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Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: A complexidade da estrutura do ser humano. Memorandum, 6, 1-2. Retirado em / / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/editorial06po.htm Editorial Memorandum: memória e história em psicologia Número 6 A Complexidade da estrutura do ser humano Este número 6 de Memorandum propõe contribuições metodológicas e conceituais no que diz respeito à construção do conhecimento sobre ser humano em sua complexidade, documentando a riqueza da interdisciplinaridade. Inicialmente, temos a contribuição da fenomenologia. Num plano conceitual, o artigo Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia, de Patrizia Manganaro, apresenta uma investigação filosófica sobre a experiência mística e suas relações com o tema da alteridade, em diálogo com a epistemologia. A partir de experiências empíricas no âmbito de comunidades populares, a elaboração da experiência e da memória coletiva de "presenças" significativas são apresentadas em dois artigos: A devoção a Nossa Senhora de Nazareth a partir da elaboração da experiência ontológica de moradores de uma comunidade tradicional de Renata Amaral Araújo e Miguel Mahfoud, utilizando o conceito de pessoa e a experiência religiosa assim como vivenciada no mundo-da-vida; e o artigo A memória de um padre exorcista: relatos da colônia de Cascalho, de Márcio Luiz Fernandes e Marina Massimi, analisando conexões vivas entre a história e a memória do grupo social. Em seguida, três contribuições inerentes ao conhecimento do ser humano em sua complexidade considerado no plano histórico. A composição dos elementos: uma tradução do "De Mixtione Elementorum" de Tomás de Aquino de Mauro Martins Amatuzzi, apresenta uma tradução e edição crítica de um texto medieval muito importante para a história da psicologia pois coloca as bases teóricas sobre as quais será concebida a estrutura mais complexa do ser humano, segundo seu autor. O artigo Lo "spirituale ammaestramento" di Federico Borromeo alla città di Milano: la questione antropologica, de Marzia Giuliani, discute a antropologia filosófica - como denominaríamos hoje - de um importante religioso e intelectual italiano da Idade Moderna, que exalta a plenitude do ser humano como unidade de alma e corpo, a ser construída num caminho de perfeição. O artigo Fontes para difusão das idéias psicológicas em Minas Gerais entre 1830 e 1930, de Denise Maria Nepomuceno e Regina Helena de Freitas Campos, apresenta resultados de pesquisa em história da psicologia com um significativo levantamento sobre a tentativa de apreender o ser humano através da ciência psicológica naquele período. Por fim, Memorandum número 6 apresenta uma resenha de autoria do antropólogo Pierre Sanchis sobre o livro "Folia de Reis: festa raiz: psicologia e experiência religiosa na Estação Ecológica Juréia-Itatins" enfatizando os desafios metodológicos. E uma nota, de autoria de Marina Massimi e Regina Helena de Freitas Campos, comunica o falecimento, em 18 de janeiro de 2004, ao mesmo tempo que presta homenagem ao grande mestre de história da psicologia Josef Brozek. Miguel Mahfoud Marina Massimi Editores Abril de 2004. Memorandum, Abr/2004. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/editorial06.htm

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Page 1: Editorial A Complexidade da estrutura do ser humano · no que diz respeito à construção do conhecimento sobre ser humano em sua complexidade, documentando a riqueza da interdisciplinaridade

Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: A complexidade da estrutura do ser humano.Memorandum, 6, 1-2. Retirado em / / , do World Wide Web:http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/editorial06po.htm

Editorial

Memorandum: memória e história em psicologiaNúmero 6

A Complexidade da estrutura do ser humano

Este número 6 de Memorandum propõe contribuições metodológicas e conceituaisno que diz respeito à construção do conhecimento sobre ser humano em suacomplexidade, documentando a riqueza da interdisciplinaridade.Inicialmente, temos a contribuição da fenomenologia. Num plano conceitual, oartigo Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia, dePatrizia Manganaro, apresenta uma investigação filosófica sobre a experiênciamística e suas relações com o tema da alteridade, em diálogo com a epistemologia.A partir de experiências empíricas no âmbito de comunidades populares, aelaboração da experiência e da memória coletiva de "presenças" significativas sãoapresentadas em dois artigos: A devoção a Nossa Senhora de Nazareth apartir da elaboração da experiência ontológica de moradores de umacomunidade tradicional de Renata Amaral Araújo e Miguel Mahfoud,utilizando o conceito de pessoa e a experiência religiosa assim como vivenciada nomundo-da-vida; e o artigo A memória de um padre exorcista: relatos da colônia deCascalho, de Márcio Luiz Fernandes e Marina Massimi, analisando conexõesvivas entre a história e a memória do grupo social.Em seguida, três contribuições inerentes ao conhecimento do ser humano em suacomplexidade considerado no plano histórico. A composição dos elementos: umatradução do "De Mixtione Elementorum" de Tomás de Aquino de Mauro MartinsAmatuzzi, apresenta uma tradução e edição crítica de um texto medieval muitoimportante para a história da psicologia pois coloca as bases teóricas sobre as quaisserá concebida a estrutura mais complexa do ser humano, segundo seu autor. Oartigo Lo "spirituale ammaestramento" di Federico Borromeo alla città di Milano: laquestione antropologica, de Marzia Giuliani, discute a antropologia filosófica -como denominaríamos hoje - de um importante religioso e intelectual italiano daIdade Moderna, que exalta a plenitude do ser humano como unidade de alma ecorpo, a ser construída num caminho de perfeição. O artigo Fontes para difusão dasidéias psicológicas em Minas Gerais entre 1830 e 1930, de Denise MariaNepomuceno e Regina Helena de Freitas Campos, apresenta resultados depesquisa em história da psicologia com um significativo levantamento sobre atentativa de apreender o ser humano através da ciência psicológica naqueleperíodo.Por fim, Memorandum número 6 apresenta uma resenha de autoria do antropólogoPierre Sanchis sobre o livro "Folia de Reis: festa raiz: psicologia e experiênciareligiosa na Estação Ecológica Juréia-Itatins" enfatizando os desafiosmetodológicos. E uma nota, de autoria de Marina Massimi e Regina Helena deFreitas Campos, comunica o falecimento, em 18 de janeiro de 2004, ao mesmotempo que presta homenagem ao grande mestre de história da psicologia JosefBrozek.

Miguel MahfoudMarina MassimiEditoresAbril de 2004.

Memorandum, Abr/2004.Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP

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EquipeEditoresMiguel MahfoudUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Marina MassimiUniversidade de São PauloBrasil

Consultores externos Ad Hoc da Memorandum 6Dante Marcello Claramonte GallianUniversidade Federal PaulistaBrasil

Heloisa ZschmankyPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Mauro Martins AmatuzziPontifícia Universidade Católica de CampinasBrasil

Pe. Elias LeiteCentro Universitário ClaretianoBrasil

Conselho EditorialAdalgisa Arantes CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Alcir PécoraUniversidade de CampinasBrasil

Angela Ales BelloPontificia Universitas LateranensisItalia

Aníbal FornariUniversidad Católica de Santa FéUniversidade Católica de La Plata

Argentina

Anna UnaliUniversità La SapienzaItalia

Antonella RomanoÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

Belmira BuenoUniversidade de São PauloBrasil

Caio BoschiPontifícia Universidade Católica de Minas GeraisBrasil

Celso SáUniversidade Estadual do Rio de Janeiro

Brasil

Danilo ZardinUniversità Cattolica Sacro CuoreItalia

Ecléa BosiUniversidade de São PauloBrasil

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Francesco BotturiUniversità Cattolica Sacro CuoreItalia

Franco BuzziUniversità Cattolica del Sacro CuoreItaliaGilberto SafraUniversidade de São PauloPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Helio CarpinteroUniversidad ComplutenseEspaña

Hugo KlappenbachUniversidad San LuisArgentina

Isaías PessottiUniversidade de São PauloBrasil

Janice Theodoro da SilvaUniversidade de São PauloBrasil

José Carlos Sebe B. MeihyUniversidade de São PauloBrasil

Luís Carlos VillaltaUniversidade Federal de Ouro PretoBrasil

Luiz Jean LauandUniversidade de São PauloBrasil

Maria ArmezzaniUniversità degli Studi di PadovaItalia

Maria do Carmo GuedesPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Maria Efigênia Lage de ResendeUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Maria Fernanda Diniz Teixeira EnesUniversidade Nova de LisboaPortugal

Martine RuchatUniversité de GenèveSuiss

Michel Marie Le VenUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Monique AugrasUniversidade Católica do Rio de JaneiroBrasil

Olga Rofrigues de Moraes von SimsonUniversidade de CampinasBrasil

Pedro MorandeUniversidad Católica de ChileChile

Pierre-Antoine FabreÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

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Regina Helena de Freitas CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Sadi MarhabaUniversità degli Studi di PadovaItalia

William GomesUniversidade Federal do Rio Grande do SulBrasil

Conselho ConsultivoAdone AgnolinUniversidade de São PauloBrasil

Ana Maria Jacó VilelaUniversidade Estadual do Rio de JaneiroBrasil

André CavazottiUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Arno EngelmannUniversidade de São PauloBrasil

Bernadette MajoranaUniversità degli Studi di BergamoItalia

César AdesUniversidade de São PauloBrasil

Davide BigalliUniversità degli Studi di MilanoItalia

Deise ManceboUniversidade Estadual do Rio de JaneiroBrasil

Edoardo BressanUniversità degli Studi di MilanoItália

Eugénio dos SantosUniversidade do PortoPortugal

Giovanna ZanlonghiUniversità Cattolica del Sacro CuoreItalia

José Francisco Miguel Henriques BairrãoUniversidade de São PauloBrasil

Marcos Vieira da SilvaUniversidade Federal de São João del ReiBrasil

Maria Luisa Sandoval SchmidtUniversidade de São PauloBrasil

Marisa Todeschan D. S. BaptistaUniversidade de São MarcosBrasil

Mitsuko Aparecida Makino AntunesPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

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Nádia RochaUniversidade Federal da BahiaBrasil

Rachel Nunes da CunhaUniversidade de BrasíliaBrasil

Raul Albino Pacheco FilhoPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Vanessa Almeida BarrosUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Apoio* LAPS - Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade. Programa

de Pós Graduação em Psicologia - UFMG* Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FaFiCH - UFMG* Núcleo de Epistemologia e História das Ciências Miguel Rolando Covian -

USP/Ribeirão Preto* Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras - USP/Ribeirão Preto* Biblioteca Prof. Antônio Luiz Paixão - FaFiCH - UFMG

A revista Memorandum é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa "Estudos emPsicologia e Ciências Humanas: História e Memória", vinculado ao Departamento dePsicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG e ao Departamentode Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de RibeirãoPreto/USP

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EditorialMemorandum: memory and history in psychology

Number 6

The complexity of the structure of the human being

This sixth number of Memorandum preesents some conceptual and methodologicalcontributions regarding the construction of knowledge about the human being in itscomplexity, documenting the richness of interdisciplinarity.Initially, it is presented the contribution of phenomenology. In the conceptual field,the article Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia,written by Patrizia Manganaro, poses a philosophical question regarding themystical experience and its relationships with the theme of otherness, using alsothe epistemological perspective. Based on empirical experiences in the ambit ofpopular communities, the elaboration of experience and collective memory ofmeaningful "presences" are presented in two articles: A devoção a NossaSenhora de Nazareth a partir da elaboração da experiência ontológicade moradores de uma comunidade tradicional written by Renata AmaralAraújo and Miguel Mahfoud, in which the concept of person is employed,emphasizing how the personal dimension and the religious experience areapprehended in the world-of-life; and the article A memória de um padre exorcista:relatos da colônia de Cascalho, written by Márcio Luiz Fernandes e MarinaMassimi, which analyzes the phenomenom of permanence of a meaningfulpresence in the history of a community through living connections between historyand memory of a social group.Following, three contributions inherent to the knowledge of the human being in itscomplexity, now considered from a historical perspective. A composição doselementos: uma tradução do "De Mixtione Elementorum" de Tomás de Aquinowritten by Mauro Martins Amatuzzi, presents a translation and critical edition ofa Medieval text which is very important for the history of Psyhology because itestablishes theoretical basis on which, according to the author, a more complexstructure of the human being was conceived. The article Lo "spiritualeammaestramento" di Federico Borromeo alla città di Milano: la questioneantropologica, written by Marzia Giuliani, discusses what is called nowadaysphilosophical anthropology of an important intelectual and religious Italian of theModern Age, who exalts the fullness of the human being as an unity of body andsoul, which was to be developed on a path towards pefection. The article Fontespara difusão das idéias psicológicas em Minas Gerais entre 1830 e 1930, written byDenise Maria Nepomuceno and Regina Helena de Freitas Campos, presentsresults of a research in history of Psychology containing relevant survey about theattempt of apprehending the human being through the psychological science of thatperiod.Last, but not least, a review written by the anthropologist Pierre Sanchis aboutthe book "Folia de Reis: festa raiz: psychology and religious experience in theEcological Station Juréia-Itatins" emphasizing the methodological challenges. And anote, written by Marina Massimi and Regina Helena de Freitas Campos,communicating the decease, on January 18th of the current year, and payinghomage to the great master of history of Psychology Josef Brozek.

Miguel MahfoudMarina MassimiEdito rsApril of 2004

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Editorial BoardEdito rsMiguel MahfoudUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Marina MassimiUniversidade de São PauloBrasil

Ad Hoc Consultants of Memorandum 6Dante Marcello Claramonte GallianUniversidade Federal PaulistaBrasil

Heloisa ZschmankyPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Mauro Martins AmatuzziPontifícia Universidade Católica de CampinasBrasil

Pe. Elias LeiteCentro Universitário ClaretianoBrasil

Advisory BoardAdalgisa Arantes CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Alcir PécoraUniversidade de CampinasBrasil

Angela Ales BelloPontificia Universitas LateranensisItalia

Aníbal FornariUniversidad Católica de Santa FéUniversidade Católica de La PlataArgentina

Anna UnaliUniversità La SapienzaItalia

Antonella RomanoÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

Belmira BuenoUniversidade de São PauloBrasil

Caio BoschiPontifícia Universidade Católica de Minas GeraisBrasil

Celso SáUniversidade Estadual do Rio de JaneiroBrasil

Danilo ZardinUniversità Cattolica Sacro CuoreItalia

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Ecléa BosiUniversidade de São PauloBrasil

Francesco BotturiUniversità Cattolica Sacro CuoreItalia

Franco BuzziUniversità Cattolica del Sacro CuoreItalia

Gilberto SafraUniversidade de São PauloPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Helio CarpinteroUniversidad ComplutenseEspaña

Hugo KlappenbachUniversidad San LuisArgentina

Isaías PessottiUniversidade de São PauloBrasil

Janice Theodoro da SilvaUniversidade de São PauloBrasil

José Carlos Sebe B. MeihyUniversidade de São PauloBrasil

Luís Carlos VillaltaUniversidade Federal de Ouro PretoBrasil

Luiz Jean LauandUniversidade de São PauloBrasil

Maria ArmezzaniUniversità degli Studi di PadovaItalia

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Maria Efigênia Lage de ResendeUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

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Martine RuchatUniversité de GenèveSuiss

Michel Marie Le VenUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Monique AugrasUniversidade Católica do Rio de JaneiroBrasil

Olga Rofrigues de Moraes von SimsonUniversidade de CampinasBrasil

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Pierre-Antoine FabreÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

Regina Helena de Freitas CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Sadi MarhabaUniversità degli Studi di PadovaItalia

William GomesUniversidade Federal do Rio Grande do SulBrasil

Board of editorial consultantsAdone AgnolinUniversidade de São PauloBrasil

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Marisa Todeschan D. S. BaptistaUniversidade de São MarcosBrasil

Mitsuko Aparecida Makino AntunesPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Nádia RochaUniversidade Federal da BahiaBrasil

Rachel Nunes da CunhaUniversidade de BrasíliaBrasil

Raul Albino Pacheco FilhoPontifícia Universidade Católica de São PauloBrasil

Vanessa Almeida BarrosUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Supported by* LAPS - Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de

Pós Graduação em Psicologia - UFMG* Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FaFiCH - UFMG* Núcleo de Epistemologia e História das Ciências Miguel Rolando Covian -

USP/Ribeirão Preto* Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras - USP/Ribeirão Preto* Biblioteca Prof. Antônio Luiz Paixão - FaFiCH - UFMG

The electronic scholarly journal Memorandum is an initiative of the ResearchGroup "Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", linked toDepartamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMGand to Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras de Ribeirão Preto/USP.

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Manganaro, P. (2004). Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia. Memorandum, 6,3-24. Retirado em / / d a World Wide Web:

http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/manganaro01.htm

Alteridade, filosofia, mística:entre fenomenologia e epistemologia

Otherness, philosophy, mystics: between phenomenology and epistemology

Patrizia ManganaroPontificia Università Lateranense

Italia

ResumoRelações profundas entre o ser humano e Deus são lidas aqui em chave filosófica, enfocando aexperiência da presença da Alteridade pessoal. A mística é tomada, por um lado, comoinvestigação epistemológica (Pode-se falar de "experiência"? Um tal "experienciar" éconhecimento? Com que linguagem é possível exprimi-la? Que tipo de "presença" é aquela quese manifesta?). Por outro lado, é tomada como análise fenomenológica, evidenciando asvivências subjacentes àquela experiência, indicando o movimento intencional da consciência,no rigor do método essencial, legitimando uma fundamentação filosófico-ontológica daalteridade pessoal. É proposta uma leitura da questão filosófico-antropológica do sujeito comore-atualização da "vida interior" que Agostinho expressa como "Intima scientia est qua nosvivere scimus" e "In interiore homine habitat veritas". A investigação agostiniana éconfrontada com testemunhos de experiência mística carmelita e com análises filosófico-fenomenológicas de Edith Stein sobre empatia e alma. Explora-se o estatuto epistemológico dalinguagem religiosa e mística.

Palavras-chave: Alteridade; vida interior; pessoa, alma; experiência mística.

AbstractDeep relationships between the human being and God are approached here through aphilosophical perspective, focusing on the experience of the of personal Otherness. Mystics istaken, on one side, as epistemological investigation (Can we talk about "experience"? Can such"experiencing" be considered knowledge? With which language can we express it? What kind of"presence" is manifested?). On another side, it is taken as a phenomenological analysis,putting into evidence the life experiences contained in that experience, indicating theintentional movement of conscience. It is proposed a view of the philosophical-anthropologicalquestion of the subject as an "re-actualization" of "interior life" which Augustin expresses as"Intima scientia est qua nos vivere scimus" and "In interiore homine habitat veritas".Augustinian investigation is compared with witnesses of Carmelite mystical experiences andwith philosophical-phenomenological analyses of Edith Stein about empathy and soul. Theepistemological basis of religious and mystic language is also explored.

Keywords: Otherness; interior life; person; soul; mystic experience.

IntroduçãoA investigação filosófica (1) sobre experiência mística remete à relação dinâmica e recíprocaEu-Tu e à sua verdade vivida, atuada e conhecida, isto é, considerada em suas implicaçõesfilosófico-fenomenológicas e epistemológicas (Manganaro, 2002). Assim, o campo de pesquisase focaliza no mistério pessoal da experiência mística cristã, com sua peculiaridade dentro deum campo comum mais vasto. Como atestam estudos comparados - dentre os maisrespeitados citamos Ancilli & Paparozzi, 1984; Gardet & Lacombe, 1988; AA.VV., 1996 - nemtoda experiência mística é experiência de Deus: muito menos do Tu pessoal e trinitário que,enquanto tal, já contém em si a alteridade. Considera-se a situação paradoxal de falar daquiloque, por sua natureza, é um excedente não-conceituável, inexprimível, mas tal paradoxo(Fabris, 2002; Lorizio, 2001) não conduz necessariamente a abandono da investigação: ao

Memorandum 6, abril/2004Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.

http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/manganaro01.htm

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Manganaro, P. (2004). Alteridade, filosofia, mística: entre fenomenologia e epistemologia. Memorandum, 6,3-24. Retirado em / / d a World Wide Web:

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contrário, é uma ocasião para identificação das linhas-mestras e métodos. Para ilustrá-losadequadamente, apresentamos algumas indicações preliminares.O século XX filosófico colocou em crise três noções particularmente incisivas: a pessoa,ofuscada pelo Eu absoluto, este fechado em sua identidade-majestade monádica e portantocon-centrado no seu abstrato subjetivismo; a experiência, diminuída a verificação "positiva"segundo a lógica da medida, da quantidade, do cálculo e, na melhor das hipóteses, dafuncionalidade; e, por fim, a verdade, insignificante em sua pretensão epistemológica numapostura relativista e/ou cética, "fraca" em sua constituição, renuncia a si mesma.Em contraste com essa tendência bastante difusa, há muitos sinais de uma revisão do papel dafilosofia, que foi se delineando sempre mais como serviço. O olhar é dirigido aos ganhos queela, assim entendida, possibilita. Não iluminismo, mas razão iluminada: a filosofia examina aexperiência com consciência refletida, "crítica", sem que esse aspecto se torne hegemônico;pelo contrário, deixando os fenômenos "falarem" em sua simples manifestação. Neste sentido,a investigação teórica não se dá sem a uma postura de "escuta"; nem ela perde sua estruturaautônoma, o que tornaria opaco o seu caráter gnosiológico constitutivo e fundante. À pergunta"O que é a filosofia?" pode-se, então, responder deixando emergir livremente aquela dimensãode "amor" da qual ela é guardiã. Não é por acaso que sua etimologia faz precisa referência à"sabedoria".Sugere-se aqui uma leitura alternativa do tema alteridade: no habitual comércio lingüístico dasdiversas disciplinas, de fato, "outro" é um termo de uso quotidiano, que se manifesta naexperiência ordinária da diferença. Mas a filosofia, especificamente, oferece instrumentosmetodológicos para que a leitura proposta seja não só alternativa, mas, sobretudo,fundamentada e consistente. Também ao se tratar da relação entre alteridade e experiênciamística, esta freqüentemente enquadrada como irracional, emocional, intimista e até mesmopatológica. Fenomenologia e epistemologia oferecem sua contribuição para dissipar esseequívoco. Freqüentemente elas se apresentam entrelaçadas mas não confundidas entre si,cada qual ressaltando um modo particular de interrogar, sem trair a economia do conjunto.Além disso, ambas trazem um sentido realista à pesquisa, articulando de modo concreto ascomplexas nuances ligadas à "vida interior" de tipo agostiniano.Trata-se de um "viver" que se modula no "sentir". "Sentir o outro dentro de si" é, de fato, osignificado mais próprio da Einfühlung (Stein, 1917/1998; Ales Bello, 1992; Manganaro,2000), que analisa a modalidade com a qual a alteridade pessoal se apresenta a umaconsciência que conhece e apreende o " tu" como alter-ego, outro mas análogo a mim:partindo deste ponto nodal, e mantendo a tripartição constitutiva da pessoa humana de matrizpaulina (Stein, 1932-33/2000) (2), perguntamo-nos se o ato de conhecimento empático seaplica também ao Tu com T maiúsculo, que é Deus; qual é o sentido da relação Eu-Tufundamentada nestes termos, e, particularmente, qual é o sentido da criatura humana comoimagem de Deus e analogia Trinitatis; e, finalmente, qual é o estatuto epistemológico egnoseológico desse "sentir" e da linguagem que legitimamente o exprime.Nas pegadas de Agostinho, a investigação fenomenológica de Edith Stein toma a dimensãointerior como "sede" privilegiada da experiência da verdade. Isso se dá entre interioridade,alteridade/ulterioridade e transcendência (Stein, 1936/1999). Mas é graças ao único dadoobjetivável da alteridade pessoal, o corpo vivo sensível, que se constitui a complexa relaçãoentre físico, psíquico e espiritual. O Leib permite o conhecimento aperceptivo do espírito e dapsique de outros Eu; é o veículo privilegiado através do qual se apreende a alteridade pessoalna sua inteireza; carrega consigo os sinais visíveis da verdade da criatura humana. Acorporeidade viva fala de todo o ser que a habita e o seu dizer pertence àquele extraordináriomodus comunicativo que utiliza o alfabeto dos símbolos.O símbolo - sinal concreto que evoca sem revelar - não permite uma apreensão totalizantedaquilo que indica: pelo contrário, respeita seu silêncio e nesse sentido remete a outro; alémdisso, rejeita a imobilidade e a resistência do objeto - o que Martin Buber (1933/1993)polemicamente definiu "mundo do isso" - gerando tensão, aspiração, vida. Observa-se,inclusive, que as operações da imaginação se dão no ponto de encontro entre a consciência e acorporeidade, esta envolvida no "sentir" místico também como palavra que se faz gesto,

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práxis, ato. O nexo dinâmico palavra / ação resulta eficaz na práxis litúrgica, na "lógica"sacramental e na Palavra que provém do Tu eterno, Palavra que faz ser o que diz (3).Pode-se também observar que a noção filosófica de "experiência" não é unívoca: ela não podese separar do Erleben fenomenológico, tão sintonizado com a "vida interior" de Agostinho. É,então, oportuno investigar a instância da consciência primariamente interessada pelapercepção mística de Deus, que é também o "sentido" da sua presença. Quem é esse Eu,capaz de identificar o seu "centro" como Selfe, além disso, capaz de relação com o Outro, como Tu trascendente? O que significa que a verdade habita a interioridade? E como explicar queDeus é uma transcendência interior?

