família quando éramos jovens. Comecei a desenvolver uma atividade agrícola a partir de 1975, tal como meus pais, para ser capaz de pagar minha própria educação e a de meus filhos. Esse trabalho foi bem até que os mercados ficaram saturados por arroz importado. Hoje, o arroz importado invadiu os mercados ganenses, tornando difícil a comercialização do arroz local. Agora, a vida está insustentável, porque nossa renda proveniente do arroz não pode sustentar a educação as outras necessidades sociais da família.”

interessada em apoiar a indústria de arroz porque seu cultivo ocorre em todas as regiões do Gana. As maiores quantidades de arroz (cerca de 60%) vêm de duas ou três dentre as mais pobres regiões do país, as regiões nordeste e norte. O arroz é um importante produto essencial na dieta de praticamente todos os domicílios ganenses, tornando muito alta a demanda pelo cultivo. A demanda e o consumo de arroz estão crescendo em ritmo acelerado, tornando Gana um importador de arroz.

A ActionAid no Gana, portanto, está disposta a promover a produção e o consumo domésticos de arroz no país, de forma a:

1. criar empregos e aumento de renda em áreas rurais como medida para redução da pobreza,

2. assegurar o acesso à alimentação como direito básico,

3. reduzir a migração rural-urbana, especialmente dos jovens, para evitar o aumento das populações de rua, e

4. reduzir a superdependência de arroz importado do país para poupar divisas estrangeiras

Surtos de importação de carne de frangoUma avaliação das importações de produtos aviários focando, em particular, tipos de carne de frango mostra um aumento continuado dos volumes importados no país ao longo da última década. O setor local de produção de carne de frango foi implantado ao final da década de 1950, atingindo seu ponto ápice em fins da década de 1980, começando a declinar rapidamente na década de 1990 (Ofei-Nkansa, 2004, p. 76). Asas e coxas de frango são os cortes inicialmente importados no Gana até 1997, mas a tendência se altera em favor de níveis mais altos de sobre-coxas de frango. No conjunto, as importações de frango subiram continuamente desde 1995, em que a sobre-coxa predomina, subindo 1.200%, entre 2000 e 2004. A importação de frango inteiro, entretanto, é mínima. Estimativas baseadas nos dados disponíveis indicam que mais de 26.000 toneladas de frango foram importadas no Gana em 2002. Em 2004, os números foram de 40.000 toneladas, representando um aumento de 538% nos volumes importados (FAO, 2005). Atualmente, dois terços das importações de frango vêm dos países da União Européia (UE), sendo Gana o importador de mais de 30% do total das exportações da UE para a África Ocidental (TWN, 2006, p. 40). Dados mostram aumentos abruptos na importação de carne de frango no Gana, de meras 7.000 toneladas métricas, em 2001, para 45.000 toneladas métricas, em 2006, ao mesmo tempo em que a produção local era estimada em cerca de 22.000 toneladas métricas. O cenário que fez do Gana o maior importador de frango da UE, na sub-região da África Ocidental, colocou os produtores locais de carne de frango em uma situação de desvantagem.

As importações de carne de frango mais do que dobram em 2000, quando foi removida a taxa especial para importações. A produção local, em 1992, tinha uma capacidade de incubação de 20 a 25 milhões de aves por ano, dos quais 15 a 20 milhões eram frangos. As importações eram mínimas. Em 2004, a produção local havia encolhido para cerca de 11% das importações (FAO, 2005).

O significado sócio-econômico da indústria da carne de frango no GanaDevido ao aumento das importações, a demanda pela carne de frango local entrou em colapso e ameaçou a subsistência de mais de 400.000 avicultores comerciais registrados no país, além de muitos pequenos produtores.

De acordo com o estudo da ActionAid, em 1992 os avicultores ganenses forneciam 95% da carne de frango para o mercado nacional, mas em 2001 sua participação de mercado havia caído para 11%.

Dentre os principais atores nessa indústria se incluem produtores, produtores de ração, distribuidores, fornecedores de serviço de ampliação e veterinária. Os avicultores se encontram pelo país afora, estando os produtores comerciais mais concentrados em áreas específicas, como as regiões de Accra, Brong Ahafo e Ashanti. Contudo, os pequenos produtores, que constituem aproximadamente 70% dos avicultores, são predominantemente mulheres, vivendo em comunidades rurais e peri-urbanas do país, que criam galinhas como parte da rede de segurança sócio-econômica.

A indústria da carne de frango, em Gana, tem um efeito multiplicador e dá sustentação a vários outros empreendimentos. Entretanto, com o colapso da indústria carne de frango, caiu o número de outros pequenos produtores. Os produtores de carne de frango absorvem cerca de 25% do milho produzido no país, oferecendo assim emprego e pronto mercado para milhares de produtores de milho. No ano de 2002, a capacidade produtiva como um todo das principais granjas em todo o país era de apenas 27%.

Um dos efeitos da concorrência desleal das importações de carne de frango altamente subsidiada é o desperdício resultante da sub-utilização das instalações usadas para produção de carne de frango no país: a utilização de incubadeiras está em 25%, granjas, em 42%; e unidades de processamento, em 25%. A produção de pintos também está em declínio. O segmento de armazenamento de carne de frango importada e de produtos de carne de vaca, em 10 frigoríficos é de aproximadamente 85%; os outros 15% são usados para peixes e outros

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produtos de carne locais. A pesquisa encontrou muito pouca carne de frango local congelada em todos os frigoríficos visitados.

Nos frigoríficos foram encontrados várias centenas de caixas de cortes congelados de frango vindos da Europa e do Brasil, vísceras de boi da Argentina e cortes de carneiro da Nova Zelândia. Os operadores dos frigoríficos são empresários-chave que têm altas margens de lucro como resultado das importações de cortes de frango baratos com pequeno valor de mercado na UE.

