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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 185, nov., 2009. EDITORIAL A seção Temática desse Correio é dedicada à publicação de alguns dos trabalhos elaborados ao final do Percurso de Escola da APPOA, em sua oitava edição. Compõe-se de textos escritos a partir da disposição de cada um dos autores em compartilhar conosco, seus pares na instituição, as elaborações deste momento de seu ‘percurso’. Houve um tempo de estudos, em seminários dirigidos por coordena- dores; teve lugar o trabalho de cartéis, acompanhados pelos ‘mais um’; ocor- reu acompanhamento individual das produções; houve formação do ‘Cartelão’, no qual cada um teve a oportunidade de apresentar sua produção para deba- te e, finalmente, produziu-se uma jornada para apresentação de alguns des- ses trabalhos. Nessa jornada, considerou-se pertinente que a instituição marcasse sua posição, relativamente à responsabilidade quanto ao ensino e à trans- missão da psicanálise, resultando em intervenções, também publicadas nesse número, de abertura e encerramento. Assim, esse Correio é mais uma forma de compartilhar os efeitos desse tempo de trabalho conjunto, bastante gratificante e intenso, em que as singularidades de cada ‘percurso’ puderam tomar corpo em forma de tex- tos.

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Page 1: EDITORIAL A - APPOA · JORNADA DO GRUPO DE ESTUDOS FREUDIANOS DE MACEIÓ Realizou-se em Maceió, nos dias 08, 09 e 10 de outubro, a Jornada “TRANSFERENCIA”, com a presença de

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 185, nov., 2009.

EDITORIAL

Aseção Temática desse Correio é dedicada à publicação de algunsdos trabalhos elaborados ao final do Percurso de Escola da APPOA,em sua oitava edição. Compõe-se de textos escritos a partir da

disposição de cada um dos autores em compartilhar conosco, seus paresna instituição, as elaborações deste momento de seu ‘percurso’.

Houve um tempo de estudos, em seminários dirigidos por coordena-dores; teve lugar o trabalho de cartéis, acompanhados pelos ‘mais um’; ocor-reu acompanhamento individual das produções; houve formação do ‘Cartelão’,no qual cada um teve a oportunidade de apresentar sua produção para deba-te e, finalmente, produziu-se uma jornada para apresentação de alguns des-ses trabalhos.

Nessa jornada, considerou-se pertinente que a instituição marcassesua posição, relativamente à responsabilidade quanto ao ensino e à trans-missão da psicanálise, resultando em intervenções, também publicadas nessenúmero, de abertura e encerramento.

Assim, esse Correio é mais uma forma de compartilhar os efeitosdesse tempo de trabalho conjunto, bastante gratificante e intenso, em queas singularidades de cada ‘percurso’ puderam tomar corpo em forma de tex-tos.

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NOTÍCIAS

2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 185, nov., 2009.

NOTÍCIAS

OFICINA DE TOPOLOGIADATA: 21/11 – SÁBADO

HORÁRIO: DAS 10H ÀS 12HLOCAL: SEDE DA APPOA

A superfície de BoyDa letra ao corpo...Uma passagem entre duas referências, como da ‘letra’, que pertence

ao registro do Real (à álgebra), ao ‘corpo’, pertencente fundamentalmente aoImaginário (topologia das superfícies), foi intuída por Lacan, embora ele nãotivesse como prová-lo. Isso está pouco a pouco sendo teorizado e descritoformalmente (matematicamente).

Werner Boy (aluno de Hilbert) descobriu ou “inventou” uma linda estru-tura em 1901, quando tinha apenas 21 anos. Como Lacan, ele não tinhacomo formalizá-la, e acabou morrendo precocemente, sem resolver esteenigma... Somente em 1981 ela foi descrita formalmente.

Trata-se de uma variedade unilátera, sem bordo, fechada sobre simesma. Ela tem muitas formas de apresentação – desde uma continuidadeda banda de Mœbius tripla (como Lacan sugeriu no seminário Momento deConcluir), até como um mergulho do nó borromeu em D3.

No Seminário de Topologia da APPOA, temos pensado nesta superfí-cie como uma passagem possível entre as estruturas.

Venha desenvolver conosco esta ideia!

OFICINAS de TOPOLOGIA da APPOACoordenação: Ligia VíctoraAs oficinas são gratuitas e abertas aos interessadosFreqüência: semestral

APPOA E A 55ª FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE

A APPOA aposta na inserção do discurso psicanalítico no diálogocom os outros discursos; por isso faz questão de estar presente nas praçaspor onde circulam muitas vozes. Participar desse “burburinho” da cultura,muito mais do que mera difusão da psicanálise, constitui-se num exercícioda castração, desafio que acompanha nossa permanente formação comoanalistas.

PROGRAMAÇÃODIA 13 DE NOVEMBRO (6ª FEIRA)

NO PAVILHÃO CENTRAL DE AUTÓGRAFOS17h30min – Sessão de autógrafos dos autores:- Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Da infância à ado-lescência: os tempos do sujeito, Porto Alegre, n. 35, jul/dez. 2008.- Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Clínica da angústia,Porto Alegre, n. 36, jan/jun. 2009.

Obs: Solicitamos que os membros da Appoa retirem seu exemplar daRevista n. 36 com antecedência na secretaria da Appoa, a partir do dia 4 denovembro. Na Feira, haverá somente exemplares para comercialização naBarraca da Arteliter, ao lado do Bistrô do Margs e, no dia, também na Barra-ca de autógrafos.

NO SANTANDER CULTURAL, SALA OESTE19h – Mesa-redonda: WOODSTOCK, 40 ANOS DEPOIS – Diálogo sobre aimportância e o legado do Festival de WoodstockPARTICIPANTES:Robson de Freitas Pereira (Psicanalista/APPOA)Juarez Fonseca (Jornalista, escritor)Luís Augusto Fischer (Professor de literatura/UFRGS, escritor)

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NOTÍCIAS

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NOTÍCIAS

SEMINÁRIOO DIVÃ E A TELA

PSICANÁLISE, CINEMA E O MAL-ESTARNA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

06 de novembro (sexta-feira) – 19h, A conquista da honra, de Clint Eastwood20 de novembro (sexta-feira) – 19h, Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais

FESTA DE FIM DE ANO

Venha comemorar os 20 anos da APPOA no dia 05 de dezembro, às20h, na nossa tradicional Festa de Fim de Ano.

Os convites estarão à disposição na secretaria.

JORNADA DO GRUPO DE ESTUDOS FREUDIANOS DE MACEIÓ

Realizou-se em Maceió, nos dias 08, 09 e 10 de outubro, a Jornada“TRANSFERENCIA”, com a presença de membros da APPOA.

Além dos colegas do GEFM – que organizaram a Jornada – apresen-taram também seus trabalhos: Ana Sílvia Espig Lang (APPOA - Maceió),Charles Lang (APPOA - Maceió), Ivan Corrêa (CEF- Recife), Ligia Víctora(APPOA - Porto Alegre), Luis Fernando Lofrano de Oliveira (APPOA - SantaMaria), Maria Auxiliadora Gomes (GEFM-AL) e Ricardo Pires (Psicólogo -Porto Alegre), entre outros profissionais de Maceió, João Pessoa e Recife.

Na ocasião, Ligia Víctora ministrou o curso: A topologia na clínica daNeurose e da Psicose.

EXERCÍCIOS CLÍNICOS:SUPERVISÃO E ATO ANALÍTICO

Apresentador: Carlos Henrique KesslerDebatedores: Robson Pereira e Marta Pedó. Data: 07 de novembro de 2009Horário: 10 horasLocal: Sede da APPOA

Os Exercícios Clínicos, promovidos pelo Serviço de Atendimento Clí-nico da APPOA, são uma modalidade de trabalho institucional que acolhe asquestões que a prática clínica nos coloca. Sabemos que aquilo que resta daescuta da clínica e nos põe a falar encontra na análise pessoal e na supervi-são o seu endereço certo. Apesar disso, sempre fica um resto. Uma daspossibilidades de falar deste resto, institucionalmente, são os debates dosExercícios Clínicos.

A própria supervisão parece-nos um tema pertinente para propor como‘Exercício Clínico’. Considerado como um dos elementos consagrados comoindispensáveis à prática e formação do analista – juntamente com a análisepessoal e o estudo teórico –, no entanto, não é trabalhada teoricamente namesma proporção dos outros dois. Cercada por polêmicas, desde o nome(supervisão, controle, análise quarta, análise de controle...); se é para iniciantesou fundamental para toda a trajetória clínica; a realizar com um ou diversosanalistas; com o próprio analista, ou jamais com o próprio analista...

Vamos então propor, para um início de reflexão, retomar alguns ele-mentos do entorno de Freud e Lacan, chegando à indagação deste sobre oato analítico, no Seminário XV.

Atividade aberta a todos os interessados.Vagas limitadas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

que ocorre também em outros campos, constitui uma resposta contemporâ-nea ao mal estar: a ilusão de que poderíamos preencher a falta com o conhe-cimento.

Sabemos que a teoria psicanalítica traz elementos consistentes paraa interpretação do sujeito e de sua posição no laço social. Aliás, a criação do‘Instituto APPOA – Clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise’ veio res-ponder ao reconhecimento dessa perspectiva e à consequente responsabili-dade que sua sustentação coloca aos psicanalistas.

Isso é muito diferente de tomar a psicanálise como um conhecimentoe propor um curso de especialização. Apesar da pressão que se dá porvárias vias, por exemplo, na valorização de titulação, não inscrevemos oPercurso de Escola como curso de especialização no Ministério de Educa-ção.

A apresentação do Percurso de Escola como ‘um lugar possível dodesdobramento das perguntas que o encontro com a Psicanálise coloca acada um situa, para nós, a abertura necessária para permitir’ uma apropria-ção da psicanálise que é sempre singular e articulada ao desejo. Assumi-mos nossa responsabilidade em planejar e sistematizar o estudo dos textosfundamentais, cuidamos para que condições de transmissão sejam possibi-litadas, seja através da indicação de analistas para a coordenação dos semi-nários, ou do constante debate acerca da implementação do trabalho noPercurso, mas preservamos o Percurso de Escola como um lugar em que seespera e possibilita o ‘percurso’ de cada um.

Nós sabemos que do encontro com a psicanálise não se sai ileso. Hávias diversas para o desdobramento das conseqüências desse encontro.Uma dessas possibilidades é a formação de psicanalista.

Na APPOA, somos muito rigorosos nesse aspecto. Nos mantemoscoerentes com Freud e Lacan, que situaram a ‘análise pessoal’ como o pilarda formação do psicanalista. Experiência basilar do percurso pelo inconsci-ente, experiência pessoal do laço transferencial e experiência da ética psi-canalítica em ato, a análise pessoal, suficientemente percorrida, constitui ocerne da formação de um psicanalista.

APPOAJORNADA DO PERCURSO VIII

19 DE SETEMBRO DE 2009ABERTURA

Lucy L. da Fontoura

Écom muita satisfação que, em nome da APPOA, recebemos vocêspara esta Jornada do Percurso VIII.

Este ano, a APPOA completa vinte anos e a jornada que ora começacorresponde à oitava edição do Percurso de Escola da APPOA. Para alémda contabilização dos anos e edições, o que nos toca nessas referências éa interpretação de que temos aí uma história. Dessa história somos tributá-rios, com ela temos compromisso.

Quero falar um pouco do que sustenta o Percurso de Escola daAPPOA; para isso gostaria de ler o primeiro parágrafo do texto que apresen-ta o Percurso na homepage e no folder de divulgação.

“O Percurso de Escola faz parte do quadro de ensino da APPOA,desde 1994, como um lugar possível do desdobramento das perguntas que oencontro com a Psicanálise coloca a cada um. Esta proposta inscreve-secomo um espaço de estudo sistemático dos textos fundamentais de Freud eLacan, bem como das disciplinas que com eles dialogaram no transcurso daconstituição e consolidação da psicanálise, como a Lingüística, a Antropolo-gia, a Literatura, a Filosofia e as Artes em geral. O Percurso de Escoladestina-se àqueles que se sentem concernidos pela Psicanálise e pelasquestões que ela suscita”.

Escolhi recortar essas palavras, porque elas me parecem expressarapropriadamente a inclinação que na APPOA nos norteia, na proposta e naimplementação do Percurso de Escola.

Desde a criação do Percurso, nesses quinze anos, assistimos a umaproliferação de cursos de ‘especialização’ em psicanálise. Esse fenômeno,

FONTOURA, L. L. DA. APPOA Jornada do Percurso VIII.

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SEÇÃO TEMÁTICA

O QUE EMERGE NO FAZER ARTÍSTICO – ANÁLISEDE UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

Um dia resolvi começar a pintar com tintas sobre tela e iniciar umfazer artístico, movida pela minha imaginação e emoção. Ansiavapor expressar algo, uma sensação do mundo. Pintava sem nenhu-

ma orientação e logo entrei num curso de artes plásticas para dar contadeste meu “querer” pintar/desenhar. Falo querer, mas segundo Sousa (2009)há algo de radicalidade que ultrapassa a instância do querer no processo decriação.

O espírito deste texto é transmitir uma experiência pessoal com acriação e, a partir dela, pensar a criação de uma forma geral.

O fazer artístico se caracteriza por produzir objetos que não têm utili-dade dentro da lógica pragmática que caracteriza nosso tempo, mas quetêm a função de canalizar uma pulsão, uma resistência (SOUSA, 2009): aresistência do objeto – o objeto como resto – e mesmo a resistência a umcircuito de valores de uso orientado por uma economia do capital, pois ovalor das formas de arte é único e se mantém através das mudanças eco-nômicas.

Freud no texto “Totem e Tabu” comenta que somente na arte aconteceque alguém “consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realiza-ção destes desejos e o que faça com sentido lúdico, produza efeitos emoci-onais [...] como se fosse algo real”. Voltando à minha produção pictórica,havia inicialmente um ambiente onírico nas primeiras telas: eram seres nus,de cabelos longos que cobriam o rosto ou sem cabelos, os pés eram comoque raízes. Estes seres se encontravam em paisagens de terrenos ondula-dos com árvores sem folhas e algumas cortadas. A estrutura interna dasárvores cortadas e das figuras humanas era a mesma. O fundo era secundá-rio nos quadros, o que importava eram os seres. Entretanto, em um dosquadros desta fase, aparece uma casa com grades nas janelas; pedaços de

Mas não só.A ‘supervisão’ é o outro pilar do famoso ‘tripé’ freudiano. A supervisão

clínica psicanalítica também consiste numa experiência: a de falar da trans-ferência em que se está tomado para outro analista, situação em que seproduz uma alterização da escuta. Trata-se de uma experiência formativaque visa transmitir o método próprio à psicanálise e sua potência operatória:que a verdade surge da interpretação e que isso pode mudar o curso de umavida.

Mas não só. E aqui enfatizo o duplo sentido: não sozinho. Na forma-ção do psicanalista, as dimensões da alteridade, vividas, por exemplo, nastransferências de trabalho constituem parte essencial. Aqui o lugar da insti-tuição psicanalítica, no trabalho com pares, no exercício ‘alterizado’ da psi-canálise, no cuidado com sua transmissão e difusão.