A questão da subjetividade: vida interior, Erleben, verdadeEmerge a questão do Eu, do Self e do Tu. O Eu individual pessoalmente relacionado, aodelinear-se - longe de re-propor o cogito cartesiano ou a mônada sem janelas de Leibniz -significa acontecimento do ser na concreteza de um mistério: o Eu é dado a si mesmo; o Eu é,mas não por si mesmo. Aquilo que o Eu experimenta como mais próprio e pessoal não éoriginariamente uma posse, mas o recebe de outros, do Outro, como um dom: portanto o serhumano se constitui numa relação que diversifica. O sujeito que interroga a si mesmo -segundo a tradição agostiniana - não é aquele exaltado pelas modernas filosofias do Eu oupelos vários idealismos e positivismos, nem aquele disperso em vivências fragmentárias,delimitado pela retórica contemporânea da cultura do nada ou da morte. Ao invés, é umasubjetividade real, finita, concreta, não anônima, cônscia de sua vocação assim como de seulimite: um Eu criativo, sem ser criador, aquele Self que cada um pode atribuir a si mesmo e aoalter-ego no momento em que se re-conhece constituído de passividade e de atividade, comoum ser pessoal que age e sofre a ação, capaz de advertir e de indagar sobre o seu agir e sobreo seu sofrer a ação. A reflexão filosófica ainda hesitante entre a nostalgia de uma unidademonádica auto-referencial e o abandono a uma complexidade fenomênica irredutível e, emmuitos aspectos, devorante, aceita um diverso "preenchimento", abre-se em exploraçõesoutras, se aproxima do Outro. O ex-per-iri da vida interior, portanto, não é mergulho do Eu nopróprio Self, mas busca do Tu inexaurível que é, a um só tempo, subir e descer:transcendência e imanência remetem uma à outra reciprocamente. Nota-se, assim, que anoção moderna de Self pode ser aproximada ao que os clássicos indicam com o termo "alma"ou melhor, "centro (ou fundo) da alma", quando usado no contexto da auto-consciência. Aesse respeito, são preciosos os estudos de Jacques Maritain sobre o conhecimento místiconatural, conduzidos na trilha do tomismo (Maritain, 1938/1978), as pesquisas de místicacomparada de Louis Gardet sobre a experiência indiana de Self, as de Olivier Lacombe sobre acriatividade da poesia (Gardet & Lacombe, 1988) e as análises de Carl G. Jung (1928/1967,1940/1966) sobre Selbst, arquétipo intemporal existente antes de qualquer nascimento eidentificado com o "Deus interior" do monoteísmo.

Mas é Agostinho o interlocutor privilegiado nos estudos filosóficos sobre a experiência místicacristã, cuja especificidade é a experiência da Alteridade que é Amor. Para conhecer o "sentido"da presença de Deus é preciso aderir ao próprio autêntico Eu. Assim já se delineia a primeiradiferenciação qualitativa entre uma verdade "especulativa" e uma verdade vivida,experimentada, ligada ao campo da ação, testemunhada na concreta experiência pessoal.Nesse contexto se insere a verdade da scientia crucis, sabedoria que é a intersecção dinâmicade amor, conhecimento e verdade, como testemunhou São João da Cruz (Stein, 1950/1982). Ejá se configuram as intricadas relações entre filosofia e mística na busca da verdade: a gamade possibilidades varia desde a sua simples identificação, em uma assimilação buscada emnome de uma sabedoria superior, até a denúncia recíproca de uma contraposição insuperáveldevido ao racionalismo programático da primeira e ao entusiasmo desvirtuante da segunda(Molinaro & Salmann, 1997). Evitando esses extremismos, o ponto de vista aqui propostoconsidera a oportunidade de uma relação complementar mais equilibrada ao iluminar asconexões de imediatez/mediação, tempo/espaço, presença/ausência,imanência/transcendência, revelando-se mais fértil ao tender "para" a verdade. Filosofia emística se encontram mas não coincidem: ambas estão ancoradas no "concreto" do mundo

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interior e da criatividade da pessoa humana, mas uma coisa é filosofia e outra é mística (cf.Molinaro, 2003). A filosofia, como operação reflexiva, pode se voltar para o valor gnosiológicodo "sentir" comunicado pelos místicos, e pode expor com sua própria linguagem o que amística apreende na "visão" vivenciada e exprime com linguagem simbólica e poética. Ummodelo exemplar do encontro entre elas é oferecido pelas investigações de Stein, confirmadasna descrição da passagem pelos aposentos da alma de Santa Teresa d'Ávila. Uma filósofafenomenóloga e uma mística carmelita que certamente conheceram Agostinho, cada umadesde sua própria perspectiva.Mas o pensamento ocidental moderno herdou a noção cristã de "interioridade" quase tirando,dissociando a profundidade e a densidade que originalmente lhe era própria. De fato, desdeDescartes a interioridade resultou em subjetividade, tornando-se sempre mais "sistemática" eegológica. Voltar-se ad intus, como se delineia no realismo da fenomenologia que recupera ovalor cognitivo da intencionalidade da consciência, não é fuga do mundo nem dos outros,muito menos perda do "sentido" do concreto, mas caminho na direção que conduz ao encontrocom o Tu eterno. Onde intencionalidade e interioridade mostram a sua estrutural co-pertença:trata-se da retomada do motivo agostiniano, filosoficamente decisivo para a busca da verdade.Mais em geral, delineia-se, então, uma revisão da relação entre filosofia e cristianismo, e dapossibilidade de uma "filosofia cristã". Em seu exercício crítico, a filosofia pretende que a fénão recue frente à inteligência, enquanto ela mesma se deixa investir pelo pensar na fé: istocomporta uma renovação tanto da pesquisa sobre a experiência religiosa (constitutiva do serhumano) quanto da postura da razão filosófica (não redutível ao modelo de racionalidade dasciências positivas, antes, solicitada ao confronto e ao diálogo com a teologia). De fato, odesejo de conhecimento pode ser "preenchido" de diversas maneiras; cônscios que somos dese tratar de um empreendimento inexaurível.A pesquisa filosófica expõe o sinal a força da qual emerge o termo "experiência mística" comoexperiência da Alteridade que é Amor: sinal alimentado pela dúplice raiz, hebraico-cristã egrega. Manlio Somonetti (1983) escreve:

A mensagem cristã tomou forma inicial em categoriassemíticas porque foi inicialmente formulada em áreasemítica. Depois, aspirando a uma propagação universal edifundindo-se em áreas de cultura grega, tevenecessariamente de ser novamente formulada segundocategorias de pensamento tipicamente helenistas. Por isso,considero ter mais razão quem vê na helenização damensagem cristã não uma deformação devida à influência dacultura grega, mas o resultado de um processo deadaptação. Processo inevitável e natural, ainda que muitolaborioso e sofrido, por ter se dado na dialética entre tensõesfortíssimas, buscando, por um lado, os indispensáveisvínculos com o mundo circundante e, por outro lado, revelara novidade dos conteúdos e a identidade mesma da novacomunidade (pp. 7-8).

Contra o lugar comum que indica a origem do pensamento filosófico exclusivamente nos frutosintelectuais da civilização helênica - re-proposto na Itália por Marco Vannini (1996) -, éoportuno ressaltar tanto o papel decisivo quanto a novidade do cristianismo na culturaocidental: na realidade, a fé cristã logo contestou a sabedoria grega enquanto tentavaapropriar-se de algumas categorias suas; e a filosofia assumiu uma postura crítica frente aoanúncio cristão, do qual não compreendeu a dimensão (não irracional mas) anti-especulativada crença. Apesar disso, o confronto/choque transformou-se em cruzamento, e cruzamentoprodutivo, não só sofrido. Nesse contexto, compreende-se a misteriosa adesão ao eterno, quese realiza no amor e "por" amor: ela é consentida ao Eu em virtude da participação à vidaíntima do Deus trinitário, que se multiplica em si, que quer ser também fora de si, e quetransmite à alma humana um toque da Alteridade e da Eternidade que a habitam. Então, aalma conhece como é conhecida e, na medida em que conhece, ama assim como é amada, em

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um mútuo reforço de conhecimento e amor. Daqui a peculiaridade da mística cristã,extraordinária síntese, na novidade, de elementos veterotestamentários e gregos.Quer-se evitar uma dúplice postura: a de negar qualquer valor à experiência mística nãocristã, acabando por ver nela uma espécie de árida introspecção ou mero tecnicismopsicológico; e a de negar qualquer transcendência à experiência mística cristã, fazendo delaum improvável panteísmo ou paganismo. Ambas são rejeitadas: ou porque absolutizam asdiferenças, ou porque não as respeitam. Enquanto leitura filosófica da alteridade pessoal emsua relação com o "sentir" místico, a investigação se concentra, inevitavelmente, naexperiência do Outro como união transformante, e não como mística da identidade/unidadeindiferenciada. O ato unitivo não elimina a diferença, antes, a reforça: é sempre um ex-per-iri,um "ir-através", ou seja, um "ir-de" "passando-por". O "fato" místico cristão não nascesomente pela busca de Deus por parte do Eu finito, mas pela experiência objetiva da irrupçãodo Tu eterno na história e, particularmente, na história de cada indivíduo: é entãoprofundamente ligado ao mistério da relação dinâmica Eu-Tu, pessoal e recíproca, em umaespécie atravessa mento do tempo que se anuncia como acontecimento tenso entre o "já" e o"ainda não".

A mística e as místicasA leitura filosófica do mistério das relações mais profundas entre o ser humano e Deus é umcampo minado pelas históricas acusações de irracionalismo, intimismo e sentimentalismos porparte de uma filosofia reduzida a verificação e quantificação, a exercício categorial epensamento calculador; e, no entanto, trata-se de um campo a ser cultivado pelo filósofo queainda saiba e queiraexercitar a capacidade de maravilhar-se frente às amplas possibilidadesde que ele dispõe. É significativo que isso tenha acontecido no século XX, que freqüente einsistentemente se auto-proclamou a-teu e a-gnóstico. De fato, são muitos os pensadoresocidentais "sem Deus" que (mesmo não compartilhando certas perspectivas) têm de algumaforma cultivado a abertura à alteridade ulterior, ao plus, isto é àquela dimensão de tácitaexcedência, subterrânea, escondida e, todavia, reinante, que é portadora de sentido (4).Às vezes esta experiência se configurou como intimismo espiritual e ascético, que de fatoacaba fazendo coincidir o "centro" do Eu e o "centro" do Absolsuto, em uma identiddeexperimentada como originariamente in-diferenciada, pura, intacta, sem resíduos: como nasUpanishad, quando é pronunciada a fórmula que significa a identidade do atman individual edo Brahman absoluto. Tal conhecimento, supremo e imediato, é chamado advaita, termosânscrito que significa "não dualidade" e remete ao saber místico sobre a realidade absoluta:trata-se da chamada mística in-stática ou monista, que provoca fortemente o interesse dofilósofo (5). Outras vezes ela foi percebida como experiência do Nada, do Vazio, do Abismo,além ou acima do Ser: é o caso de Grund der Seele, "fundo da alma", expressão com queMeister Eckhart designa a realidade mais verdadeira e profunda do ser humano (6). Em outroscasos, a experiência mística foi tomada como gozo estetizante do universo, do Todo cósmico,da natureza e da beleza. Como é sabido, os místicos do Todo cósmico se ek-stasiam, sedilatam além de si mesmos, além do espaço e do tempo, até sentirem-se ontologicamenteidênticos à universalidade da existência (nela se dissolvendo ou sendo absorvidos): trata-se deabolição dos limites entre o eu e o mundo, por acompanhar uma espécie de unidade-identidade substancial, obtida através da anulação de qualquer distinção; ou então eles aacolhem como imersão no reino do não-temporal e como imediato contato com a imensidade.Este último tipo de experiência revela a capacidade criativa do sujeito: a poesia é um exemplotípico, cujo dom pressupõe um certo recolhimento da alma voltado à escuta do ser secreto dascoisas: a esse respeito, Maritain (1983) fala de um "pré-consciente espiritual", cujo descuido,em favor do inconsciente surdo e automático de Freud, é para o filósofo francês, um sinal dainsensibilidade dos tempos modernos (7). Para ele, a intuição criativa, ainda que movendo-sedesde o supra-consciente do espírito, se realiza através da virtude da arte: ela é uma virtudeintelectual, mas não uma pura forma intelectual (só Deus, de fato, é perfeito criador). Dessemodo, a poesia abre à mística, mas o simples gozo da beleza ainda não é a experiência místicaautenticamente entendida.

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Em outras tradições, ainda, a experiência mística foi entendida como experiência do profundodo Self ou da substância da alma, apreendida em ato-primo da existência, por meio de umvazio intelectual (8): são as várias místicas, cuja descrição foi geralmente confiada a umalinguagem simbólica, alusiva, poetizante, memorizante. Pesquisas em história comparada dasculturas e das religiões ofereceu, a esse respeito, densas contribuições: emergiramimportantes afinidades com os fenômenos descritos pelos grandes místicos cristãos. De fato,são conhecidos também pelos não-especialistas os surpreendentes resultados a que chegaramascetas indianos, budistas e muçulmanos, mediante antigas e refinadas disciplinas do corpo edo espírito: só em alguns casos, todavia, encontramo-nos diante de fenômenos decomprovada autenticidade religiosa e mística. Como afirmou Henri de Lubac (1996, p.20), "éuma tese muito difundida a de que não só o misticismo está em toda parte, mas que em todolugar é igual. E esta tese é apoiada por muitas aparências". Torna-se, então, necessária umabusca séria, analítica e minuciosa, que saiba distinguir, separar, cindir. Desde já é oportunoremarcar a peneira existente entre "mística" e "misticismo". Peneira essa, ao mesmo tempo,conceitual e axiológica, indicando em um caso a experiência da presença de Deus, que está epermanece ligada ao "mistério", e, no outro, uma postura de vaga religiosidade estetizante ouentão uma disposição a apreender a dimensão interior, sentimental e espiritual da existência(9). Obviamente, o mistério é e permanece tal: mas tendo sido pelo menos parcialmenterevelado, torna-se possível indagá-lo, cônscios de que re-velar-se é também um velar-senovamente (10), ou seja - dizendo em termos mais propriamente filosóficos -, que o sentidoúltimo é também limite de sentido.

A experiência mística entre fenomenologia e epistemologiaA leitura filosófica do tema aqui examinado, que analisa a intencionalidade da consciência emseu vínculo com a experiência mística, se define por um lado como investigaçãoepistemológica - pode-se aqui falar de "experiência"? e de que tipo de experiência se trata?Tal "experienciar" consiste em um conhecimento? Com que tipo de linguagem é possívelexprimi-la? Que tipo de "presença" é aquela que se manifesta no Self e/ou na alma? Que tipode "participação"? e, por fim, quem é o verdadeiro sujeito ativo da relação Eu-Tu que acontecee desenvolve no tempo? - e por outro lado como pesquisa fenomenológica - colocando emevidência as vivências (Erlebnisse) que subjazem a tais experiências e no rigor do métodoessencial, capaz de uma legítima fundamentação filosófico-ontológica da alteridade pessoal.Em relação a este último aspecto, pode-se rapidamente afirmar que o pensamento ocidentalmoderno e contemporâneo se caracteriza como filosofia do eu ou do sujeito. Este é o pontofocal do qual partem, para depois se diversificarem pelos diversos caminhos da filosofia. Desdeo cogito cartesiano até a revolução copernicana de Kant, das estruturas essenciais daconsciência indagadas por Husserl até o existencialismo, o personalismo, as filosóficas éticasdo rosto, desde a relação e diálogo até as teorias sociais da ação comunicativa, a questão dosujeito se delineou com insistência sempre crescente. Trata-se de um sujeito, sem dúvida,pensante, conhecedor, ético, intencionalmente interrogante: mas pensante, conhecedor, éticoe intencionalmente interrogante porque vivo. Ao invés de um idealismo e solipsismo estritos, aquestão moderna do sujeito me parece, mutatis mutandis, uma retomada do temaagostiniano, revisitado e re-atualizado por uma contemporaneidade freqüentemente em crisecom relação à presumida exaustividade da ciência e da técnica. Do íntimo da civilização doprogresso pessoal ressoam contínuos apelos a uma experiência de plenitude que nenhumapráxis, nenhuma eficiência operativa tem condições de nos dar. À pesquisa filosófica hodierna,que tenha a intenção de interrogar a complexa questão da mística, impõe-se então uma sériareflexão sobre o Eu, o Self e sobre o Tu, que pode também ser chamada de investigação sobreidentidade, alteridade e reciprocidade - ou então sobre pessoa, indivíduo e relação. Interessa-me assinalar, por um lado, a não redutibilidade do ser humano a sujeito ou ao Eu; e por outrolado, a sua dinâmica intencionalidade experiencial, que é o cerne do ser voltado-para, comopostura constitutiva da pessoa humana.

Porponho, portanto, uma leitura da questão filosófica do sujeito da mais recente aquisiçãocomo redescoberta da dimensão interior do ser humano, segundo a indicação do bispo de

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Ipona em De Trinitate (XV, 12): "Intima scientia est qua nos vivere scimus". Nós vivemos,sabemos que vivemos, e o sabemos com íntima certeza: onde o nos agostiniado supera, emmuito, o ego cartesiano pela abertura à intersubjetividade. Na vida interior de Agostinho, comona Erleben da fenomenologia, encontra-se uma pluralidade de experiências, de atos, devivências, entre as quais o pensar. Ao invés, em Descartes essa rica multiplicidade éenfraquecida, se não esmagada, pelo núcleo monolítico constituído pelo cogito. É, em suma, oser humano vivo, mais que pensante, com relacionamento experiencial em que se volta para omundo circunstante comum, para as coisas outras, para os seres humanos e para a Alteridade(com A maiúsculo) - o que definitivamente leva o filósofo contemporâneo à interrogaçãoitinerante. Itinerante, note-se bem: porque aqui está o sentido próprio do ex-per-iri que deveser ampliado.A experiência entendida em seu sentido etimológico e semântico como per-cursocognitivamente dinâmico encontra uma precisa correspondência no termo alemão Erfahrung,onde fica claro o vínculo com o verbo fahren, "viajar". Trata-se, nota Adriano Fabris (1997), do

nexo com a experiência que se faz percorrendo lugaresnovos e com o tempo, a paciência, que a viagem mesmarequer. Erfahrung indica, assim, uma espécie de necessáriaabertura, exprime o ímpeto de sair dos lugares familiares - eantes de mais nada de si mesmos - para aventurar-se emlugares desconhecidos, dispostos à maravilha e à surpresa(p. 17).

A lição dada pela questão etimológico-semântica da palavra "experiência" é justamente otema-guia da articulada reflexão de Fabris, que com propriedade ressalta a "sabedoriainsconsciente" da língua latina que com o único termo experientia consegue sintetizar osignificado que no Livro A da Metafísica aristotélica vinha expresso com três diferentesvocábulos gregos: 1) aisthesis (sensação, sentimento, intuição), como relação imediata,passiva, com uma alteridade pela qual somos afetados na sensação; 2) empeiria (habilidade,prática), como capacidade de ordenar, catalogar, memorizar as impressões pelas quais fomospassivamente golpeados; 3) e, finalmente, peira (experimento, prova) como possibilidade deampliar tal cognição, tanto para fins práticos quanto para o puro amor à ciência e ao saber.Mas depois, assinala Fabris, dá-se conta de que a experiência em seu conjunto não resulta dasimples soma de sensações provadas, de experimentos feitos colocando à prova nossascognições e pelo desenvolvimento de um conhecimento a ser aplicado ou contemplado, porqueex-per-iri, articular uma experiência, significa primariamente realizar a conexão de todos essesaspectos, em um per-curso dinâmico presente, como dizia também do alemão Erfahrung. Tudoisso resulta evidentemente ligado ao outro termo alemão, Erlebnis, que dizendo a experiênciavivida indica não somente o sujeito conhecedor, mas também todo o ser humano, vivo eintencional.Ex-per-iri, então, como disposição, como vocação à alteridade? A noção abstrata de "sujeito",com efeito, não coincide com a noção concreta de "eu". E o ser humano não égnoseologicamente sujeito, nem eticamente pessoa, se não for marcado pela diferença, pelarelação e pelo encontro com o que é outro e, em última análise, pela vida mesma, com suascorrentes e fluxos temporais, dos quais não há como se esquivar. É óbvio que o lugarprivilegiado para a investigação sobre a mística é o sujeito místico, aquele que pessoalmentevive - e depois expressa e descreve - essa experiência peculiar de um contato com algo quetem sido chamado de o Sagrado, o Numinoso, o Transcendente, o Divino, o Absoluto, oTotalmente Outro. Determinando o significado mais rico e profundo da existência humana,essa vivência se configura como evento pessoal. Então a filosofia - não iluminismo, mas razãoiluminada - poderá fornecer uma lúcida leitura de tal fenômeno, que só aparentemente estádistante do âmbito de pesquisa que lhe é mais próprio.

A estrutura da pessoa humanaO délfico "conhece a ti mesmo" ganhou um significado novo.A ciência positiva vale na dispersão mundana. É preciso,

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primeiro, perder o mundo mediante a epoché, para reavê-lodepois com a tomada universal de sentido de si. Noli forasire, diz Agostinho, in te redi, in interiore homine habitatveritas.

Com estas palavras Edmund Husserl (1963 /1990, pp. 210-211) esclarece que conhecer a simesmo adquiriu um significado mais amplo: agora é um conhecer que não pode maisprescindir do encontro com um rosto, está sempre dirigido a um "tu", o qual -agostinianamente - vem a ser experienciado, sentido, vivido na inteireza do próprio ser. Este éo significado mais profundo da intencionalidade, do "voltar-se para", assim como foi enfatizadopela escola fenomenológica: neste sentido, a consciência é sempre consciência de, movimentoe orientação para, mesmo quando se trate do percurso interior, da viagem pelos aposentosrecônditos da alma.Assim, a experiência mística considerada na sua valência específica de mistério pessoal dirigidoao Tu (com T maiúsculo) que é Deus, vem a ser lida filosoficamente por meio de uma análisefenomenológica regressiva que, acompanhada pela precisão epistemológica e etimológico-semântica dos termos-chave em questão, permite apreender o fenômeno em seu oferecer-se/manifestar-se "em carne e osso".A antropologia filosófica proposta por Edith Stein identifica na pessoa humana os elementos dacorporeidade, da psique e do espírito como agregados constitutivos, aos quais correspondemgrupos de vivências qualitativamente homogêneos (cf. Pezzella, 2003). Ela se move em basehusserliana: a exigência comum é a de intender à unidade da estrutura do ser humano nãoobstante a complexidade de sua constituição. Husserl havia descrito as três esferas essenciaiscomo nuances de uma única, profunda realidade. São elas: o Leib, o corpo próprio vivo,cuidadosamente diferenciado do Körper material; a Seele ou atividade psíquica; e, por fim, oGeist, a esfera espiritual (11). Através de pacientes operações de escavação fenomenológica,Husserl havia habilmente recuperado a tradicional partição corpo / alma, porém identificandocom mais detalhes certas funções e momentos que haviam sido apenas esboçados. Emparticular, a definição da corporeidade como "viva" remete a um profundo vínculo com aatividade psíquica, Seele, clarificada em sua peculiaridade com relação ao momentoespecificamente espiritual, Geist. Husserl retomou as vivências presentes atrás e/ou sob asdeterminações tradicionais de alma e corpo, sem negá-las, mas indagando analiticamente emum longo processo de esclarecimento (12).Stein continua as pesquisas do mestre e destaca do conjunto das capacidades psíquicas um"núcleo" da personalidade (Persönlichkeitskern) - determinado causalmente - que,completamente desvinculado das influências do processo psíquico, todavia, tem condições decumprir um papel decisivo em todos os vários eventos psíquicos: trata-se daquelaconsistência, imutável e originária, que determina a vida espiritual de cada indivíduo. Como jáindicado, isso não é uma novidade na área dos estudos fenomenológicos: algo semelhante jáhavia sido assinalado pelo próprio Husserl quando afirmara que a pessoa é a individualidade deuma subjetividade (Husserl, 1973), ou seja, o "centro" da atividade subjetiva e espiritual.Stein retoma esses motivos e os submete a uma intensa análise fenomenológica. Éparticularmente impressionante a sua reflexão sobre a presença da corporeidade na vida daalma e do espírito e suas considerações sobre ascese e êxtase. Este último é o estado em queo corpo, não obstante a sua miséria e precariedade, recebe e acolhe a luz que inunda a alma:não se trata de um "fato" mecânico, mas de um acontecimento, de um evento misterioso noqual se manifesta a ação divina. Disso - observa a filósofa - é hipotizável que a salvação nãose refira somente à alma, mas também ao corpo. De fato,

Somente o afluxo da Graça é capaz de transformar a via daascese em caminho da salvação. [...] A ascese sacrifica asaúde e a beleza do corpo vivo e também a liberdadenatural, que ele pode garantir [...]. Perguntemo-nos se esteé o único modo de chegar à liberdade. Certamente é a únicavia que o ser humano é capaz de percorrer por si mesmo[...]. Quanto mais a alma é preenchida pelo espírito da luz,

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tanto mais desaparece dela todo o resto, o inteiro mundoterreno e o próprio corpo vivo que dele faz parte. Estaseparação pode, no êxtase, culminar em completainsensibilidade e em um rapto total. Este é um puro efeito daGraça que desde o interior vai para o exterior e não há outraatividade própria além de abandonar-se a ela (Stein, 1930-32/1997a, p. 94) (13).