Dentre os importadores de frango congelado se incluem homens politicamente influentes, alguns dos quais reconhecem ter um conflito de interesse nas tentativas de votação de uma legislação de segurança alimentar que restringira a importação de carne de frango de certo nível de qualidade. A produção de carne de frango tem sido uma fonte chave de renda familiar e uma fonte regular de proteínas para os domicílios de renda baixa e média, tanto nas partes rurais quanto urbanas do país.

Durante as últimas duas décadas, a liberalização de comércio e investimentos representou as partes centrais da reforma política no Gana. O âmbito político das regras e práticas comerciais que prevaleceram é, em grande medida, resultado de uma combinação da Convenção de Lomé e preferências de Cotonou, das condicionalidades do FMI/Banco Mundial segundo os SAP’s, das regras multilaterais emanadas das negociações na OMC, e das negociações comerciais e políticas comerciais e agrícolas nacionais do ECOWAS (Comunidade Econômica dos Estados Africanos Ocidentais, na sigla em inglês). Não há virtualmente nenhum apoio do governo, e os preços estão caindo, tornando os agricultores mais pobres.

O interesse da ActionAid nas atividades de produção de carne de frango reconhece o potencial de seu efeito multiplicador e o envolvimento de pequenos agricultores, basicamente mulheres, que produzem grande parte da carne de frango e também estão envolvidas na produção dos ingredientes (peixe, milho etc.) usados como ração.

Na região nordeste do Gana, as mulheres criam galinhas como estratégia para assegurar a segurança alimentar durante a estação improdutiva.

As perenes faltas de alimentos freqüentemente compelem as mulheres rurais a usarem carne de frango doméstica para amortecerem os efeitos da insegurança alimentar do domicílio. Isso é feito através da troca de galinhas, galinhas d’Angola, patos e perus por grãos e legumes, ou por dinheiro, através da venda direta, sendo o dinheiro então usado para as compras domiciliares. Conseqüentemente, qualquer mudança nas relações de comércio, ou redução na demanda de carne de frango rural devido ao influxo de importações de frango representa uma importante ameaça à subsistência de muitos grupos vulneráveis.

O caminho à frente: colocar os itens da Segurança Alimentar e Nutricional na agenda comercialCom base no impacto negativo dos surtos de importação de produtos agro-pecuários nos pequenos agricultores que formam a grande maioria de produtores no Gana, ActionAid faz as seguintes recomendações:

1. O governo do Gana deve reconhecer a importância da segurança alimentar e nutricional para o desenvolvimento rural, a redução da pobreza e os direitos humanos fundamentais, e unir forças com o G-33 na busca de regras que assegurem o direito à proteção dos países em desenvolvimento, com base na segurança alimentar e nutricional, e no desenvolvimento rural, em conformidade com as Rodadas de Doha.

2. O Gana deve exercer seu direito à soberania para desenvolver políticas nacionais que assegurem o direito das pessoas, em vez de permitir que suas decisões políticas sejam ditadas por instituições financeiras internacionais ou pelos chamados parceiros de desenvolvimento.

3. Em nível doméstico, o governo do Gana deve estabelecer um ambiente regulatório que ofereça uma vantagem competitiva aos produtores locais de

arroz e de carne de frango, através do legítimo recurso a determinação de tarifas.

4. O governo tem que necessariamente aumentar tarifas ou impor barreiras para itens alimentares importados, e os fundos assim adquiridos serão usados para dar apoio aos agricultores locais.

Recomendações para a ECOWAS:1. Trabalhar para reagir contra tendências emergentes divisionistas no âmbito da ECOWAS como resultado das táticas de negociação da Comunidade Européia em torno das APE’s.

2. Prover cláusulas específicas de mecanismos de salvaguarda nos acordos comerciais regional entre países da ECOWAS que permitam efetivas respostas a surtos de importação.

3. Assegurar que a negociação da Tarifa Externa Comum se baseie em uma avaliação transparente dos produtos que são críticos à segurança alimentar e nutricional, e ao desenvolvimento rural de cada país, e uma região como um todo.

4. Trabalhar no sentido da implementação de ECOWAAP de forma a promover o desenvolvimento industrial integrado da sub-região, com base em uma estratégia industrial comum.

5. Negociações em nível multilateral de apoio à segurança alimentar e nutricional de pequenos agricultores, e do desenvolvimento rural e da erradicação da pobreza no país, em vez dos interesses corporativos.

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43Abdul KajumuloCoordenador de Comunicação, ActionAid - Tanzânia

Uma experiência da ActionAid na luta pelo do direito à alimentação

TANZANIA Podemos ter acesso a um pouco desse crescimento?

A produção agrícola da Tanzânia cresceu significativamente nas últimas décadas. De 2.9%, na década de 1970, e 2.1%, na década de 1980, o crescimento agrícola ao longo das duas décadas passadas obteve uma média de 3.6% (na década de 1990) e de 4.1%, em 2006. O setor de atividades agro-pecuárias da Tanzânia responde por cerca de 50% do PIB que, por sua vez, caiu de 6.7%, em 2005, para 6.2%, em 20061. Este ligeiro declínio se deve às severas secas que atingiram o país durante a estação de chuvas de 2005/2006.Ao mesmo tempo, a pobreza rural e a insegurança alimentar aumentaram neste país em que as vendas de produtos agrícolas respondem hoje por mais de 70% da renda dos domicílios rurais e onde mais de 80% da população depende das atividades agro-pecuárias para sua subsistência,

e cerca de 0.7% produzem castanhas de caju como seu principal produto de venda. Assim sendo, por que as pessoas produzem estes cultivos sem obter uma fatia justa deste crescimento? ActionAid tem trabalhado na Tanzânia desde 1998 promovendo a segurança alimentar entre os agricultores de 9 distritos. Este agricultores estão organizados em 9 organizações comunitárias (denominadas APEX), que compreendem 723.66 membros (dos quais, 35% são mulheres) organizados em uma estrutura de níveis com tripartite de vilarejo, província e distrito.O suporte dado pela ActionAid seguiu duas linhas principais: I) Aprimoramento dos sistemas de produção agro-pecuária e II) Mobilização e fortalecimento dos agricultores e de suas organizações para negociar, com os atores no governo e no mercado, as