Na perspectiva desses elementos, muito sucintamente evocados,penso que fica enunciado nosso entendimento de que um percurso peloPercurso de Escola pode vir a constituir um movimento na direção de umaformação. Entendemos que é responsabilidade da instituição psicanalíticaapresentar as condições que permitam que um desejo de formação encontreas vias através das quais possa ser levado à consequência.

Nesse sentido, este momento de ‘conclusão’ fica para ser relançado,a partir da enunciação de cada um no âmbito da instituição.

Eu me sinto honrada de fazer esta abertura – honrada e responsabili-zada – em nome da APPOA, esse significante no qual convergem nossasaspirações, nossas realizações e nossos limites. Em nome de cada um doscolegas que faz e fez parte da Comissão responsável pelo Percurso de Es-cola, em nome de cada um dos colegas que trabalhou nos seminários, noscartéis, nas supervisões e na preparação da Jornada. Em nome dos inte-grantes do Percurso VIII, que partilharam este percurso, que se dedicaram aproduzir uma elaboração e que se dispuseram a compartilhá-la publicamen-te, seja hoje nesta jornada, seja através da publicação de suas elaboraçõesa seguir, declaro aberta a Jornada do Percurso VIII e desejo um bom trabalhoa todos nós.

OLIVEIRA, M. T. G. DE. O que emerge no fazer artístico...

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SEÇÃO TEMÁTICA

“O erotismo é, na consciência do homem, aquilo que põe nele o serem questão” (BATAILLE, 1987, p.27) e “o que está sempre em questão ésubstituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento decontinuidade profunda”. No erotismo o eu se perde. Ainda ao articular erotis-mo e beleza, Bataille (1987, p.133) diz que “a beleza é no objeto aquilo queaponta ao desejo, particularmente se o desejo, no objeto, visa menos à res-posta imediata (a possibilidade de exceder nossos limites) que a posse de-morada e tranqüila”.

Qual a origem da experiência estética? Nos ensaios estéticos de WalterBenjamin o conceito de origem, analisado por Gagnebin (2007), é apresenta-do como salto para fora da sucessão cronológica niveladora à qual uma certaforma de explicação histórica nos acostumou. Na metáfora benjaminiana da“constelação”, da ligação inédita entre dois ou mais fenômenos históricos,se desenha um novo objeto histórico que emerge para fora da cronologia. Arememoração do passado não implica uma restauração do passado, masuma transformação do presente, tal que o passado perdido aí foi reencontra-do pelo estabelecimento de uma nova ligação entre passado e presente eemergência do diferente.

Lacan, no Seminário 11, usa o termo “esquize” do olho e do olhar parafalar da manifestação da pulsão no campo escópico: Somos capturadospelas cores, pelas formas, pelo jogo de luz e sombra... – o olho – e por maisalguma outra coisa – o olhar- na criação estética. Freud, no estudo sobreLeonardo da Vinci, comenta que o artista ficou enfeitiçado pelo sorriso daGioconda e reproduziu este sorriso em todos os rostos que veio a pintar edesenhar. Estas feições já se encontravam há muito tempo na mente deLeonardo que se sentia forçado a dar-lhe novas formas de expressão e queseria o sorriso de sua mãe Catherina.

No texto “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jansen”, Freud comenta ahistória de jovem arqueólogo Norbert Hanold atraído por um relevo, num mu-seu de antiguidades. O relevo em mármore é de uma jovem adulta comsandálias, a Gradiva, surpreendida ao caminhar. Hanold resolve investigar“se aquela maneira de pisar da Gradiva fora reproduzida pelo escultor como

corpos aparecem nas janelas e portas. Aí há algo além dos seres, nestecaso em pedaços, que também adquire importância.

À medida que o desenho desta primeira fase emergia, lembro quecomecei a achar os quadros primários, com poucas camadas de cores,pouca profundidade. Lancei-me a desenhar e pintar casas a partir de fotos emesmo pela observação de paisagens. São pinturas de casas misteriosas,como a casa abandonada de Berto Círio, tendo como fundo o entardecer ouescurecer. A outra casa é a dos meus pais que aparece solitária, sem cercasou muros. Há, ainda, a antiga casa da Glória, de madeira, que desabou emum temporal e uma casa colonial, desconhecida, pintada de uma janela, nacidade de Teresópolis, RJ. Depois das casas, comecei a desenhar corposde modelos vivos e a partir de fotografias. Os corpos eram bem delineados,mas as fisionomias eram vagamente definidas e só se definiram nos auto-retratos posteriores. Neste ponto do processo, o desenho havia adquiridouma semelhança com a realidade. Mas após o rosto aparecer com todos osseus detalhes, o figurativo começa a se esconder atrás de uma rede degrafismos em diversas camadas superpostas. No primeiro destes quadrosnão figurativos, eu ainda tinha a impressão que algo se escondia ao fundo;nos outros, não.

Esta experiência ocorreu entre 1978-1988 e eu a chamo de estética,pois Freud em “O Estranho” fala na estética como “não simplesmente ateoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir”. Ele classifica omaterial para estudo da estética como ”impulsos emocionais dominados,inibidos em seus objetivos e dependentes de uma hoste de fatores simultâ-neos”.

Qual o significado psicanalítico desta experiência estética e das obrasresultantes?

Começando com o que leva a pintar, a desenhar: a emoção estética,segundo Freud é derivada da esfera erótica. Em “Delírios e Sonhos da Gradivade Jensen” Freud faz uma equivalência entre necessidades eróticas e ne-cessidades da imaginação e descreve a luta entre o poder do erotismo e asforças que o reprimem, da qual pode resultar o delírio ou o sonho.

OLIVEIRA, M. T. G. DE. O que emerge no fazer artístico...

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SEÇÃO TEMÁTICA

artística como de um período inicialmente de vazio e inquietação a partir doqual surgem idéias cuja execução requer coragem, gera intenso prazer eresulta na produção da obra de arte que surge como um resto, algo quesobra, resultante da pulsão que precisa de material para se expressar.

Assim, em busca das razões da criação, cheguei ao livro “As artes darepresentação” (1994), do artista ucraniano Kasimir Malevitch (1838-1935).Este pintor situou no início do século XX a divisão da pintura nas correntesfigurativa, com quatro estágios, e não figurativa. Considerando a classifica-ção de Malevitch, as minhas pinturas iniciais não são meras representaçõesda natureza, mas sim criações pictóricas em que o objeto é um pretexto(pré-texto) para focalizar as sensações. Quanto à pintura não figurativa,Malevitch aponta o desaparecimento total do objeto tendo-se uma obra depura sensação pictórica do mundo. Se na pintura figurativa a sensação demundo se dá pela apreensão das formas dos objetos, na pintura não figura-tiva a sensação se dá pela estrutura, pela extração da massa de cores eseus contrastes, a textura e a tonalidade geral, assim como a sensaçãopuramente pictórica. A diferença entre ambas é que, nas artes não figurati-vas, o mundo percebido pelas sensações é permanente ao passo que omundo percebido como formas pela consciência é instável.

Assim como Merleau-Ponty (2004), Malevitch (op.cit.) se intrigou coma obra de Cézanne, por considerá-lo entre a primeira leva de artistas-pintoresque liberaram a pintura de seu estado ilusório, a três dimensões, e a condu-ziram à superfície plana, bidimensional. A pintura de Cézanne teria muitopoucos elementos ilusórios, assim nos transportaria à emoção da realidade.Este tipo de pintura não seria a expressão da pintura de qualquer objeto,mas sim o corpo real novo autônomo que age sobre nós sem mediação; éuma realidade imutável e permanente.

Melman (2006) diz que a tarefa do artista, assim como a do psicana-lista, é de fazer vacilar a fronteira fixada comumente entre o Simbólico e oReal.

Lacan conferiu ao Real, a realidade psíquica, o desejo inconsciente esuas fantasias, bem como um resto: uma realidade desejante inacessível a

na vida real”. Assim, a tarefa de investigar o impelia à rua, “a observar ansio-samente os pés de todas as mulheres que encontrava”. Hanold encontra aGradiva num sonho em Pompéia e resolve viajar à Itália, com pretexto arque-ológico, mas querendo encontrar aquela que se tornara, para ele, de figuraem mármore uma personagem onírica. Finalmente, num delírio em Pompéia,vê Gradiva, que se revela como sua vizinha de esquina, Zoe, que o conheciade longa data e sabia seu nome.

Didi Huberman (1998) conta a história do escultor norte-americano TonySmith. Este homem passou anos trabalhando em escritórios de arquitetura ecerta vez, comentando a obra do escultor David Smith, foi capturado pelaimagem cúbica de um cofre preto do escritório. A partir deste cubo, ele fezvárias esculturas – tornou-se escultor – e não cessou de construir sua obra apartir da enigmática caixa preta – cubos pretos de madeira pintada e de aço.“Tão logo fora visto, portanto, esse objeto insignificante, simples como umcubo de criança mais negro como um relicário privado, pusera-se a olhá-lo...Desde onde?” De suas lembranças tirou a recordação das caixas de medica-mentos com as quais brincava, isolado em uma cabine cúbica instalada nosfundos da casa familiar, convalescendo da tuberculose, na infância.

Nestes três casos, história e temporalidade se encontram concentra-das no objeto: o sorriso da Gioconda, o caminhar da Gradiva, a enigmáticacaixa preta. A origem não é simples restauração do idêntico esquecido, masigualmente e de maneira inseparável, emergência do diferente pelo estabele-cimento de uma nova ligação entre passado e presente.

Ao procurar lá atrás, na minha história, fatos que pudessem se relaci-onar com as minhas pinturas, encontrei os trabalhos da minha bisavó, quesempre me olharam, e especialmente um retrato da minha avó, em tamanhonatural. O fato da minha bisavó ter se dedicado à pintura, de certa forma meautorizava também a fazê-lo. Ela pintava paisagens e retratos. No meu casohavia inicialmente a contingência de pintar figuras que saiam da imaginação,em cores que não correspondiam à realidade.

Em Abril de 2009, o nosso cartel “Arte e Psicanálise” escutou o relatoda artista plástica Ana Flávia Baldisserotto. Ela nos falou na sua experiência

OLIVEIRA, M. T. G. DE. O que emerge no fazer artístico...

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SEÇÃO TEMÁTICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BATAILLE, G. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.CAMUS, A. O Estrangeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1957.DIDI-HUBERMAN, G. A Dialética do Visual, ou o Jogo do esvaziamento, In: O que

vemos o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1988. p.79-116.FREUD, S. (1906-1907) Delírios e sonhos na Gradiva de Jansen. Rio de Janeiro:

Imago Editora, 1997._____ . (1910) Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. In: Edição

Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund FreudRio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XI.

_____ . Totem e Tabu (1913) Rio de Janeiro:Imago Ed., 1999._____ . O estranho (1919) In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XVIIGAGNEBIN, J M. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspecti-

va, 2007.MALEVITCH, K. Les Arts de la Représentation. Lausanne:Edition l’Age d’Homme,

1994.MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac-Naif, 2004.LACAN, J. O Seminário – livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicaná-

lise. 2.ed. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed. 1998.MELMAN, C. Retorno a Schreber. Porto Alegre: CMC, 2006.PEREIRA, L.S. O conto machadiano uma experiência de vertigem: ficção em

psicanálise. Rio de Janeiro: Ed José Nazar, Cia. de Freud, 2008.ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1997.SOUSA, E.L.A. Correspondência Pessoal.

qualquer pensamento subjetivo. O Real se confunde com um “alhures” dosujeito. Fala e se exprime em seu lugar através de gestos, alucinações oudelírios, os quais ele não controla (ROUDINESCO; PLON, 1997, p.645-646).

A vacilação que Melman (2006) aponta, evoca o termo “efeito de verti-gem”, usado por Pereira (2008) para identificar pontos de torsão situados nanarrativa literária de Machado de Assis. O “efeito de vertigem” passa pelorecorte do detalhe na articulação do ficcional com o ponto em que, no texto,algo emerge do real, como o cofre preto do escritório, a partir do qual TonySmith tornou-se escultor ou do sorriso da Mona Lisa, que impediu Leonardode entregar o retrato da Gioconda a quem o havia encomendado.

Ao visitar o Museu Iberê Camargo, comecei por apreciar as obras dojovem Iberê. As paisagens e os retratos são coloridos, mas há nelas umcontorno negro que separa as figuras do fundo que me provocou certo des-conforto/estranhamento, “um sopro obscuro” – como o que chegou ao perso-nagem Mersault (CAMUS, 1957) do “fundo do seu futuro”. Nas obras maisrecentes de Iberê, o contorno negro que destaca as figuras se expande pelofundo. Nas obras finais, as cores escuras são dominantes e as figuras, comoque indícios, se destacam do fundo pelo relevo, obtido com grossas cama-das de tinta. A sensação é de medo/mal estar/pavor.

Voltando às artes da representação, Malevitch (op.cit.) aponta que oespaço que resta após o estabelecimento da idéia central se chama defundo, na arte figurativa, mas na arte não figurativa o fundo entra na composi-ção geral. Em Merleau-Ponty (2004, p.154) a diferença entre fundo e figura éconcebida como a diferença entre ser e ente: “Ver se torna, então, um jogode posições, oposições e equivalências entre as figuras do ser e seu fundo,invisível”.

O que emerge então do fazer artístico? Poderemos dizer que se ofundo entra na composição geral e a figura desaparece, o ente não se dife-rencia do ser e o isolamento do ser é substituído por um sentimento decontinuidade profunda?

OLIVEIRA, M. T. G. DE. O que emerge no fazer artístico...

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dentro de uma área que até poucos anos, antes da instalação do SistemaÚnico de Assistência Social (SUAS), era reduzida a algumas poucas assis-tentes socais e muitas primeiras damas ou afins, que executavam, nestesegundo caso, uma política extremamente assistencialista. Campanhas paraarrecadação de agasalhos e alimentos e suas distribuições eram o motedeste trabalho, cujos frutos apareciam, posteriormente, revertidos em votosna eleição seguinte.

Com o surgimento do SUAS, a política de Assistência Social começaa tomar outras formas, mas, para ela se concretizar e sair da posiçãoassistencialista, ainda falta um longo caminho, em que gestores e executo-res desta política tomem pé desta lei, transformando-a em ações efetivas. Aabertura para diversos profissionais, conhecidos como trabalhadores soci-ais, trouxe outras disciplinas para discutir e agir diante desta política. Hoje éuma exigência para que um município tenha sua gestão municipalizada naAssistência Social, que ele possua pelo menos dois trabalhadores sociaiscom formação superior. Neste ponto é que fui chamada para integrar a equi-pe de Assistência Social que está gerando estas reflexões. Meu olhar sevirou para diferentes frentes, buscando entender o que fez surgir esta políticae que frutos poderia gerar.