Mas a separação do corpo vivo não é o único efeito da Graça. Antes, o Leib não pode serconsiderado uma espécie de "prisão" da alma, que lhe coloca obstáculo impedindo que seeleve; é como o seu "espelho", no qual a vida interior se reflete e através do qual a alma entrano mundo visível. O corpo vivo animado vem a ser iluminado: a mesma luz que preenche aalma o penetra e se irradia nele; trata-se do que a filósofa define "santificação do corpo vivoatravés da alma" (Idem, p.95). Então o corpo vivo santificado não oprime a alma, antes é suamorada encarregada de atualizar uma vida concretamente livre. Neste ponto Edith Steinintroduz o importante discurso sobre a experiência sacramental, especialmente a eucarística:aquele/aquela que recebe em si o corpo de Cristo vê santificado o próprio corpo vivo; assim serestitui a relação originária entre a alma e o Leib e se recompõe toda ruptura, desagregaçãoou separação. Stein termina com uma afirmação extraordinária, densa de implicações: aparticipação à vida sacramental favorece, ou eventualmente restabelece, o equilíbrio psico-físico dos ser humano.A pessoa humana, observada como um todo, se apresenta como uma unidade decaracterísticas qualitativas formada por um núcleo (Kern). A investigação de Stein parece teruma pergunta subtendida: estamos aqui realmente diante do que a tradição chama de "alma"?A filósofa fenomenóloga afirma que "a consciência do núcleo da personalidade é, com relaçãoao conhecimento da vida espiritual, algo novo e característico" (Stein, 1922/1996, p. 126). Porum lado, com o termo "alma" entende-se a atividade psíquica; por outro, é possível colocar emevidência uma conexão mais profunda com a dimensão espiritual: este é o motivo pelo qual anoção de "alma" é geralmente referida ao vínculo psíquico-espiritual constituído por este"núcleo" absolutamente independente de qualquer outra realidade. Stein oferece uma agudadescrição essencial das esferas da psique e do espírito, identificando suas afinidades edistinções. O ponto é que a alma está ligada tanto à dimensão psicofísica quanto à espiritual, eisso causa uma certa dificuldade de exposição. Com relação a isso, ela afirma:

É a alma que vive em todos os atos espirituais e sua vidainterior é uma vida espiritual. Contrastamos espírito e alma,mas isso não deve ser entendido como excludente, do tipoum ou outro. A "alma da alma" é uma realidade espiritual e aalma como totalidade é um ser espiritual cuja característica éa de ter uma interioridade, no centro, do qual ela deve sairpara encontrar os objetos e ao qual ela conuz tudo o querecebe do exterior; um centro do qual pode doar si mesmatambém para o exterior. Aqui encontramos o centro daexistência humana (Stein, 1930-32/2000, p. 122).

Então, a alma que por um lado está ligada ao Leib apresenta uma parte propriamenteespiritual. Com o espírito dirigimo-nos intencionalmente para o mundo; ao invés, a alma oacolhe completamente em si e liga-se a ele. Cada alma individual é um modo peculiar, próprio.Mas essa diferença corre o risco de desaparecer: de fato, aquele pleno acolhimento deveconsistir em um apreender na alma e com a alma, ou seja, em um emergir da alma de simesma. Trata-se, na realidade, de uma ação propriamente espiritual: os limites entre a alma eo espírito, então, correm o risco de anularem-se. A vida da alma é, então, uma atualidadeespiritual (Stein, 1922/1996, p. 248): aqui acontece o encontro com a Alteridade-Verdade.Como se vê, a antropologia filosófica de Edith Stein caracteriza-se por um precioso equilíbrio,lendo a alma como núcleo vital de um ser corpóreo-psíquico-espiritual: trata-se do mesmoequilíbrio que permite harmonizar busca espiritual, teologia e filosofia no caminho que conduzá verdade.

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Busca agostiniana, mística carmelita, análise fenomenológica da almaAgostinho indica a investigação interior como estrada-mestra em direção à verdade,percorrendo-a pessoalmente, descrevendo a fecundidade de seus desenvolvimentos ao mesmotempo experienciais, espirituais e existenciais. Neste sentido, trata-se de um pensamento"forte", que fundamenta e orienta. Voltar o olhar para Agostinho significa repensar, hoje, umdos gestos mais eficazes da filosofia cristã: o da viagem da alma, ou melhor, o de empreendera viagem em busca da verdade na própria alma. Onde desejo e conhecimento, transcendênciae imanência confluem ao atravessarem o enigma, o fundo misterioso: "Deum et animam scirecupio" afirma Agostino em Soliloquia ( I , I I , 7), não distinguindo a busca do Ser eterno etranscentende da exploração das profundezas do ser finito, cuja vida interior é"experimentável", "concreta" e "dizível". No primado da busca interior se chega ao desejo doconhecimento: Agostinho quer conhecer Deus assim como é conhecido por Deus, por dentro,intimamente, com um conhecimento criador, que provém do amor. A alma e Deus:compreende-se agora que a interiorização perfeita é possível somente em função de umatranscendência suprema, de uma Alteridade pessoal suprema. Por um lado, conhecer Deussignifica, em última análise, penetrar na vida íntima da Trindade; por outro, a alma é enigma,e que o Outro habite no "fundo" da alma é um enigma dentro do enigma, que, todavia, otranscende e supera. O Tu (com T maiúsculo) e o ser humano individuado no seu "centro" sãocolocados no mesmo "lugar" e reciprocamente ligados na experiência que tende não à possemas à visão da verdade - verdade essa que é e permanece inexaurível. Trata-se do mistérioabissal da alma: está "dentro" do ser humano e, todavia, está fudamentada em um Outro, quea transcende. Neste sentido, não é, certamente, possível colocar as mãos em Deus, possui-lo,apreendê-lo sem resíduos; mas é possível encontrá-lo em uma experiência de relação pessoalrecíproca, vivida e dinâmica. O que significa, de fato, que o ser humano é imago Dei? Qual sãoos traços visíveis do invisível que nele foram impressos?No ex-per-iri descrito nas Confissões, a alma se abre ao mistério inexaurível do Outro: doponto de vista filosófico, isto significa que o esforço de Agostinho volta-se para a dimensãointerior como legítima "sede" da experiência da verdade. E justamente a Agostinho, filósofo davida interior, Edith Stein se refere na conclusão do seu estudo Die Seelenburg, dedicado àexperiência mística de Santa Teresa d'Ávila:

Ninguém penetra tão no fundo da alma quanto os homensque abraçaram o mundo com coração ardente e depois foramlibertados de todo obstáculo, pela potente mão de Deus, eintroduzidos na própria esfera interior e em sua maisrecôndita intimidade. Ao lado de nossa santa Madre Teresadevemos colocar aqui, na primeira fila, Santo Agostinho, tãoprofundamente afinado com ela e assim sentido por elamesma. Por esses mestres de auto-conhecimento e de auto-descrição as misteriosas profundidades da alma foramiluminadas como dia: para eles, não somente os fenômenos- a superfície agitada pela vida da alma - são fatos inegáveisde experiência, mas também as forças que pulsam naimediata vida consciente da alma, e até mesmo a própriaessência da alma (Stein, 1936/1997, p. 145).

Mas consideremos que Stein encontra, na experiência descrita pela mística carmelita, umadecisiva correspondência com os resultados da análise fenomenológico-essencial da estruturada subjetividade, anteriormente conduzida através da explicitação das noções de consciência,de Erlebnis, de intencionalidade, com ênfase nas dimensões constitutivas da corporeidade, dapsique e do espírito (14). Trata-se de um encontro tão preciso a ponto de se tornar umaverdadeira validação. Stein, de fato, havia feito uma descrição puramente teórica da almacomo "núcelo" (Kern) da pessoa humana entendida como conjunto físico, psíquico e espiritual,mas logo se deu conta de que não poderia conseguir uma definição completa sem falartambém daquilo que concretamente constitui a sua vida íntima. A esse respeito, Teresa d'Ávila

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tinha utilizado a imagem do castelo de muitos aposentos para esclarecer o desenvolvimentodinâmico da vida interior - metáfora eficaz que focaliza os diversos graus ou níveis a serempercorridos pelo ser humano que se encaminha no desejo de encontrar a verdade: não umaverdade abstrata, mas uma verdade vivida, além de compreendida, então uma verdadeexperimentada pessoalmente. No centro do castelo, no aposento mais interno, é onde mora orei, o senhor da alma; em volta do seu aposento e acima dele encontram-se muitos outros: acapacidade da alma, de fato, supera toda imaginação humana em amplitude, grandeza,profundidade. Fora das muralhas que o circundam há o mundo externo: quem habita ali ignoracompletamente a vida que se desenvolve no interior do castelo e, acrescenta Stein, "é mesmoestranho, é uma situação patológica, que uma pessoa não conheça a própria casa" (Stein,1936/1997, p. 119). Em torno do aposento mais interno, o do rei, há outros, ou seja, há seisetapas que o ser humano que desce ao seu íntimo percorre antes de chegar à última, asétima, a que constitui o mais alto grau de vida de graça atingível na terra: ali se dá a visãoda verdade. (15)A alma não fica estaticamente imersa na contemplação de Deus, quase excluída do mundo,solitária e isolada, mergulhada em si; pelo contrário, quer levar o amor experimentado aoutras criaturas: transformada pela união, com a força recebida leva sua ação ao mundo.Nesta específica passagem é possível identificar uma importante afinidade com as pesquisasfenomenológicas de Stein, que tinha delineado uma precisa característica da alma como ligadaá psique e ao espírito. A santa espanhola intui o que Stein explicita precisamente nos seusestudos filosófico-fenomenológicos, isto é, que o espírito e a alma apresentam uma levedistinção embora sejam uma só coisa. Isto significa que há uma diferença formal entre corpo,alma e espírito, segundo a qual a alma é o elemento escondido pelo lado material ou "inferior"(como forma do corpo) e pelo espiritual ou superior (no núcleo onde Deus mora); enquantoque o espírito está na vida evidente, livremente fluente, irradiante, transbordante.A leitura do testemunho de Teresa d'Ávila permite que Stein retome e especifiqueanaliticamente a distinção entre "alma" e "espírito". Quanto mais a alma imerge na fontesecreta do espírito, mais ela se ancora firmemente em seu "centro", libertando-se acima damatéria, chegando à ruptura do vínculo subsistente entre alma e corpo terreno (que acontecesem dúvida com a morte mas, em um certo sentido, já no êxtase também) e à união plena edinâmica com o Tu que a habita. Significativamente a filosofia define a união do amor como"transformação da alma viva em um espírito doador de vida" (Stein, 1936/1997, p. 147).

União de amor e conhecimento "por" amorA experiência descrita pelos grandes místicos cristãos é um encontro com o Outro, umaparticipação à sua Vida íntima que leva a uma transformação do Eu: uma alternância derecepção ativa e passiva, de iniciativa humana e dom divino, de acolhimento e preenchimento,na qual tudo diz ação, dinamismo, relação, reciprocidade. Trata-se de uma "união de amor",de uma scientia crucis. Mas é preciso estabelecer o estatuto desse conhecimento. Estamos, defato, diante de um conhecimento infundido, portanto doado, oferecido, proveniente (do Outro)e encontrado, recebido e acolhido (pelo Eu): um conhecimento "atravessado" pelo amor, umconhecimento por amor. Somente o amor é capaz de unir e fazer aderir a alma a Deus: umarealização que acontece na liberdade, cujo início é constituído pelo acolhimento ativo(voluntário, cônscio, confiante e responsável) de Deus, e cujo vértice se explica no abandonopassivo (mas igualmente voluntário, cônscio, confiante e responsável) ao operar de Deus. Talrealização acontece ao longo da noite escura dos sentidos e do espírito: depois do desnudar-seextremo da cruz, surge radiosa a viva chama do amor, a experiência da ressurreição. Istomostra a profunda conexão entre a "morte" e a ressurreição, que é o motivo-guia da noiteescura do espírito: per passionem et crucem ad resurrectionis gloriam.Ficam claras as diversas modalidades de estar desabitado: esclarecimento precioso tambémpara a conexa distinção entre fé (aceitação das verdades reveladas) e contemplação ("coisasdo coração" ligadas às núpcias místicas, à união do amor, segundo Stein). A filósofa se detémparticularmente no que se refere a estar desabitado por graça e estar desabitado pela uniãoamorosa transformadora, ainda segundo as indicações de São João da Cruz. Por meio da auto-

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purificação, a vontade humana imerge sempre mais na vontade divina: o querer divino,porém, não é sentido como uma realidade presente, mas acolhido com fé firme, cega. Dessemodo, "estar desabitado por graça confere a virtude da fé, isto é, a força de aceitar como realo que atualmente não se percebe, considerando verdadeiro o que não é rigorosamentedemonstrável ao basear-se em argumentos de razão" (Stein, 1950/1982, p. 199). Napurificadora união dolorosa operada pelo fogo amoroso de Deus, ao invés, é a vontade doOutro que penetra sempre mais na vontade do Eu, ao ponto de deixar-se perceber como umaconcreta realidade presente, a ponto de deixar-se encontrar. Aqui acontece uma divinização daalma, uma co-penetração recíproca, uma fusão essencial de pessoas espirituais que, todavia,não tolhe a elas a individualidade peculiar, antes, a pressupõe e mantém. Nesse caso, então,não se trata mais de desabitação por graça, mas de autêntica vocação mística:

Deus concede um encontro pessoal mediante um toque, queé um contato no íntimo; abre o seu próprio íntimo medianteespeciais graças que iluminam a sua natureza e os seusdesígnios secretos; doa o seu coração, primeiro como fugazabraço de um instante no curso de um encontro pessoal (naoração de união), depois como posse estável de noivado, eno matrimônio místico. (Idem)

Ainda que atendo-se ao testemunho de São João da Cruz, Edith Stein não deixa de se referir àunião de amor que Teresa d'Ávila magistralmente descrevera no quinto, sexto e sobretudo nosétimo aposento, onde se dá um conhecimento da verdade por amor. Passando através doamor chega-se ao Outro; através do Amor o Deus Uno e Trino se comunica à criatura, aooutro. Fica assim explicitado o sentido daquele "andar-através-de", ex-per-iri, que é o cerne,ao mesmo tempo epistemológico e fenomenológico, da leitura filosófica aqui tematizada.

Etimologia e semântica do termo "mística". A mística cristã: experiência daAlteridade como AmorO termo "mística" nasce na língua grega. Não é fácil abranger em uma definição geral osvários significados do adjetivo mystikos: etimologicamente, a palavra provém da raiz verbal dogrego myéo, que significa fechar. Trata-se de fechar os olhos para ver o que é secreto, e defechar a boca para observar o silêncio: desde a antiguidade tudo isso foi explicado no sentidoesotérico de coisas ouvidas e vistas que não podem ser divulgadas. O termo mystikos estáfortemente associado à palavra mysterion: como se sabe, originalmente o sufixo -térion aludiaa um lugar fechado, secreto, acessível somente aos iniciados e sob determinadas condições,referindo-se então a um conjunto de cultos e ritos de caráter esotérico-iniciático (16).Mas a indicação etimológico-semântica do termo "mística" resulta indispensável sobretudo peloaspecto semântico, justamente pela multiplicidade de significados que a experiência do divinoassumiu nos diversos contextos religiosos, espirituais e culturais: multiplicidade de significadosque uma leitura filosófica da experiência mística deve avaliar atentamente, sobretudo quanto aremeter às noções de "alteridade" (basta pensar no aspecto semântico grego e noespecificamente hebraico e depois cristão). Nesta ótica, o teólogo Piero Coda (2003) adverte:

trata-se de compreender como o termo mística indica, aomesmo tempo, uma experiência análoga e convergente,mesmo em contextos históricos e culturais diferentes, e umaexperiência distinta e original segundo a "qualidade" deexperiência do Divino e/ou de Deus a qual ela se refere (p.437).

Justamente por isso é possível concentrar a pesquisa no tema escolhido: a Alteridadeexperimentada, vivida e conhecida na mística cristã (cf. Manganaro, 2003a).Para o homo viator que tende para o Abbá revelado pelo Filho, o próprio Cristo é o Caminho, ea liberdade da sua cruz é Sabedoria, Vida e Verdade (17). Por outro lado, a carne de Maria - ecom ela a humanidade inteira - é a porta através da qual o Verbo de Deus entrou na criaçãocom o nome Jesus. Desta misteriosa reciprocidade nasce a experiência mística cristã, assimsintetizada por Stein (1936/1999, p. 535): "A humanidade redimida e unificada em e por

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Cristo é o templo no qual habita a Trindade divina". O ser humano assim renovado é capaxDei, recipiente de amor, morada de Deus, templo que hospeda a Trindade. Esta é a suaverdade. À sua "vida interior" é oferecida a possibilidade de participar da vida íntima de Deus.A união em Jesus Cristo entre a natureza humana e a natureza divina - e então a participaçãorecíproca entre humano e divino - supera a distância, ainda presente nas culturas pré-cristãs,entre o criador e a criatura, e se expande definitivamente desde o povo eleito a todas ospovos. Um horizonte novo e diverso se descortina com a vinda de Cristo, verdadeiro homem everdadeiro Deus. Ele é, a um só tempo e misteriosamente, a verdade sobre o Eu finito e averdade sobre o Tu eterno. Isso significa que a experiência mística cristã é a experiência daverdade do amor.Que amor fosse a "figura" típica do cristianismo já havia sido grandiosamente assinalado porGerardus van der Leeuw (1992) no § 101 de sua célebre obra Fenomenologia da religião; masque o conhecimento por amor fosse a via privilegiada para a busca da verdade foi indicadocom mais eficácia pelos estudos fenomenológicos de Edith Stein, nos quais foram explicitadosos dois percursos, o horizontal como tensão do ser finito dirigido ao Ser eterno com aberturada consciência ao plus, e o vertical com a re-velação como dimensão pela qual a razãofilosófica deve deixar-se iluminar como pelo mistério, para atingir o equilíbrio com os váriosganhos oferecidos pelas diversas disciplinas, inclusive pela teologia.O ex-per-iri místico cristão diz, no mistério, o encontro recíproco partecipativo entre a pessoahumana e as Pessoas divinas, diz a experiência da Alteridade como um "sentir" atravessadopelo amor: por meio deste amor é possível empatizar com o Outro (18) como presença eternae transcendente. Portanto, não há fusão, fagocitose ou as-similação anuladora: o ser humanoé e permanece criatura, o Eu cujo centro é o Self, morada do Tu eterno; e Deus é e permaneceo Tu Outro, Criador de todo Eu individual e pessoal. A "vida interior" agostiniana, assim comoo Erleben fenomenológico, não é exclusiva imersão no próprio Self, mas busca do Tuinexaurível: busca que ao mesmo tempo se especifica como uma descida e como uma subida,remetendo reciprocamente da interioridade à transcendência. Neste sentido, a busca cristã nãoé, nem poderia ser, puramente egológica nem intimismo solipsista: ao contrário, quanto maisa vida interior é autêntica, profunda e intensa, mais comporta o dinamismo daintencionalidade para a Alteridade.

A linguagem simbólicaCom que linguagem é possível exprimir o encontro do Eu finito com o Tu eterno?Aqui está em jogo a questão, espinhosa, do estatuto epistemológico da linguagem religiosa,relançada pela superação do ateísmo semântico, do isomorfismo lógico, do verificacionismoempírico e da linguistic turn dos anos trinta, com contribuições diversamente fecundas na área"analítica" e "continental" (Manganaro, 2003).Como argumentado até aqui, "sentir o Outro dentro" é um conhecimento e, como todoconhecimento, é comunicável segundo uma linguagem própria, autônoma, constitutiva. Aexperiência do encontro com Deus na união transformadora é dizível segunda a lógica dosímbolo e não do conceito: onde é possível observar que o racionalismo moderno não confia nalinguagem simbólica também quanto à sua extraordinária conexão com a corporeidade(profundamente envolvida na experiência de união mística) (19). O symbolon coloca-se entreo conhecível e o ignorado, remete sempre a outro, a algo que permanece excedente, ulterior,escondido: consegue exprimir a alteridade e a transcendência, mantendo suas peculiaridades,enquanto as torna próximas. A linguagem simbólica é percebida como uma cifra dasacralidade, através da qual o homo religiosus pode ter acesso a um plano diverso do natural eresponder à sua vocação específica, isto é, a criatividade (20). O símbolo, irredutível aopensamento analítico, não faz referência a entidades específicas, imediatamente perceptíveis,mas a uma pluralidade de "sentidos": ele é epifania do indizível, "não podendo figurar airrepresentável transcendência, o símbolo faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de ummistério" (Durand, 1999, p. 22). Tal manifestação não se resolve em uma exibição semresíduos, mas se dá somente per speculum etin aenigmate, segundo a indicação paulina.