questões relativas a seus direitos como produtores e supridores de alimentos. O desenvolvimento de capacidades das APEX’s tem sido, portanto, uma das principais preocupações do Programa para o País na Tanzânia. Com este objetivo em mente, foi dada ênfase à facilitação da eleição dos líderes comunitários − nos níveis de vilarejo, província e distrito da estrutura APEX −, ao treinamento dos líderes em relação a gestão organizacional e liderança, redação de propostas de leis, oferecimento de apoio para assuntos burocráticos e acompanhamento de seu registro junto ao governo local. As organizações APEX combinam os níveis dos vilarejos e das províncias para formar organizações a nível distrital. Isso permitiu aos agricultores organizarem-se e dar voz a suas preocupações sobre seus direitos, incluindo o direito à alimentação.Os agricultores, através de sua organizações distritais locais – dentre as quais se incluem TAFA, NEFA, LIFA, MCAFADA, BACAFADA, KANYOVU, KIPAFADA, PESEFA e ZACPO – e com o apoio da ActionAid, conseguiram obter acesso a informações acerca de vários assuntos relacionados à indústria agro-pecuária na Tanzânia, e têm sido capazes de adotar tecnologias adequadas e mecanismos efetivos de disseminação, introduzir o compartilhamento de informações, bem como alcançar uma compreensão ampla das implicações das modernas técnicas agro-pecuárias, de forma a evitar baixos rendimentos, condições inadequadas de armazenamento e mercados super limitados.Tanzânia é o sexto maior produtor mundial de castanhas de caju, e mais de 280.000 habitantes do país dependem desta commodity como base de sua subsistência. As mulheres são as principais responsáveis pela

A Tanzânia tem um Índice Global de Fome de 26.13, o que significa que o país enfrenta uma situação alarmante de fome.

produção e processamento das colheitas no país.As castanhas são um dos mais importantes cultivos para a renda dos agricultores na Tanzânia, ocupando o 11o lugar no ranking de geração de renda no país em 2005, segundo a FAO.ActionAid vem trabalhando com produtores de castanhas de caju desde 2002, época em que estes produtores recebiam apenas US$2 por quilo, o suficiente para comprar 2 kg de arroz, que constitui a base de sua dieta cotidiana. As organizações de agricultores não tinham acesso aos fóruns de tomada de decisão acerca das políticas relativas às castanhas de caju, e eram meros aceitadores de preços.Através do trabalho desenvolvido com as organizações dos agricultores na construção de alianças, mobilização e desenvolvimento de capacidades, bem como da prática de lobby e advocacia, os produtores de castanhas de caju recebem hoje US$ 5 (o suficiente para comprar 5 kg de arroz), e se tornaram formadores de preço.

MAS COMO SE DEU ESTA MUDANÇA?Antes que ActionAid e suas organizações parceiras na Tanzania interviessem nos distritos, os agricultores eram explorados por compradores: por vezes, os compradores intencionalmente atrasavam a compra das colheitas do agricultores, de forma a torná-los mais vulneráveis e, assim, forçá-los a

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aceitarem preços mais baixos devido à grande quantidade e baixa qualidade – e porque eles não tinham outros mercados alternativos para vender sua produção.Levando em consideração esta realidade, a ActionAid mobilizou os agricultores e suas organizações para conformarem uma voz comum com relação ao valor de seus produtos e pressionarem para que o governo introduzisse políticas de apoio aos agricultores em suas negociações com compradores e comerciantes.O trabalho da ActionAid na Tanzânia envolveu negociações com representantes dos governos locais e distritais para convencê-los da necessidade de reconhecer as vozes dos agricultores como um elemento essencial no desenvolvimento local e distrital. Um aspecto crucial deste trabalho de lobby e advocacia envolveu a persuasão dos governos acerca da importância de incluir estes stakeholders chave nos fóruns governamentais de tomada de decisão. Isso permitiu que representantes de agricultores de 9 organizações APEX participassem destes fóruns, nos quais o estado e o setor privado também estavam presentes.Através do trabalho de lobby e advocacia a nível nacional, o governo introduziu uma nova legislação comercial, e forçou os comerciantes a aderirem a estas novas regulamentações. No ano de 2006, o governo da Tanzânia – nos níveis nacional, regional e distrital – tomou ações efetivas para assegurar que

Posição

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

Produto

Gado de corte

Mandioca

Milho

Leite de vaca, integral, fresca

Hortaliças frescas

Arroz com casca

Bananas da terra

Feijões secos

Sorgo

Batatas doces

Castanhas de cajú

Produção (US $1000)

510,272

504,420

375,326

223,390

179,206

144,847

133,086

126,341

97,592

97,475

65,703

Produção (Mt)

246,713

7,000,000

3,230,000

840,000

955,000

680,000

600,000

290,000

800,000

970,000

100,000

http://www.fao.org/es/ess/top/country.html;jsessionid=F6076C33F1EC2E148A03B40D56500B90?lang=en&country=215&year=2005

houvesse relações comerciais livres e justas entre compradores e agricultores.