Vamos ao passeio ... unindo histórias ...Era uma manhã chuvosa, entrei no carro com mais uma colega e

fomos a uma vila realizar uma visita à Antônia – o Conselho Tutelar ameaça-va retirar seus filhos por falta de cuidado. Chegando à vila, me deparei comcasas muito precárias e, naquele imediato momento, pensei como seriabom um projeto habitacional. Pensamento ingênuo, pouco elaborado, quelogo se desfez ao chegarmos a nosso destino. Entrando na casa de Antônia,o cheiro forte passou a fazer parte de minha respiração; muita sujeira nochão, panelas largadas há dias na pia, roupas atiradas no pátio que recebiaágua da chuva e a constatação de que aquela casa tinha sido o resultado deum projeto habitacional me fez refletir sobre aquele meu primeiro pensamen-to. Não bastava uma política ditando diretrizes, era necessário que ela fossereelaborada para cada espaço, que ela fizesse parte de uma ação política e

UM PASSEIO UTÓPICO PELAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Isabel Gemelli

“Moldar o espaço vazio é abrir zonas de imaginação”.Edson Sousa

Arealização de projetos habitacionais cresce de uma forma muito ace-lerada em nosso país. Diversos governos vêm buscando a diminui-ção do chamado “déficit habitacional”. Voltados à população de bai-

xa renda, estes projetos vêm inscrevendo inúmeras pessoas, em diversascidades brasileiras, para serem “contempladas” com a casa própria. Áreasespecíficas são definidas para a construção de moradias, e nelas são alocadaspessoas vindas de diferentes regiões de cada cidade, provocando, destaforma, a movimentação de um grande número de pessoas entre as áreasurbanas.

Outro aspecto que se repete nestes programas de entrega de casasprontas é a padronização da construção de acordo com o que alguns pen-sam ser conveniente para este grupo populacional: dois quartos, banheiro ecozinha conjugada com a sala, alguns poucos projetos ampliam o númerode quartos – não se observando muitas variações. Porém, as famílias nemsempre se encaixam neste perfil: como acomodar nestas construções umafamília com seis filhos, por exemplo? Dizer apenas que não se deve tertantos filhos sem condições de sustento não é resposta válida nem para opresente momento, nem para um futuro, pretendido por muitos, no qual todaesta população passaria por um planejamento familiar. Menos ainda, valereceber uma resposta, também simplista, de que isto é melhor do que nada,em vista do que se tinha antes.

Mas, diante dessas construções e do alocamento real dessas pesso-as, o que estamos observando? Em meu trabalho, venho levantando algunspontos que gostaria de compartilhar nesta reflexão. Este trabalho está situ-ado no campo de minha experiência na Assistência Social, como psicóloga,

GEMELLI, I. G. Um passeio utópico...

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Saímos da casa de Antônia e fomos ver como estava Paula. Esta éuma paciente que recebia sistemático acompanhamento da assistente soci-al quando, no município, havia um programa de saúde mental. Mas os paci-entes ficaram sem o espaço de que dispunham todos os dias devido a umaintervenção pública, que, sem aviso prévio, o extinguiu. Por seus problemaspsiquiátricos, ela foi incluída na primeira fase do mesmo projeto que cons-truiu a casa de Antônia. Naquela casa, o chão se desmanchava, as paredescom tijolos expostos iam pelo mesmo caminho. Na porta da casa era difícilnão afundar na lama, meus pés ficaram ali grudados por um momento. Nopátio ao lado, surge o sogro da filha de Paula, que, sabendo que a prefeiturapensava em fazer a segunda fase do projeto habitacional, nos diz não querercasa da prefeitura, pois elas não tem qualidade. Ele então nos mostra queestava construindo uma casa por sua conta (naquele momento eram apenasquatro paredes).

O pensamento simplista, e ainda muito vigente, de que ganhar algu-ma coisa é melhor do que nada, circula muito quando ouvimos falar emAssistência Social. Mas, será mesmo? Que política seria esta do que “eusei o que tu precisas”, ou, ainda, do “aceite o que te é dado, não me interes-sa o que queres”?

No final da manhã, os questionamentos só aumentavam, e a casa deCláudia, a terceira a ser visitada, me colocou frente às questões levantadasacima. Ela nos convidou a conhecer sua moradia. Havia ficado sabendo tam-bém do novo projeto habitacional. Nesta casa tudo brilhava, o chão de ma-deira extremamente bem cuidado, guardanapos de tecido enfeitavam as mesase outros móveis. Cláudia queria se inscrever para o projeto, pois não possuíabanheiro em sua casa, obrigando a família a ocupar uma peça que havia dolado de fora para suprir essa necessidade. Ela mostrava-se disposta a re-construir tudo a fim de ter um banheiro. Naquela altura da visita era eu quenão estava disposta a fazer aquela dona de casa correr um risco “sem osdevidos cuidados”. Pensava sozinha: “a casa era tão melhor do que a dePaula ou a de Antônia, não deveria valer o risco”. Na continuação da conver-sa descobriu-se que Cláudia possuía a renda acima dos limites estipulados

não de apenas uma norma. A norma seria construir casas com dois quartos,banheiro e sala acoplada com a cozinha. A política deve ter um sentido am-pliado. Segundo Renato Janine Ribeiro,

“é a política assim a ação que assume como seu o ponto de vistada criação, que pretende moldar, criar, o social. Há política quandonos fazemos sujeitos de uma realidade, isto é, quando não a to-mamos por dada, ou por independente da ação humana, mas aconcebemos como resultado dessa ação – e, melhor ainda, nospropomos a agir, moldando o mundo (...) O que importa é, pois,uma atitude criativa, de quem se torna sujeito de sua vida (...) pas-sa-se a uma política que tem mais a ver é com uma atitude, comum enfoque, com o rumo de uma ação”. (2000, p.201)

Seria tomarmos em nossas mãos estas grandes diretrizes e torná-lasações sobre o mundo, criando o social e, com isso, transformando os indiví-duos em sujeitos de suas vidas, não apenas recebedores de doações, masconstrutores de vida.

A reflexão de Renato J. Ribeiro sobre a presença de uma criatividadenecessária me remeteu à obra de outro autor, Ernst Bloch, chamada Princí-pio Esperança. Nela, o autor vai tratar da espera, mas de uma espera ativa,tão necessária à construção destes projetos de forma coletiva. Para ele,precisamos pensar, criar, para que a ação seja efetiva e afetiva a posteriori.Há um “ainda não” posto, que tem seu caráter positivado na palavra ainda.Não carrega consigo um pessimismo inerente, e sim um futuro. Não se es-gota no presente momento do pensar ou da ação imediata. Edson Sousa1 ,seguindo o pensamento de Bloch, nos diz que “todo o ato criativo é, emúltima instância, um ato utópico pois tenta fundar um novo lugar de enunciaçãoe assim recuperar esperanças empacotadas”.

Continuando o passeio...

1 Por uma cultura da utopia. Artigo fornecido pelo autor.

GEMELLI, I. G. Um passeio utópico...

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a termo aponta para o que fica interrompido neste processo”2 .

Aqui não posso deixar de fazer alusão a outros tantos passeios e aosquestionamentos que me fiz sobre por que, mesmo quando beneficiárias deprogramas de moradia, várias famílias não permanecem nas casas recebi-das. Afinal, elas são melhores do que suas antigas casas, possuem até ba-nheiro. Este ponto deve nos fazer olhar para aquilo que ainda falta, e que nãoestá na concretude das moradias e sim nesta posição desejante. Sustentarum lugar passa por este mote. Não é possível dizer “sou daqui” só porquetenho uma “casa aqui”. A condição errante não vai ser ultrapassada sem quetenhamos políticas públicas habitacionais que levem este fator em considera-ção, sem que se questione também o imperativo de ter um local fixo de mora-dia. Nos grandes projetos habitacionais, a alocação em diferentes áreas, dasantes ocupadas, vai ter seus reflexos, e estes não devem ser ignorados.

Na simples inscrição e destinação de uma casa, não há perspectivade inclusão da palavra do sujeito, de um reconhecimento simbólico de umlugar de enunciação possível. Quem faz o projeto geralmente passa a ser umOutro absoluto, ao qual não cabem questionamentos, num imperativo quedelimita onde os sujeitos podem circular, como eles devem morar.

O sujeito do desejo, segundo Betts (2003), “coloca em jogo o deslo-camento significante, o que possibilita o estabelecimento de relações sim-bólicas construtoras de uma posição de protagonismo para o sujeito na cons-tituição dos laços sociais que situam seus problemas no contexto da organi-zação em que buscou (ou está recebendo) tratamento”. Para que esteprotagonismo apareça, os profissionais envolvidos neste contexto não de-vem se posicionar diante de um objeto, mas sim de um sujeito, via lingua-gem, onde se faz possível a construção de um saber singularizado sobre ele.Convocar os participantes destes projetos a falarem de si e de suas neces-

2 A Burocratização do amanhã. Artigo fornecido pelo autor.

para os projetos em vista, passava muito pouco na verdade, mas passava.Naquele momento fui tomada por um alívio. Por que deveria ser tudo ounada? Não haveria outro projeto que lhe ajudasse a ter um banheiro? Nãoseria mais simples? Os custos seriam menores, tanto financeiros, para aprefeitura, como psíquicos, para Cláudia, que vinha construindo sua casaao longo dos anos, conforme seu detalhado relato, da forma que podia edesejava. Nesse jogo que ia se estipulando do “tudo ou nada”, nada poderiaresponder ao desejo, apenas daria um “olá” ao que era diretamente deman-dado.

Fim de manhã. A sensação de alívio gerado no desfecho da situaçãode Cláudia havia passado, e era preciso fazer uma análise, transformar aque-las sensações em experiências que refletissem, posteriormente, na formade condução de meu trabalho.

Ao nos prendermos na pura demanda, deixamos de lado um elementofundamental: a esfera do desejo. Pergunto-me como seria se, ao formular-mos uma política pública, nos colocássemos diante das indagações do de-sejo? Uma ação que não tentasse apenas tamponar os pedidos por umapolítica assistencial que dê conta de seus cotidianos? Que não tampe osfuros colocados por este futuro que se faz incerto, “fechando a boca” dequem clama ao voto que colocou na urna na última eleição? Tento aqui umaaproximação com a função utópica, que, por nos alocar em uma espera, noscolocaria nesta posição de sujeitos de desejo. O que poderia neste momen-to transbordar a questão de ter uma casa com banheiro? Quem sabe, poderconstruir um lugar de moradia que ultrapasse o puro concreto. É neste pontoque se vale a Utopia. Nas palavras de Edson Sousa:

“Quando temos nossos sonhos prescritos por um programa devida qualquer anestesiamos a turbulência inventiva e irruptiva dofuturo. Se produz aqui uma espécie de congelamento do tempo (...)O desejo utópico, portanto, nos alimenta da coragem essencial doviver: aquela de ainda poder reinventar um mundo dilatado e pro-duzir novas configurações do desequilíbrio das formas (...) A utopiamuito mais do que uma enunciação positiva de um desejo levado

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SEÇÃO TEMÁTICA

ESPELHO LÍQUIDO – FRAGMENTOS –RESTOS – DEJETOS – ABJETOS – OBJETOS

DE UMA OFICINA DE ESCRITA

Maíra Brum Rieck

Mariposa, Uma Puta História” é uma oficina de escrita realizada comcinco prostitutas de diferentes idades, cor, classe social e escolaridade. É coordenada por mim e pela jornalista Rosina Duarte. Che-

gamos até elas com uma proposta muito simples: a partir de algum tipo depublicação impressa, feita pelo grupo, gostaríamos de mostrar ao leitor ima-ginário desse material que uma prostituta é muito mais que uma prostituta: émulher, mãe, amiga, tem sonhos, uma história. O objetivo era mostrar, paraaqueles que fossem lê-las, a mulher e não somente a prostituta, que asvissem para além da profissão que escolheram.

Não era uma proposta nova para nós, já havíamos trabalhado e traba-lhamos em outros projetos semelhantes. Moradores de rua, presidiárias eidosas são exemplos de outros projetos da ONG ALICE (Agência Livre paraInformação, Cidadania e Educação), onde trabalhamos. Viemos ao encontrodelas, portanto, com um discurso pronto, que serviria para qualquer popula-ção ou pessoa que tivesse, no social, seu discurso amordaçado. A propostaé simples, mas a execução, não. Raramente sabemos como será o formatodo texto ou o meio de comunicação ao qual se destinará, e o texto se cons-trói a partir da passagem da linguagem oral para a escrita. Não é apenasuma questão de relatar o que aconteceu num encontro, mas de escrever umtexto onde todas as participantes se reconheçam e sintam-se autoras. Auto-ra – e não personagem do texto.

A forma como buscamos constituir esse grupo foi por meio de umaparceria com outra ONG, o Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP), insti-tuição de referência para as profissionais do sexo em Porto Alegre. Ali cons-troem uma rede social, fazem amizades, buscam preservativos, informaçõespara atendimentos médico, psicológico, odontológico e jurídico. O discurso

sidades, levando em conta seus questionamentos, devolve ao sujeito o sa-ber sobre si, restituindo-lhe um lugar no discurso. Mas cabe ressaltar queeste lugar não é fácil de ser assumido, pois implica a responsabilizaçãosobre seus atos. Ao cortar o jogo do “eu sei do que tu precisas” não barra-sesomente a palavra de um Outro absoluto, mas traz consigo a necessidadede começar a agir sobre o mundo, sobre suas coisas, em uma produção quenão é do gozo infinito.

Nesta perspectiva da Assistência Social, a busca de cuidados reali-zada pelos beneficiários desta política pode ser traduzida pelo que chama-mos demanda de amor. Afinal, segundo Bruce Fink (1998) é disto que setrata: “acima e além de todas as demandas específicas formuladas peloindivíduo, é sempre o amor que ele procura”. Ao Outro, para quem foramdirecionadas as “demandas de saber, ajuda, alimentação, reconhecimento,atenção, afeto, aprovação e desaprovação”, se reivindicava amor. O desejonão vai por esta via, segundo Lacan (1998), ele “não é o apetite por satisfa-ção nem a demanda do amor, mas da diferença que resulta da subtração doprimeiro do segundo – justamente o fenômeno de suas divisões”.

Certamente, temos um desafio ético ao nos posicionarmos diantedestas políticas públicas. Primeiramente, cabe aos profissionais fazerem-sesujeitos diante delas, para depois poder levar adiante esta postura aos sujei-tos fins destas políticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBetts, J.. O Psicanalista nas Organizações. Correio da APPOA, Porto Alegre, n.

120, dez. 2003.Bloch, E.. O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005 . v 1.Ribeiro, R. J.. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil.

São Paulo: Companhia das Letras, 2000.Fink, B., O Sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1998.Lacan, J.. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.Sousa, E. L. A.. A Burocratização do amanhã. Artigo fornecido pelo autor.____________.Por uma cultura da utopia. Artigo fornecido pelo autor.

RIECK, M. B. Espelho líquido...