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A linguagem simbólica move desde a imagem para passar a um nível significativo ulterior:para compreendê-la, deve-se então partir da constatação de que as operações da faculdadeimaginativa se colocam no ponto de encontro entre a consciência e a corporeidade. Foi asugestão Gilbert Durand: ele baseia sua tipologia simbólica naqueles reflexos fundamentaispelos quais o ser humano toma posse do seu espaço vital; e, com efeito, a função imaginativase dá no intercâmbio entre as pulsões subjetivas e as solicitações objetivas provenientes doambiente natural e social. Para determinar as estruturas simbólicas, é útil partir da presençado ser humano no mundo circunstante comum: além do mais, esta origem da atividadesimbólica explica as características fundamentais. Em primeiro lugar, o gesto aparece como aatividade mais significativa: comporta um dinamismo intrínseco e imediato, que se re-encontraem toda representação simbólica. Toda ascensão eleva a alma, e toda elevação convida àascensão concreta: quando São João da Cruz representa o Monte Carmelo, por exemplo, o fazpara induzir o leitor ao esforço espiritual da subida. Uma vez que a atividade simbólica derivada presença no mundo, ela exprime um valor também afetivo, entendido como ressonância,na consciência, da situação do Eu que vive no mundo (21).Em particular, nota-se como a relação de aliança Eu-Tu experimentada na vida mística cristãfaz apelo ao símbolo do matrimônio e do amor humano. Seguindo o ritmo do Cântico dosCânticos (busca do amado, recíproco bem-querer, união), os místicos têm escrito sua aventuraespiritual mediante os símbolos desse poema bíblico. Fala-se, portanto, de mística esponsal: afreqüência do tema levou os doutores místicos, como Santa Teresa d'Ávila e São João da Cruz,a fazer com que "matrimônio espiritual" e "noivado espiritual" se tornassem expressõestécnicas, definindo graus específicos de união mística. Mesmo reconhecendo o valor de suadoutrina, não se deve, porém, restringir o uso daquele símbolo, quase desnaturalizando-o,mas conservar sua elasticidade e plasticidade características.Segundo Gerardus van der Leeuw (1961), o símbolo encontra na mentalidade arcaica o seusignificado originário de coincidência de duas realidades. Aqui a lógica da participação permitea conexão negada ao pensamento lógico-categorial: "Para o primitivo, o símbolo épropriamente o que a palavra exprime, ou seja, a coincidência de duas realidades. 'Significa',na linguagem primitiva, é o mesmo que 'é' " (p. 35). Isso assume uma importância nãodesprezível para a experiência sacramental eucarística e para a hilética fenomenológica ligadaao estudo do "sagrado complexo": o pão e o vinho não simbolizam abstratamente o corpo e osangue de Cristo, mas são seu corpo e sangue, e o são realmente, concretamente,efetivamente. Continua o historiador holandês: "Eles são 'símbolo', ou seja, sua realidadeencontra a realidade do corpo e do sangue; pão e vinho por um lado, corpo e sangue poroutro, participam um do outro" (Idem). Os sacramentos revestem-se de uma forma simbólicaainda que possuindo uma eficácia própria: aqui não é possível separar rito e palavra que lheconfere plena significação, e isso indica que os sacramentos significam o que operam e operamenquanto significam. Quando ensina na sinagoga de Cafarnaum, Jesus fala da sua pessoa real,inteira, não simbólica, e comunica a sua oferta sacrifical. Assim, temos a noção de "sagradocomplexo" no âmbito da arqueologia fenomenológica da experiência religiosa (Ales Bello,1997). O que está "presente" se manifesta com tamanha força e potência que não pode serconsiderado como algo que "está para" alguma outra coisa: pelo contrário, o que se apresentaé persuasivo, mostra-se na sua concreta materialidade, na sua hileticidade, revelando-se em simesmo sagrado, e não como simples "sinal" do sagrado.A situação concreta do ser humano viandante pelo caminho da mística indica um movimentoque se exprime em vários aspectos vitais: biológico, psíquico, espiritual, interpessoal. SegundoCharles A. Bernard (1979), o dinamismo da vida interior é análogo ao da vida natural:

Deus é verdadeiramente Pai, Filho e Espírito; encarnando-se,o Filho usou a realidade cósmica para conferir uma novadignidade na ordem da expressão e comunicação de vida. Apresença da graça santificante em nós e a contínua ação deDeus, que atrai a si a alma, suscitam um dinamismoespiritual análogo ao vital natural, e então suscitam umaexpressão simbólica do desejo e do alimento espiritual:

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assim, dizemos que temos fome e sede de Deus e que nosaproximamos da dúplice mesa da palavra e da eucaristia (p.1474).

Como o ser vivo, também o ser espiritual se nutre, repousa, sente frio ou sede, exprimíveiscom os símbolos da vida natural. A criação de tais símbolos supõe a percepção de umarealidade objetiva que supera a possibilidade da expressão conceitual. Compreende-se, então,o dizer do salmista: "A minh'alma tem sede do Deus vivo" (Sal 42,3), revelador de umaexperiência espiritual pessoal, vivida. Quem não vive o relacionamento pessoal com Deusdificilmente poderá apreender o significado da expressão simbólica "ter sede de Deus" porquenesse caso as disposições subjetivas resultam extremamente relevantes para a própriacompreensão lingüística.Toda experiência mística se situa além da linguagem lógico-categorial. Como já indicado, osímbolo exprime a plasticidade do dinamismo espiritual: este é o caráter que os especialistasressaltam quando o contrapõem à fisicidade do logos conceitual, considerado estático, imóvel,rígido. Mas a experiência mística, em si mesma, é sem linguagem: ela pede ao símbolo umsubstituto, inadequado, de tal inefabilidade, para tentar dizer o indizível. O símbolo, de fato, émais próximo do conhecimento advindo do vazio, do que o são o conceito e a categoria. Estáem jogo a questão da criatividade e da sua expressão lingüística: o que emerge com umacerta eficácia da relação, historicamente atestada, entre mística e poesia.

Mística e poesiaA atividade simbólica é sinal de uma reciprocidade concreta já operante: como fica evidente naliteratura mística, o Eu que chega a um grau elevado de maturidade espiritual considera suarelação com o mundo-outro e como os tu-outros através do seu relacionamento com o Tutotalmente Outro. A sua sensibilidade é toda orientada, voltada para a vida espiritual, em umaespécie de pneumatização da dimensão sensível-natural (daqui a expressão "sentidosespirituais"): trata-se da experiência documentada e comunicada pelos místicos, pelos poetas,pelos artistas. Essa valorização do "sentir" traduz uma dimensão e uma riqueza novas. Comoobservam alguns psicólogos, de fato, a vida do homem contemporâneo é caracterizada por umgrave desequilíbrio: enquanto os aspectos técnico-racionais conduzem a um excesso deabstração, espelhado pela linguagem científica e filosófica, diminuem de modo preocupante oselementos positivamente ligados à criatividade. Através das atividades artísticas ligadas àimaginação produtiva de símbolos, então, ao ser humano é concedido um melhor equilíbrioentre as diversas componentes da psique e é garantida a potência edificante da criatividade.No caso aqui examinado, encontramo-nos diante do "mistério" do ato de criação poética, oqual exige tanto recolhimento criador de silêncio e de isolamento produtivos quanto contatocom a presença da imensidão, na consciência do dom poético. Cada entrada no mundo poéticopressupõe um certo silêncio da alma, e então um transcender o Eu meramente empírico;pressupõe que as dissonâncias se calem, para que a voz do ser secreto das coisas se façaentender, em uma sede de reminiscência trans-temporal. Mas a lembrança atualizada não é ada memória sensível: através do jogo especular da percepção, uma presença-outra emerge daparte espiritual da alma. Aqui o recolhimento e a escuta se fazem, em certo sentido,passividade absoluta: não é o olho do poeta que "vê", mas o mistério das coisas que penetranele. Como o místico, ele recebe o dom do acolhimento-preenchimento no silêncio. Trata-seentão de especificar as afinidades e as diferenças entre as duas experiências.Segundo Jacques Maritain (1983), a intuição poética exerce uma dúplice função: em primeirolugar, criativa, mas também cognitiva, dirigindo-se à realidade profunda do indivíduo pessoal,cuja infinita abertura às riquezas do ser ressoa no centro da sua alma, revelando a si mesmaessa subjetividade em ato de criatividade. Não é possível, porém, tomar como identificas aexperiência mística e a experiência poética: o símbolo místico tem, certamente, um valor euma intenção criativa, mas segundo um aceno negativo, de vazio, de douta ignorância;enquanto que o símbolo do qual se serve o poeta triunfa na potência criativa da obra. Osímbolo entra na trama da experiência poética em vista do verbo proferido, enquanto uma

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experiência mística o símbolo se torna expressão privilegiada de na medida em que ela tentase comunicar, quase balbuciando.Segundo Gardet e Lacombe (1988), a experiência do Self propiciada pela sabedoria orientalfornece uma chave de acesso à compreensão das "leis" da criatividade do espírito humano, eàs vezes até mesmo ao emergir gratuito do dom divino. A experiência do Self podecomparativamente se ligar ao "sentir" do poeta e à intuição do filósofo, todavia não é obrapoética nem logos filosófico. Nem é caminho obrigatório em direção à experiência dasprofundezas de Deus: ela, no entanto, não deixa de iluminar o caminho existencial e o mundointerior de muitos poetas, filósofos e místicos sedentos do Deus da fé. Lacombe (1988),particularmente, sublinha as conexões com o tema da temporalidade. Na produção poética,indo além do Eu superficial aviltado pelo vazio da vida mundana, há a descoberta do Selfpessoal, supra-mundano, imortal, que permite ao romancista como ao poeta, depois de vagarlongamente, reencontrar a duração ontológica mais verdadeira do tempo. Ele apreende adiferença entre a sua alma imortal e Deus, entre a memoria sui e a memoria Dei, para usar aspalavras de Agostinho: sem dizê-lo, sem provar a necessidade de dizê-lo, mantém-se distantede qualquer interpretação monista da própria experiência interior.Segundo Gardet (1988), quando a poesia revela o Eu do poeta nas suas fontes criativas, seabre a uma possível experiência mística do ser substancial da alma; e às vezes testemunhaum outro chamado, um chamado de graça, que chega ao coração do poeta mas ao qual estenão está à altura de responder apenas com o dom de criação. Não se tratam, de modo algum,de experiências idênticas. Estamos diante de nó de experiências radicalmente diversas, queporém têm em comum a origem na vida não-conceitual, vida noturna já iluminada, segundoMaritain, pelo pré-consciente do espírito. O poeta serve a beleza em uma obra: a escutapoética, a uma certa profundidade, não deixa de conjugar-se com a concentração mental;além disso, dirigir-se às fontes da criatividade artística pode evocar o estado de recolhimentoque é próprio da meditação; todavia, o silêncio do poeta e o silêncio do místico sãoqualitativamente diferentes. A experiência poética, quando escava fundo no "centro" secretoda subjetividade, constitui, para Gardet, uma forma atípica mas autêntica de experiência doSelf, que porém se tornou instável pelo choque entre a apofasia mística o lançar-se ad extrade um verbo humano criador de beleza.A leitura filosófica de tal experiência desperta algumas importantes interrogações: Nestelançar-se do verbo poético há uma espécie de chamado à escuta de um Verbo-Outro, do Deustrinitário? A intenção de Gardet, com efeito, não é tanto a de falar dos místicos que sãopoetas, quanto a de focalizar a misteriosa visita que o poeta recebe. Apresenta-se, então, umapergunta ulterior: Os percursos interiores que condicionam o desembocar da obra podempreparar, desde longe, tal escuta e dispor ao acolhimento de um dom que provém de outrolugar? O estudioso francês afirma que o recolhimento e a escuta poética predispõem aorecolhimento místico, e que um certo tipo de renúncia, colocada a serviço da obra e de suabeleza, apresenta-se como uma analogia - ainda que inadequada - do desapego do próprio Eupara Deus e em Deus. Mas o dom da poesia - ele acrescenta - não é a graça sobrenatural, enão pode direta e eficazmente invocá-la. A experiência mística das profundezas de Deus, comoa experiência do Self, como a experiência poética, se erradicam todas no pré-consciente doespírito, e assim se encontram e podem, às vezes, se sobrepor. Mas, enquanto um certo tipode intuição poética se encontra já em consonância com a apreensão da substância da almaatravés do gozo, não pode haver experiência mística sobrenatural se todas as faculdades doEu, inclusive o pré-consciente espiritual, não estiverem sobre-elevados pela graça divina.Experiência mística do Selfe experiência poética estão ligadas, ainda que de modos diferentes,á natureza da alma como espírito; sendo que a mística das profundezas de Deus deita suasraízes nessa mesma natureza, ela se encontra, porém, como o dom gratuito de um Outro quena alma é mais íntimo do que a própria alma, mas que transcende todo espírito criado ecriável.Permanece fixo um fato, isto é, que as harmonias e as respostas que o sentir do poetaapreende nas coisas são um testemunho da presença divina de imensidão, mesmo quando opróprio poeta não seja cônscio disso. A mística do Self, ao invés, atinge o existir substancial da

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alma na sua realidade profunda, e então no seu ser atravessado pelo fluxo criador; ela é,portanto, "tocada", não propriamente pelo fluxo criador, mas pelos seus efeitos criadores. Aintuição poética não é tocada por nada - no sentido de "contato" próprio da experiênciamística: ela ilumina o caminho à distância. A presença da imensidão, conclui Gardet, não podeser assimilada à presença da graça.A apofasia é a lei de todo contato, com gozo, com o absoluto; mas antes da vida terrena, edepois dela, na luz da visão, ela é na sua verdade o único Verbo criador de Deus. O poeta nãocorre o risco de fazer de sua palavra, enquanto criador de beleza, quase que uma participaçãodo Verbo divino? O sonho romântico do poeta-profeta entra em cena, refutando o silêncio quea Trindade cava na alma. Quaisquer que sejam as experiências do Self, e qualquer que seja ochamado dirigido ao poeta no segredo do seu coração, a poesia enquanto tal não é feita pelaexperiência mística, mas pela a recitação. Mesmo a atividade poética testemunha, a seu modo,que a alma é espírito: e a seu modo é testemunha do mistério do ser, mistério inscrito nabeleza do criado e das criaturas. Segundo Gardet (1988, p. 280),

Sabemos, pela tradição dos grandes profetas bíblicos, quecada coisa foi feita pela Palavra criadora. Não se pode falarde apofasia em Deus, mas de um Verbo único, criador eiluminador. A criação poética é uma sua distante e imperfeitaanalogia, e o poeta é um pouco um Prometo que partiu pararaptar a palavra que está além das palavras e dos silêncioshumanos. Ele é também o grande desafiado, acorrentado aoseu dizer e à beleza que criou. Uma forte e aguda intuiçãonão interromperá o caminho do místico em uma supremaoscilação na qual a palavra tende a se abolir no silêncio, masonde imediatamente o silêncio se renega no esplendor doverbo proferido? Se não há apofasia em Deus, nem mesmohaverá através do caminho da apofasia em que o espíritohumano - até que permaneça sobre a terra em sua condiçãode encarnação - pode viver uma experiência de absoluto.

Ao tender para a criatura humana, Deus lhe confia a sua Palavra de revelação. Compreende-se, então, o dom da poesia na sua afinidade/diferença com o dom de amor infundido: omistério de presença que ela desvela se coloca a poucos passos do mistério da Presença queacontece no encontro pessoal de união transformante.

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Notas(1) Tradução de Miguel Mahfoud, do original em italiano.

(2) Contra qualquer redução positivista, o termo "pessoa", empregado pela teologia medievalpara indicar as Pessoas divinas, foi aplicado ao ser humano, com o intento de acentuar acompletude das diversas dimensões constitutivas que remetem umas à outras reciprocamente.Segundo Stein, a antropologia se configura como disciplina filosófica que, sem dúvida, utilizaos resultados das ciências naturais e positivas, mas que necessita em primeiro lugar dacontribuição fornecida pela teologia e ontologia, às quais está indissoluvelmente ligada. Comoé sabido, São Paulo fala de espírito, alma e corpo para designar a constituição da criaturahumana na sua verdade e plenitude (cf. 1Ts 5,23).

(3) Qual é o sentido verdadeiro e profundo da célebre afirmação de Wittgenstein (1995, p.193): "As palavras são ações"?

(4) Cf. Mura, G. [(1984). Una mistica atea? L'esperienza dell' "assenza" di Dio nel pensierocontemporaneo Em E. Ancilli & M. Paparozzi (Ed.). La mistica: fenomenologia e riflessioneteologica. vol. 2. (pp. 682-715). Roma: Città Nuova], que agudamente destaca que de Hegel aNietzsche, de Sartre a Heidegger, o pensamento contemporâneo é atravessado pela mediaçãosobre a experiência do Nada e pela conseqüente crise da tradição clássica. A ausência de Deuscomo "cifra" da modernidade é tematizada por U. Perone [(1989). In lotta con l’angelo: unametafora antica e attuale. Em C. Ciancio; G. Ferretti; A.M. Pastore & U. Perone (Ed.s). In lottacon l'angelo: la filosofia degli ultimi due secoli di fronte al Cristianesimo. (pp. 1-24). Torino:Sei]. Ainda no panorama filosófico italiano, encontra-se uma retomada teorética dopensamento de Heidegger na reflexão de M. Ruggenini [(1997). Il Dio assente: la filosofia el'esperienza del divino. Milano: Mondadori] que espera que haja um renascimento da filosofiaentendida como postura de escuta da experiência religiosa colhida na sua intrínseca dimensãode revelação.

(5) Em Gardet & Lacombe (1988) se lê: "A grande amonização vedântica "Tu és Aquele"proclama, com um tom de absoluta certeza, a experiência libertadora. Ainda que sejainevitavelmente formulada pela linguagem sob a aparência de um relacionamento, de umaatribuição, ela não significa mais que a identidade, sem margem alguma, entre o Ser finito,absoluto, único e sacro, e a subjetividade mais essencial: não aquele do eu empírico, mas a doSelf meta-empírico, que lhe é ao mesmo tempo imanente e incomensurável" (p. 80). Cf.também Maritain, 1968, pp. 69-70, onde na trilha do tomismo fala da "sexta prova" daexistência de Deus, justamente em referência ao atman indiano e ao tema do não-nascimento.Esse conceito de Self(que coincide com o Absoluto, e que em suma é o Absoluto alcançado no"centro" de si) é digno de nota: porque desse modo vem a ser excluída a autêntica experiênciado Outro e esvaziado o sentido do encontro do Eu com o Tu.

(6) Vannini (1996) nota, a esse respeito: "Enquanto imutável e indeterminado, absolutamentesimples, o fundo da alma é puríssimo ser, e então, nada, em perfeita correspondência comaquele ser puríssimo e indeterminado - ele também nada - que é Deus. O fundo (Grund) éentão um abismo (Abgrund) sem fundo" (pp. 37-38).

(7) O "pré-consciente espiritual" é uma zona, sem dúvida, atravessada pela influência dointelecto iluminante, na qual, todavia, não há ainda as distinções dos objetos no mundoespecíficas da consciência clara. Cf. Maritain, 1983.

(8) Cf. Maritain, 1978, pp. 111 ss. Note-se que Maritain fala de "existência", não de "essência"nem de "quididade": o conhecimento experimental da própria alma permanece de ordempuramente existencial (pp. 118 ss) e se obtém com o meio formal do vazio (p. 123). Em outro

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lugar ele fala de experiência mística como de um "conhecimento experimental das profundezasde Deus", no qual a alma prova em si mesma "o toque da deidade e sente a vida de Deus"(Maritain, 1981, p.293). Trata-se, então, "segundo a profunda expressão de Dionísio, não maissó de aprender, mas de sofrer as coisas divinas. É esta a experiência mística, de origemsobrenatural" (Idem, p. 300).

(9) Cf. a significativa relação entre o "mistério" e a "mística" proposta por A. Solignac noDictionnaire de Spiritualité (1983), vol. X. Parigi: Beauchesne, verbete "Mystère" (pp. 1861-1874) e "Mystique" (pp. 1889-1893). Veja-se também A. De Sutter, verbete "Mistica" (pp.1625-1631) e "Misticismo" (p. 1635) no Dizionario Enciclopedico di Spiritualità (1990), vol. I I .Roma: Città Nuova.

(10) Cf. Forte, 1995: "Interpretar a revelação como manifestação total, como pensamentosolar, abertura incondicionada e sem reservas, é a maior traição que dela se pode fazer.Porque revelatio é, sim, tolher o véu, mas também esconder fortemente. Deus, revelando-se,não somente se disse, mas também se calou. Revelando-se, Deus se vela. Comunicando-se, seesconde. Falando, se cala" (p. 26).

(11) Para compreender a conexão entre as noções de Geist e de Self: Em geral, observa-seque o que se designa com das Selbst (o Self) na tradição alemã é algo menos empírico e maisespiritual-substancial do que, por exemplo, na língua inglesa corrente com "the Self”. O Selbsté um conceito que, mesmo sendo diversamente declinado segundo as correntes e os autores,revela uma concepção do ser humano ligada ao que os alemães têm denominado Geist,"espírito". Isso é encontrado também em Jung, Adler, Binswanger, isto é, entre os autores quemais contribuíram para modificar o destino da psicanálise contemporânea. Em Jung ele é oprincípio, o guia, a meta final da via individuationis; em Adler, a noção do "Self criativo" éparte de uma concepção positiva e otimista da natureza humana, baseada na hipótese queexista dentro de cada indivíduo uma tendência à auto-realização; em Binswanger, por fim, oSelbst é usado com referência à pessoa considerada como primário e irredutível.Propositalmente o conceito e até mesmo o termo está ausente em Freud: o corpus teóricofreudiano é, de fato, polemicamente estranho à idéia alemã de Selbst em seu intrínsecovínculo com Geist.

(12) E é justamente a falta de clarificação que Husserlnão aceita em Descartes na primeiraparte de suas meditações: cf. Husserl, 1963/1990. Úteis aprofundamentos sobre o temaencontram-se em Ales Bello, A. (2000). E. Husserl: riflessioni sull'antropologia. Per la Filosofia,49, 22-28; Ales Bello, A. (2003). L'universo nella coscienza: introduzione alla fenomenologia diEdmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: Ets.

(13) Com isso Edith Stein sabiamente diferenciou, na experiência mística, a iniciativa do Eu dainiciativa do Outro. E mais: também delineou a importência da ação transformante e salvíficaque pro-vem da interioridade mas a trascende, contra um agir movido somente pela vontadehumana.

(14) A tripartição corpo-psique-espírito pode ser verificada em Stein, 1996, 1997, 1997a,1998, 2000, 2001.

(15) O filme "A sétima morada" da diretora húngara M. Meszaros, vencedor do PrêmioInternacional O.C.I.C. e do Prêmio pelo Centenário do Cinema na LII Mostra de Veneza, édedicado à vida pessoal, intelectual e religiosa de Edith Stein.

(16) Cf. Sfameni Gasparro, G. (1998). Mistica greco-ellenistica. Em Dizionario di mistica. Cittàdel Vaticano: Libreria Ed. Vaticana, pp. 849 ss.; Penna, R. (1988). Mistero. Em NuovoDizionario di Teologia Biblica. Cinisello Balsamo: Paoline, pp. 984 ss.

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(17) Cf. Henry, M. (1997). Io sono la verità: per una filosofia del cristianesimo. (G. Sansonetti,Trad.). Brescia: Queriniana. (Pubblicazione originale nel 1986).

(18) "Sentir dentro de si o outro" é o significado de Einfühlung. Pode-se interrogar se o atoempático se refere também ao Tu (com T maiúsculo) que é Deus. Se a empatia apreende amodalidade de presença da alteridade pessoal, à luz das considerações até aqui desenvolvidas,não vejo como posse ser respondido negativamente. Seria necessário esclarecer tal "presença"como encontro vivido, conhecido, experimentado, pelo ser humano: clarificação que o exameda mística como experiência da Alteridade por amor na relação recíproca ofereceu e expandiu.

(19) "Corporeidade e sensibilidade são condições tanto para constituir quanto para perceber osímbolo". [Valenziano, C. (1998). Simbolo. Em Dizionario di mistica, Città del Vaticano:Libreria Ed. Vaticana, 1998, p. 1145].

(20) Cf. Vidal, J. (1992). Simbolo, sacro, creatività. Milano: Jaca Book: em continuidade com ahermenêutica religiosa de Eliade, Jung, Durand e Ricoeur, o autor afirma que o sagrado é umaestrutura de consciência constitutivamente capaz de conduzir o ser humano ao divino.

(21) Segundo a psicanálise freudiana, o simbolismo se refere à história do indivíduo: portantoseu significado deve ser buscado na relação que uma dada imagem tem com o passado e coma história daquela pessoa específica. Disso nascem duas conseuqüências: a primeira é oaspecto negativo da atividade simbólica, enquanto mascara os verdadeiros desejos pulsionaisdo indivíduo; a segunda é a possbilidade que aconteça uma mutação de valores simbólicosreligiosos baseados na experiência vivida do objeto. Em contraste com essa interpretação,Carl. G. Jung insistiu sobre a função positiva do símbolo: ele resulta voltado para o futuro epara valores elevados, por isso depois da desconfiança freudiana se dá uma sólida valorizaçãoda atividade imaginativa.