Enquanto isso, uma comissão regional e outros representantes governamentais implementaram estratégias para efetivamente controlar e supervisionar o comércio da colheita de castanhas de caju de 2006/2007, visando assegurar que os agricultores recebem preços justos.Durante o ano fiscal de 2007/2008, o governo deu apoio à construção de um armazém para os agricultores de castanhas de caju na região sul do país, para ajudar a mitigar o problema dos baixos preços. Este armazém permitiu aos agricultores armazenarem suas castanhas de caju. Ao mesmo tempo, o governo apoiou a organização dos agricultores em cooperativa.As organizações de agricultores, através de seus representantes, monitoram freqüentemente os compradores, para garantir que estão comprando na taxa acordada. Os agricultores também estão tentando discutir com o governo a necessidade de melhorar o “fundo de insumos para castanhas de caju” – instituído pelo governo para promover as atividades de produção de castanha de caju, voltado especificamente para pequenos agricultores – na medida em que os fundos provaram ser inadequados e pouco confiáveis.Através da prática de lobby e advocacia em favor de uma política de preços justos, a ser adotada pelo governo, os agricultores conseguiram atingir seu objetivo. Os agricultores envolvidos com a produção de castanhas de caju

asseguraram um assento nos fóruns de tomada de decisão dos governos distrital e regional, conseguiram alterar as correlações de força existentes, pressionaram por mudanças nas práticas políticas governamentais, influenciaram o emprego do fundo de insumos para castanhas de caju e adquiram um forte poder de negociação em favor de melhores preços – sendo todos estes aspectos uma realidade cotidiana hoje. Isso tem sido obtido através do fortalecimento do agricultor, um processo facilitado e promovido pela ActionAid na Tanzânia. Os agricultores têm sido mobilizados para conhecerem seus direitos e demandá- -los através dos organismos adequados, engajando-se em atividades de lobby e advocacia que forçaram os líderes governamentais locais a reconhecerem o papel dos agricultores e sua contribuição para o processo de desenvolvimento.A reunião de estabelecimento de preços em 2006, apagou a imagem dos agricultores enquanto grupo enfraquecido por sua pobreza e sua necessidade de lutar por sua própria sobrevivência. Em vez disso, eles participaram do fórum na condição de força coletiva forte e, na condição de proprietários de cultivos de castanhas de caju, eles têm o mandato para decidir os preços em que sua commodity deve ser vendida. Os produtores de castanha de caju recebem agora 5 kg de arroz em troca de 1 kg de castanha de caju, um grande avanço quando comparados aos 2 kg de arroz recebidos anteriormente por quilo de castanhas. Estes são os resultados do trabalho da ActionAid em favor do direito à alimentação na Tanzânia, e do fortalecimento das organizações de agricultores.1 . Relatório sobre Pobreza e Desenvolvimento Humano, 2007.

Posição

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2

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4

5

6

País

Vietnam

Índia

Brasil

Nigéria

Indonésia

Rep. Unida Tanzânia

Produção (US $1000)

543,364

302,234

165,091

139,947

80,158

65,703

Produção (Mt)

827,000

460,000

251,268

213,000

122,000

100,000

Fonte: http://www.fao.org/es/ess/top/commodity.l?lang=en&item=217&year=2005

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Tecnologiassociais Aprendendo com as comunidades locais

O termo tecnologias sociais surgiu da necessidade de abordar a inclusão social a partir de um ponto de vista tecnológico, capaz de contrabalançar o modelo domi-nante de inovação da produção que está baseado em uma concepção econômica. Isso significa encontrar outras soluções que valorizassem o conhecimento não-científico2. As tecnologias mais convencionais têm sido concebidas e desenvolvidas no hemisfério Norte, com pouca (ou nenhuma) influência das comu-nidades e/ou dos campos acadêmico e científico do hemisfério Sul. Como resultado, podemos estar des-perdiçando uma grande variedade de experiências sociais e tecno lógicas3. As tecnologias sociais, e seu potencial de transformação, emergiram no contexto destas experiências alternativas, criando ciclos virtuo-sos de desenvolvimento que podem levar à emanci-pação social, e mostrando que inovação e tecnologia podem ser usadas em favor do interesse geral das so-ciedades. O termo “Tecnologias sociais” tem sido usa-do no Brasil4 desde 2001, mas outros termos também são usados para descrever abordagens alternativas da inovação tecnológica. Por exemplo, na Índia o termo “inovações comunitárias”5 tem sido usado há alguns anos; e a FAO também promoveu várias abordagens alternativas sob a denominação “tecnologias compro-vadas” e “boas práticas agrícolas”.6

O que são Tecnologias Sociais?Tecnologias sociais podem ser definidas como “um conjunto de téc-nicas, metodologias de transforma-ção, desenvolvidas e/ou aplicadas em interação com as populações, e adotadas por elas, que representam soluções de inclusão social e de melhoria da subsistência”7. Cara-cterizam-se principalmente por sua simplicidade, custos baixos e implementação simples, baseando-se em recursos locais e na mão-de-obra di-sponível. Conseqüentemente, estas tecnologias con-tribuem para a geração de renda e emprego, bem como promovem uma melhoria na qualidade de vida das comunidades através de processos locais de desen-volvimento. Em geral, as tecnologias sociais são resul-tado do conhe cimento e da sabedoria popular, embora também possa surgir de interações entre os conheci-mentos popular e científico. As tecnologias sociais en-volvem diferentes esferas, tais como saúde, alimenta-

ção, educação, cons trução civil, trabalho e geração de renda. Desta forma, o ponto principal está no fato de serem construções sociais com características partic-ulares, criadas pelo ambiente em que são desenvolvi-das, estimulando a emancipação social com impactos econômicos, sociais e ambientais positivos.A relevân-cia e utilidade das tecnologias sociais podem apenas alcançar aqueles que delas realmente precisam, caso lhes seja dada visibilidade adequada, e sejam difundi-das e reaplicadas da forma apropriada. Mais ainda, a etapa de reaplicação provavelmente é a mais impor-tante, na medida em que, para tanto, são necessárias informações adicionais. É importante ressaltar que a reaplicação de tecnologias não significa transferi-las de um lugar para outro, mesmo se o proble ma que levou ao desenvolvimento de uma tecnologia social particular seja o mesmo em ambos lugares, na medida em que, na prática, a solução desenvolvida na comu-nidade original pode não funcionar em outra. Contudo, as informações adicionais acerca destes problemas ainda é largamente difundida de forma isolada entre as organizações e comunidades que desenvolvem as tecnologias sociais, o que significa que, até então, elas representam apenas soluções parciais. Um processo adequado de sistematização e disseminação precisa ser implementado, que permita a reaplicação destes

tecnologias em uma escala maior. Isso poderia ser feito adotando-se políticas públicas correspondentes.