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de todos quererem ler e assistirem tudo sobre isso, não aceitam conviversocialmente com essas mulheres. Elas têm dificuldade de assumir a profis-são até quando vão abrir um crediário numa loja. São perseguidas e estupra-das pela polícia e clientes e acabam não tendo a quem recorrer quandoprecisam de suporte. Até porque, hoje em dia, os gigolôs são cada vez maisraros: como toda mulher do nosso tempo, as prostitutas têm também umideal de independência e autonomia. Por essas razões, o NEP acabou tor-nando-se um espaço de referência para elas. É um lugar transitado por mu-lheres, coordenado por mulheres, onde raramente aparece um homem, sejao marido de alguma delas, ou um estudante querendo fazer alguma pesqui-sa.

Essa desconfiança depositada em nós reverberava e muitas vezesnos perguntávamos – e ainda nos perguntamos – por que fazemos esse tipode trabalho e qual a função de trazer discursos marginalizados à tona. Hácertamente um desejo de perversão (père version) de nossa parte, de per-verter a ordem estabelecida dos discursos dominantes e ver o que ficou defora, que é sempre contingente. Perversão no sentido em que Lacan dizser a ética da psicanálise, na passagem do sintoma ao sinthoma, na bus-ca de uma autonomia (nomos = lei e auto = própria), na busca de umatransgressão que subverta a lei do desejo e não a negue, como faria operverso “comum”. A única forma de entender o código e a Lei que vivemos,não a lei da legislação, mas a Lei que articula o desejo e nos posiciona nomundo, é ir em direção ao Real, aos não ditos, às populações que sãovistas somente do lado do crime, da perversão, do sujo, do contagioso.Esse estrangeiro, que é colocado de fora por nos ser tão familiar, fica forado centro, exilado.

O fantasma de exploração foi velando-se e revelando-se com o pas-sar do tempo e da convivência, descontinuamente. O formato da escrita queencontramos para trabalhar com esse grupo foi o da ficção, talvez o únicopossível de se trabalhar ali. Nessa época, passava uma novela na rede Globoonde havia uma personagem prostituta interpretada por Camila Pitanga: Bebel.Apesar de todas a adorarem, achavam que aqueles que assistiam a novela

da instituição é o de que a prostituição é uma profissão como qualquer outrae que deve ser descriminalizada. Quem a escolheu, desde que maior deidade, deve assumi-la e não ter vergonha do que é. Enfim, é um discursoidentitário, de aumento da auto-estima e de formação de grupo.

Numa população como esta, é importante construir um lugar de refe-rência para essas pessoas, já que ocupam a posição de resto social. Po-rém, o efeito de tal discurso, baseado em uma identidade definida, podegerar um estranhamento, um preconceito em relação a tudo o que não éigual a elas, a tudo o que é estrangeiro a elas. Ficar de fora dessa identidadesignifica que somos ameaçadoras e que podemos explorá-las, tirar algo de-las. Essa foi a posição transferencial que ocupamos no início e que retornavavez ou outra ao longo do projeto. Foi também por efeito dessa desconfiançaque demoramos um ano e meio para conseguirmos fazer a primeira oficina.E mais alguns meses para que o grupo começasse a confiar minimamenteem nós para começar a falar. Quando digo falar, falo de uma fala endereçadaa alguém de uma determinada posição, porque falar, falavam muito, mas atéentão, se tratava de uma fala vazia, sem destinatário determinado. Um dis-curso politicamente correto, em busca de seus direitos, e permeado de mui-ta queixa do preconceito alheio, mas sem se darem conta de seus próprios.

Uma das questões motivadoras deste trabalho era pensar por que afigura da prostituta causa horror e fascínio por parte de todos ainda hoje,numa sociedade que coloca o sexo e o gozo no primeiro plano. Por queentão a prostituta ainda estaria num lugar de resto do social? É só observaro fenômeno da Bruna Surfistinha, prostituta que fez com que o livro de suasperipécias sexuais virasse best-seller. As pessoas querem saber tudo o queocorre com as “especialistas do sexo”, lugar onde, no imaginário coletivo,estariam verdadeiramente os desejos sexuais recalcados, indizíveis einimagináveis.

Vivemos numa sociedade que só fala de sexo 24 horas por dia, ondehá cenas de sexo, implícito ou explícito, em qualquer horário da TV, mulhe-res e homens nus e insinuantes nas capas de revistas. Por que então aprostituição ainda é hoje marginalizada? Digo marginalizada porque, apesar

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O texto delas nasceu assim: “Ela é duas: a Senhora P e a Super P. ASenhora P se chama Ana Maria e é uma mulher de família. Transforma-seem Super P, Francielly, quando está na Voluntários da Pátria, esquina Bar-ros Cassal, trabalhando como profissional do sexo.” Apesar de explicitaremalgo que é de todos e de não operar propriamente um recalque, porque odesejo é explícito, elas também são sempre duas, têm dois nomes: o de“batalha” e o de registro. Há algo aí que não pode ser integrado em um nomesó, um desejo que não é aceito socialmente justamente por ser de todosnós. A etimologia de “prostituir” é “colocar diante, expor, apresentar à vista(...) divulgar, publicar (...) expor aos olhos”1 . Há algo de um desejo explicitado,um algo que deveria estar no privado mas que aparece aos olhos de todos.Há uma re-volta, um reviramento que torna público o que supostamente deve-ria ser privado. Com os nomes divididos, há uma ruptura que é feita consci-entemente. Algo do discurso que não pode ser dito é dito através da profis-são que escolheram. Mas o que é dito?

É impossível não lembrar da função das histéricas do século XIX oudas anoréxicas e bulímicas de hoje, que dizem algo através do corpo quenão pode ser simbolizado através do discurso oficial. Dizem, através de seuscorpos, de todos, mas pagam o preço de sua escolha individualmente. Maso que é que essas mulheres encarnam exatamente? Qual é o discurso en-carnado em questão? O que é do sexual que permanece na ordem do Real?

Dizem algo da ordem do inominável, algo impossível de se dizer,encarnam o que está recalcado em todos, recalcado no social. Seus corpospersonificam o interdito e é por isso que as mantemos longe. São serescontaminados, virulentos, que explicitam o que deve ficar nas sombras. Lu-gar que lembra a posição que Édipo ocupa em Édipo em Colono. Depois desofrer todos os males possíveis, de transgredir as grandes leis organizadoras,de incorporar o interdito; depois de morto, dizem os oráculos, seu corpo seráuma espécie de “talismã da sorte”. Quem possuir seu corpo e bem-dizê-lo,

1 Dicionário Houaiss

teriam uma imagem completamente distorcida da realidade. Foi então quesurgiu Fran ou Ana Maria, a personagem fictícia criada pelo grupo, que étodas e nenhuma delas.

Criaram a personagem, a história, os pensamentos, a trama. Empres-taram a si e suas vivências, ficavam irritadas quando não concordavam como andamento da história, quando era monopolizada por alguém do grupo. Atépermitiam o registro da história da colega, mas desde que ainda sentissemque a personagem dissesse de si. O importante para elas era o registro.Diziam isso explicitamente. Diziam que, como ninguém de fora as escutava,suas histórias corriam o risco de desaparecer para sempre. Não queriamcontar o que faziam na cama, queriam dizer o que pensavam do mundo, desi mesmas e dos outros, suas dúvidas, dores, angústias. O registro, neces-sariamente, deveria ser feito por alguém estrangeiro a elas, alguém que per-tencesse ao “centro”, já que é ali que as coisas permanecem, é ali que ahistória oficial é relatada e apreendida. As histórias transmitidas entre seuspares se mantêm num lugar desvalorizado, o lugar de resto, lugar inominável.Inominável, portanto, sem possibilidade de transmissão.

A primeira grande revelação que tive nesse grupo era que não haviagrande revelação. São pessoas comuns. Preconceituosas, ambíguas, ingê-nuas. Comuns como todos nós. Realizam as fantasias dos clientes, masnão entendem o porquê deles gostarem do que gostam. Criam teorias, mui-tas vezes psicologizantes, para dar conta de suas dúvidas. Por exemplo,atribuem ao desejo de espancamento de alguns clientes (que só desta formagozam), porque imaginam que quando eram crianças e estavam se mastur-bando, suas mães bateram neles e eles teriam passado a associar gozocom espancamento. Elas não sabem por que são prostitutas, não entendempor que os clientes gozam com determinado tipo de coisa e muitas vezessentem nojo do que devem fazer. Mas fazem. Muitas nem gostam do quefazem, mas desejam ser prostitutas. Assumem esse desejo, se responsabi-lizam de alguma forma por ele. O dinheiro é sempre a desculpa para perma-necer na profissão, mas esse argumento não se sustenta por muito tempo.O “dinheiro fácil” não é nada fácil.

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O que mais apavorava, o que mais mortificava transferencialmente,não era o sexo pago, mas o risco de uma relação com um completo estra-nho. Uma aproximação com a morte que só poderia ocorrer sendo outras desi, tendo outro nome, o nome de batalha. Não há uma que não tenha passa-do por situações aterrorizantes e de risco de morte. Muitas são estupradas,espancadas e sofrem todo tipo de ameaça, algumas são até assassinadas.Vêem o pior da humanidade e se colocam – por vontade própria – nessasituação. O que elas procuram? Qual é o limite que marcam ultrapassando?

Construindo uma borda com o próprio corpo, parecem querer marcarum limite com o outro: podem ter tudo delas, corpo, buraco, pele, língua,mas elas estarão sempre em outro lugar, seu gozo é estar sempre em outrolugar. Seu desejo está sempre onde seus corpos não se encontram. Estamossempre as perdendo, elas “verdadeiramente” estão no nome não utilizado.Parecem mostrar que não há unidade, que o corpo não diz o que são. Estãosempre mais além, em outro lugar. Há algo que aparentemente se asseme-lha com o gozo outro do feminino, já que estamos sempre as perdendo, masque está muito mais do lado do sintoma, uma vez que o gozo se organizanum não estar onde esperamos que elas estejam.

O que elas dizem com sua profissão? Que são sempre outras, queestão sempre no limite. Ao mesmo tempo em que tentam construir umaborda, dizem que não há unidade. Há nessa posição algo que diz do femini-no, que se assemelha com o feminino, mas que se transformou em sintoma.O problema é que, assim como a histeria do século XIX ou os distúrbiosalimentares de agora, esse encarnar algo da ordem do Real revela e denun-cia, mas aprisiona, faz sintoma, engessa, porque elas pagam a conta indivi-dualmente. Mostram a impossibilidade da unidade, mas respondem a issoindivididas.

Como fazer então para que este encarnar o interdito não seja mortífe-ro, não as apague simbolicamente? É obvio que a duplicação do nome, alémde explicitar a duplicidade feminina, essa liquidez, é uma forma de defesa.Se a puta que vive no limite sofre a morte em vida, a segunda morte, a outradelas, a do nome de registro, vive no “centro” normalmente, incógnita. Se por

ao longo das gerações da polis, terá proteção constante. Depois de morto,Édipo, de maldito passa a bendito, muda de status. Seu corpo, ninguémpode tê-lo, se esvai, evapora, desmaterializa, desaparece. O interdito, por-tanto, deve virar discurso. Édipo, a pior das criaturas, ao virar discurso, trans-forma-se em outra coisa, renasce no discurso.

Se há uma encarnação do interdito por parte das prostitutas, talvez aúnica forma de não precisarem encarnar individualmente e “pagar o preço”pelo que diz de todos nós seja através do discurso, do registro e da escrita/inscrição. Se este lugar, estas histórias estiverem registradas no centro so-cial, se houver uma marca deixada por elas no mundo, poderão morrer semdesaparecer, morrer para ser outra coisa, seja lá o que for. Poderão deixaresse lugar interdito, essa segunda morte (a morte simbólica) e marcar umlugar, fazer um nome que seja um nome próprio que abarque a multiplicidade,que não as cristalize em dois nomes, o da mulher e o da prostituta.

Dois nomes que mostram também a divisão irredutível do feminino: amãe e a puta. Por que irredutível? Porque na maternidade, em qualquer tem-po histórico, a mãe deve erotizar o corpo do bebê, mas com um certo limite,um certo interdito, uma certa lei fundamental, que traz, desde sempre, umterceiro. Isto, é claro, em se tratando de mulheres neuróticas que portamuma falta. A mulher, que é a mulher sexual, do sexo, é sempre de um outro,ela nunca é do filho. Seja o interdito que for, da sociedade que for, é esseinterdito que organiza uma sociedade. Ser um “filho da puta” é ser filho deuma mulher e toda mulher é puta, é sexuada. Mas mesmo quando se é putaprofissionalmente, ela não exerce a sua maternidade com o nome de bata-lha. Ela é desde sempre dividida – ela, a mulher.

Mas por que trabalhar com a escrita? Lacan fala que escrevemosporque a relação sexual não existe. Obviamente não está falando do sexoem si, mas da impossibilidade de alcançar o Outro. Impossibilidade que é,ao mesmo tempo, a única possibilidade. Escrevemos para que alguém nosleia como uma carta, seja o outro da alteridade ou o outro de nós mesmos.O que as prostitutas expõem está para além do sexual, está no risco deaproximação com o estranho/familiar que é neste caso da ordem do Real.

RIECK, M. B. Espelho líquido...

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SEÇÃO TEMÁTICA

O que as prostitutas encarnam então? Encarnam a impossibilidadeda relação sexual, a impossibilidade de alcançar o outro, mas encarnamessa posição tornando-se inatingíveis, num gozo de nunca estarem no nomeque estão utilizando. Encarnam e, portanto, trata-se de um sintoma.Escancaram a impossibilidade do amor, mas não percebem que é a únicapossibilidade, que a possibilidade está no impossível como direção. Aproxi-mam-se, arriscam-se, mudam de nome, mas só para mostrar que não háencontro, que não há unidade, que não estão ali. Mostram o insuportável doeterno desamparo que todos compartilhamos, mas não para tentar encontrá-lo. Não há engano, sabem que não encontrarão. Então encarnam o interdito,encarnam o falo e fazem-se sem falta, fingem-se sem falta. Expõem aosolhos de todos suas faltas e a impossibilidade de atingi-las, mas nesseprocesso não se incluem, como se estivessem de fora. Estão fora do interdi-to porque são o interdito, assim como Édipo, e pagam o preço disso sendoo resto social.

Poderíamos pensar que se trata de uma perversão, já que tentamocupar um lugar de exceção, num lugar de “não falta nada”. Mas o preço quepagam, como vimos, é bem alto. O preço de denunciar individualmente o queé de todos e ficar no lugar de resto não gera desejo. Só gozo, só sintoma.

O trabalho durou um ano e meio, durou o tempo da criação da história.Pensamos em continuar de outra forma, mas ainda não conseguimosencontrá-la. Terminou, e eu nunca soube qual foi exatamente o valor dessetrabalho. De quem era o desejo em causa, o meu e de minha colega, ou odas participantes. Certamente os desejos se encontraram em algum ponto,do contrário o trabalho não se produziria. Mas qual(is) o(s) desejo(s) delasque estava(m) ali? O que elas desejavam desse ou nesse registro? Não sei.Chegamos com um desejo, que era o nosso desejo de per-versão (pèreversion), como afirmei anteriormente, mas não sei se ao final do trabalhoelas puderam, quiseram ou desejaram ter um nome só, que dissesse desuas multiplicidades, como supúnhamos que desejavam. Colocamos seustextos em circulação no centro social, através da “Revista Norte” e, comisso, pagamos nossa dívida com elas por explicitarem o recalcado de todos

um lado um trabalho como o do NEP é importante para que assumam aprofissão publicamente, corre-se o risco de um novo aprisionamento atravésda identidade fixa de prostituta, que iria contra a não unidade almejada nofeminino. Seria uma lógica falocêntrica operando nesse grupo.