Nota sobre a autoraPatrizia Manganaro é doutora em filosofia, professora de filosofia da linguagem na PontificiaUniversirtà Lateranense, Roma, Itália. Contato: [email protected]

Data de recebimento: 16/03/2004Data de aceite: 15/04/2004

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A devoção a Nossa Senhora de Nazareth a partir daelaboração da experiência ontológica de

moradores de uma comunidade tradicional

The devotion to Our Lady of Nazareth considered the ontological elaboration ofa traditional community's people

Renata Amaral AraújoUniversidade de São Paulo

Miguel MahfoudUniversidade Federal de Minas Gerais

Brasil

ResumoNosso objetivo geral é verificar como a figura religiosa de Nossa Senhora de Nazareth,padroeira de Morro Vermelho (MG/Brasil) faz parte da elaboração da experiênciaontológica de seus moradores. Utilizamos o conceito de pessoa, enfatizando como adimensão pessoal e a experiência religiosa são apreendidas no mundo-da-vida, contextointersubjetivo. Empregando a metodologia fenomenológica, apresentamos entrevistascom 3 sujeitos, ordenadas em 4 eixos de análise: entrada no mundo, surpresa essencial,concepção do Outro, concepção de si. Os resultados indicam que a partir de um temafundante elaborado pelos sujeitos entrevistados - fé, graça e amor - pode-se chegar àexperiência religiosa/devocional, configurada pela convivência comunitária, através doimpacto com fatos excepcionais dentro do cotidiano identificado com as característicassagradas e humanas de Maria de Nazareth. Concluímos que se relacionar com NossaSenhora de Nazareth através dos acontecimentos e da história concreta são sinal de suapresença e oportunidade de relacionamento com Ela.

Palavras-Chave: psicologia social, cultura popular, psicologia e religião, experiênciaontológica, fenomenologia.

AbstractThe aim was to verify how the religious figure of Our Lady of Nazareth, Patroness ofMorro Vermelho (MG/Brazil), is part of the elaboration of the ontological experience of itsinhabitants. We used the concept of person, emphasizing how the personal dimensionand the religious experience are apprehended in the world-of-life, an inter-subjectivecontext. Based on phenomenological methodology, interviews with three subjects arepresented, ordered in four analytical focuses: entrance into the world, essential surprise,conception of the Other, conception of self. Results indicate that, starting from themeselaborated by the subjects that were interviewed - faith, grace, love - it is possible to getto the devotional/religious experience, configured by living in community, through theimpact with exceptional facts within daily life, identified with sacred and humancharacteristics of Mary of Nazareth. It is through happenings and facts of history that arelationship with Our Lady is made possible.

Keywords: social psychology, popular culture, psychology and religion, ontologicalexperience, phenomenology.

1) IntroduçãoMemorandum 6, abril/2004

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Ao examinar manifestações culturais características do meio popular podemos identificarcomo são elaboradas as experiências de sujeitos de uma determinada comunidade, ossignificados compartilhados dentro de um contexto específico, a forma como umconhecimento é transmitido, a maneira como as pessoas se organizam em função do quereceberam com a finalidade de manter viva a tradição.Nas comunidades tradicionais, toda organização social gira em torno de um centro,normalmente religioso (Berger, Berger e Kellner, 1979). Em Morro Vermelho (Caeté /MG), comunidade rural com cerca de 800 habitantes, localizada a 80 quilômetros de BeloHorizonte, a centralidade das experiências está na figura religiosa de Nossa Senhora deNazareth, marco da vida coletiva e pessoal dos moradores e ex-moradores dessacomunidade. A Padroeira do vilarejo é o centro religioso, cultural, econômico, social epessoal. A festa de Nossa Senhora de Nazareth, mantida há quase 300 anos, é omomento mais evidente de como Ela faz parte dos significados compartilhados e de comoo empenho dos sujeitos na festa se deve àquela devoção; de como Ela, sendo umapresença provocativa e mobilizadora para os moradores, possibilita o surgimento de umsujeito ativo socialmente (Alves e Mahfoud, 2001 e 2001a; Araújo e Mahfoud, 2000,2001, 2002 e 2002a; Campos e Mahfoud, 1999 e 2000; Costa e Mahfoud, 2001;Mahfoud, 1999, 2001a, 2001b e 2002; Mahfoud e Drummond, 1999; Mahfoud e Almeida,1998; Mahfoud e Ribeiro, 1998, 1999 e 1999a; Oliveira e Mahfoud, 2000).Tendo em vista esse contexto vivido de maneira compartilhada, emergiu uma perguntaque aludia ao lugar dessa presença do sagrado, a Padroeira da comunidade, naelaboração da experiência que fundamenta a existência dos moradores: a elaboração daexperiência ontológica.Esse campo de pesquisa, já nos primeiros contatos com a comunidade de MorroVermelho, nos desconcertava - e ainda desconcerta -, por exigir uma postura intelectualmais aberta diante daquela maneira de organizar a vida coletiva e pessoal quecontrastava com aquela na qual estamos inseridos. Nesse confronto cultural entrepesquisador e pesquisado, intensificou-se ainda mais o interesse em conhecer as formaspelas quais a Padroeira estaria fazendo parte da concepção que os moradores têm de simesmos. A partir daí, poderíamos chegar a explicitar como estão sendo elaborados osconteúdos oferecidos pelo contexto cultural de Morro Vermelho, marcadamente cristão.Assim, estabelecemos como nosso objetivo geral: verificar como a figura religiosa deNossa Senhora de Nazareth, centro da vida cultural da comunidade rural de MorroVermelho, faz parte da elaboração da experiência ontológica dos moradores dessevilarejo; e como nossos objetivos específicos: a) identificar e descrever a experiência desurpresa ao estar diante do sagrado; b) compreender quem é essa figura religiosa paraos moradores dessa comunidade rural; c) apreender como a concepção de si e do mundoemerge na vida desses moradores marcada pela devoção à Padroeira.O presente artigo refere-se a uma investigação que faz parte de um percurso, diríamosde uma história, que fizemos e fazemos com pessoas concretas que, ao longo do tempo,têm nos ajudado a entender que a pesquisa constitui-se no encontro com algoinesperado, na comunicação de respostas surpreendentes, em um trabalho coletivo.

2) Referencial Teórico-metodológicoRealizamos uma demarcação teórico-metodológica que nos possibilitou melhorcompreender a emergência desses modos singulares de viver dentro da convivênciacomunitária tradicional. Utilizamos o conceito de pessoa, explicitando sua definição e adinâmica na qual a pessoa emerge, em ação. Em um segundo momento, examinamoscomo a dimensão pessoal pode ser compreendida dentro de um contexto de vidacompartilhada, comunitária e social; para isso, utilizamos o conceito de mundo-da-vida.Ao demonstrar, teoricamente, a possibilidade de uma manifestação da pessoa associadaao contexto coletivo, passamos para uma compreensão mais propriamente psicológica,em que buscamos explicitar a elaboração da experiência ontológica como forma de

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expressão de modos criativos com os quais o sujeito pode se instalar no mundo, estandovinculado a um contexto cultural. Em seguida, introduzimos o tema da dimensãoreligiosa assim como vivida e experienciada, identificando características próprias dohomem religioso. Nesse tópico, ainda, apresentamos um breve panorama acerca dadevoção mariana e, mais especificamente, a Nossa Senhora de Nazareth.

O conceito de pessoaA pergunta relacionada ao conceito de homem é um grande desafio para nós, muitoembora não nos encontremos no campo filosófico. Quem é o homem? Tal indagaçãotornou-se importante para esta investigação sobre a elaboração da concepção de si, maisespecificamente sobre a elaboração da experiência ontológica, pertinente ao campopsicológico quando se busca captar as estruturas de significado dessa elaboração quecompõe um campo pessoal.A pergunta pelo "quem" apresenta uma perspectiva específica, uma vez que o homemnão é algo, mas alguém. Com a pergunta "Mas quem é esse?" nos maravilhamos com ofato de que "alguém" que nos escapa por ter uma vida independente da nossa: seusdesejos, sentimentos, decisões serão irredutíveis a quaisquer explicaçõesestruturalmente estáticas. Ele passa a existir dentro de uma história com um pai, umamãe, antepassados e tem, ao mesmo tempo, algo extraordinariamente novo e inovadorque não se atém à sua árvore genealógica. Torna-se, portanto, fonte contínua deconhecimento (Marías, 1994 e 2000).Ricoeur (1996) compreende que no centro de uma atitude está a pessoa. Noposicionamento surge a pessoa, possibilitando a ela dizer quem é (ainda que diante deuma realidade em crise e intolerável).Mounier (1955) nos ajuda a compreender que o homem pessoal está em constanteprocesso de descobrimento e enriquecimento acerca das novidades que emergem e queacabam constituindo o seu eu interior. A personalização se dá por meio de trêsmomentos fundamentais: a exteriorização, a interiorização e a superação de possíveisformas de despersonalização. Segundo Mounier (1955) e Blondel (1996), não se podeeliminar da ação o sujeito que a realiza, e o momento da decisão é, precisamente, aprova de que uma pessoa emerge, uma vez que se trata de sua resposta às provocaçõesque recebe da realidade. Por meio da ação, o sujeito descobre que há uma potencialidadea ser desenvolvida, ou melhor, o sujeito descobre que a sua atividade é criadora.

Pessoa e alteridade: a vida com parti l ha daSegundo Blondel (1996), Stein (cf. Ales Bello, 2000) e Schutz (cf. Wagner, 1979) o viverplenamente a vida individual leva o sujeito a expandir-se, a abrir-se, pois, ao depararcom o fato de que a própria vida é inconsistente, buscam-se outras forças para seus fins,busca-se fora de si um complemento. É no encontro com o outro que emerge a pessoacomo uma fonte inesgotável de conhecimento. O outro traz à tona formas e maneirasnovas que antes se desconhecia em si mesmo.Para Edith Stein e Alfred Schutz posicionar-se significa agir socialmente segundoafirmação de algo valoroso, disponibilizando-se em relação ao outro, afetando o outro eafetando-se de acordo com a posição assumida, constituindo, assim, relacionamentosinterpessoais recíprocos. O conceito de mundo-da-vida enfatiza que um eu não pode serentendido sem o mundo que o circunda, e vice-versa. Assim, o termo se refere ao mundointersubjetivo e compartilhado: um contexto histórico-sócio-cultural precede a existênciado sujeito e tem continuidade além dele, e ali há um "relacionamento de Nós" quemantém a maneira como cada um vive a experiência.

Pessoa e cultura: o espaço do ser criativoSegundo Ales Bello (1998), para enfrentarmos a questão do significado da cultura, éessencial levar em consideração que há um sujeito que está no mundo, para o qual ele

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se volta, e que é considerado por ele e para ele. É por meio dessa relação entre o sujeitoe o mundo que se torna possível captar formas subjetivas de perceber os objetos queestão presentes no mundo que, em si, são objetivos.A cultura pode ser apreendida sob a ótica do mundo-da-vida. Ela coincide com asexpressões humanas e personalizadas, e podem ser compreendidas dentro de umaperspectiva do próprio sujeito em seu processo reflexivo (Ales Bello, 2000). Não fazsentido em falar de mundo-da-vida sem se levar em consideração que há alguém queemite juízos segundo aquilo que experimenta de seu mundo circunstante e que,certamente, esses juízos só são possíveis porque esse sujeito recebe os conteúdos quejulga dentro de um horizonte que lhe é transcendente. E ela afirma: "Todas as tomadasde posição teóricas conexas com este mundo pressupõem sempre uma ligação com umatradição particular" (p. 40). É essencial, portanto, considerar os termos tradição, históriae cultura. Ales Bello indica que para Husserl

o conceito de cultura, na verdade, conecta-se com avida humana na sua totalidade, tanto individual comotambém comunitária, em cujo interior se desenvolve oque é individual. Portanto, é a atividade prática do serhumano que procede através de cada ação particular.(Idem, p. 41)

Segundo a autora, tal compreensão do termo cultura não pode ser apreendido sem seconsiderar a forma pela qual o sujeito manipula a realidade, sendo orientado por umprojeto que é pessoal e que, certamente, em um contexto amplo, torna-se coletivo,compartilhado. Essa produção humana assume uma forma concreta na criação deobjetos sob a influência de uma mentalidade em comum e, sem dúvida, a sua finalidadecorresponde às necessidades do mundo compartilhado, que, entretanto, traz em si amarca pessoal daquele que a cria. Segundo Ales Bello (Idem), Husserl denominou essegrau de produção humana de produções pré-científicas.A cultura pode ser apreendida sob a ótica do mundo-da-vida. Ela coincide com asexpressões humanas e personalizadas, que podem ser compreendidas dentro de umaperspectiva na qual o sujeito a vive de forma natural ou pré-científica e que irá seconstituir em um modo reflexivo e cultural. A partir de uma atitude meramente naturalna qual se vivencia a apreensão da realidade pré-dada passa-se à forma cultural que secaracteriza pelo protagonismo humano expresso por suas obras.

Pessoa e a elaboração da experiência ontológicaPor meio do conceito de mundo-da-vida, discutimos como é possível apreender o sujeitocriativo ou o ser de cultura. Vejamos agora como se torna possível, através daelaboração de um certo tipo de experiência, a ontológica, apreendermos esse homemcomo pessoa ou como um sujeito criativo capaz de se relacionar de maneirapersonalizada, constituindo cultura.Safra (1999) ajuda-nos a compreender que, as possibilidades humanas de vir a ser emuma relação intersubjetiva instaura um espaço de criatividade do sujeito que o tornasingular pertencendo ao âmbito coletivo. Segundo o autor, é partindo de um encontrohumano que se viabilizam experiências em que a pessoa tem a oportunidade deexpressar-se como um ser único e irrepetível, carregando - e trazendo para odesenvolvimento da sua personalização - aspectos históricos e sociais, nos quais seencontra ambientado.Safra está discutindo aqui o desenvolvimento do self do ponto de vista clínico, que paranós é relevante enquanto aflorar da pessoa numa perspectiva inter-relacional, enquantodescrição das condições de estabelecimento de um self coincidente com a impressão damarca de um sujeito singular na história compartilhada, em que o sujeito está emconstante relação com a cultura à qual pertence. Ele utiliza os recursos que lhes são

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transmitidos desde criança, na relação com os pais e por eles, ao longo de seudesenvolvimento, como espaços nos quais pode criar continuamente o mundo.Para Safra (2000 e 2001), cada pessoa, única, realiza um certo tipo de elaboração acercade um enigma que funda a sua existência e que se relaciona com a maneira como secoloca e se concebe no mundo. Essa dinâmica emerge do encontro, no presente, com opassado, configurando entradas no mundo diferenciadas para cada ser humano, sempreprovocando novos anseios, levando-o a elaborar uma concepção sobre o sentido último.Esse processo de singularização acontece em duas vertentes: 1) a elaboração de suaexperiência ontológica, a partir da pergunta "quem sou, quem somos"; 2) elaboração desua experiência teológica própria, relacionada à pergunta sobre o sagrado presente nomundo. As condições necessárias para o acontecer humano, de maneira singularizada,estão ligadas ao aparentamento com os ancestrais, com os seus descendentes, com omundo natural, com as coisas, e ao aparentamento sócio-cultural.Um ser humano não vive sem um Outro. A dimensão inter-relacional possibilita o aflorarde três modalidades inter-relacionadas de existência:a) Em si: é a experiência existencial que coloca o sujeito numa condição de solidãoessencial, na qual se faz a experiência da vontade, denominada como a coragem de ser,que coloca a pessoa em ação, em direção a um Outro. Essa modalidade existencial ésustentada pela presença desse Outro que sugere, portanto, a segunda modalidadeexistencial.b) Para si: o Outro se torna um não eu familiar, totalmente diverso e ao mesmo tempopara mim. Conhecer esse estranho familiar é uma experiência amparada pela terceiramodalidade existencial.c) Consigo: Estar diante do Outro é estar consigo, torna a existência totalizante. Serafetado pela presença do Outro permite compreender a distinção entre o eu e o Outrofamiliar e para mim, potencializando a experiência do em si.No anseio pelo encontro com o Outro a pessoa guarda toda a herança dos ancestrais,insere-se na história da humanidade rompendo-a e colocando algo de absolutamentenovo: reinicia e mantém a história, através da sua ação criativa.

Pessoa e elaboração da experiência religiosaPassemos a um tipo de experiência cultural muito presente na vida de sociedadestradicionais: a religiosidade. Certamente, tal dimensão encontra-se presente, de formasdiversificadas, em sociedades consideradas modernas. No entanto, interessa-nos,sobretudo, as formas de expressão que ela alcança nas primeiras, em virtudeessencialmente do contexto prevalentemente tradicional no qual se encontram os nossosentrevistados.Segundo Berger (1979), ser humano significa viver em uma realidade que está ordenadae que dá sentido à vida, que é comunicada segundo a forma humana fundamental emque se expressa a existência: o mundo-da-vida. O autor, ao realizar uma comparaçãoentre as sociedades tradicionais e modernas, levando em consideração a constituiçãoprópria do mundo-da-vida de cada uma delas, verifica que uma diferenciação básica éque nas sociedades tradicionais há um pólo que é integrador de todos os aspectos davida cotidiana. Já nas sociedades modernas, em virtude da pluralização dos mundos,também pólos se multiplicam e encontram-se presentes em cada setor da vida, o queleva a uma vida mais fragmentada.

Sin embargo, en comparación con las sociedadesmodernas, las sociedades primitivas dieron señales deun elevado grado de integración. Fueran cuales fueranlas diferencias entre los diversos sectores de la vidasocial, éstos se manteníam unidos en un ordenintegrador de significación que los incluía a todos. Esteorden integrador solía ser religioso. Para el individuo,

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esto significaba sencillamente que unos mismossímbolos integradores impregnabam los diversossectores de su vida diaria. En la familia, en el trabajo,en la actividad política o en la participación en fiestas yceremonias, el individuo estaba siempre en el mismo"mundo". (p. 64)

Esse pólo religioso integrador torna-se o nosso foco de atenção em uma sociedadetipicamente tradicional: o tipo de vivência humana que se realiza na sociedade quepossui esse centro, os símbolos oferecidos culturalmente orientando e organizando a vidasocial dos sujeitos.Do ponto de vista existencial, o Homo religiosus possui, uma estrutura aberta, não sefecha somente no seu momento humano. Sua abertura é para o mundo, para conhecê-loe, assim, conhecer o Ser, o Criador. (Ales Bello, 1998; Eliade, 2001; van der Leeuw,1964)Nesse sentido, a experiência religiosa caracteriza-se por ser um relacionamento com omistério admitido e reconhecido dentro da vida presente na figura que porta umsignificado totalizante. "Religiosidade é a consciência vivida da relação de dependência doMistério-sentido-de-tudo, do Mistério como significado global da realidade, do Absoluto; édimensão de uma experiência portadora de um significado exauriente" (Mahfoud, 1997,p. 26).

Nossa Senhora de NazarethSegundo Ales Bello (2001), Maria é considerada, na tradição ocidental, a imagem dehumanidade, e uma condutora entre o divino e o humano.Quanto a Nossa Senhora de Nazareth, segundo a história tradicional, em 1179, em terrasportuguesas, Dom Fuas Roupinho cavalgava e caçava um veado no alto de um rochedoonde se encontrava uma sua venerada imagem desde o século VIII , quando o animallança-se do penhasco ao mar. Embalado e incapacitado de frear seu animal a tempo,clama por ela, que paralisou seu cavalo a poucos centímetros de se consumar o acidente.Agradeceu aquele milagre erguendo ali a "Capela da Memória" (Coelho Dias, 1997).A festa de Nossa Senhora de Nazareth em Morro Vermelho se dá em três diasintensamente vividos pelos moradores que a preparam durante todo o ano. Fica evidenteo empenho e a devoção à Padroeira vividos de forma concreta, com grande volume detrabalho. São dias em que muitos familiares que não mais moram ali por diversosmotivos (trabalho, estudo) retornam fielmente para encontrar a Padroeira. (Mahfoud eRibeiro, 1998, 1999, 199a)

3) Procedimentos metodológicosDepois de alguns contatos preliminares, foi possível identificar os sujeitos a serementrevistados. Para isso utilizamos o procedimento da amostragem intencional (1).O critério para a escolha dos sujeitos foi o empenho na festa de Nossa Senhora deNazareth, uma vez que o compromisso com determinada responsabilidade na festaimplica reconhecimento e re-significação da tarefa recebida e pela qual se é responsável.Tal critério permitiu evidenciar um caráter, ao mesmo tempo, pessoal e coletivo dasexperiências e assegurar-nos que o sujeito escolhido tivesse uma devoção empenhada àPadroeira do vilarejo, havendo também reconhecimento por parte da comunidade deuma devoção pessoal significativa para eles. Assim, realizamos entrevistas durante apreparação e realização da festa de Nossa Senhora de Nazareth com três sujeitos, deambos os sexos, adultos.As principais técnicas que utilizamos para o processo de coleta de dados foram:entrevistas semi-estruturadas e observação etnográfica.Com as entrevistas semi-estruturadas (2), privilegiamos uma pergunta inicial que nospossibilitasse acompanhar os sujeitos em sua elaboração segundo os objetivos da

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pesquisa. Salientamos que, segundo a perspectiva fenomenológica, buscamos privilegiara descrição da experiência e não uma opinião sobre o assunto. Do ponto de vista darelação pesquisador - pesquisado, a situação de entrevista consiste exatamente noestabelecimento de uma relação implicada que se torna condição para a construção dotestemunho (Augras, 1997). A pergunta inicial foi: "Como nasceu a devoção à NossaSenhora de Nazareth para você?". Buscávamos enfocar, de uma forma geral, a maneirapela qual esses moradores se relacionavam com Nossa Senhora de Nazareth e seguiu osseguintes objetivos: a) deixar aparecer um certo tipo de elaboração histórica,singularizada, que nos possibilitasse confrontar as experiências dos entrevistados acercado que a Padroeira representa para eles; b) apreender um certo tipo de elaboração queestá relacionada à maneira pela qual a pessoa concebe a própria origem, o presente e ofuturo dentro da comunidade em que vive, onde o centro cultural é aquela figurareligiosa.O tipo de relato privilegiado durante a realização das entrevistas foi o depoimento. Ele serefere, segundo Queiroz (1988), ao "relato de algo que o informante presenciou,experimentou, ou de alguma forma conheceu, podendo assim certificar" (p. 21),preocupando-se essencialmente com a delimitação de temas segundo o problemaformulado anteriormente (Queiroz, 1991).Nesse sentido, os depoimentos nos ajudaram a focalizar, durante a realização dasentrevistas, o lugar que a figura religiosa de Nossa Senhora de Nazareth ocupa naexperiência dos moradores de Morro Vermelho, constituindo uma identidade coletiva epessoa l.A observação etnográfica (3) nos auxiliou na descrição de um sistema de significadosculturais desse determinado grupo, possibilitando observar o sujeito em seu ambientenatural (Lüdke e André, 1986). A observação etnográfica propiciou: a) evitar a definiçãorígida e apriorística de hipóteses; b) um contato direto com a situação em estudo,estando presente em campo durante os preparativos e a realização da festa em si; c)realizar entrevistas com alguns moradores que estavam empenhados diretamente nafesta; d) obter uma razoável quantidade de dados primários - material produzido pelossujeitos da comunidade.

3.1) Análise dos dados: uma leitura fenomenológicavan der Leeuw (1964) e Amatuzzi (1996, 2001 e 2001a) teorizam sobre o métodofenomenológico que nos interessa como "estudo do vivido, ou da experiência imediatapré-reflexiva, visando descrever seu significado" (Amatuzzi, 1996, p. 5). Esses autoresindicam uma metodologia rigorosa: atenção às propriedades do objeto, privilegiando aapreensão das conexões de sentido que se evidenciam no exame do fenômeno. Esserigor é fundamentado pela consciência que é sempre intencional, "consciência de"alguma coisa. Nesse sentido, está sempre voltada para a realidade, e isso possibilita aapreensão do sentido, do ser das coisas. O método fenomenológico acompanha essadinâmica da consciência, buscando, por meio de uma atitude fenomenológica, a epoché(4), entrar em contato com a elaboração feita pelo próprio sujeito.O método utilizado para a análise dos dados foi o fenomenológico (Amatuzzi, 2001a evan der Leeuw, 1964) com o objetivo de apreender um conjunto de significados relatadosnas experiências e a estrutura dessas experiências para se identificar o lugar típico deNossa Senhora de Nazareth na elaboração da experiência ontológica dos moradores deMorro Vermelho. Utilizamos os passos metodológicos, enumerados por van der Leeuw,para falarmos daquilo que se mostrava a nós, como fenômeno. Procuramos apreender ovivido dos sujeitos, evidenciando conexões de sentido, chegando a formular umaexperiência-tipo que capta a essência dentro da diversidade das experiências coletadaspelas entrevistas.A primeira etapa constituiu-se de uma ordenação dos dados em quatro eixos quepossibilitassem a análise referente à experiência de nosso interesse. Isso correspondeu à

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delimitação de um plano articulado em um campo que, antes disso, nos pareceriacaótico, no dizer de van der Leeuw (1964). A delimitação desse campo de experiência aser analisado foi sugerida pela própria pergunta a respeito da elaboração da experiênciaontológica. Os quatro eixos são:

a) Entrada no mundo: descrição da maneira como Nossa Senhora deNazareth entra no horizonte de vida de cada um dos sujeitos, a partir docontexto no qual eles começaram a conceber a presença dessa figurareligiosa em suas vidas.

b) Surpresa essencial: apreensão da dinâmica essencial de cada um dossujeitos entrevistados, focalizando as experiências que envolvem o impactocom essa figura religiosa e que, de certa maneira, delineiam os conteúdos,abrindo espaço para o início de um relacionamento com Ela.

c) Concepção do Outro: abertura para o contato com Nossa Senhora deNazareth, pela dinâmica fundamental de cada um dos sujeitos, explicitandoos conteúdos que são introduzidos e levantados por meio dorelacionamento que cada um deles estabelece com a Padroeira, à luz daprópria dinâmica fundamental.

d) Concepção de Si: explicitação de como esses elementos que emergem norelacionamento com a Padroeira integram a maneira como os sujeitosconcebem a si mesmos.