Como as Tecnologias Sociais podem promover se-gurança alimentar sustentável?A necessidade de garantir acesso a uma alimentação adequada e disponibilidade de alimentos, baseada em hábitos alimentares saudáveis que respeitem a diversi-dade cultural e a preservação do meio ambiente, revela a natureza multidimensional e intersetorial do tema da segurança alimentar. Vários fatores significativos con-

PRINCIPAIS CARACTERíSTICAS DAS TECNOLOGIAS SOCIAIS:

• Adaptadas principalmente a pequenos produtores e consumidores de baixa renda;• Descartam controle, segmentação, hierarquia e dominação nas relações de trabalho;• Orientadas para o mercado interno;• Promovem o potencial e a criatividade de produtores e usuários;• Geram benefícios econômicos para pequenos empreendimentos, tais como cooperativas populares, incubadoras e pequenas empresas;• Na maior parte das vezes, são multifuncionais e adequadas à solução de mais de um problema, com baixo custo.

João N. PintoPesquisador Associado do Instituto de Estudos sobre a Fome1

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tribuem para o agravamento da fome e da pobreza, tais como a falta de acesso aos recursos e/ou falta da habilidade de transformar estes recursos em bens de capital8. Tal como mencionado acima, na medida em que tecnologias sociais envolvem uma variedade de esferas diferentes, elas podem ajudar a promover a segurança alimentar, dado que esta também depende de um conjunto de fatores variados e interconectados em diversas áreas. Essencialmente, através de suas “inter-vinculações” (vinculação para trás e para frente), as tecnologias sociais permitem a interconexão de diversas estruturas produtivas dentro de economias locais específicas. Estas vinculações conectam várias cadeias produtivas e de valor, em um processo susten-tável de emancipação. Os padrões tecnológicos hegemônicos promoveram a exclusão social e agravaram a fome. Em contra-partida, as tecnologias sociais podem ajudar a mudar este cenário, ao envolver as pessoas e transferir seu conhecimento, experiências e inovações para outras populações. Para que isso ocorra, a construção so-cial das tecnologias sociais deve necessariamente incluir vários atores chave – comunidades, movimen-tos e organizações sociais, formuladores de políticas, comunidade científica, dentre outros – no processo de desenvolvimento e disseminação. Ainda que a necessidade de introduzir políticas públicas urgentes seja amplamente reconhecida, o ponto focal destas políticas tem que ser necessariamente a sustentabili-dade de processos capazes de gerar emprego e renda pelas próprias comunidades, criando ciclos virtuosos de desenvolvimento e assegurando o cumprimento do direito à alimentação.

Uso potencial de Tecnologias Sociais para mitigar mudanças climáticasAs discussões sobre os problemas colocados pelas

João N. Pinto

mudanças climáticas se tornaram parte da agenda política contemporânea devido à crescente evidência da abrangência de seus impactos negativos. Existe uma necessidade urgente de encontrar e implementar alternativas que possam diminuir as conseqüências das mudanças climáticas, combater suas causas e ajudar as pessoas a se adaptarem aos novos padrões climáticos. As mudanças climáticas representam, particularmente, um sério perigo à segurança alimentar de agricultores pobres – a parcela da população que mais sofre de fome e insegurança alimentar. Os agricultores pobres são o grupo mais afetado por três motivos principais: i) a maior parte destes agricultores vivem em áreas da África, da Ásia e da América Latina em que os im-pactos das mudanças climáticas serão sentidos mais intensamente; ii) eles estão menos preparados para fazer frente aos efeitos destas mudanças na medida em que têm limitado acesso a recursos, rendas mais baixas e limitada proteção social, fazendo com que tenham menos condições de fazer face a este cenário; iii) estes agricultores são geralmente dependentes da agricultura irrigada pela chuva, que é o sistema de produção de alimentos mais afetados pelas mudanças climáticas.

É possível identificar pelo menos uma forma principal em que as TS’s podem contribuir para mitigar os efeitos das mudanças climáticas: nomeadamente, ao ofer-ecerem alternativas que podem ajudar os agricultores pobres a se adaptarem e superarem estas mudanças. Acreditamos que os exemplos mais significativos são aqueles das tecnologias sociais que proporcionam a coleta e gestão da água, que podem contribuir de-cisivamente para diminuir os efeitos das mudanças climáticas para agricultores pobres9. Além da coleta e armazenamento de água, outras tecnologias sociais

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Produção de castanhas em Moçambique

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ALGUNS ExEMPLOS DE TECNOLOGIAS SOCIAISAlgumas tecnologias sociais introduzem pequenas inovações que melhoram de forma significativa os processos produtivos de comunidades (tais como a bomba de irrigação a pedal). Outras tecnologias sociais introduzem metodologias ou processos que garantem uma melhor organização entre as comunidades que lidam com produtos que têm um valor agregado significativo (tais como Certificação de sócio-participante). Outro grupo consiste em pequenos equipamentos ou aparelhos que permitem a conservação de alimentos ou acesso a água limpa (tais como secadores solares ou dessalinizadores solares), ou acesso direto, pelas populações, a alimentos frescos isentos de produtos químicos (tais como hortas comunitárias). Ademais, estas tecnologias também podem ser combinadas com vários programas sociais vinculados a suprimento, distribuição e comercialização de alimentos, e à educação alimentar e nutricional. Existem também exemplos de tecnologias sociais que levam ao desenvolvimento de políticas públicas, em alguns países do hemisfério Sul, graças ao envolvimento de organizações sociais. Dentre os exemplos brasileiros se incluem a adoção da multi-mistura (suplemento alimentar para combate da desnutrição), enquanto política de segurança alimentar, ou a construção de cisternas para armazenamento de água da chuva, que suprem a região semi-árida brasileira durante as secas, e que têm sido usadas tradicionalmente no Nordeste há muito tempo.