Quando criaram Fran/Ana Maria, ela, a personagem, as transformouem autoras e foi possível que assinassem com seus nomes de registro umtexto criado por um grupo de prostitutas numa revista do “centro” social.Foram uma: um único nome era, ao mesmo tempo, a prostituta e a escritora.Mas isso no texto impresso e escrito. Assinaram e assumiram seus nomes,seus textos, a publicação e a profissão num escrito, e, portanto, pensáva-mos que havia uma possibilidade de poderem ser múltiplas com o mesmonome, numa responsabilização por esse nome e não um “pagar o preço” poresse nome.

Mas uma coisa é o texto explícito, outra coisa é o corpo que carregatoda essa multiplicidade se exibir em público, não mais apenas como umaprofissional do sexo, mas como todas as mulheres que são em uma só.

Cada vez que as convocávamos para aparecerem em público com umnome só, algo não era possível para elas. Algo de inominável, que é a própriacondição da posição de resto social que ocupam, se explicitava. O inominávelque encarnam apareceu quando tiveram de se apresentar aos olhos dosoutros com um nome só, seja em lançamentos da revista ou em convites,sempre recusados, de entrevistas sobre as oficinas na televisão.

Aparecer em público com um nome só é ir em direção à castração, éperder o gozo de mostrar que estão sempre em outro lugar, que seu desejopertence a um outro. Talvez seja por isso que a maior tragédia para umaprostituta seja se apaixonar. Quando se apaixonam, perdem o controle eodeiam isso, sabem que por algum período de tempo estarão à mercê de umoutro que – sentem – as controlará. Odeiam se apaixonar e evitam o quantopodem esse impoderado que se apodera delas. Apaixonadas, perdem o con-trole e seus desejos estão onde estão, não estão em outro lugar. Estão ali,explícitos aos olhos de todos. Nessa situação, são elas que se perdem, enão nós que as perdemos.

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SEÇÃO TEMÁTICA

DO FAZER AO DIZER: CONSIDERAÇÕES SOBRE OTRABALHO DE RECORTES E COLAGENS

COM UM PACIENTE PSICÓTICO

Maria Lúcia da Silva Bueno

“Onde, melhor do que nas psicoses, cuida-se de saber o que é –verdadeiramente – um diálogo? O que falar significa?”1

Nesta jornada de encerramento do Percurso de Escola VIII da APPOA,desejo apresentar algumas considerações sobre outro percurso querealizo com um paciente psicótico que atendo em meu consultório

há 6 anos. Uma das particularidades desse atendimento tem sido a utiliza-ção de recortes e colagens de propagandas trazidas por ele. Acolher essesobjetos e entendê-los como fazendo parte do seu discurso faz parte da inter-venção psicanalítica que vem se construindo nesse caso.

A questão que desejo introduzir com esta escrita é a seguinte: A utili-zação de um dispositivo no setting terapêutico, como os recortes e colagensde propagandas, pode fornecer suporte para uma articulação discursiva emalguma medida?

O atendimento a esse paciente, que passarei a chamar José, teveinício no decorrer do meu estágio de psicologia clínica, em 2003. José, atu-almente com 46 anos, foi encaminhado pela psiquiatra com diagnóstico deesquizofrenia, com desencadeamento do surto psicótico aos 15 anos e des-de então fazendo uso de medicação. Filho primogênito de uma prole de trêshomens, foi gerado três meses após a mãe ter tido um aborto: uma mãefechada em si mesma pela perda do filho anterior.

Nas sessões realizadas com os pais, constata-se, pela fala dosmesmos, que o pai assumiu os cuidados desse filho a partir do distanciamento

1 CZERMAK, Marcel. Paixões do objeto. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991, p. 11.

nós. Talvez nossa posição nesse trabalho e outros, com aqueles que ocu-pam o lugar de resto do social, seja essa: pagar uma dívida, ou ao menos,ajudar que não paguem essa dívida que é de todos, individualmente. Essaera a nossa posição e o nosso desejo. Mas qual era o desejo delas? Esse éo valor que tem para nós, mas qual é o valor que têm para elas? Não sei...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 1997.LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. 2 ed. Revista. Rio de Janei-

ro: Jorge Zahar Ed., 1985.SÓFOCLES. “Édipo em Colono”. In: A Trilogia Tebana. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2002.Xavier de Lima, Ana Rira; Xavier, Elaine Leandro; Oliveira da Silva, Janete; Preta;

Martins Pereira, Raquel; Moraes dos Santos, Rosangela Maria. “A Super P ea Senhora P” In: Revista NORTE, cultura no sul do mundo. N. 3 Março/Abril de2008.

BUENO, M. L. DA S. Do fazer ao dizer ...

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tas vezes as mesmas imagens. Depois de muito tempo nesse fazer, apontoque já existem no caderno muitas figuras iguais e pergunto a ele sobre anecessidade dessa repetição. Pontuo que ele pode selecionar algumas, des-cartar outras, o que produz, inicialmente, um efeito de dúvida.

Aparecem então situações novas: olha as propagandas, pergunta seeu quero ficar com alguma, decide qual lado vai colar no caderno, parecendojá poder suportar deixar algo de fora, separar-se de algumas coisas, esbo-çando escolhas suas. Após, gradualmente, José começa a recortar parte detextos, depois de parágrafos, frases, palavras e por último, também de espa-ços vazios – recortando cada propaganda em uma infinidade de pedaçoscada vez menores, esboçando – quem sabe – um movimento do todo para aparte...

Com o fazer dos recortes e colagens, aparecem mudanças em seudiscurso: surgem perguntas, diálogos, uma conversa espontânea, a partir doque vai se apresentando durante o nosso trabalho. Durante uma sessão,pergunta: “tu tomou banho hoje?” Logo em seguida, comenta que seu paimandou que ele trocasse de camisa; digo então: “penso que tu pode esco-lher a tua roupa”. Tempos depois, esta fala reaparece quando ele comentaque manteve a camisa que tinha escolhido naquele dia. Em outra sessão,interpela-me firmemente querendo que eu lhe diga que nada de ruim vai lheacontecer quando anda de ônibus, ao que lhe respondo: “Não sei o que vaiacontecer, mas sei que tu vais saber cuidar de ti aconteça o que acontecer”.Segue então sua frase: “Eu fui ao centro de ônibus buscar meu remédio enada de ruim aconteceu comigo”.

Outra mudança: em alguns momentos, José permanece em silêncioenquanto está concentrado nos recortes e, a partir desse intervalo no discur-so, anteriormente compacto e sem brechas, ele consegue articular narrati-vas de situações de seu cotidiano.

Entendo que a utilização desse dispositivo permite a José exercitarsua criatividade à medida que lhe possibilita fazer escolhas e definir comoquer realizar seu trabalho de recortes e colagens, sem críticas, sem imposi-ções ou determinações do que pode ou não recortar, colar ou dizer. Penso

afetivo da mãe. Entendo que, em relação a José, aconteceram pelo menosduas falhas constitutivas: a ausência do desejo materno e a “maternagem”totalizante exercida pelo pai, colocando-o como objeto de gozo. Não há re-conhecimento, pelos pais, de José enquanto sujeito, não lhe sendo possibili-tada a construção de uma posição desejante.

Quando iniciamos seu tratamento, José dormia no mesmo quarto como pai, já que não havia mais laço conjugal entre o casal parental. É necessá-rio um longo período de conversas, para que o pai concorde que o filho durmaem um quarto separado, embora até hoje mantenha um comportamento “di-tatorial” em relação ao que ele deve vestir, como deve se comportar, o quepode ou não dizer, quanto tempo deve demorar no banho, quanto deve usarde sabonete, de xampu ou de papel higiênico, etc.

Ao longo do primeiro ano de atendimento, José apresentava uma falacontínua, ininterrupta, apenas descrevendo lugares e pessoas. Sua fala es-tava colada ao discurso do pai, reproduzindo textualmente suas palavras,afirmações e determinações. A partir do sentimento de impotência que essafala me provoca, interrogo-me sobre como produzir um corte nesse discursomonolítico e se a utilização de algum dispositivo no setting terapêutico pode-ria provocar alguma brecha nessa colagem discursiva com o pai.

Endereço então a José uma demanda: solicito que traga fotos suas ede sua família. Após várias sessões olhando as fotos e conversando sobreelas, peço-lhe que escolha algumas para elaborar um cartaz que, ao con-cluir, ele intitula “A minha vida”. Após, trabalhamos com alguns desenhos eJosé pergunta se pode colá-los no caderno que carrega consigo desde oinício do seu tratamento e que também utiliza numa oficina para pacientespsicóticos da qual participa.

O passo seguinte foi olharmos os materiais que José retirava de suapasta e colocava na mesa: caderno, chaves, carteira, propagandas e cartõesde visita que ele pegava ou recebia na rua. Num primeiro momento, a seupedido, todas as propagandas eram coladas em seu caderno como se nadapudesse ser descartado. Após um longo período, começa a recortar partesdas propagandas: alguns objetos, pessoas, rostos, repetindo muitas e mui-

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do Outro, a marca registrada do psicótico será a sua condição apassivadaou assujeitada, ocupando a posição de uma testemunha daquilo que umoutro lhe disse ou lhe fez saber. Assim, o psicótico nos fala daquilo quealguém lhe falou, não havendo a construção de um discurso singular.

Um ponto que cabe destacar no discurso de José, atualmente, sãoseus relatos de situações de infância, o que me permite pensar na possibili-dade de articulação desses registros mnêmicos com sua vivência atual.

Freud (1986), na Carta 52, de 6 de dezembro de 1896, escrita a Fliess,aponta a hipótese de que o material em forma de traços de memória, presen-te em nosso psiquismo, estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjosegundo novas circunstâncias, isto é, a uma retranscrição. De acordo comFreud, haveria uma estratificação de registros da percepção até a consciên-cia e os sucessivos registros representariam a realização psíquica de épo-cas sucessivas da vida. Freud completa sua descrição do aparelho assimconstituído afirmando que entre um e outro sistema existe uma incompatibi-lidade de leitura ou de código que obriga que as inscrições que caracterizamcada um deles devam ser traduzidas para passar de uma modalidade deinscrição para a seguinte.

Será possível pensar essa idéia de retranscrição, de rearranjo do ma-terial psíquico no caso do trabalho de recortes e colagens desenvolvido porJosé? Haveria alguma possibilidade – a partir da introdução de significantesoutorgados por um terceiro – de promover novas leituras dos registrosmnêmicos?

Braunstein (2007) desenvolve as idéias de Freud na Carta 52, escre-vendo que o inconsciente é manifestação do “isso” do ser que vem ao dizer.Uma vez produzido esse dizer é necessário um novo processo de deciframentopara se incorporar esse discurso dentro do campo do sentido. De acordocom esse autor, o inconsciente é deciframento, passagem do cifrado, daletra, do escrito, da partitura, para outro terreno, o da palavra, o do discurso.Dessa forma, haveria uma passagem do indizível para a articulação significante,para a palavra articulada e dirigida a alguém, pronta a carregar-se de sentidoem quem escuta.

que muda algo na demanda, inicialmente feita por mim, para uma demandade acolhimento e valorização. Construção de um laço transferencial, escu-tando-o de um outro lugar daquele determinado pela estrutura familiaralienante.

Nas últimas sessões realizadas, José pergunta o que eu faço com osmeus cadernos quando estão cheios. Surge um primeiro questionamentosobre a sua produção, talvez buscando um sentido para o seu fazer. Emoutro momento, aponto o recorte onde está escrito “só implante” seguindoseu comentário: “só rolo”. Parece que um sentido começa a surgir a partirdessas escritas coladas, onde as palavras determinam um dito, diferente-mente do neurótico que fala através das palavras, mesmo quando diz o quenão “quer” dizer...

Para Lima Filho (2003), na vivência psicótica, os signos emergemcomo uma tentativa de fazer uma amarragem possível no discurso, asseme-lhando-se a tessitura de uma tapeçaria que acolhe um conjunto de signosque deslizam metonimicamente, sendo esse trabalho representante de umaforma particular do psicótico de inscrever-se como sujeito na medida em quetece uma produção guiada pelo Real.

Marcelo Freire, no texto “Estrutura lacaniana das psicoses”, apontaque, do ponto de vista linguístico, o que falta à estrutura psicótica é antes detudo o acesso ao significante, uma vez que não havendo o significante doNome-do-Pai, não há consequentemente amarração dos significantes. As-sim, na psicose não há senão sons, ruídos, ou signos que não conseguemaceder ao estatuto do simbólico. Se não há então Nome-do-Pai na psicose,o destino psicótico fica, portanto, preso ao destino da relação mãe-bebê.Segundo Freire, na ausência da operação de separação, não há intervalo nodiscurso do Outro, ou seja, o par significante originário S1-S2 permanececongelado.

Jerusalinsky (1998) comenta que o fantasma materno na psicose diz:“É isso que me importa que tu faças, o resto não tem valor nenhum, issoimporta a mim, se interessa a ti ou não, não me interessa. Não és tu, sou eu,pronto” (p.106). Desse modo, uma vez mantido na posição de objeto de gozo

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mas também o de permitir a transcrição que não pôde se dar, permitir quealgo seja dito pela primeira vez”(p. 141).

Rosenfeld (op. cit.) refere que as palavras de Heidegger, para quem aatitude ideal de um texto filosófico deveria ser a mesma que diante de umquadro ou poema: “Deveríamos abandonar a vontade de compreensão imedi-ata. E não obstante se imporia um escutar atento... Dou uma pista paraquem quiser escutar: não se trata de ouvir uma série de frases que enunciamalgo; o que importa é acompanhar a marcha de um mostrar” (p.71).

O trabalho com recortes e colagens que o paciente realiza me fazpensar na idéia de fracasso de uma “colagem” na relação mãe-bebê e fracas-so de um “corte” na relação com um cuidador (neste caso o pai). Lanço ahipótese de que este trabalho de recortes e colagens pode funcionar comouma tentativa de ortopedia, isto é, uma amarração em função da dissociaçãodos registros do real, do simbólico e do imaginário, conforme referido porJerusalinsky (1998).

Sobre esse tema, Jerusalinsky (op. cit.) escreve que: “Quanto maistarde, mais na direção da produção de uma suplência se orienta a direção dacura. Até chegar ao ponto em que, na puberdade e na primeira adolescência,pelo fato de estes traços mnêmicos precipitarem na ordem do ato (...), te-mos que apelar à ortopedia.”(p. 111).

Com José, talvez minha posição de analista deva ser de uma teste-munha, de um outro que o escuta, ocupando um lugar que lhe permita produ-zir alguma significação no seu discurso, que o inclua nas redes de sentido,entrelaçando o sujeito ao seu enunciado.