Continuando a cumprir os passos metodológicos propostos por van der Leeuw (1964),procedemos à leitura e análise dos dados de cada sujeito (já ordenados segundo osquatro eixos), da seguinte maneira:

1) Leitura atenta e repetida do conjunto de depoimentos de cada entrevistado,analisando-os a fim de identificar o tema fundamental de elaboração pessoal;

2) Nova leitura, tendo presente o tema fundante e os eixos da elaboração daexperiência ontológica para cada entrevistado;

3) Estabelecimento de categorias iniciais;4) Para o estabelecimento dessas categorias iniciais foi necessário que nos

inseríssemos na perspectiva pessoal apresentada para cada sujeito entrevistado;5) "Inserção entre parênteses": um cuidado de nos inserirmos na perspectiva dos

sujeitos, sem com isso utilizarmos de nossas convicções como ponto de partidapara a compreensão do que se apresentava a nós;

6) Elucidação das conexões de sentido;7) Identificação da essência das experiências;8) Examinar e confrontar nossas compreensões em espaços coletivos - como o

grupo de pesquisa, orientações - bem como com o referencial teórico-metodológico para a interpretação da experiência vivida, e, a partir daí,estabelecer um novo confronto entre nossas compreensões e o conjunto dosdados, para contínua confirmação ou retificação da análise;

9) Elaboração da experiência-tipo, ou seja, a partir das essências, compreensão decomo Nossa Senhora de Nazareth entra na maneira como um sujeito-tipo deMorro Vermelho concebe a si mesmo;

10)Reconstrução: a apreensão do sentido com o qual o vivido se apresenta éalcançada por meio de uma segunda experiência vivida, reconstruída pelopesquisador.

4) Resultados

4.1) Entrevistado: Biló

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Biló, como é conhecido na comunidade de Morro Vermelho, tem 43 anos, e é um dosresponsáveis pela Cavalhada, mais especificamente pela queima dos fogos de artifício nafesta de Nossa Senhora de Nazareth.

4.1.1) Eixo de Análise: Entrada no MundoA dinâmica da fé como elemento essencial na elaboração ontológica de Biló

Inicialmente, é na experiência de acompanhar o pai, de estar junto do pai, em suasatividades na festa da Padroeira, que ocorre a percepção da presença de Nossa Senhorade Nazareth na vida de Biló. Vendo outros trabalhando, ficava sabendo não apenas comoas pessoas se dedicavam àquele trabalho pela fé em Nossa Senhora de Nazareth, mas,principalmente, ficava sabendo o motivo pelo qual, trabalhando na festa, ia-se "tomandofé" na Padroeira. Essa maneira de percebê-La se repete na vida adulta, ao se dar contade pessoas que vão à festa para pagar uma promessa por causa de um pedido que tenhaalcançado resposta. A dinâmica da fé, fundamentada na confiança de que o que se pedea Nossa Senhora se alcança, é um aspecto essencial para ele poder ver as graças que aPadroeira promove.

Nasceu, assim, com os pais. Papai mexia, euacompanhando ele, a gente... Ele ia lá pegava um treme a gente ia atrás. Então, assim, a gente foi tomandoaquela fé, aquele trem, que junto com ele, mexendo,depois a gente assumiu... vai assumindo aresponsabilidade de festa. A gente já foi ficando, assim,com mais fé e, assim, nós vão tendo as coisa igual nóstá hoje. Acabou que a gente, agora, já tomando atéresponsabilidade de festa.Papai, quando mexia com nós, até xingava também. Àsvez, tava com um... "oh, ajuda a carregar os pau aqui,uai, 'cês agüenta, leva um" - xingando - nóscarregando o trem. A gente pra mexer, falei: "Tôgostando". Aí já foi passando as coisa pra nós também.Eu lembro, às vez, ele afastava até do Silvinho, edeixava a gente ficar, pra poder... Ele falava assim:"ocês têm que aprender; hoje eu tô mexendo, maistarde é ocês mesmo". Então, assim foi tomando a fé,foi tendo graça em Nossa Senhora, aí mais fé foidobrando, que eu já tive muitas. Então, é nisso que agente vai tendo fé com Ela e com a festa também. Numpode deixar acabar. E, assim, nós tão aí, tá mexendocom esse trem aí. É com a fé e é com... mexendo.Minhas filha também; num mexe na parte de nós que éfogueteiro, mas a mãe dela também já tá pondo elastambém, ensinando elas a trabalhar, mais tarde elasvão mexer. Então, assim que foi. Então, é nisso que aminha fé se baseia: começou eu vendo os outro, é ospedido dos outro, pedindo e nisso eu fui só... sósabendo das coisa que eles tinha fé com Ela. É ondeque 'cê fica sabendo.

Temos a dinâmica da fé marcada pelo processo de conhecimento indireto, por meio doqual se destaca o processo de aprender e de assumir uma responsabilidade,possibilitando a Biló começar a intuir a presença da Padroeira. Ao mesmo tempo, adinâmica da fé sustentava este posicionamento: ao aprender uma tarefa, Biló carregava

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algo precioso sobre o qual não tinha controle: ver as graças da Padroeira na vida dosoutros, na sua vida e na festa.Compreendemos que a dinâmica da fé, para Biló, promove uma sustentação daquilo queele havia assumido como responsabilidade. É o que Lewis (1979) chama do valorsupremo de fé, já marcadamente religiosa, ou seja, o reconhecimento de que os própriosesforços não estão ancorados em si mesmos, mas em algo fora de si: as intervenções daPadroeira.Podemos compreender, então, que a decisão de Biló em assumir a sua responsabilidadetinha relação com a continuidade do trabalho que seu pai realizava, mas, sobretudo,relacionava-se à decisão de preservar trabalhos que possibilitavam ver as graças deNossa Senhora de Nazareth.Com esta inicial exposição da experiência de Biló, podemos apreender que a dinâmica dafé está presente como um pilar em sua vida, como uma porta que se abre para a centralfigura do sagrado em Morro Vermelho: Nossa Senhora de Nazareth.É dentro dessa perspectiva que verificaremos, então, a maneira como Biló se impressionacom essa figura religiosa e que tipo de experiências emergem desse fato.

4.1.2) Eixo de Análise: Surpresa EssencialAs experiências que emergem no impacto com Nossa Senhora de Nazareth

A urgência pelo significado, ao ver as ações dessas pessoas que recebiam "graças", naexperiência de Biló, compreende a centelha que acende a sua dimensão de fé e que ocoloca em movimento dirigido à Padroeira, por meio de sua curiosidade expressa namaneira como observa, desde pequeno, a fé depositada nEla.

Ocê vai olhando, às vez, quando eu tava menino aí eutô olhando, os outro tá só leva um retrato e agora falo:"Por que que 'cê só leva retrato?"; "Isso é graçaalcançada". Falo assim: "graça alcançada, quê isso?". Aífiquei pensando, ele falou comigo assim: "É, os outro,às vez, pede Nossa Senhora uma coisa e melhora adoença ruim, um trem, aí eles pega, promete trazer umretrato, se melhorar, pra trazer um retrato e por no péd'Ela"; "Ah, e tem...". E nisso foi. Dia oito eu tô vendo,vinha nego e tudo. Eu ia lá na igreja, tava aquelemundo de vela acesa, eu tava conversando, aindaperguntei até uma dona na igreja, falando com meuirmão, então, eu falei assim: "Por que que 'cês acendeesse bolo de vela aqui?"; "Não, num é nós não, ali cadaum faz um pedido pra Nossa Senhora aí e acende umavela"; "Aí eu posso acender uma?"; ela falou assim: "Ó,ocê pede, ocê pede e pode acender uma vela aí"; maseu num acendia não. Aí eu acabei indo embora. E nissoeu fui vendo, fui pensando o quê que era isso e nisso éque foi eu tomando fé, foi olhando os outro pedindo efoi tomando aquele trem, fui tomando, então, é nissoque começou.

A experiência de se impactar com Nossa Senhora de Nazareth, para Biló, ocorre ao veras graças que a Padroeira faz na própria vida e na vida de outras pessoas. Uma vezconhecido o significado do gesto de fé, que passa pelo posicionamento de outras pessoasfrente à Padroeira, Biló começa a estabelecer relações entre aquela realidade apreendidae a sua própria vida.

A gente vê até hoje, assim: chega um paga umapromessa, outro nego chega aí andando descalço:

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"porque, ah, eu pedi Nossa Senhora isso e se eumelhorasse eu andava essa rua toda descalça naprocissão; então, recebi, Ela fez". E nisso ocê vai sóaumentando a fé n'Ela com... A gente vai só tendo fé.Só tendo fé na festa.. Quando Ela... Além de tá fazendopra gente, a gente tá vendo os outro também falando,falo assim: "Uai, então, ali é mais que uma festa". Eutenho fé com alguns trem, mas Nossa Senhora deNazareth eu num sei... Eu... Tem muito santo, às vez,tem muita Nossa Senhora que tudo é Ela mesmo, maseu, pra mim, tem que ser Ela. Eu, pra mim, a devoçãominha é Ela mesma.

A dinâmica do ver e pensar que pudemos apreender no impacto de Biló em relação àPadroeira, que denominamos experiência de urgência de significado, emerge como umaextensão da dimensão humana que chamamos senso religioso. Tal dimensão não seresume à dinâmica descrita acima, porém, em Biló, verificamos que ela é suscitada,inicialmente, pela urgência de significado expressa pela sensação do ver e pela função dopensar. Amatuzzi (2001) nos ajuda a compreender tal dimensão:

O senso religioso, ou religiosidade latente, é aquilo queem nós, seres humanos concretos e históricos, está nabase das questões de sentido que apresentamos,enquanto questões potencia lmente radicalizáveis.Estamos supondo que, se formos fiéis ao movimento deindagação pelo sentido (das coisas, de nossa vida e detudo o que existe), deixando-nos conduzir pela buscaque ele contém, acabaremos formulando a perguntapelo sentido último, mais radical. O que está por trásde tal indagação, considerada em toda a sua amplitudepossível, é o senso religioso. (pp. 27 e 28)

O autor considera, ainda, que a dimensão do senso religioso, ao suscitar questõespotencialmente radicalizáveis, possibilita encontro de sentidos, criações de sentidos ougera posicionamentos pessoais, assumindo, por sua vez, alguma forma religiosa. Nessaperspectiva, Amatuzzi também atesta que a formalização da postura religiosa é variávelpara cada pessoa, podendo se conformar em diversas modalidades: desde uma religiãosistematizada externamente até formas não religiosas ou atéias, esta última tambémconsiderada pelo autor como uma posição religiosa.Porém, vejamos, agora, que tipo de relacionamento emerge entre Biló e a Padroeira deMorro Vermelho, levando em consideração a sua dinâmica fundamental: a fé.

4.1.3) Eixo de Análise: Concepção do OutroNo relacionamento entre Nossa Senhora de Nazareth e Biló emerge a dimensãoespiritual

Para Biló, Nossa Senhora de Nazareth emerge através da função sensitiva de ver outraspessoas reconhecendo uma graça alcançada, como já mencionamos anteriormente.Nesse sentido, ver o reconhecimento dos outros está relacionado com o fato de vê-La, ouseja, o reconhecimento de outras pessoas coincide com ver a Padroeira mexendo comelas. Esse ver Nossa Senhora mexendo, por sua vez, coincide com uma intervenção deSua parte que traz algum tipo de mudança benéfica e que evita maiores preocupaçõesdiante do curso que a vida toma.O reconhecimento de que a Padroeira intervém se dá sob três aspectos: Ela apóia, Elaresponde, pode-se confiar n'Ela. Acontecimentos cotidianos são compreendidos por ele

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como um chamado d'Ela mesma para ele se aproximar, para que a sua necessidade sejarespondida e ele apreende que a resposta dEla tem algo de grande guardado para ele.

A gente começando a sentir que Nossa Senhora... Agente foi começar entender graça, que até melhora eaquele negócio, então, fui sentindo aquele trem e agente foi crescendo e... Aí eu fui tomando confiança emNossa Senhora ajudar a gente. Então, nisso quecomeçou esses trem.Outro dia qu'eu pedi Ela na procissão, eu fui na igreja,eu cheguei, eu tava aqui na praça aqui, eufalei comSilvinho. Silvinho tava até... Falei assim: "Ô Silvinho,eu vô pedir Nossa Senhora de Nazareth e essa chuvavai estiar". Eu fui lá na igreja, aí chegou lá na igreja eu- num tinha ninguém lá não - cheguei lá na igreja,olhei pra Nossa Senhora assim, falei: "Ô NossaSenhora...", aí conversei com Ela, aí eu senti... Pronto!Olhei Ela d'um jeito... Foi quando eu abaixei e levantei,vi Ela... Vi Ela como que Ela mudou a feição, sabecom'é que é? Aí pedi, e senti Ela com a cara... Parecequ'Ela até riu pra mim. Falei assim: "Ô Silvinho, achuva vai estiar"; "Que isso Biló, vai chover, a chuvavai estiar?". O trem estiou de um tapa. Silvinho ficoubobo, Silvinho falou comigo assim: "É, bem que ocêfalou". Aí eu olhei, eu olhei lá pra Nossa Senhora, falouassim: "Ah...". Aí nisso eu fiz o pedido e estiou mesmo.Mas, parece que Ela já fez a... parece que eu senti.Acho que Ela mesma já vem pra mim fazer esse pedidoouviu minhas prece; é muito trem e eu num sei,alguma coisa...

A maneira como Biló concretiza o seu relacionamento com o transcendente é o pedido.Percebemos como nesse gesto emerge o que Frankl (1993) chama de dimensãoespiritual ou noética, que se caracteriza por ser inconsciente e intuitiva. Primeiramente, opedido se constitui como ação de tender para algo fora de si mesmo. Depois, ascondições para realizá-lo são a percepção do quão valioso é para si o relacionamentocom a Padroeira, precisando se sentir próximo a Ela. O autor afirma que, para o homoreligiosus, aquilo para o qual se intende é uma figura que faz parte de um supra-mundo,tratando-se de uma presença transcendente. Verificamos que a maneira como Bilóconcebe o relacionamento com Nossa Senhora de Nazareth está alicerçado no fato depoder encontrar um sentido (dimensão espiritual ou noética), propriamente dito, aoutilizar os recursos que são oferecidos pela tradição cultural específica de MorroVermelho: a imagem que se encontra na igreja matriz do vilarejo e todas asmanifestações em torno dela. É nessa perspectiva que emerge em Biló o ser-responsável(Frankl, 1986). Na medida em que responde ao chamado de Nossa Senhora de Nazareth,mediado pela dinâmica da fé, emerge do pedido, indício de uma presença transcendenteque o chama, uma vida de sentido (uma vez que a resposta a esse chamado carrega aespera por algo de grande para a sua vida, para a sua realização pessoal, seja dentro deuma circunstância favorável ou desfavorável).

Uma coisa: papai adoeceu, aí viemos aqui, fui lá naigreja, olhei Nossa Senhora de Nazareth, assim, domesmo jeito que eu olhei, tava vendo Nossa Senhorade Nazareth triste, rapaz, tava lá. Eu me sentitambém... Pedi, assim, olhei e fa... Voltei pra trás. Aí,cheguei lá em casa, fui lá e fui visitar papai, olhei e falei

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assim: "Ah!". E não pedi, não. Vi Ela com o rosto muitotriste e não pedi, não. Aí, não pedi, não (...)Depois eu até falei com a minha irmã: eu senti que eleia. Hora que eu cheguei lá, assim, perto d'Ela, eu sentique chegou a hora dele. Não pedi... Fui lá visitar ele,olhei, conversei com ele... E não pedi... Eu não...Sempre pedi, não sei por quê que eu não pedi... Nãosei nada, não sei explicar, não... (S). E aí?[comove-se: os olhos ficam cheios de lágrimas]

4.1.4) Eixo de Análise: Concepção de siSobre Biló

A partir de agora, verificaremos como essas vivências são concebidas na vivência pessoalde Biló, como entram na concepção de si.Emerge como posicionamento de Biló um confiar-se à Padroeira. É a Ela que ele seentrega no trabalho que realiza na festa com um comprometimento, responsabilidade,apreço e zelo.

É, ué! Senão, Ela ia só montar dificuldade pra nós.Então, é isso que eu sinto que Ela quer a festa, o diaque Ela não quiser... é uma vez só. É, ué! Então, é porisso que eu mexo ni festa, porque eu sei que Ela quer.O que eu posso fazer pra Ela, eu mimo isso aí. Eumimo. Porque a gente faz porque Ela tá fazendo pranós. Trabalho mesmo. Trabalho mesmo! Pra festa eutrabalho mesmo. Então, é por isso que nós trabalha.

Biló emerge, portanto, como o ser-responsável que Frankl (1986, 1993) nos descreve aofalar do homem religioso que se volta para uma autoridade transcendente. Ocomprometimento de Biló coincide com uma resposta a Nossa Senhora de Nazareth peloseu comprometimento com a sua própria vida, que consiste no seu empenho na festa,nas obrigações familiares e no enfrentamento das dificuldades. Aquilo que Biló apreendecomo valioso e que afirma como um sentido existencial tem reflexos na sua vidaconcreta: a vida configura-se como vocação (responder à Padroeira) por meio da suamissão que se concretiza no seu compromentimento.Biló, assim, confia-se à Padroeira. Porém, está amparado pela visão de mundocompartilhada de sua comunidade, que lhe possibilita compreender como é ter fé naPadroeira. É o que lhe possibilita se lançar nas responsabilidades que lhes forampassadas pela tradição e o que se torna um critério para confiar nas experiências quevivencia em relação à Nossa Senhora de Nazareth, ou seja, para "ir tomando fé".Nessa perspectiva, a sua vida de dedicação à Padroeira coincide com o seupertencimento à comunidade de Morro Vermelho e com o seu empenho na festa, que nãoapenas mantém aquilo que lhe foi passado pelo seu pai, como contribui continuamente a(re) criar essa tradição.

4.2) Entrevistada: Beatriz

Beatriz, 53 anos, responsável pelo Apostolado da Oração e pela Pastoral do Batismo,festeira na festa de Nossa Senhora de Nazareth.

4.2.1) Eixo de Análise: Entrada no mundoA dinâmica da graça como elemento essencial da elaboração da experiênciaontológica de Beatriz

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É através da dinâmica da graça que Beatriz consegue chegar até a Padroeira:reconhecendo na vida cotidiana algumas circunstâncias, aparentemente contraditórias etensas, ela percebe como foi privilegiada em ter feito um caminho que lhe permitiureceber o que era "bom". Através da presença de seus pais, chega até a figura NossaSenhora de Nazareth.

Ah, isso, desde pequena. Porque não tem, quer dizer,aqui foi sempre muito pequeno. E também isso foi emcasa. Tudo vem de casa mesmo; num tem outraexplicação não. L'em casa toda vida foi assim: tudoquanto há era Nossa Senhora de Nazareth. Num tinhamesmo... É que tudo quanto há era "Nossa Senhora deNazareth que ajudava", "Nossa Senhora de Nazarethque protege", é "Nossa Senhora de Nazareth queajuda"; e também a gente cresceu num ambiente,assim, de muita oração. O que papai e mamãepuderam colocar em mim de bom, eles colocaram; querdizer, a gente frisa muito, hoje mais do que nunca, euvejo como que é importante a família, com'é que éimportante contar o que é bom e a gente num podeperder tempo; porque é um tempo precioso. Se a genteperdeu aquele tempo... Depois, quer dizer, o que foi...quer dizer, eu tive a graça de ter tido papai e mamãeque me incutiram, apesar da simplicidade, apesar denum ter... mas tinha perto. Eles puderam passar issopra mim; quer dizer que, então, num tem como... numtem como 'cê... 'Cê viveu ali, raiz mesmo, é negócioque foi incutido na gente. Parece, assim, eu sempretenho falado muito com Celso, que eu achointeressante que a gente nasce não só com os traçosfísicos e tal, mas a gente nasce com a... parece quecom um pouquinho dos dons que eles tem, da graçaque a gente, eu acho, recebe também.

Compreendemos que a maneira como Beatriz se surpreende diante da sua realidadedevocional é estabelecida com a graça, com o que lhe é doado: um outro que doa osseus dons que, por sua vez, foram recebidos. Essa doação se dá por meio da tradiçãoque foi passada aos pais e que chega até ela; também por graça.

A gente... É cada dia, cada coisa que a gente faz, écada coisa que a gente ouve, é cada participação, éatitude que a gente vai vendo nas pessoas: com'é queé bom, com'é que vale a pena, sei lá, eu acho que étudo isso e... E Nossa Senhora... A gente... Ela é tãoboa... Ela, sei lá, Ela cativa a gente, Ela leva a gentepra Jesus mesmo, num tem jeito não. É igual padre Arifalou: Ela vai segurando a gente por dentro, vaifazendo assim [faz um gesto de quem está puxandocom as mãos], mas vai mesmo. E é cada dia. E Elanum desampara a gente, Ela num... sei lá, eu acho quesem Ela a gente num chega a lugar nenhum não.

A resposta para Beatriz é Nossa Senhora de Nazareth, que chega por meio da dinâmicada graça. Com Guardini (1958), verificamos que essa experiência está muito sintonizadacom a experiência religiosa, como já dissemos. Para o autor, a dinâmica da graça dentroda vida religiosa, de maneira geral, emerge como uma valorização do numinoso ou divino

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que se apresenta como uma realidade que não se pode possuir totalmente, em últimainstância inabordável, inatingível; entretanto passível de ser reconhecido.

4.2.2) Eixo de Aná l ise: Sur presa essencialAs experiências que emergem no impacto com Nossa Senhora de Nazareth.

Beatriz reconhece uma posição humana em Nossa Senhora e colhe significados para si apartir da existência humana da Padroeira - a prontidão, a disposição e a bondade - quea colocam em uma postura de querer conhecê-La.

Ela mostra muito pra gente as coisa. É, assim, emtudo. Qualquer trabalho, assim, na Igreja, por exemplo.Eu gosto muito mesmo de trabalhar na Igreja. É,assim, pode ser qualquer coisa; num precisa de ser umserviço, uma coisa melhorzinha não, qualquer coisa: sefor pra varrer, pra passar pano, pra passar cera, tirar amaior sujeira, nós tamo... Eu acho que é isso que Eladá a gente exemplo; porque Ela saiu da casa d'Ela,porque Ela foi à casa de Isabel (5), aquela prontidão. Éfeito outro dia, eu falei com padre Marcilon: "Mas,quantos quilômetros, mais ou menos, Nossa Senhoradeve ter andado?"; ele falou assim: "Ah, Beatriz, deveter sido uns cento e dez, uns cento e cinqüenta". Eufalei: "Nó, mas...", né? Naqueles caminhos, assim, tudotortinho... Porque nós já andamos muito a pé nessaestrada de Caeté que a gente ia e vinha só a pémesmo, que a gente num tinha con... a condição erapouca. Então, é gente que tá passando por aqui, porum atalho ali, diminuía... pra diminuir a estrada. Entãoeu fico pensando Nossa Senhora por esse caminho;quer dizer, Ela, olha bem pr'ocê ver, apesar de ter sido,de tá tão novinha, né, e tão, assim, ma... pela idadeimatura, mas muito madura, e grávida. E Ela com essadisposição. Não tem como 'cê num gostar de NossaSenhora não, tem? Tem? Num tem. A gente vira, vira,e tudo cativa. Igual, outro dia a gente tava refletindono círculo bíblico: "Ô gente, foi a única pra quem o anjoinclinou pra saudar (6) porque é rainha, porque é mãe,porque é imaculada. A gente vai no serviço d'Ela, naescuta d'Ela, nessa bondade d'Ela; igual nas bodas deCaná (7): tudo! A gente vai percorrendo a vida deNossa Senhora e a gente vai... cada dia Ela vaicativando a gente mais. "Mas, gente, Ela fez! Ela foiescolhi... Ela tava escolhida pra mãe de Deus!". Etambém hoje minha mãe. É uma honra muito grandepra nós (R). Eu acho uma delícia! É assim, eu achomuito gostoso mesmo ter Nossa Senhora como nossamãe.