1 O Instituto de Estudos sobre a Fome (IEH, na sigla em espanhol) é uma organização independente sem fins lucrativos, que busca combater a fome e que congrega pesquisadores, professores e técnicos dos países do hemisfério Sul e da Europa (www.ieham.org). Este artigo baseia-se em um artigo conceitual preparado pelo IEH para ActionAid.2 SANTOS, Boaventura de Sousa. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.3 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. 4 Para mais informações acerca da experiência brasileira com Tecnologias Sociais, favor visitar o site da Rede de tecnologias sociais (www.rts.org.br) ou do Instituto de Tecnologia Sociais (www.itsbrasil.org.br). 5 Informações acerca das “Tecnologias Comunitárias”, da Índia, podem ser obtidas, for exemplo, nos sites da organização Grassroots Innovations Augmentation Network (www.nifindia.org), ou da Society for Research and Initiatives for Sustainable Technologies and Institutions – SRISTI, na sigla em inglês (www.sristi.org), ou ainda da Honey Bee Network (http://knownetgrin.honeybee.org/honeybee.htm). 6 Para mais informações sobre “Tecnologias comprovadas” e “Boas práticas agrícolas,” favor consultar respectivamente as páginas das iniciativas TECA (www.fao.org/sd/teca/index_en.asp) e GAP (www.fao.org/prods/GAP/index_en.htm), da FAO.7 INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL. “Reflexões sobre a construção do conceito de tecnologia social”. En: Tecnologia Social: uma estratégia de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004.8 Entendemos os vários tipos de bens de capital como sendo: Capital produzido: recursos materiais, tais como bens de produção e recursos financeiros; Capital natural: recursos naturais tais como terra, água, biodiversidade etc.; Capital humano: educação, saúde, situação nutricional etc.; Capital cultural: bens de práticas, costumes, crenças, valores, hábitos; Capital social: normas e redes de trabalho que facilitam a ação coletiva e a obtenção de benefícios mútuos. (Extraído de BEBBINGTON, A. Capitals and Capabilities: a framework to analyzing peasant viability, rural livelihoods and poverty in the Andes. Londres. IIED.DFID. Janeiro de 1999).9 Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (2006), a agricultura e, conseqüentemente, a produção de alimentos, será o setor mais afetado por estes problemas. Em algumas regiões, a variação dos padrões pluviométricos e a redução da disponibilidade de água diminuirão o rendimento dos cultivos de alimentos em torno de 25%, ou mais, até 2050. A desnutrição global aumentará de 15% para 26%, o que significa que entre 75 a 125 milhões pessoas irão sofrer potencialmente deste problema, por volta de 2080.

envolvem métodos de irrigação simples e de baixos custos, adaptados a pequenos agricultores que não têm condições de enfrentar secas prolongadas. As se-cas prolongadas também têm graves conseqüências em termos de água para consumo humano e animal. Algumas tecnologias tais como os dessalinizadores solares de baixo custo, contribuem para coletar água com tais propósitos. O uso de fontes alternativas de energia também contribui para diminuir os impactos das mudanças climáticas.

Iniciativa IEh/ActionAid para Tecnologias Sociais A Iniciativa de Desenvolvimento Territorial da Action-Aid emprega uma metodologia de agricultor-para-agricultor e envolve uma pesquisa sobre tecnologias sociais. O IEH, que tem sido parceiro da ActionAid em várias iniciativas relacionadas ao direito à alimentação, tem tentado reunir e disseminar informações acerca de tecnologias sociais que promovam a segurança ali-mentar. Levando em conta ambas iniciativas, a Action-Aid propôs um parceria entre estas duas organizações, com os seguintes objetivos: primeiramente, conscien-tizar e promover a discussão acerca das tecnologias sociais; e, em segundo lugar, encorajar o compartilha-mento de informações e experiências, entre as orga-nizações e as comunidades, de forma a facilitar uma busca comum de alternativas para problemas par-ticulares. Esta parceria se beneficiará da participação da Rede Internacional de Segurança Alimentar (IFSN, na sigla em inglês), que abrange mais de 500 orga-nizações, em 23 redes nacionais e sub-regionais, na África, na Ásia e na América Latina (ver: www. ifsn-actionaid.net).As principais atividades compreendem a identificação e seleção de informações pertinentes acerca de tec-nologias sociais, e identificação de organizações e co-munidades que já tenham alguma experiência com tais tecnologias, e que tenham a intenção de compartilhar seu conhecimento com outros, contribuindo para uma busca conjunta de alternativas. Com este objetivo em mente, estamos lançando dois instrumentos on-line, disponíveis tanto na internet (no site do IEH: www.ie-ham.org) e no site da IFSN (www.ifsn-actionaid.net): uma biblioteca temática, em que informações úteis para divulgação de tecnologias sociais estão orga-nizadas e disponíveis, e um Fórum de Discussão, para contato promocional e compartilhamento de opiniões entre organizações e pessoas interessadas com no tema. O sucesso desta iniciativa depende da partici-pação de todos aqueles envolvidos, de maneira que possamos identificar e disseminar, conjuntamente, ex-periências de êxito que poderão ser úteis para várias regiões e comunidades.