Entendo que acolher a especificidade da experiência psicótica atra-vés de recursos criativos pode contribuir para a construção de um discursoonde o sem-sentido encontre um lugar de passagem e novas possibilidadesenunciativas possam advir.

Considero que – ao longo desses anos de trabalho – José já deualguns passos do fazer para o dizer. Sua fala já está mais articulada, trazen-do narrativas suas ao invés de apenas os ditos do pai. Talvez outro movimen-to possa acontecer ao José escrever palavras suas nos espaços vazios que

Nicolaidis (1989) escreve: “o significante forcluído, que perdeu suafunção simbólica, conserva enquanto protótipo (molde) a potencialidadesimbolizável como as primeiras representações das coisas (...) o significanteembora “mumificado”, congelado no inconsciente, poderia inspirar um outrosignificante integrável pelo sujeito” (p.43).

De acordo com essa idéia, cada sujeito, embora submetido ao códigoda língua, da gramática e aos símbolos de sua cultura, guarda em si mesmoa capacidade de enunciar-se como singular, na medida em que, através deseus recursos criativos e das interações vivenciadas entre os diversos locu-tores do espaço social, é capaz de inovar as possibilidades enunciativas(Lima Filho, 2003).

Reafirmando esse pensamento, o autor cita o trabalho realizado comum paciente psicótico, onde foi possível ao sujeito sair do domínio das repre-sentações de coisa, dos signos figurativos ou dos hieróglifos para a apropri-ação das palavras. Escreve Lima Filho (2003): “Se no primeiro movimento deescrever sua história, o paciente o fez imprimindo traços, riscos, destituídosainda de efeitos de significação, ao desenhar as letras pode entrar no regis-tro do código da língua acessível aos sujeitos barrados pela interdição pater-na” (p.75).

Seguindo Longo, em “Linguagem e Psicanálise” (2006), penso na hi-pótese de que seja possível, nesse trabalho com José, um ponto de articula-ção, ainda que momentâneo, entrelaçando significante e significado, ou seja,a construção de um discurso singular que diga algo de si e lhe possibiliteuma vinculação com o seu vivido. Escreve a psicanalista citada que talvezisso seja possível pela entrada de um terceiro elemento – pessoa ou assunto– cortando a relação simbiótica e permitindo o surgimento de algum desejo,a interposição de um espaço entre os significantes metonímicos para quepossa surgir uma metáfora.

Sobre o trabalho psicanalítico, Rosenfeld (1998) escreve que: “O tra-balho psicanalítico seria não apenas o de “corrigir” a transcrição defeituosa erecuperar a inscrição original, seria não somente o de instalar a metaforizaçãoou propor uma metaforização alternativa, menos petrificada e petrificante,

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UM ENSAIO SOBRE INIBIÇÃO:DO “TRIUNFO” AO FRACASSO

Marlene Fiorini

Odesejo de escrever sobre a inibição surgiu a partir da leitura do texto“Inibição, sintoma e angústia” de Freud, realizada no cartel “Sintoma e psicanálise”. A dificuldade de isolar e entender os conceitos

de inibição e de sintoma, a partir da afirmação de Freud, “(...) uma inibiçãotambém pode ser um sintoma” (1926, p. 107), suscitou questionamentosque me remeteram a um caso clínico. Usei o termo “caso clínico”, na ausên-cia de um termo mais apropriado, já que a escuta foi realizada numa institui-ção, de uma forma peculiar, por telefone. Escuta que não tinha como finalida-de tratar, mas dar suporte ao sujeito.

O objetivo deste trabalho é, a partir de Freud, Pommier e outros psica-nalistas, tentar entender alguns pontos desse caso. Trata-se de um homemde trinta e poucos anos, que aqui chamarei de Gilberto.

Gilberto buscava minha ajuda semanalmente, na instituição onde eutrabalhava como voluntária. É importante esclarecer que antes de ser atendi-do por mim, já tinha sido atendido por outras pessoas da instituição, demaneira aleatória, ou seja, quando sentia necessidade, ligava e era atendidopor pessoas que estavam disponíveis naquele momento.

A primeira vez que falou comigo, trazia a queixa de que estava muitomal. Pensava em dar fim a sua vida. Na fala dele, seus sofrimentos estariamrelacionados às dificuldades nos relacionamentos afetivos, às desistênci-as constantes nos estudos, e à falta de perspectiva em relação ao traba-lho. E essas dificuldades eram causadas pela sua doença psiquiátrica,dizia ele.

Para Gilberto, Deus era responsável pela situação em que se encon-trava. Pode-se pensar que essa idéia o tranqüilizava, na medida em que sefosse culpa de Deus, não cabia a ele a resolução de seus problemas, massim a Deus e à medicina.

recorta, possibilitando uma torção em seu discurso... Até o momento, este éo seu percurso, nosso percurso. Quem sabe ainda existam outras possibili-dades? É uma aposta que mantenho...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAUNSTEIN, Nestor. Gozo. São Paulo: Escuta, 2007.FILHO, Ivo de Andrade Lima. A construção do discurso na psicose: da vivência

para a experiência. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica – Univer-sidade Católica de Pernambuco. Recife, 2003.

FREIRE, Marcelo. Estrutura lacaniana das psicoses. www.rubedo.psc.brFREUD, Sigmund. Carta 52. 1896 In: Obras Completas. Volume I. Rio de Janeiro,

Imago, 1986.JERUSALINSKY, Alfredo. Considerações preliminares: a todo tratamento possível

de uma criança. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, Curitiba, nº02, 1998.

LONGO, Leila. Linguagem e Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2006.

NICOLAIDIS, N. A Representação: ensaio psicanalítico. São Paulo: Escuta, 1989.ROSENFELD, Helena Kon. Palavra Pescando Não-Palavra: A metáfora na inter-

pretação psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

FIORINI, M. Um ensaio sobre inibição...

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Gilberto tinha muitas desavenças, porém, ficavam apenas na imagina-ção. Quanto mais inflava seu imaginário, parecia que mais ficava paralisado.

Pommier (1987), ao falar das inibições relacionadas ao ato, diz que:“O ato,(...), é perpassado de uma ponta à outra pela negação, e o que omotiva é atingido pela amnésia; a maioria dos homens age sem saber o quefaz, nem por que o faz” (p.181). Segue o autor: “O que eles acreditam saberconcerne ao objetivo de seus atos, e eles podem supor que o motivo de suasdificuldades em realizá-los se prenda, não à sua inibição, mas à oposiçãodos semelhantes.” (p.181). Ou seja, a grande parte das dificuldades paraagir não esta ligada à barreiras impostas pelo outro mas a inibição, e estatem causa inconsciente.

As suas duas tentativas de trabalho foram fracassadas: como vende-dor de telemarketing não conseguia vender nada. Vinham-lhe pensamentosde inferioridade, já que também aqui fazia comparações com os melhores. Oponto de referência dele era sempre o melhor, e como ele se dizia o pior, nãolhe restava alternativa a não ser desistir.

Talvez se possa pensar que colocar-se como o pior, era uma formaque Gilberto encontrou para não prosseguir. Prosseguir poderia colocá-lo emrisco, na medida em que imaginariamente ele poderia vir a ser o melhor.

Pommier (1987) nos ajuda a pensar do porque ser o melhor implicarianum risco:

“(...) o gozo supremo que está no horizonte de todos os bens con-siste em encarnar a plenitude fálica que motiva a competição. Ser ofalo que falta ao Outro, isto é a realização do incesto, negar a castra-ção. No entanto ‘ser o melhor’, ser o falo, ter sucesso em seus atos,representam um perigo mortal já que significaria uma realização doincesto e com isto um desaparecimento num outro materno enfimpreenchido. Assim o neurótico prefere se abster” (p. 181).

É interessante observar que Gilberto se expressava muito bem, tinhabons argumentos, não era possível perceber nele um impeditivo cognitivo paraexercer a atividade. Nesse sentido pode-se pensar num boicote ao êxito.

Era interessante observar que, de tempos em tempos, Gilberto tinhaque realizar perícias médicas para obter benefícios, os quais, no entanto,temia que fossem suspensos. Pensava em “se fazer de louco” para continu-ar recebendo. O temor diante da possibilidade de suspensão dos benefíciosme fez levantar a hipótese de que Gilberto não estaria preocupado apenascom o aspecto financeiro, mas também com a posição que ocupava a partirda confirmação médica em relação à sua doença: um lugar de impossibilida-de. Se, por um lado, isso o angustiava, por outro o desimplicava de respon-sabilizar-se com sua vida.

Como seus sofrimentos eram culpa de Deus, vivia “batendo de portaem porta” das mais variadas religiões, na esperança de encontrar no Outroas soluções que o aliviariam. É interessante observar como Gilberto ficavasempre numa posição de expectador. O Outro é quem sabe dele. “A chavedo armário onde estariam os carrinhos nunca estava com ele” 1 .

Gilberto estava cursando faculdade, mas fazia um grande sacrifíciopara continuar. Dizia que os colegas não gostavam dele. As garotas se afas-tavam. Não conseguia sustentar uma relação mesmo de amizade. Sentia-sehumilhado pelos rapazes e elegia os melhores e mais jovens para rivalizarimaginariamente, já que eram invejados por ser tão jovens e “já com a vidaencaminhada”, dizia. Como a rivalidade só acontecia a nível de fantasia, pornão encontrar em si pontos de valorização que pudesse lançar mão e comisso ir construindo um lugar no grupo, tomava conta dele um sentimento devingança, acompanhado por desânimo e cansaço que o fizeram desistir dafaculdade.

Quando Freud (1926) aborda questões sobre as inibições mais gene-ralizadas e exemplifica com um caso de neurose obsessiva, diz: “O paciente(...), era dominado por uma fadiga paralisante que durava um ou mais dias,sempre que acontecia algo que evidentemente devia tê-lo enfurecido” (p. 110).

1 Quando criança, Gilberto ganhava carrinhos importados, contudo, seu pai os trancava noarmário.

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sustentar por muito tempo a idéia, como num movimento de potência (“au-mentar seu negócio”), para súbita impotência.

Prates da Silva (2003), ao escrever a respeito da inibição num caso deneurose obsessiva, aponta: “Por trás desta aparente castração assumida (ainibição), esconde-se a extrema potência, mas uma potência não realizada,jamais posta à prova através do ato” (p. 47). Segue dizendo: “Lembramosaqui o que Lacan fala no Seminário 8 (colocar o sete sobre o oito) sobre adiscordância, no obsessivo, entre a fantasia e o ato: este fica sempre aquémda potência imaginária garantida pela fantasia” (p. 47).

A autora segue, dizendo: “Parece que essa potência não realizadatransforma-se em promessa em potencial” (p. 47). Lembra que o termo “poten-cial” “é um termo comumente atribuído às crianças com quadros de inibição:‘Mas ela tem um grande potencial... ’ (como se a criança não fazendo nada,prometesse tudo!)” (p. 47). Conclui: “Trata-se de uma potência inflada, emnível imaginário. E o sujeito oscila entre estes dois pólos: o da extremapotência (da fantasia), e o da absoluta impotência (da realidade)” (p. 47).

Parece que Gilberto sempre oscila entre a extrema potência (potênciaque se realiza somente no terreno da fantasia), que está no lugar dos ideais,do emprego público, do sucesso como empresário, e a impotência (a impossi-bilidade de realização dos atos imaginados) que coloca Gilberto no lugar denenezinho da mamãe, que fica às voltas com docinhos (leite), cama e choros.

Para Pommier (2002): “Quando há inibição (...) há sempre objetivaçãoe regressão pulsional, e nessas condições o sujeito se toma no narcisismo,em algo passivo, não digo sem sujeito, porém o sujeito se pára frente àpulsão sem poder utilizá-la para sair fora de si mesmo” (p. 3).

A mãe de Gilberto aparentemente tinha comportamentos contraditóri-os em relação a ele. Desejava um emprego público para o filho, mas, aomesmo tempo, o tratava como criança e doente. Ele era interrompido por elaconstantemente quando estava ao telefone falando comigo. Nessas vezes,era possível observar como ele se encolhia e se infantilizava. Sua voz torna-va-se mais aguda e sem potência, e ele ficava um pouco envergonhado.Parecia que, embora adulto, continuava a mercê dessa mãe invasiva,

Quando Pommier (1987) desenvolve alguns pontos sobre inibição, nosfala de um tipo de inibição diferente da inibição sintomática. Uma inibiçãoligada “às condições de possibilidade de todo ato” (p. 181):

“O Ato (...) faz uma ruptura no imaginário; (...) é motivado pelo dese-jo do Outro, procura satisfazê-lo quanto a seu objetivo; mas quantoa sua origem, é-lhe contrário. Sua realização representa umimpasse curioso, já que o que é objeto do mais puro desejo étambém o que é marcado pela mais violenta proibição” (p.180).

O autor conclui:“(...) se a rivalidade é a máscara mais fácil da inibição para agir, ela

também tem seu valor de verdade. A rivalidade e as agressões que ela acar-reta mostram o motor da inibição que é própria do ato” (p. 181).

Como segurança de um estacionamento, embora Gilberto conside-rasse um lugar agradável, no final de uma semana teve o que chamou de“crise de pânico”, que o fez desistir sem compreender o motivo de ter sesentido assim.

No final de toda iniciativa mal sucedida, Gilberto retornava semprepara a mesma posição, para seu quarto, para sua cama, para suas queixas.

Freud (1916), ao falar dos que fracassam ao triunfar, no texto “OsArruinados pelo êxito”, diz:

“(...) as forças da consciência que induzem à doença, em conseqü-ência do êxito, em vez de, como normalmente, em conseqüênciada frustração, se acham intimamente relacionadas com o comple-xo de Édipo, a relação com o pai e a mãe – como talvez, na realida-de, se ache nosso sentimento de culpa em geral” (v. 17, p.374).

Nos últimos tempos Gilberto trazia sempre uma nova idéia de traba-lho. Chamou-me atenção a idéia de comprar duas latas de leite condensadoe fazer docinhos para vender. Seria simples, disse ele, poderia iniciar assim,mas depois, poderia “aumentar seu negócio”. No entanto, não conseguiu

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e amar fora da família. No entanto, lembra que o amor dos pais não é sufici-ente, é necessário dar “signos desse amor”, dar sinais desse amor, masprincipalmente reconhecer “o sujeito que fala ali onde fala”, que quer dizerrespeitá-lo como sujeito e não reduzi-lo a objeto. Permitir que possa desejare sair da família. O autor diz que: “Há pais que amam e dão sinais desseamor, porém impedem o contramor”, que é o amor para fora do meio familiar.

Existe na família de Gilberto uma tendência em colocá-lo num lugarde passividade. O pai, a partir de seu comportamento castrador e totalitário,e a mãe tratando-o como criança e com o desejo de arranjar um empregopúblico para o filho, como único lugar possível. Um lugar que repetisse o“isentar-se de fazer, o isentar-se do Ato”. Culturalmente emprego público ésinônimo de boa vida, de “mamata”. Porém, o conseguir um emprego públicopassa por uma acirrada e real competição, que está longe do mundo defantasias de Gilberto.