Beatriz, ao compreender o que a atrai em Nossa Senhora - sua prontidão edisponibilidade - se posiciona para conhecê-La: tenta identificar-se com aquela situaçãoque ela viveu. Nossa Senhora emerge como modelo com o qual se comparar, que Beatrizadmira e com o qual se identifica, elencando características acenadas por Sua posturahumana: disponibilidade, prontidão, bondade, doação e silêncio. Admirando e seidentificando com a Padroeira, Beatriz faz a experiência de realização.

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A experiência de realização aqui descrita por Beatriz pode ser comparada ao que Guardini(1958) denomina como sentimento de vida, que emerge por meio da experiência dagraça. Para esse autor, esse sentimento não emerge como uma necessidade satisfeita oucomo um prazer alcançado, mas como a verdadeira felicidade que se encontra. Quando osentimento de vida emerge, é sinal de que ele foi ganho, longe de qualquer possibilidadede ser produzido por um esforço próprio.

4.2.3) Eixo de Análise: Concepção do OutroNo relacionamento entre Nossa Senhora de Nazareth e Beatriz emerge ofeminino

Nossa Senhora emerge para Beatriz como mediação: ela não pode, mas Nossa Senhorapode levar o seu pedido até Deus, para que a sua busca se concretize. Ela écompanheira, apoio seguro, devido à maneira como responde. Nossa Senhora emergepara Beatriz dentro de um relacionamento de amor materno.

E eu, o que eu posso falar, assim, de Nossa Senhorapra outras pessoas para que elas também seguremn'Ela, para que Ela tenha... para que Ela... Eu achoque, às vez, a pessoa tá procurando uma coisa, igualmuitas vezes a pessoa fala: "ah, mas eu peço, peço,peço a Deus e Ele num...". Por enquanto ela começa apedir Nossa Senhora que Ela vai dar um jeitinho pragente... da gente chegar até Ele. Que a gente numpode, Ela pode (R). Então, eu acho é isso. Eu acho quesem Nossa Senhora é muito difícil da gente caminhar.Pois é, eu amo a Nossa Senhora porque Ela deu vidapra gente, por Jesus. Porque senão a gente estariaperdido; porque, olha bem pr'ocê ver: Ela assumir tudoaquilo, embora tão nova, para que a gente pudesse umdia encon... ter a salvação. A chance! Uma pessoa quete abre uma porta pra na hora que 'cê tá apertada, elate abre a porta pr'ocê entrar e ocê... Te acolhe! É bomdemais, eu amo Nossa Senhora por isso (R)! É gostoso,menina. E vale a pena amar, eu acho que deve amarmesmo porque Ela num desampara a gente não. Numtem jeito como num amar uma pessoa... É a mesmacoisa d'eu te falar assim: "Porque que 'cê ama suamãe?"; "Uai, porque ela me deu a vida! É, eu devominha vida a ela".

Stein (1999), ao discutir o valor da feminilidade e sua importância para a vida do povo,faz menção ao anseio que está presente na vida da mulher como inclinação para apessoa e como tendência à totalidade, segundo a concepção da graça no sentido cristão.Nesse sentido as funções que emergem a partir dessa peculiaridade nos interessam porexpressar um contexto no qual Beatriz está elaborando sobre como emerge o seurelacionamento com Nossa Senhora como um Outro. A presença dessa inclinação pessoale do anseio pela totalidade emergem mais fortemente no mundo feminino por estaremligados à função especial de ser companheira, que significa ser apoio e amparo. Segundoa autora essa atitude se torna possível se a pessoa encontra-se em posição firme e emuma postura correta.No relacionamento com Nossa Senhora, em que está presente o pedido (como expressãoda necessidade e/ou busca por algo que se realize), a mediação (a necessidade pelapresença de um Outro) e a Eucaristia (como espaço de atenção à presença do Outro),evidencia-se uma companheira expressa pelo apoio, a confiança e a resposta que ela

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oferece ao que se necessita. Assim, podemos compreender que o mundo feminino,expresso na função "ser companheira", é apreendido por Beatriz no relacionamento comNossa Senhora, com essas modalidades de experiências, segundo a correspondência e aidentificação com a posição humana de Nossa Senhora.Para Beatriz, relacionar-se com Nossa Senhora coincide com uma ação concreta: amaneira como concebe o seu trabalho na festa da Padroeira, o cuidado com a forma depreparar a festa, a preocupação com as pessoas que vão a Morro Vermelho.

A gente vê muita gente aqui dentro da igreja que vem,assim, de tão longe, com tanta humildade, com tantasimplicidade, e chega ali na frente, mas que conversacom Nossa Senhora, mas bate um papo assim deencher o coração da gente! Mas, bate um papo comNossa Senhora, mas é um papo, assim, gostoso,invejável mesmo! Assim, 'cê vê aquela fé bonita napessoa, 'cê vê a pessoa depositando ali toda aconfiança n'Ela, toda! Eu acho muito bom mesmotrabalhar nessa festa para que todo fruto, que o frutoverdadeiro de cada pessoa... que a pessoa queiracolher, que ele seja colhido dessa festa; que a gentepossa ser melhor no ano que vem, que a gente possamudar um pouquinho o jeito da gente, que Deus vaiburilando a gente, vai transformando, vai dando umjeito no coração da gente. Então, eu acho que é muitobom mesmo trabalhar pra essa festa.

Para Beatriz, trabalhar na festa é a possibilidade de encontrar alguma coisa pela qualexiste uma busca. O ponto é encontrar não o fazer, que tem o principal significado de serpor um Outro (Nossa Senhora) e que implica, ao mesmo tempo, uma realização e umcuidado. O cuidado que culmina na organização do espaço como possibilidade deflorescimento de um relacionamento com Nossa Senhora. Essa preparação tem duascaracterísticas primordiais: não ocorre de uma maneira individual na realização detarefas, mas pelo envolvimento com a festa, seja realizando qualquer tarefa, que temcomo intenção proporcionar que outras pessoas se relacionem com a Padroeira; e éconcebido de maneira a proporcionar que possa vir à tona o desejo de uma proximidadecom Ela. Fazer a festa é a possibilidade de encontrar Nossa Senhora, o que coincide coma possibilidade de uma transformação para melhor, para si e para os outros. Assim,trabalhar na festa é a possibilidade de poder mudar, de que uma porta seja aberta,mesmo dentro de uma condição frágil.

4.2.4) Eixo de a nál i se: Concepção de siSobre Beatriz

Beatriz concebe a si mesma considerando que suas ações por si só não podem contornaras situações, e assim possibilita a entrada de um Outro que tem poder para tanto. Aconsciência da fragilidade suscita Beatriz a se colocar diante da presença de NossaSenhora com o pedido de que a sua vida tenha sentido, de que seja boa, para que algode grande aconteça em sua vida, apesar da fragilidade. Para Beatriz, conceber a simesma, é chegar a dizer o que quer em sua vida: a fé, o amor que Nossa Senhora foicapaz de ter. A esperança ocorre por reconhecer sua condição frágil no movimento de secomparar com a experiência de Maria, Nossa Senhora, vislumbrando uma possibilidade,uma saída: estar atenta aos seus passos, indo na Sua escuta.

(Beatriz) Mas eu... Ela me comove mesmo. Num temsaída pra...(Renata) Por que num tem saída?

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(Beatriz) Não, Ela num tem... eu num tenho... Eu numconsigo controlar. Ela mexe comigo mesmo. Ela metoca. Num tem jeito de... Eu posso controlar, eu possomorder, eu posso me apertar, mas eu não consigo. Elamesma mexe; mas Ela mexe tanto... Mas, Ela mexe nomais íntimo do meu ser; Ela mexe comigo. Ela mexemuito! Então, eu não consigo ficar parada nesse MorroVermelho sem mexer aqui dentro. Amo demais NossaSenhora, mas Ela quer que a gente faz o que Jesusquer". Ela quer que a gente faz o que Ele quer! PorqueEle deu o sangue d'Ele por nós! Ele fez tudo por nós.Que Ele quis... Ela quer, então, a gente tem que fazer avontade d'Ela, Ela quer! Então a gente tem que fazerporque Ela quer. Num adianta eu fazer o que eu quero,não. Então, eu fico muito... eu fico me... Eu souapaixonada com Nossa Senhora! Sou mesmo! Souapaixonada mesmo por Ela, porque Ela é tudo, porquevale a pena 'cê fazer tudo pra Ela em cada Ave Maria.Quando a gente fica rezando Ave Maria bemdevagarinho, mas vem, parece que aquele negócio vaientrando na gente. Vai... num sei, vai incrustando.Num tem jeito, Nossa Senhora é demais.

Aqui a posição de Beatriz é fortemente influenciada pela inclinação feminina à totalidadee à integridade (Stein,1999), ou ainda, pela necessidade de não ser determinada pelolimite, deixando aparecer a necessidade de ir além dessa condição, dando-se conta deum fator externo como possibilidade de compensação (Weil, 1993). Tudo isso seconcretiza com a presença sagrada de Nossa Senhora de Nazareth e possibilita a Beatrizconceber-se como gratidão e comoção.

4.3) Entrevistado: Basseli

Basseli, 43 anos, é responsável por carregar o andor de Nossa Senhora de Nazarethdurante a procissão festiva do dia oito de setembro. Trabalha em Belo Horizonte,voltando aos finais de semana para Morro Vermelho, de onde se considera aindamorador.

4.3.1) Eixo de Análise: Entrada no mundoA dinâmica do amor como elemento essencial na elaboração ontológica deBasseli

Nossa Senhora de Nazareth entra no horizonte de vida de Basseli por meio daconvivência familiar e comunitária. A dinâmica essencial por ele desenvolvida tem comotema central o amor, cuidado que explicita um querer bem ao outro, que é propiciadopor sua família, por uma educação marcada por regras morais e por uma convivênciaque introduz o zelo como maneira de se relacionar. Na convivência em comunidade essetema é introduzido pela maneira como as pessoas, dentro de uma condição simples,vivem uma devoção (dedicação) excepcional à Padroeira.

Então, com isso, eu vim aprendendo a gostar de NossaSenhora e via minha vó cuidar d'Ela com o maior zelo,os meus pais... 'Cê num podia responder um irmão, 'cênum podia xingar, 'cê num podia falar um palavrãocomo até hoje nunca fa... gosto de falar, num vô dizerque eu nunca falei, mas detesto, detesto falar. Se falo,

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eu arrependo na hora, peço Deus perdão. E aprendimuito através dos exemplos deles. Então, aprendi aconfiar, assim, muito no que eles falava e via que,realmente, era verdade as aprovações, que eramilagres, que num tinha como acontecer as coisa queacontecia.Então, eu acredito que Nossa Senhora, Ela zela poresse pessoal aqui. Eu acredito que Ela é realmente anossa medianeira de todas as graça, que Ela intercedea Deus por cada um de nós. Então, eu sou pai defamília, eu tenho certeza que Ela também está zelandopela minha família, como Ela zelou pelos meus pais.Hoje, Ela zela por cada um de nós.

Ao compreender que aquela devoção vivida pelas pessoas que lhes são uma referênciacoincidia com um bem ao outro, Basseli confere um juízo que se transfigura em umaconvicção de que pode confiar naquelas pessoas, expressa na forma de uma admiração.Desse modo, a observação de que há um ambiente de convivência marcado por umquerer bem se configura em um terreno fértil que possibilita a Basseli entrar em contatodireto com a Padroeira, no sentido de que começa a colher os sinais dessa presençareligiosa.Diante de tal convicção, Basseli começa um outro processo: familiarização com o objeto.Nesse aspecto, a admiração que nele emerge em relação àquelas pessoas é defundamental importância, uma vez que abre espaço para a convivência não só com essasreferências, mas também com o conteúdo que elas estão propondo de maneiraempenhada.A convivência, assim, proporciona uma maneira de amar o objeto, uma vez que Basselitem condição de se familiarizar com aquela modalidade de vida que está sendo oferecida,por meio da verificação e de um juízo estabelecido. Giussani (2000a), nesse sentido,compreende que, diante de um posicionamento assim, emerge uma evidência - apercepção de uma presença inexorável - ou seja, que há uma companhia que o ajudaoferecendo uma hipótese de relacionamento com a realidade ao redor e que é possívelvivê-la de maneira inteligente e comprometida, de maneira que essa pessoa se vê comoatuante e com possibilidade de desenvolver-se. Emerge, assim, um eu.

4.3.2) Eixo de Aná l ise: Sur presa essencialAs experiências que emergem no impacto com Nossa Senhora de Nazareth

Vimos até aqui que Basseli está inserido em um contexto no qual a Padroeira é incluída apartir de um fator essencial: a dinâmica do amor, por um cuidado que explicita umquerer bem ao outro. Em sua elaboração verificamos que as experiências de impactocom Nossa Senhora referem-se a atitudes características de vida de Maria e, portanto,levam à verificação de Sua presença no cotidiano.

Eu criei [a festa do Natal das crianças], há alguns anosatrás, e hoje é um sonho, uma coisa muito linda:quando muitas crianças, pessoas que vêm de todas asredondeza. Então esse Natal, ele começou simples:minha mãe começou esse Natal; aí, outras pessoascomeçou a fazer. E isso foi crescendo, foi crescendo.Até que um dia, uma criança, filha duma pessoa maisou menos rica, praticamente rica, uma criança quetinha tudo - vamos dizer assim -, tinha toda maravilhadentro de casa, de presente, só coisa chique, chegouaqui - segundo a vó dela me contou - essa criança

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chegou aqui e eu tava realmente dando umasbonequinhas muito vagabunda, assim, no modo dedizer. Vagabunda é assim pelo preço, eu tô dizendo,uma coisa muito sem valor, quase, em dinheiro; pracriança tinha muito valor, porque tava ganhandoalguma coisa. Assim, eu falo em termos de dinheiro. Aí,essa dona chegapra mim - D. Isabel - e vira pra mime fala assim: "Ô, menino, eu queria conversar comvocê. Você aceitaria uma ajuda?". Eu falei assim: "Uai,D. Isabel, como assim a senhora quer dizer?"; "Éporquê eu tô achando o seu trabalho tão bonito, tãolindo! Você me comoveu!", "Você me comoveu. E eu tôachando o seu trabalho tão maravilhoso, que eu queriasaber se você era capaz de aceitar eu te ajudar vocênesse Natal das criança". Eu fiquei muitofeliz, eu fiqueimuito feliz! E ela pegou e falou assim: "Ólha, eu vou tedizer pra você uma coisa: tem coisas que fica na vida.É, a filha da Gisa (a criancinha que ela falou), ela veioaqui e você deu ela uma bonequinha com umamamadeirinha de plástico, uma coisa simples demaisda conta. Ela tem todos os presentes, mas que coisamais incrível: ela gosta do seu bonequinho!". Falou pramim: "Ela gosta do seu bonequinho! Ela dormeagarrada com aquele bonequinho! Aquele bonequinhopra ela é tudo! Ela tem coisas caríssimas, ela pouco táimportando".

Para Basseli, a experiência do encontro ocorre no momento em que verifica que acontecealgo de grande como no envolvimento de dona Isabel, ou seja, dentro de um gestosimples, como o Natal das crianças, em que ele, em conjunto com outras pessoas,apenas entrega algumas lembranças e fazem um pouco de "farra". Em um momento quese caracteriza pela simplicidade, emerge a verdadeira realização de algumas pessoas. Éem um momento assim que observamos que Basseli, sustentado por um querer bem aooutro, ou seja, pela dinâmica do amor, verifica a entrada de uma novidade, estranha eportadora de uma inusitada novidade: algo ocorre dentro desse gesto simples que temuma extensão jamais imaginada.O querer bem às pessoas, desejar que seu destino se cumpra, para Basseli, tem relaçãocom algo que foge ao seu controle. Com a experiência de encontro que é, então,paradoxal, vertiginosa e realizadora, Basseli chega a se impactar com a presença daPadroeira. Comenta estar engrandecido por ser Nossa Senhora de Nazareth esse fatorque, invisivelmente, age e mexe com as pessoas.

Eu estou tão engradecido que é Nossa Senhora deNazareth. É Nossa Senhora de Nazareth, eu tenhocerteza que é Nossa Senhora de Nazareth.

Diante do maravilhamento com esse algo estranho e inusitado, Basseli se comove e esseestranho, paradoxalmente, passa a ser familiar. Podemos compreender que a experiênciade amor possibilite esse estupor que se apresenta como uma novidade atraente, ou seja,coloca-o diante do numinoso, com uma certa familiaridade, como Guardini (1958)mesmo chega a dizer: "Este carácter estranho aparece como a expressão doessencialmente misterioso, do numinoso" (p. 153); ou como "um centro misterioso queactua na própria acção e constitui o destino" (p. 154). Com eesse tipo de experiência - oencontro com algo realizador - Basseli chega a se impactar com a presença da Padroeira.

4.3.3) Eixo de Análise: Concepção do Outro

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No relacionamento entre Nossa Senhora de Nazareth e Basseli emerge adimensão da pessoa

Nossa Senhora de Nazareth emerge dentro de um relacionamento materno, de entrega eexemplo de amor.Atitude de intercessão: o relacionamento com a Padroeira introduz a dimensão docuidado, de alguém que constantemente se preocupa com os seus filhos.

Então, assim, tem um amor muito grande porEla. Eu acho que todo ser humano deveriarecorrer a Ela porque Ela é Mãe. Ela é Mãe, Ela foicriadora, Ela ensinou, Ela educou o próprio Filhode Deus. Se Ela teve condições de educar umpróprio Filho de Deus, eu acho que tudo Ela fariapor a gente também porque Ela sabe que nós,mais do que Ele, somos pecador. Mais do que Ele,precisamos d'Ela, mais do que ele Ele, estamos aícorrendo atrás d'uma ajuda porque num é fácil avida, é muitas coisa pra jogar a pessoa emdepressão, em tristezas, em desespero. Então,assim, eu acredito que Ela tá sempreintercedendo a Deus por cada um de nós.Acredito, não, tenho certeza! Tenho certezaporque tem os exemplo de vida por essas coisatão maravilhosas que Ela já foi na minha vida,nos meus caminho. Eu, assim, se eu tivesse quedar testemunho pra provar qu'Ela, realmente, é aminha Mãe, qu'Ela me criou, qu'Ela me carrega,eu teria exemplos, assim, pra te relatar qualquerhora, qualquer minuto, sem vergonha, semtristeza.

Atitude de aceitação: no contato com Nossa Senhora de Nazareth, Basseli experimenta oque significa ser perdoado, pois trata-se de Alguém que olha para o filho não olhandopara o erro que comete; intercede e se preocupa não em função do pecado, mas emfunção do verdadeiro pedido que lhe é feito.

O amor, ele é tudo! O amor, ele perdoa, ele cresce, eleaceita, ele vive, ele dá tudo que você precisa. Então, euacho que o amor, hoje, é fundamental na vida dequalquer ser humano. Onde existe o amor, existe averdade, existe a sinceridade, existe a confiança, acerteza. Então, eu acredito muito no amor, eu acreditodemais no amor. Eu acho que o que a Maria fez aqui foiamar, só exemplo de amar, Ela amou, amou demais,entendeu? E deixou todos nós nessa situação de amar.Igual Jesus, Jesus morreu numa cruz por amor, poramar, então eu acredito no amor, eu tenho certeza queo amor é tudo, entendeu? Quando a gente ama, agente perdoa, seja a pessoa, seja o erro que for, porisso que Deus é sempre perdão. Jesus Cristo veio praperdoar pra mostrar pra gente: se a gente amar, agente é perdoado. Por que tudo que você faz por amar,se você errou, Deus fala assim: "Puxa vida, mas elaamou. Ela errou talvez por causa da fraqueza dela,

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pelos defeitos do ser humano mesmo, mas ela ama, elame quer. Ela compreende as coisa da vida".

Atitude de apoio: Nossa Senhora como Alguém que cuida e intercede sem pedir nada emtroca; deseja que seu filho seja atendido. Nossa Senhora emerge dentro de umrelacionamento de adesão, atração e chamado. Aqui se encontra a realização de Basseli:ao se render ao chamado que Nossa Senhora faz, algo lhe é dado e, juntamente a isso,algo lhe é revelado. Realizando aquela responsabilidade na festa expressa o seu quererficar próximo dEla. Nossa Senhora emerge dentro de um relacionamento de proximidade,afeição e proteção. Ela, intercedendo por ele em cada momento de sua vida, lhepossibilita crescer e se transformar, ou seja, mudar a maneira de olhar para as situaçõesque encontra, sabendo que não está sozinho, que a Padroeira está acompanhando-o.Com Nossa Senhora ele pode olhar o mundo com os olhos de Deus: diante dossofrimentos Basseli tem a certeza de que algo de construtivo poderá acontecer. A partirdo relacionamento íntimo que se estabelece com aqueles que respondem, é Ela quem semostra. É Ela que, de maneira silenciosa, age e gera crescimentos e transformações navida dessas pessoas e na realidade ao redor.

Ela vai te mostrando as coisas. Igual, por exemplo,essas coisa que vai acontecendo do desemprego, nosilêncio, Ela vai agindo. E a gente fica preocupado,preocupado, preocupado: "como é que vai ser? Vai memandar embora?". Olha pr'ocê ver! No silêncio, Ela vairesolvendo as coisa. 'Cê só percebe e "ó, mas, puxavida! Nossa Senhora, que é isso?" (R). Então, assim,Ela silenciosamente, a hora que você não acha que vaiacontecer, a hora que 'cê não tá esperando, se você éd'Ela - você é d'Ela - entendeu? Ela resolve. É só 'cêter paciência, num querer adiantar os carro na frentedos boi. Tenha paciência! Confia, sim, em Deus que Ele,Ela resolve, Ele resolve. Tudo que ocê precisar, numprecisa ter medo, não. (R) Eu sei disso: não precisa termedo! Tem hora que eu fico com medo. Tem hora queeu fico com medo. Aí, acontece: "gente, mas quecabeça! Por quê que eu tenho esse medo?". Depoisfalo: "olha, Nossa Senhora, eu sabia que isso iaacontecer", mas e o medo de faz... de ter certeza,entendeu?

O relacionamento amoroso com a Padroeira, por parte de Basseli, caracterizado por suarendição à atração que o provoca, mobiliza-o a se comprometer com aquilo que estáguardado para ele: um chamado. Emerge a pessoa, emerge Basseli de forma pessoal àmedida que, diante de Nossa Senhora, em seu relacionamento com Ela, é capaz deresponder de maneira espontânea, ou seja, totalmente pessoal, naquilo que desejaexpressar, naquilo que é.Nesse sentido, a proximidade que é oferecida por Nossa Senhora de Nazareth, implícitaem Seu chamado, tem a sua expressão máxima em Sua proteção, que é oferecidaàqueles que se rendem à Sua presença.Basseli emerge como pessoa, como Marías (1994) comenta sobre a reciprocidade doamor, porque se sabe acompanhado, levando em consideração a sua vida concreta, cheiade sofrimentos e dificuldades - oscilações. Porém, sabendo-se acompanhado, temcondição e espaço para continuar expressando quem é: comprometendo-se com aprópria vida.

4.3.4) Eixo de Análise: Concepção de siSobre Basseli

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Para Basseli, comprometer-se com a vida, viver a vida, olhar para os acontecimentos domundo, tem relação com um olhar para a realidade com os olhos de Deus: assim, elequer amar mais. Disponibilizar-se ao outro, tendo presente a maneira como Deus eNossa Senhora amam é que o liga afetivamente ao mundo que é limitado, cheio defalhas. O posicionamento é marcado pelo desejo de comunicar essa modalidade de viver.