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Camila MorenoPesquisadora do grupo de trabalho em Ecologia Política, CLACSO (Conselho Latino Americano de Ciências Sociais); [email protected]

A agenda dos biocombustíveis vem se impondo – simultaneamente nos países do norte (consumidores) e do sul (produtores). Por um lado, a questão se coloca em termos da adoção de energias ‘renováveis’, permitindo aos países desenvolvidos demonstrar, através da adoção obrigatória de metas de mistura progressiva destes combustíveis, seu comprometimento em mitigar as mudanças climáticas, reduzindo emissões de combustíveis fósseis causadoras do efeito estufa e do aquecimento global, e cumprindo assim com as metas do Protocolo de Quioto. Enquanto isso, para países agro-exportadores tropicais, os biocombustíveis vem sendo promovidos como estratégia de ‘desenvolvimento rural’, apoiados institucionalmente por organismos internacionais como FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e Banco Mundial, além de contar com estratégias regionais específicas; na América Latina e Caribe, especialmente através do IICA (Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Em termos da forma como o debate está se colocando em termos globais, a tônica geral é de que um novo e promissor mercado internacional de agroenergia irá redefinir a produção e o comércio agrícola mundial daqui para frente.Porém, à medida que a produção dos biocombustíveis vem de fato redefinindo rapidamente a realidade do campo e da agricultura em vários países, é fundamental ter claro neste debate as implicações, antes de qualquer coisa, para o direito à alimentação e como a agenda de

Biocombustíveis e Segurança

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promoção do direito à alimentação se mostra, de agora em diante, inseparável da agenda energética. Para compreender no que consiste a ‘febre dos biocombustíveis’ é fundamental priorizar – sem concessões – a segurança alimentar, pois, embora a promoção dos biocombustíveis seja apresentada sob várias rubricas (oportunidade de desenvolvimento rural, alternativa de energia ‘limpa’ no contexto das mudanças climáticas, promoção do comércio a serviço da questão ambiental etc.), o ponto central está em que a era da “agroenergia” (energia obtida através da biomassa cultivada para este fim) implica, indiscutivelmente, na competição e na demanda progressiva pelos mesmos recursos estruturais que garantem o acesso à alimentação adequada da população mundial: terras agriculturáveis e água. Além disso, a alimentação adequada, sobretudo nos países do sul, está condicionada ao acesso à terra para a produção de alimentos, uma agenda ainda inconclusa, mas que deve ser colocada à frente das atuais especulações e da pressão que deve sofrer o mercado de terras para a produção de energia.

ELEMENTOS PARA UM DEBATE CRíTICOA crítica ambiental à efetividade dos biocombustíveis em mitigar as mudanças climáticas – que é afinal

o fim principal ao qual se propõem − está já bem consolidada e é bastante contundente. Destacam-se os estudos divulgados no início de 2008, demonstrando que os biocombustíveis podem de fato agravar o aquecimento global, incluindo-se os cálculos de emissões de efeito estufa (GHG, na sigla em inglês) e o chamado “balanço energético” (ou seja, a quantidade de energia “limpa” que estes combustíveis podem gerar e quanto de energia fóssil é gasta para produzi-los) na avaliação do ciclo de vida do combustível, bem como os impactos ambientais na conversão de vastas áreas aráveis para este fim, o que vem mostrando-se um vetor explosivo para o desmatamento2. Da mesma forma, também já contamos com evidências fortes de por que balisar claramente, e desde o início, a discussão crítica sobre biocombustíveis no contexto da segurança alimentar.

A produção de biocombustíveis já se reflete na alta do preço dos alimentos. Além de especulações aventadas inicialmente, é um fator incontestável e que já se revela bem concretamente. Segundo a FAO3, o preço das commodities agrícolas disparou no ano de 2007: o índice de preços global da FAO (composto por mais de 60 produtos comercializados internacionalmente) subiu 23% em 2007, em relação a 2006, ano em que o aumento de preços foi de 9%, em

Producción de caña de azúcar en Kenya

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relação a 2005; o documento também aponta que 40 países enfrentam déficit de alimentos por razões que incluem “mudanças climáticas, maior consumo de carne, perda de colheitas, guerras e uso de cultivos alimentares para produção de biocombustíveis”. O informe também registra que, em 2007, ocorreram convulsões sociais relacionadas à questão alimentar no Marrocos, Uzbequistão, Senegal e México.

O comércio internacional de biocombustíveis já ameaça a segurança alimentar. Dado que a agricultura de commodities funciona com preços internacionais, uma situação particular em um país acaba resultando em efeitos que afetam todo o sistema, e os altos preços dos produtos agrícolas, em função do uso para biocombustíveis, vem impactando negativamente os países do sul. Na chamada “crise da tortilla”, em janeiro de 2007, o México – atrelado à importações agrícolas dos EUA em função do NAFTA −, viu o preço de seu principal produto alimentar subir 40%, devido ao uso do milho para a fabricação do etanol nos EUA, uso que teve prioridade por ser mais lucrativo. Um efeito da prioridade dos EUA em auto-abastecer-se, garantindo suas seguranças alimentar e energética, causou desabastecimento e inflação nos países dependentes de suas exportações; outros países acabaram aproveitando a situação favorável e vendendo milho para os EUA, o que acarretou escassez e alta de preços em contextos doméstico. Além disso, a alta de produtos como milho (usado para produção de etanol) e soja (usado para produção de biodiesel) tem reflexos sistêmicos e indiretos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a previsão para 2008 (com a maior área agrícola plantada no país desde a Segunda Guerra Mundial) é de que 30% da produção de milho será utilizada na produção de etanol. Além do fato de que uso para produção de energia ocupa uma proporção crescente da produção total, as alta dos

preços do milho acabam permeando toda a cadeia alimentar industrializada: desde os cereais matinais à glicose de milho, utilizada como adoçante e também como componente de rações animais, forma pela qual o fator milho incide no preço de toda a cadeia de carnes, ovos e laticínios etc4. Por outro lado, na Ásia, a alta dos preços do óleo de cozinha, principalmente em função das exportações de óleo de palma para a fabricação de biodiesel na União Européia, vem impactando dramaticamente o total de calorias consumidas pela maior parte do contingente populacional do hemisfério sul que vive neste continente. Nesta disputa desigual, a população pobre e faminta não tem como competir com os carros e o preço que os países ricos podem pagar para transformar alimentos em combustíveis. Por antever a dimensão destes efeitos, o Relator Especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, pediu, ainda em 2007, uma moratória global de cinco anos à produção de biocombustíveis com espécies alimentícias, até que se tivesse tecnologia disponível para a produção de combustíveis a partir de biomassa celulósica, incluindo gramíneas e resíduos agrícolas e florestais.