A última vez que Gilberto me procurou falou-me de um sonho. Sonha-ra que estava fantasiado de Cleópatra e entrara numa sala de aula paraassistir uma aula de História. Ficou feliz por ter sido aceito pelo professor.Perguntei-lhe se lhe ocorria algo sobre o sonho, lembrou-se que seu paiadorava História, por isso assistia filmes de época. Mas os que seu pai maisgostava eram os filmes com Cleópatra por ser ela muito bonita.

É interessante observar que o sonho retira o véu encobridor de senti-mentos que contradizem o que Gilberto dizia sentir por seu pai. Dizia odiá-lo,no entanto, na cena do sonho, aparece travestido de uma mulher que seu paiadmirava por sua beleza. É possível levantar a hipótese de que no sonho seoferece como objeto de desejo para seu pai, este aparecendo na figura doprofessor. O ficar feliz por ser aceito nos leva a pensar nessa hipótese.

Freud, no texto “Bate-se numa criança” (1919), ao trabalhar questõessobre masoquismo masculino, afirma que “(...) eles invariavelmente se trans-ferem para o papel de uma mulher; ou seja, a sua atitude masoquista coinci-de com uma atitude feminina” (p. 245). Segue dizendo: “(...) a forma originalda fantasia masculina inconsciente (...) não era (...) ‘ Estou sendo espanca-do pelo meu pai’ mas, antes ‘ Sou amado pelo meu pai’” (p. 247). Para

engolfadora. Mas ganhava algo com essa posição de submissão infantil: ogozo em ser tratado como “bebezinho da mamãe”, já que, sendo assim,também seria cuidado e atendido como tal.

O pai de Gilberto morreu há alguns anos. Gilberto dizia odiá-lo porqueo humilhava diante de seus amiguinhos quando criança. Dizia que, na visãodo pai, todos os outros meninos eram melhores do que ele. Dava-lhe brin-quedos importados, caros, mas para deixá-los trancados no armário. Gilber-to só podia pegá-los com sua permissão. Parecia que os brinquedos queseu pai comprava eram para si mesmo, dizia-me.

É interessante observar que, na medida em que Gilberto ia podendofalar desse pai, ia fazendo um giro, deslocando-o para um outro lugar, um lugarde falta, de falência como empresário. De um pai poderoso e perverso que lhedava brinquedos caros para não deixá-lo brincar, vai aparecendo um pai quepermitia a Gilberto não fazer nada quando trabalhava na empresa da família.Dizia isto com certa desforra, porém, com certa queixa também, no sentidode que agora é diferente, ou seja, não tem mais um pai que o isenta do Ato.Se num primeiro momento, esse “não precisar fazer” parece um ganho, emseguida é possível pensar o lugar de não fazer nada, como um lugar de inutili-dade, um lugar de faz de conta. Esse pai monopolizador, não castrado, nãodeixa uma brecha para que o filho possa ir construindo algo a partir daí.

Quando Lacan nos fala do pai do terceiro tempo do Édipo (1958; p.200), fala de um pai que tem o falo e é internalizado pelo sujeito na medidada identificação deste com o pai. Assim, poder-se-ia pensar que o pai deGilberto não é o pai do terceiro tempo do Édipo, um pai que abre caminhos,decifra enigmas, mas um pai tirânico que retêm as “chaves” só para si, comoexpressão de um poder absoluto e inacessível ao filho: o pai terrorífico dahorda; do segundo tempo do Édipo.

Pommier (2002, p. 6-7), ao trabalhar questões relacionadas à inibi-ção, aponta o amor como possibilidade da passagem da endogamia para aexogamia. Para ele “a mobilidade da libido, que permite ao sujeito se mover”tem como condição o amor dos pais. É com a força desse amor que o filhovai poder lutar “contra o desejo do Outro” e possibilitá-lo a atuar como sujeito

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ENCERRAMENTO DA JORNADA DOPERCURSO DE ESCOLA VIII

Liz Nunes Ramos

Ao final de cada turma do Percurso, nos perguntamos qual a funçãodessa produção, que até hoje tem ganhado lugar preferencial de ex-pressão nas Jornadas do Percurso. Neste ano, os que compõem a

turma participaram ativamente destas indagações junto ao cartel preparató-rio da jornada, experiência que inaugurou uma forma diferente de organiza-ção dela e de confecção e endereçamento dos trabalhos de conclusão, al-guns ainda em elaboração.

Algumas das importantes perguntas que foram retomadas não só pelo cartel:Trata-se de um trabalho obrigatório? Por que fazê-lo? Será supervisio-

nado, orientado, acompanhado? O supervisor será escolhido ou indicado?Será um analista da instituição ou pode ser de outras transferências? Trata-se de escrever para apresentar na jornada ou para elaborar uma questão? Aquem endereçá-lo? Sobre o que escrever?

De outro lado, não foram poucas as vezes que a jornada foi referidacomo um ritual de passagem. Também desta vez. Por que esta expressãoretorna? Seria indício de algo recalcado ou a necessidade de encontrar mei-os que operem uma passagem? Neste caso, para o que?

Pois bem, sabemos que estas perguntas adquirem maior complexi-dade porque estão inseridas num contexto de ensino ou transmissão dapsicanálise e, para alguns, de formação do analista. O que, de qualquerforma, só se saberá depois. Elas implicariam a mesma dificuldade em ou-tros ambientes, como na universidade, por exemplo.

Comecemos pelos ritos.Os ritos de passagem primitivos e nas sociedades tradicionais mar-

cavam mudanças de condição ou de “status”, digamos assim, de alguém noseio de sua comunidade. Essas cerimônias especiais deveriam ocorrer emmomentos pré-determinados da vida dos membros e, mais do que uma tran-

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Freud, a “fantasia de espancamento do menino é, (...), passiva desde o co-meço e deriva de uma atitude feminina em relação ao pai. Corresponde aoComplexo de Édipo (...)” (p.247). Conclui: “(...) a fantasia de espancamentotem sua origem numa ligação incestuosa com o pai” (p. 247).

O fato de Gilberto não ter mais telefonado após ter falado sobre osonho, me fez pensar no porquê de seu afastamento da escuta. A hipóteseque levanto é de que o sonho retira o véu encobridor de fantasias incestuo-sas inconscientes, e isso o teria assustado. Possivelmente Gilberto precisa-rá de um tempo para elaboração desse conteúdo e quem sabe buscar ajudade um profissional, já que sofre e precisa tanto falar, mas é uma idéia queGilberto nunca acolheu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1926). Inibição, sintoma e ansiedade. Trad. Sob a direção de JaymeSalomão. Rio de Janeiro, Imago, 1977. (Edição Standard Brasileira das ObrasPsicológicas Completas de Sigmund Freud, v.20).

FREUD, S. (1919). Uma criança é espancada: Uma contribuição ao estudo daOrigem das perversões sexuais. Trad. Sob a direção de Jayme Salomão. Riode Janeiro, Imago, 1977. (Edição Standard Brasileira das Obras PsicológicasCompletas de Sigmund Freud, v. 17).

FREUD, S. (1916). Os arruinados pelo êxito. Trad. Sob a direção de Jayme Salomão.Rio de Janeiro, Imago, 1977. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicoló-gicas Completas de Sigmund Freud, v. 14).

LACAN, J. O seminário – Livro 5. As formações do Inconsciente. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1958.

POMMIER, G. O desenlace de uma análise. RJ: Jorge Zahar Editor, 1987.POMMIER, G. Posición respectiva Del amor Y deseo – Sintoma e inhibición –

Fijación de La neurosis y conducta en l´cura. In: Reunion de trabajo com losmiembros de la E.F.A. 26.08.02.

SILVA, I. P. Angústia e inibição na infância: Um caso clínico nas fronteiras daneurose obsessiva. In: ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE(Org.). A necessidade da Neurose Obsessiva. Porto Alegre: APPOA, 2003. p.45-53.

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O raciocínio de Lacan é de uma beleza estonteante ao longo daslições. Ele o conduz de forma a concluir que no campo psicanalítico não háregistro de saber sem que haja confronto com o que do desejo e da falta queo funda precisa se inscrever. Na produção analítica há sempre um déficitquanto ao que poderá ser totalizado, armazenado de saber, uma vez quesaber não é conhecimento. Nenhum curso, nenhuma produção, poderá es-quivar-se de lidar com os limites do saber, porque o saber que nos importa éde natureza inconsciente, e este sempre nos escapa em alguma medida.

Para Lacan, o ato é sempre significante e inaugura um corte estrutu-rante que permite ao sujeito se encontrar, no a posteriori, radicalmente trans-formado, diferente do que tinha sido antes desse ato. E não há operaçãoque implique o significante que não implique o sujeito. Esse é um pressu-posto estrutural da instauração da experiência no campo psicanalítico, pres-suposto fundamental para a experiência do Percurso. Como implicar o su-jeito nessa transmissão?

Motivo pelo qual as decisões sobre escrever ou não, sobre o que, aquem procurar para supervisão, se é o momento de apresentar o trabalho oufazer outro tipo de endereçamento, não podem ser tomadas pela instituição,nem ocorrer de forma “burocrática” ou pré-determinada. Não é algo que pos-sa ser prescrito, ritualizado. Lembremos o que a clínica demonstra a cadamomento: tudo o que o obsessivo mais quer apegando-se a seus rituais éfurtar-se ao desejo, à castração, poupar-se do confronto com as incertezasquanto ao desejo do Outro. Ocorre que este é o caminho que nos toca trilhar.É sempre rumo aos enigmas do Outro que nos dirigimos.

Em tese, cada um poderia escrever sobre qualquer coisa que lhe con-vocasse, mas não sobre tudo, nem no mesmo texto; é imprescindível deixar-se guiar pelo que o desdobramento de transferências singulares recorta,permitindo formular e elaborar a pergunta: em que lugar me incluo, de queforma?

São trâmites que podem resultar ou não no ato de implicar-se com opróprio desejo, inscrever-se e/ou responsabilizar-se pelo que lhe cabe naexperiência psicanalítica, alterando ou não a posição anterior.

sição particular para o indivíduo, representava a sua aceitação pelo grupo,inaugurando a participação efetiva do membro na coletividade, numa outraposição simbólica. Tinham, portanto, um cunho individual e coletivo, simbo-lizando o ingresso na nova condição.

As cerimônias – também as poucas que persistem entre nós – mar-cam assim pontos de desprendimento para constituir algo novo a partir deuma nova identidade, que se afirma pelo reconhecimento dos demais e pelaspromessas de cumprimento das novas obrigações, em geral, indiscutíveis esagradas. O desafio aos próprios limites rumo à missão a ser cumprida érecorrente, após a qual é obtida uma nova e mais clara visão do mundo e dopapel do indivíduo nele. Costuma-se destacar o papel civilizador desses ritose, na maioria deles, a busca do conhecimento implica alguma espécie demorte e renascimento para transformar-se num novo ser.

Essa é uma descrição brevíssima, mas já suficiente para perguntar-mos se é isso que as jornadas do percurso constituem.

Muitos desses elementos me lembraram passagens do seminário “Oato psicanalítico” (1967-68), no qual, entre outras coisas, Lacan trabalha a“passagem” de psicanalisante a psicanalista.

Vou referir algumas, porque a partir delas considerei mais próximo dalógica psicanalítica e do que nos ocupou tomarmos a produção e a jornadado percurso como possibilidades de atos e não como rituais, embora elessejam operadores de simbolização também. Ou seja, como oportunidadespara o que do desejo precisa colocar-se em ato para se sustentar.

Neste seminário, uma das perguntas que Lacan introduz e que meparece das mais importantes é a seguinte: “Quais seriam os meios para quepossa ser recolhido aquilo que, pelo processo desencadeado do ato analíti-co é registrável de saber?”(...) “Aí está a questão do que é o ensino analíti-co”, diz ele. Esta indagação aponta para duas vias, a meu ver. Como regis-trar o que se chegou a saber? De onde deriva esta possibilidade? E ainda,este ensino não está dissociado do que opera e se perde na análise, pelo atoanalítico, para que o sujeito aceda à verdade do desejo. Ou seja, o motor doensino é a análise. O ato analítico organiza a análise e a transmissão.

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em nossa ata de fundação e que organiza nossos laços de trabalho. Disso aAPPOA se incumbe viabilizando a articulação de transferências que garan-tam as condições de alteridade e dêem lastro para tal, ao mesmo tempo emque não abre mão de operar os cortes necessários, através dos dispositivosjá existentes ou dos que precisamos criar a cada volta do trabalho. Como porexemplo, a introdução da experiência de cartel neste momento de concluir.É como ato de corte, então, que podemos pensar esta produção, a jornadado percurso e as conclusões necessárias em qualquer trajetória.

Não se trata de escrever para atestar o que se aprendeu nestes trêsanos, mas de fazê-lo de forma a revelar-se o que não se sabe, para constituirnisso o importante ponto de apoio que leva à implicação no dizer e para quese produzam condições de sustentação do desejo; prosseguindo não só nosestudos, mas na própria análise e na supervisão, alteridade da qual nãopodemos prescindir.

Também não se trata de aceder a uma nova identidade, na psicanálisetrata-se antes de dissolvê-las; nem de aceder a um saber mais esclarecedor,pois tudo o que se ilumina volta a obscurecer, conforme a lógica do inconsci-ente, que tanto prezamos; nem de aceder ao reconhecimento da posição depsicanalista, mas de inscrever em algum lugar o que do significante é correlatoà experiência, dimensão que nunca falta no que constitui um ato, segundoLacan. Talvez por isso, na manhã, tenhamos feito uma rodada derememorações quanto às nossas experiências nas penitenciárias da cida-de. Para inscrever a dimensão significante e tornar estas experiênciaspartilháveis, de forma a extrair dela um saber ainda não formulado.

De minha parte elas ocorreram no Manicômio Judiciário. Suponho hojeque, talvez por efeito do discurso, da palavra que ali circulava, a despeito dasmuitas inadequações próprias de instituições psiquiátricas, ninguém mais(dos técnicos e internos) tinha lá muito medo quando o cozinheiro servia obife espetado na ponta de um facão, com 60 cm de lâmina, mesmo tendo elematado um filho e lhe arrancado o coração do peito. Eis a potência da pala-vra: aquele que a loucura excluiu pode, em alguma medida, pelo menosnaquele pequeno círculo, ser reintegrado aos laços como semelhante.

“Inscrição, o que isso implica?”, se pergunta Lacan. Sua resposta:“Tudo está pendente a uma combinatória e o que dela se desdobra de umadimensão de verdade que a combinatória determina, antes que nasça o sa-ber”. É o que se desdobra na análise e em tudo o que implica o fazer psica-nalítico. Há que falar para saber, submeter-se às determinações do discurso,ao que as conexões significantes determinaram, haver-se com elas.

Ou seja, há que transitar pela ignorância até mesmo quanto ao quedetermina certa pesquisa, confiando que no endereçamento da produção aosupervisor, aos colegas ou à instituição, entrará em jogo a dimensão doOutro, a quem cabe o efeito de finalização da decifração que abrirá para osaber. Saber sobre o desejo e a falta que o funda.

Cabe a cada um, falando em seu nome, dizer de como se serve dossignificantes da psicanálise, do que faz com eles no seu fazer psicanalítico.

Outro alerta de Lacan, aliás, neste seminário, é justamente quanto aisto: “(...) a eficiência do ato não tem nada a ver com o a eficácia do fazer”.(...) ”A psicanálise faz alguma coisa, diz ele, mas não no nível, por exemplo,que a poesia faz algo. Se devemos introduzir na psicanálise a função do atoé na medida em que o fazer psicanalítico implica profundamente o sujeito”(...) “E esse sujeito na psicanálise está colocado em ato”.

Logo, é no exercício da transferência que se definirá se a escrita deum trabalho tem possibilidade de inscrever algo do lado do ato ou não; se aprodução tomará a via do fazer dessubjetivado, como o saber da ciência, porexemplo, ou do ato que diz da posição de um sujeito numa experiência. Seendereço minha fala ao outro isso me implica em uma troca e em uma res-ponsabilidade que é diferente do modo impessoal e anônimo de colocar-se,que reduz a enunciação a um enunciado universal, destituindo o sujeito doinconsciente. Em nossa prática tudo é discutível, e para dar lugar aos laçosque nos humanizam precisamos renunciar ao laço exclusivo com o sagrado,ou sacralizado.

Do lado da instituição, além do ato de nomeação, lhe cabe propiciarespaços para que haja condições de produção e circulação, cuidando parapreservar os efeitos de formação aos quais se propõe. Proposição enunciada

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sermos mestres de nós mesmos, de encontrarmos um, então o Percursoterá feito jus ao seu propósito, situando a questão do saber, com toda suacomplexidade, no devido lugar, permitindo que a experiência siga seu curso.Se conseguirmos seguir falando em nome do insabido, do desejo que resul-tou da análise, ou mesmo do desejo de análise, do de estudar, ou do deformação, por exemplo, já teremos feito o bastante.

Ao dirigir-se a Fliess, que Freud situou como digno de receber suasdescobertas, impasses, temores e invenções, ele organizou as condiçõestransferenciais mínimas e imprescindíveis para o florescimento do campopsicanalítico. Ao narrar, ele enlaçava numa mesma indagação o que nãosabia da teoria com o saber não sabido de suas formações inconscientes.Assim ele colhia o que lhe retornava do Outro, através desse amigo, peque-no outro instalado nessa posição diferenciada. Surgiam daí, inclusive, possi-bilidades de reformulação dos equívocos. Nas cartas e rascunhos vemos oquanto a autorização e confiança para fazê-lo, para tornar a indagar e mudara cada passo, derivava, sobretudo, de seu modo de endereçamento, nãoconfiando na autonomia de um saber absoluto, totalizado, nem mesmo quantoao próprio inconsciente. Saber impossível, para a psicanálise, tanto no as-pecto do absoluto quanto ao si mesmo.

Há muitas coisas admiráveis nessa correspondência, mas gostariade trazer só dois recortes que me pareceram muito especiais. Na carta 60,de 28 de abril de 1897, Freud conta a Fliess que teve um sonho com ele,tratava-se de uma mensagem telegráfica sobre o paradeiro de Fliess. Freudinvestiga os motivos do sonho, e diz, “(o sonho)... despertou-me a pena quetenho sentido por não saber onde você tem estado e não ter notícias de você.Eu queria tê-lo como meu interlocutor e contar-lhe algo daquilo que andeiexperimentando e descobrindo... mas não tive a coragem de enviar minhasanotações para destino ignorado, eu teria desejado pedir-lhe que as guar-dasse como material de valor”. E na carta 64, de 31 de maio desse mesmoano, ele diz: “Aqui estão alguns fragmentos lançados à praia na última maré.Estou anotando-os somente para você e espero que os guarde para mim...sei que são apenas premonições...”, mesmo assim Freud as enviou. A

Gostaria de ressaltar que, se há significante, numa transferência, sem-pre haverá o inabordável, pois ela põe em jogo o real, sempre haverá a de-manda de amor, de reconhecimento, pois ela não dispensa o imaginário emesmo demandas de reconhecimento simbólico e, por seu viés simbólico,sempre haverá corte, ruptura. São registros que operam encontros edesencontros expressos nos diferentes tempos de elaboração e/ou forma-ção, como movimentos que são, sobretudo, de linguagem.

Por isso, se houvesse algo a nos interessar nessa descrição do ritual,em sua função de simbolização, seria quanto ao desprendimento, quanto aotrato com significantes que permitam dizer do que Lacan nomeou a subver-são do sujeito. No seminário referido ele alerta para o quanto a conversão àpsicanálise pode ser perigosa. Não podemos ter a missão de converter dis-cípulos, desafio constante quanto ao que se desdobra no Percurso de Esco-la. “Em nosso campo trata-se de uma subversão, do sujeito”, ele diz. O quesó ocorre no exercício da palavra em análise. Um percurso de estudos não asubstitui, mesmo sendo imprescindível e tendo o inconsciente, em sua es-trutura de linguagem, como referente.

É o famoso des-ser, desprendimento do aprisionamento ao fantasma,que permite a passagem de psicanalisante a psicanalista. A teoria não podeproduzir a queda do sujeito suposto saber e o advento do objeto a, causa dodesejo, tal como ocorre ao final de uma análise. A teoria não livra o sujeito dador, há que transitar pela transferência.

Quando Lacan instituiu o dispositivo do passe, que evoca certaritualização, as coisas não transcorreram nada bem. Nem por isso esta ex-periência deixou de ser valiosa. Temos interesse que este tema retorne entrenós. Quem sabe, ao tornarmos a formular como experienciamos o passe naformação dos analistas na APPOA, a questão do ritual deixe de retornar.Aliás, nem sei se chamaremos de passe, no futuro, de qualquer maneira éalgo que precisamos ressignificar.

Agora, cabe apenas lembrar que, se este exercício ao qual nos propo-mos ao final de cada Percurso permitir lidar com o fato central de que naformação não há resto a recuperar, mas a perder, pelo menos a ilusão de

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SEÇÃO TEMÁTICA

para março de 2010. Estamos todos convocados a recebê-los para prosse-guir com nossa tarefa. E até o próximo e-mail, já que muitos souberamservir-se também deles para se fazerem ouvir, como manda nossa tradição,ou filiação.

premonição era nada menos do que aquela que anunciava a descoberta daorigem da moralidade, que vai resultar no supereu/ideal do eu, com toda aimportância clínica destes conceitos. Não é para destino ignorado que seenvia algo, nos ensina Freud, nem é qualquer destino que confere ao materi-al o seu valor. Guardar... significante que se repete nestas demandas. Nãosabemos bem se Fliess foi analista, acompanhante, supervisor ou orientadorde pesquisa, talvez um pouco de cada, mas foi um depositário que soube semanter fiel ao seu lugar, indicado pelo inconsciente de Freud, em sonhos.

Esse recorte foi só para dizer que se, de um lado, é finita a trajetóriadesta turma, de outro temos uma instituição que tem dado mostras de estarà altura da herança freudiana, tão generosamente transmitida, em ato, porFreud. Ato que hoje sabemos inaugural. O que ainda poderemos inaugurarse soubermos preservar o lugar da análise?

Lacan inicia o Seminário da Transferência dizendo: “No começo era oamor”, referindo-se ao de Anna O. por seu analista, Breuer, que Freud nãodeixou de tomar em sua função, como via possível de enunciação das fanta-sias inconscientes recalcadas.

Bem, se em nossos tempos as cartas não põem mais nada em circu-lação resta-nos afirmar que saberemos guardar o que hoje nos foi confiado.Podemos encerrar desejando que encontremos bons endereços na institui-ção, um resto da experiência de Freud com a palavra e com o inconsciente.O que seria mais ou menos equivalente a desejar que encontremos bonsamores, destinados a se extinguirem para dar lugar a novos começos, mascujos efeitos atravessam muitas gerações, como constatamos hoje e nostrês anos últimos anos.

Parabéns aos que colheram a oportunidade e trouxeram suas elabo-rações. Em nome da Comissão do Percurso de Escola, obrigado a todosque participaram do Percurso VIII, foram muitos os que o percorreram juntocom os que hoje concluem, nos trazendo produtos tão significativos, assimcomo os que ainda serão publicados.

Antes de encerrar é “auspicioso” anunciar que estamos recebendo osinteressados para a turma XI do Percurso de Escola, com início previsto

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RESENHA

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RESENHA

Escrevemos para esquecer. Mas o que fica? O que resta? São todosos amantes que nos fazem marcas? E que marcas são estas? As marcasque ficam condizem com o amante da realidade ou foram produzidas nesseespaço ‘entre’ os dois, na relação em si?

O livro nos mostra o quanto somos estrangeiros uns aos outros eaponta para a impossibilidade das relações, mas impossibilidade que é aúnica possibilidade. O amor como esse impossível que vale a pena. O livronos pergunta quem são esses estrangeiros que escolhemos para amar e oque eles dizem de nós mesmos.

No evento “Conversa de Botequim” que ocorreu na livraria Botequimdas Letras, Rosane conta que cometeu um ato falho no livro. Escreve (pág.253): “querias poder falar comigo sobre nossa ‘possibilidade’ de continuar”,mas confessa aos ouvintes daquela tarde que o que queria escrever era“querias poder falar comigo sobre nossa ‘impossibilidade’ de continuar”. Semfalsas interpretações, não me parece qualquer o significante em questão, jáque o livro trata das possibilidades e impossibilidades do amor.

Mas não só disso. Regado com clássicos musicais e literários, o livroé lido com a trilha sonora dos amantes e seu encontro quase que misturadocom as obras de Marguerite Duras e Baudelaire. Encontro de sonho dosamantes que acaba à luz do dia, quando Yasmina “acorda” e vê (pela primei-ra vez?) o homem de carne e osso que ali está.

Inevitável lembrar do livro “Breve Romance de Sonho” de ArthurSchnitzler que gerou o último filme de Kubrick: Eyes Wide Shut (De OlhosBem Fechados), que, se traduzido literalmente, seria “olhos abertamentefechados”, com sua atmosfera de sonho. É nessa construção da realidade,permeada por desejos, medos e fantasias que encontramos o outro – sem-pre uma incógnita. Fingimos conhecê-lo, mas ele sempre nos escapa, e,quanto mais escapa, mais perto está. É isso que Yasmina conta a Mathieue nos conta: estamos sempre de olhos abertamente fechados para que oencontro amoroso aconteça.

Maíra Brum Rieck

ESTRANHOS, NOTURNOS...E AMANTES

PEREIRA, Rosane. Estranhos, noturnos e amantes. Edito-ras Associadas. Porto Alegre, 2009. 280 p.

Remexendo na lixeira do computador (oudo amor), Yasmina, num ato falho, enviaa seu ex-amante, Mathieu, mensagens

trocadas entre eles. Para sua surpresa, o lapsoque lhe causou tanta vergonha volta com um pe-dido: o de que recontasse a história vivida pelosdois. O que ela vai contar? Como irá contar? Oque ficou em sua lembrança e o que se perdeu?Quais as reminiscências compartilhadas entre elese quais as que diferem? Assim começa “Estranhos, Noturnos... e mantes”,estréia de Rosane Pereira na literatura.

O texto nos faz sentir, do início ao fim, a eterna incompatibilidade,incompletude e impossibilidade do encontro com o outro. Ele nos questiona,nos faz lembrar. Enlaça o leitor para além de si mesmo e o convoca a reme-xer no incorporado de suas próprias lembranças.

Os personagens partem de uma brincadeira supostamente inocente, su-postamente compartilhada, mas que os leva para o desconhecido. Não sabem oque ficou para o outro – ou para si mesmos – desta história de amor. Yasminaconta, re-conta, lembra e re-lembra o vivido, faz com que o personagem da trama,Mathieu, transforme-se em leitor. Descarnado, transforma-se em outra coisa.

Remexer na lixeira do amor é transformar o que restou, é pegar o lixo efazer outra coisa com ele. Yasmina, ao lembrar o que se passou, criou umaficção, mas uma ficção compartilhada com aquele com quem viveu. Endere-çou, no ato falho, o resto da lixeira para quem devia e encontrou o destinatário.

Mas Mathieu era o mesmo homem de suas lembranças? Aquele querecebia “de volta” sua história vivida era o mesmo que viveu a coisa? O queela queria lhe devolver?

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AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Fernanda Breda e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt, Gerson Smiech Pinho,Márcia Lacerda Zechin, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,

Marta Pedó, Mercês Gazzi e Robson de Freitas Pereira.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

GESTÃO 2009/2010Presidência: Lúcia Alves Mees

1a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg2a Vice-Presidência: Marieta Luce Madeira Rodrigues

1a Secretária: Maria Elisabeth Tubino2° Secretários: Otávio Augusto Winck Nunes e Ieda Prates da Silva

1a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz2a Tesoureira: Liz Nunes Ramos

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Costa, Ana Laura Giongo, Beatriz Kauri dos Reis,Carmen Backes, Emília Estivalet Broide, Inajara Erthal Amaral, Lucia Serrano Pereira,

Márcia da Rocha Lacerda Zechin, Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Ângela Bulhões,Maria Elisabeth Tubino, Nilson Sibemberg, Norton Cezar dal Follo da Rosa Júnior,

Regina de Souza Silva, Robson de Freitas Pereira, Sandra Djambolakdjian Torosian,

Siloé Rey, Simone Goulart Kasper, Tatiane Reis Vianna.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

NOVEMBRO – 2009

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA

Reunião da Comissão da Revista

A FORMAÇÃO DO ANALISTA

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

14h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA21h8h30min

20h30min

05

05, 12,19 e 26

09 e 23

06, 13,20 e 27

13 e 27 Sede da APPOA

Reunião da Mesa Diretiva aberta aosMembros da APPOA

Sede da APPOA19

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PERCURSO DE ESCOLA VIII

N° 185 – ANO XVI NOVEMBRO – 2009 ISSN 1983-5337

S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 2SEÇÃO TEMÁTICA 6APPOA JORNADA DO PERCURSO VIIILucy L. da Fontoura 6O QUE EMERGE NO FAZERARTÍSTICO – ANÁLISEDE UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICAMarisa Terezinha Garcia de Oliveira 9UM PASSEIO UTÓPICO PELASPOLÍTICAS PÚBLICASIsabel Gemelli 16ESPELHO LÍQUIDO – FRAGMENTOS –RESTOS – DEJETOS – ABJETOS –OBJETOS DE UMA OFICINA DE ESCRITAMaíra Brum Rieck 23DO FAZER AO DIZER:CONSIDERAÇÕES SOBRE OTRABALHO DE RECORTES E COLAGENSCOM UM PACIENTE PSICÓTICOMaria Lúcia da Silva Bueno 33UM ENSAIO SOBRE INIBIÇÃO:DO “TRIUNFO” AO FRACASSOMarlene Fiorini 41ENCERRAMENTO DA JORNADADO PERCURSO DE ESCOLA VIIILiz Nunes Ramos 49

RESENHA 58ESTRANHOS, NOTURNOS...E AMANTES 58

AGENDA 60