UM DEBATE PERMEADO DE CONTRADIÇÕESAlém das evidências apontadas − hoje já indiscutíveis − sobre os potenciais impactos negativos, destacamos a seguir as contradições mais importantes da produção dos biocombustíveis que tendem se exacerbar em relação à segurança alimentar:

A agricultura industrial é petro-dependente. Como pano de fundo para o interesse global em relação aos biocombustíveis, há o chamado esgotamento das reservas de petróleo e dos demais recursos energéticos de origem fóssil (gás natural e carvão mineral): além destas reservas já terem alcançado seu pico de extração ou estarem muito próximas disso, está cada vez mais caro e difícil acessar as reservas existentes, e acaba-se gastando mais energia para extrair e transportar um barril de petróleo do que a energia que ele viabiliza. O atual sistema agroalimentar mundial sustenta-se em um modelo industrial petro-intensivo, da dependência de insumos químicos e mecanização, passando pelo processamento, armazenamento e distribuição, que envolve uma grande quantidade de energia a um custo cada vez mais alto. Ou seja, a medida prioritária deveria ser, converter de forma sistemática e efetiva a produção de alimentos, rompendo a dependência de insumos fósseis através do fortalecimento de sistemas produtivos locais, de base orgânica e autosuficientes em alimentos, fibras e energia.

O atual sistema agroalimentar mundial é um colapso anunciado.Um elemento central das distorções do sistema alimentar globalizado – e que constitui uma ameaça cada vez mais palpável à segurança alimentar – é o custo das chamadas ‘food miles’, milhas dos alimentos, ou seja, a quantidade de unidades de energia consumidas no transporte dos alimentos ao redor do globo, a partir

“Movimentos sociais globais, especialmente dos países do Sul, fizeram-se ouvir no Fórum Global de Soberania Alimentar, Nyeleni, 2007. Realizado em Mali, África, mais de 600 participantes de várias partes do mundo reuniram-se no Fórum para celebrar uma década de luta pelo direito dos povos de produzir seus próprios alimentos e a decidirem suas políticas alimentares. Movimentos sociais e sociedade civil, incluindo camponeses, organizações ambientalistas, redes de consumidores, etc., concordaram que ‘biocombustíveis’ produzidos a partir de monoculturas industriais controladas pelas corporações deveria ser denominados ‘agrocombustíveis’, tornando mais clara a conexão com o agronegócio e o controle das empresas multinacionais.

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IMOP 4 e COP 94º Encontro de Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança e a 9º Reunião de Partes da Convenção sobre Biodiversidade), Bonn, Alemanha; 12-16 e 19-30 maio. Info at: http://www.cbd.int/meetings/FAOConferência Internacional sobre Segurança Alimentar Global e os Desafios das Mudanças Climáticas e da Bionergia, Roma, Itália, 3-5 maio. Info at: http://www.fao.org/foodclimate/Conferência Internacional sobre BiocombustíveisSão Paulo, Brasil, 17-21 de novembro, Info at www.mre.gov.br

Todos estes eventos terão mobilizações e fóruns paralelos da sociedade civil.

1 Entre outros: Timothy SEARCHINGER, Ralph HEIMLICH, R. A. HOUGHTON, Fengxia DONG, Amani ELOBEID, Jacinto FABIOSA, Simla TOKGOZ, Dermot HAYES, Tun-Hsiang YU, “Use of U.S. Croplands for Biofuels Increases Greenhouse Gases Through Emissions from Land-Use Change”, Science 29 de fevereiro de 2008: Vol. 319. no. 5867, pp. 1238 – 1240.2 Ver Agrofuels – Towards a reality check in nine key areas, de Biofuelwatch, Transnational Institute, et al. julio de 2007. At: http://www.carbontradewatch.org/pubs/Agrofuels.pdf; SCHLESINGER, S. & ORTIZ, L. Agronegócio e Biocombustíveis: Uma Mistura Explosiva – Impactos da expansão das monoculturas na produção de bioenergia no Brasil. FBOMS,

de onde são produzidos até o local onde são consumidos. Aqui se inclui o cálculo do custo dos fretes no preço final e na acessibilidade de alimentos que, muito provavelmente, não terão preço comercialmente viável, e do impacto do consumo de combustíveis (e do total das emissões poluidoras) do transporte rodoviário, mas também dos navios graneleiros (e sojeiros) ao redor do globo, e até do transporte aéreo. Com a tendência irreversível de alta e escassez do petróleo a relocalização da produção de alimentos é uma medida urgente para construir, com base na segurança alimentar, uma transição segura para a economia e a agricultura pós-petróleo. A agricultura tem um papel fundamental a jogar no contexto dos desafios colocados pelas mudanças climáticas: muito além das mudanças cosméticas sugeridas na adição de biocombustíveis ao transporte individual de países ricos, o esforço coordenado deveria adotar como eixo a conversão da agricultura industrial em arranjos locais e autosuficientes de produção e distribuição de alimentos e energia, que cortem na raiz as contradições deste sistema petro-dependente – a ser aprofundado cada vez mais pela produção industrial de biocombustíveis, ameaçando a segurança alimentar da humanidade.

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Produção de cana de açúcar no Quénia

2006. Em: http://www.natbrasil.org.br/Docs/biocombustiveis/biocomb_ing.pdf.3 FAO Perspectivas Alimentarias 2007, em setembro de 2007 representou um pico de alta de 37% (comparado ao mesmo período no ano anterior). Em: http://www.fao.org/docrep/010/ah876e/ah876e13.htm4 No ano de 2007 os preços em alta dos grãos e da energia contribuíram para a alta de preços nos alimentos nos EUA que subiu 4% em um ano, mais do que a inflação média dos preços ao consumidor, e a previsão para este ano seja um aumento de 3.5% a 4.5%, em função do custo da energia. US Departmente of Agriculture, updated 26 March, 2008. Em: http://www.ers.usda.gov/Briefing/CPIFoodAndExpenditures/

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Mulheres por um futuro sem fome

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