Então, Nossa Senhora de Nazareth me traz nessaprocissão d'Ela, com alegria de poder tá ali andando dolado d'Ela, cantando. Ela deve tá cheia de glória, comtantos filhos que... todos voltados pra Ela. E gostariamuito é que o mundo transformasse dessa forma,enxergasse as coisas por esse lado, que entendesse umpouquinho quê que é amor da Virgem Maria, quê que éamor de Deus, quê que é amor de Jesus Cristo.Gostaria muito ainda de aprender mais ainda, eugostaria de ser mais exemplo de vida. Eu gostariamuito de ser um exemplo de vida pras criança, praoutras pessoas, deixar raízes. Igual meu pai, deixatantas raízes pra gente, tanto exemplo, tanta coisa meupai fez pra mostrar a gente o amor de Deus, eugostaria...

Para Basseli, comprometer-se com a vida, viver a vida, olhar para os acontecimentos domundo, tem relação com um olhar para a realidade com outros olhos, ou melhor, com osolhos de Deus. Olhar, não mais partindo do limite estabelecido pelas circunstânciasinjustas, feias, desagradáveis e sofridas, mas reconhecendo-se como parte desse mundocheio de falhas, olhando para o que está sendo construído, transformado dentro dessascondições.Reconhecemos o cuidado que aqui expressa Basseli ao experenciar essa forma de amar.Fromm (1971) já considerava que o cuidado é um elemento básico da atitude ativa deamar, que consiste em um trabalho que favoreça o crescimento. O olhar de Basseli tem adimensão de um trabalho em colher aquilo que cresce dentro de uma circunstância dearidez.Certamente, apreendemos nesse posicionamento de Basseli a responsabilidade queFromm (1971) também identificava como um elemento que se seguia ao cuidado, ouseja, sabendo-se que há um crescimento empenha-se com a vida que está repleta denecessidades: aqui, a sua decisão em amar com o coração, entregando-se ao outro.

5) A concepção de si diante de Nossa Senhora de Nazareth em Morro Vermelho:a experiência-tipoa) A convivência para o sujeito de Morro Vermelho está associada a umcompartilhamento da própria vida: sente-se acolhido assim como é e, no relacionamento,há o predomínio de um reconhecimento mútuo em que cada um é valorizado pelas suaspotencialidades, ou seja, por aquilo que tem para oferecer. Há uma maneira pessoal coma qual o sujeito, inserido nesse horizonte compartilhado e afetivo, depara-se com algoque lhe é inicialmente exterior. Normalmente, aparece sob a forma de um impacto comuma excepcionalidade humana que está fora de si, que o transcende, que não éalcançável imediatamente. Dessa maneira, o sujeito de Morro Vermelho pode chegar acompreender que esse algo exterior é Nossa Senhora de Nazareth, de quem já tinhaouvido falar tanto. Começa a se delinear um olhar próprio, uma maneira própriaapreender a figura d'Ela. Há uma compreensão de que Nossa Senhora de Nazareth serefere a si também, de maneira pessoal: tenta se comunicar e dizer algo que sejarelevante para a sua vida, ou seja, para a realização da sua própria existência.

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b) Uma característica do relacionamento com a Padroeira é que o sujeito dessacomunidade sente-se valorizado pelo que é. Nossa Senhora de Nazareth é percebida pelosujeito como acolhedora; o relacionamento com Ela é compreendido em um horizonte deconfiança. Em situações de difícil solução, esse Outro, intercede em seu favor, nãoapenas em relação aos resultados, mas como um apoio ou presença com que se possacontar. O sujeito dessa comunidade se percebe como não estando desamparado e,assim, o lança para esse Outro com seus problemas, coloca-se diante da vida com umapostura ativa, de enfrentamento das circunstâncias que se lhe apresentam como árduas,penosas ou trabalhosas. O sujeito de Morro Vermelho sente-se filho de Nossa Senhora deNazareth: Ela é mãe porque intercede por ele, porque lhe quer bem, quer que ele serealize.c) O relacionamento com a Padroeira, para o sujeito de Morro Vermelho, é o parâmetroorganizador do seu dia, do trabalho a realizar, da maneira como educar os filhos, daforma como receber as pessoas que chegam na festa d'Ela, da tarefa que se tem deassumir nesse momento comemorativo de sua natividade, na maneira como organizar afesta, na maneira como decidir algo. É Ela o ponto orientador de tudo. Ter parâmetrossignifica estar em constante relacionamento com Nossa Senhora de Nazareth e deixar-seguiar pela ação d'Ela no seu mundo.d) Nesse sentido, o relacionamento com a Padroeira é considerado pessoal, pois permiteque o sujeito se expanda e conheça a si mesmo, continuamente: Ela toma iniciativa paracom ele, de forma pessoal, tendo algo a lhe dizer; ao responder à sua iniciativa, essesujeito dá sua contribuição, que não pode ser dada por nenhuma outra pessoa. Norelacionamento com Nossa Senhora de Nazareth, é despertado não apenas umconhecimento acerca de si mesmo, mas o valor da sua ação, que é resposta ao seuchamado. O resultado dessa ação tem uma extensão ampla, que nem o próprio sujeitotem condições de avaliar; mas que reconhece existente. O sujeito de Morro Vermelhodescobre que a sua ação tem um valor imprescindível para a comunidade e que tem umalcance inimaginável.e) Responder a Nossa Senhora de Nazareth coincide com pertencer a Morro Vermelho.Assumir a própria contribuição pessoal tem uma importância de construção dacoletividade: é contribuição para a continuidade da história local na medida em que étestemunho vivo, refletindo Sua presença para os contemporâneos, para os que aindaestão por vir e para os que não são de lá. Um ideal compartilhado constitui-se em umareferência que relembra o valor que o relacionamento com a Padroeira tem para a vida,própria e de todos. Portanto, ao fazer memória d'Ela o sujeito revitaliza sua existênciaconcreta como missão, o sentido de sua tarefa e seu dever para com a comunidade deMorro Vermelho, para com o mundo, para com Nossa Senhora de Nazareth.

6) ConclusõesNormalmente, teríamos a tendência de considerar que em tais formas de associação aspessoas teriam poucas oportunidades de elaborar de maneira pessoal os conteúdosoferecidos pela tradição cultural. Ao contrário, em Morro Vermelho encontramos adiversidade e a riqueza de elaborações e de formas de ser no mundo vivenciadas comocontribuição para a organização social comunitária tipicamente tradicional. Participação,iniciativa pessoal e ação nas atividades tradicionais propiciam uma vivência comunitária,que, por sua vez, é condição necessária para que os sujeitos possam desenvolvertrajetórias de vida autenticamente pessoais, inserções no mundo personalizadas,consciência de si fortalecida pela pertença a uma comunidade concreta e histórica.Havendo essa elaboração dos conteúdos oferecidos pelo contexto cultural, os sujeitos deMorro Vermelho chegam a Nossa Senhora de Nazareth em formas singularizadas de vivero relacionamento com Ela. Assim, temos Biló, caracterizado pela dinâmica da fé, pelaqual no posicionamento dentro das circunstâncias concretas visa a presença de NossaSenhora de Nazareth. Beatriz, segundo a dinâmica da graça, que se dando conta de sua

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fragilidade humana e contradições que a vida pessoal, familiar e comunitáriaapresentam, maravilha-se com a presença humana de Maria. Pela dinâmica do amor,Basseli comove-se com essa presença misteriosa e surpreendentemente humana queguia sua ação e os acontecimentos cotidianos.Verificamos, também, que a própria convivência nessa comunidade rural tradicional,tendo como centro a figura de religiosa de Nossa Senhora de Nazareth, é concebidacomo intervenção e o com relacionamento com Ela. As elaborações personalizadas dessacompreensão compartilhada coletivamente consolidam uma devoção diversificada eunitária a um só tempo.A excepcionalidade reconhecida na figura de Nossa Senhora de Nazareth - ao mesmotempo sagrada e humana - traz para o plano concreto cotidiano dos sujeitos a mesmaexcepcionalidade: reconhecem na convivência com quem os educa os mesmoselementos; ligam-se aos seus reconhecendo um mistério pelo qual o relacionamento comeles coincide com relacionar-se com Nossa Senhora de Nazareth; os acontecimentos e ahistória concreta, pessoal e comunitária, são sinal de sua presença e oportunidade derelacionamento pessoal com Ela.Biló, Beatriz e Basseli - pudemos aprender muito com eles! No início a percepção de umcontexto diferente nos fascinava e nos colocava em movimento para conhecer. Porém, osresultados nos ofereceram muito mais do que a conclusão deste trabalho. Comopoderíamos concluir, a não ser agradecendo? Agradecer por termos encontrado mais doque sujeitos de pesquisas, mas pessoas que, com as maneiras humanas aqui descritas,trouxeram à tona formas poéticas com a quais puderam enfrentar a vida e se instaurarno mundo de maneira criativa, levando em consideração o próprio contexto cultural noqual estavam inseridas.

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Notas(1) Utilizamos o recurso da amostragem intencional assim como descrito por Gil (1999):"constitui um tipo de amostragem não probabilística e consiste em selecionar umsubgrupo da população que, com base nas informações disponíveis, possa serconsiderado representativo de toda a população" (p. 104). Assim, procuramos entrevistarintencionalmente os sujeitos que mais poderiam nos fornecer dados que respondessemaos nossos objetivos.

(2) As entrevistas semi-estruturadas consistem, principalmente, na realização pelopesquisador de algumas questões que cumpram os objetivos principais do trabalho depesquisa, deixando um espaço livre relativamente grande para o entrevistado poderresponder. Há, também, a possibilidade, nesse tipo de entrevista, que novas questõesapareçam ao longo do encontro com os sujeitos da pesquisa. (Moreira, 2002).

(3) Podemos considerar observação etnográfica como observação participante, quesegundo Moreira (2002) pode ser definida "como uma estratégia de campo que combinaao mesmo tempo a participação ativa com os sujeitos, a observação intensiva emambientes naturais, entrevistas abertas informais e análise documental" (p. 52), atravésda qual o seu principal produto é o "relato etnográfico", que se caracteriza por seconstituir em relatos do dia-a-dia dos entrevistados e das notas de campo dopesquisador.

(4) Através da epoché ou redução fenomenológica, Husserl (1992) acredita que para seconhecer algo é preciso partir de uma evidência indubitável. Para o autor, o resultado daredução é a correlação entre o eu penso e o objeto de pensamento, ou melhor, entre ocogito e o cogitatum. Para se chegar a algo invariante nas diferentes maneiras deaparição do objeto à nossa consciência, ou melhor, para se chegar a captar a essência dofenômeno puro, é imprescindível adotar uma atitude oposta à ingênua e natural em quese vive no dia-a-dia: a de conceber o mundo como "fenomenalizado" por meio daepoché.

(5) "Naqueles dias, Maria pôs-se a caminho para a região montanhosa, dirigindo-seapressadamente a uma cidade de Judá. Entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora,quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre e Isabel

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Araújo, R.A. & Mahfoud, M. (2004). A devoção a Nossa Senhora de Nazareth a partir da elaboração da 54experiência ontológica de moradores de uma comunidade tradicional. Memorandum, 6,25-54. Retirado em / / da World Wide Web:http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/aramahfoud01.htm

ficou repleta de Espírito Santo. Com um grande grito, exclamou: 'Bendita és tu entre asmulheres e bendito é o fruto de teu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhorme visite? Pois quando a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceude alegria em meu ventre. Feliz aquela que creu, pois o que lhe foi dito da parte doSenhor será cumprido!". (Lc 1, 39-45) (A Bíblia de Jerusalém, 2000).

(6) "No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia,chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa deDavi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: 'Alegra-te,cheia de graça, o Senhor está contigo!'. Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se apensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: 'Não temas,Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz umfilho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho doAltíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacópara sempre, e o seu reinado não terá fim'. Maria, porém, disse ao Anjo: 'Como é que vaiser isso, seu não conheço homem algum?'. O anjo lhe respondeu: 'O Espírito Santo virásobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo quenascer será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho navelhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam estéril. Para Deus, com efeito,nada é impossível.' Disse, então, Maria: 'Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mimsegundo a tua palavra!'. E o Anjo a deixou." (Lc 1, 26-38).

(7) "No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galiléia e a mãe de Jesus estavalá. Jesus foi convidado para o casamento e os seus discípulos também. Ora, não haviamais vinho, pois o vinho do casamento tinha-se acabado. Então a mãe de Jesus lhedisse: 'Eles não têm mais vinho'. Respondeu-lhe Jesus: 'Que queres de mim, mulher?Minha hora ainda não chegou'. Sua mãe disse aos serventes: ‘Fazei tudo o que ele vosdisser'. Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, cada uma contendode duas a três medidas. Jesus lhes disse: 'Enchei as talhas de água'. Eles as encheramaté à borda. Então lhes disse: ‘Tirai agora e levai ao mestre-sala'. Eles levaram. Quandoo mestre-sala provou a água transformada em vinho - ele não sabia de onde vinha, maso sabiam os serventes que haviam retirado a água - chamou o noivo e lhe disse: 'Todohomem serve primeiro o vinho bom e quando os convidados já estão embriagados serveo inferior. Tu guardaste o vinho bom até agora!'. Esse princípio dos sinais, Jesus o fez emCaná da Galiléia e manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele. Depois disso,desceram a Cafarnaum, ele, sua mãe, seus irmãos e seus discípulos, e ali ficaram apenasalgunsdias.". (Jo 2, 1-12).

Nota sobre os autoresRenata Amaral Araújo é mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de MinasGerais, doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade deSão Paulo. Contato: [email protected]

Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor adjunto do Departamento dePsicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, atuando na linha depesquisa "Cultura e subjetividade". Contato: Caixa Postal 253 - CEP: 31270-901 - BeloHorizonte - MG - Brasil. E-mail: [email protected]

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A memória de um padre exorcista: relatos da colônia deCascalho

The memory of an exorcist priest: narration of the experience from the colonyof Cascalho

Márcio Luiz FernandesPontificia Università Lateranense

Italia

Marina MassimiUniversidade de São Paulo

Brasil

ResumoO presente artigo é o resultado de uma pesquisa realizada numa ex-colônia deimigrantes italianos situada em Cascalho, município de Cordeirópolis, estado de SãoPaulo. A vida religiosa dessa colônia organizou-se em torno do padre Luis Stefanello(1878-1964), que foi o formador e orientador de várias gerações de fiéis. A fama deexorcista espalhou-se por todo o interior do Estado de São Paulo, transformandoCascalho em lugar de romarias. A pesquisa revela o que sobrevive da imagem do padreStefanello na memória dos mais velhos da comunidade e a ação de um homem "cheio depoder" por meio de suas bênçãos e exorcismos, mostrando as ressonâncias dela nocomportamento populacional. Por outro lado, o artigo examina as relações entre ahistória e memória do grupo social, evidenciando que a experiência do relacionamentoentre o padre e o povo de Cascalho foi geradora de um elo que perdura até o presente.

Palavras-chave:história e memória; exorcismo; imigração italiana; cultura popular;Luis Stefanello

AbstractThis article is the result of a research done in an ex-colony of Italian immigrants in thevillage of Cascalho, of the municipal district of Cordeirópolis (São Paulo, Brazil). Thereligious life of this colony has been organized around Father Luis Stefanello (1878-1964), who was the mentor and guide of generations of believers. The Exorcist's famespread through the State of São Paulo, turning Cascalho into a place of pilgrimages. Theresearch reveals that the reminiscence of Father Stefanello's image still lives in thememory of the elderly of the community and in the action of a man "full of power"manifested in his blessings and exorcisms. This article examines the relationship betweenthe history and the memory of the this social group putting in evidence the experience ofthe relationship between the priest and the people of Cascalho which has created a bondthat remains up to the present.

Keywords:history and memory; exorcism; italian migration; popular culture; LuisStefanello

IntroduçãoFoi a partir de uma antiga fazenda de café do Sr. José Ferraz de Campos, chamado Barãode Cascalho, que o governo do Estado de São Paulo, no final do século XIX, criou onúcleo colonial de Cascalho. A fazenda foi dividida em lotes que foram doados aosimigrantes. Em Cascalho, as escrituras foram passadas no ano de 1884 e, logo emseguida, começaram a chegar as primeiras expedições de imigrantes de diversasnacionalidades: alemães, suecos e dinamarqueses, que se instalaram, mas não se

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estabeleceram por não conseguir se adaptar às condições de vida da colônia. Emseguida, vieram os imigrantes italianos do Vêneto, que logo se fixaram (Livro do Tomboda Paróquia de Cascalho, 1904-1983, p. 4).O núcleo de Cascalho, atualmente pertencente ao município de Cordeirópolis, tornou-seuma típica colônia italiana, na qual cada família possuía um pedaço de terra comopropriedade, realizando-se assim uma das primeiras experiências de reforma agrária doEstado de São Paulo.A vida religiosa desta comunidade foi desde sempre muito cultivada. A adaptação dosimigrantes passava pela tentativa de reproduzir condições de vida similares às de suaterra natal. A assistência religiosa foi um dos fatores fundamentais para ajudar osimigrantes italianos a se adaptarem ao estilo de vida no Brasil. A colônia de Cascalho nosseus primórdios foi assistida pelos Missionários Escalabrinianos, cujo objetivo era"manter viva a fé católica no coração dos compatriotas emigrados e, na medida dopossível, buscar o seu bem-estar moral, social e econômico" (Rizzardo, 1974, p. 243).Em 1911 chegou a Cascalho o missionário escalabriniano Pe. Luis Stefanello, queintensificou o trabalho junto às famílias dos imigrantes. Aconteceu uma verdadeiraidentificação da população com este sacerdote. No decorrer dos anos o padre Stefanellomostrou que há um carisma particular e que foi sendo identificado pela comunidade.Posteriormente, adquiriu fama por várias regiões do Brasil, como "um padre cheio depoder", sobretudo na luta contra as forças demoníacas.Para apreender a experiência que a colônia de Cascalho teve no seu relacionamento como padre Stefanello e tentar reconstruir essa história, foram utilizados dois tipos de fontesque são importantes tanto para a história quanto para a memória. Em primeiro lugar, asfontes de tipo oral, com entrevistas abertas, utilizando-se o recurso da história de vida,e, em segundo lugar, as fontes documentárias escritas referentes à história do padre Luise da comunidade paroquial de Cascalho, em dois arquivos específicos: 1) Arquivo daParóquia de Nossa Senhora da Assunção, 2) Arquivo Geral da CongregaçãoEscalabriniana - Roma-Itália. Para as entrevistas foram escolhidos quinze sujeitos e,preferencialmente, os anciãos do bairro, na faixa de setenta a noventa e cinco anos.Interessava-nos à pesquisa apreender as experiências vividas na convivência com opadre Stefanello, por isso, nosso caminho foi o de estabelecer um diálogo partindo doque eles sabiam nos contar quanto ao padre, pois todos eram pessoas que, de algumaforma, conheceram o referido sacerdote e presenciaram os exorcismos em Cascalho.Deve-se ainda esclarecer que as entrevistas podem ser divididas em dois blocos: umprimeiro, referente ao tópico "a luta com o demônio", cujos depoimentos foram colhidosno ano de 1999; e outro bloco presente no tópico "ressonâncias", colhidas nos dias 15 deagosto e 14 de setembro de 2003.Entreguemo-nos, pois, neste pequeno percurso, às reminiscências com que os idosos deCascalho nos descrevem a ação do padre Luis Stefanello, e procuremos estar atentospara poder perceber a densidade desta presença no hoje da comunidade.

A luta com o demônio"Como vinha gente ”. Esta é a expressão que se repete na boca dos moradores maisvelhos de Cascalho. É a indicação de que nos tempos do "padre cheio de poder" algumacoisa diferente acontecia. Cascalho foi-se tornando um lugar de romarias. Acorreramperegrinos de todos os cantos. Então, perguntamo-nos: quem era essa gente que vinha aCascalho? O que eles buscavam? O que poderia acontecer nesse vilarejo tão pacato? Oque se modificava?Segundo nos informou Dona Rosa, vinha bastante gente do Paraná "para tratarexorcismo". Tratar exorcismo significa, para Dona Rosa, o trabalho do padre Luis paraexpulsar o diabo do corpo do doente. As pessoas estavam atraídas pelo padre Stefanellojustamente pela fama que se espalhava por todo o canto, de que ele era exorcista.Outras pessoas procuravam-no, porque tinham algum problema para resolver. Segundoo Sr. Nardini, "vinham porque tinham problema com familiar e porque atacava o

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espírito". Ao padre caberia dar a bênção a essas pessoas "atacadas" pelo espírito do mal.Percorriam distâncias naquela época para se encontrar com Stefanello. Vinha gente nãosó de São Paulo, mas também de outros estados, como Minas Gerais e Paraná. O quenos contaram os moradores é que o padre exorcizava os espíritos malignos que vinhamali, e o que acontecia às pessoas tinha uma explicação: "era o diabo". É assim adescrição feita pelo Sr. João:

Gente lá de Minas, do fundo de Minas, de caminhãocoberto e encerrado, aparecia cheio de gente. Só queele tinha posto uma lei: que ele só dava benção a 1:00hora, antes e depois ele não atendia ninguém maisporque era demais, por causa do serviço dele deatender os doentes. Ele dizia que era o diabo: "-ocê tácom o diabo, mas vai melhorar". Ele dava a benção, ohomem, às vezes, se jogava no chão, às vezes, queriafazer..., passava aquilo, e o padre ia lá colocava asvestes da missa e ia rezar a missa e o homem alininguém punha a mão.

A pacata colônia ficava agitada nos finais de semana (1). Muita gente de outros lugares.Chegavam muitos doentes, gente "atacada pelo diabo" que, segundo Stefanello, poderiaencontrar a cura e a salvação, poderia mesmo melhorar. O fato é que algo irrompia nohorizonte da vida dos habitantes de Cascalho e passava a fazer parte do cotidiano. Poroutro lado, esse algo quebrava a ordem natural das coisas, de forma que era necessáriauma organização, porque, do contrário, o padre não conseguiria atender a todos. Porisso, estabeleceu-se uma lei: "ele (o padre) só dava a benção a 1 hora". Ainda assim omovimento era grande e difícil de organizar: "eles vinham de fora. Qualquer dia. Vinhade semana, vinha de domingo, vinha de sábado, vinha qualquer hora, qualquer dia"(Dona Santa). A população passou a conviver com essa "anarquia" e a sua reação,segundo os relatos, era de medo:

Vinham tudo de fora. Vinham de longe. Até do Paraná.Vinham de caminhão, às vezes de carro. Se você visseque anarquia que tinha!!! Dava até medo. Era tudo dia,era tudo dia. Eu assisti uns par deles, depois a minhamãe não deixou mais não, porque ela achava que nósficávamos nervosos, né? Você precisava ver quenervoso que dava (Dona Augusta).

O que poderia causar tais reações? Seria apenas o fato da população perceber tantagente chegando à sua pequena vila? Ou a forma como via as pessoas, já as assustava?Na porta da igreja, antes mesmo de começarem as missas dominicais, já havia genteesperando pelo padre Stefanello. Todo domingo era assim. O fato que assustava é que"chegava romeiro dentro de um caminhão, assim, acorrentado. Espera lá!!! Coisa fora desérie. Acorrentado e ele dava a benção e saía andando" (Sr. José). Ou, como disse DonaSanta, "tinha gente que vinha numa cama".O fato de ver os doentes acorrerem a Stefanello era algo que sensibilizava a comunidade.Os moradores vinham até a igreja para assistir, para ver o que o padre faria com osdoentes. Sempre havia uma novidade para ser contada, se você fizesse parte e estivesseatento aos fatos da vida da colônia. Descrever essas "reuniões" dos finais de semana emCascalho parece bastante difícil para quem não presenciou. Mas, para quem assistiutudo, o que é que tinha?

Eu assisti ele. Ele dava a bênção e rezava. E, às vezes,vinham gente com caminhão trazer gente amarrado.Tinha exorcismos, tinha espírito, tinha não sei o quê,traziam aqui. Aqui fazia fila. Cascalho era, NossaSenhora!!! Era uma reuniões todo sábado e domingo

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que o senhor não podia ir, que tava cheio de gente (Sr.Guilherme).

O que aconteceu naqueles tempos é ainda hoje um elemento identificador e quepermanece no tempo. As pessoas de Cascalho, quando viajam, ainda podem encontraroutras que dizem: "-Ah, você é daquele lugar que tinha o padre exorcista". Cascalho vê-se ligada ao padre que benze e, por outro lado, as pessoas de outras localidades podemigualmente se reconhecer porque, de algum modo, se sentem pertencentes ao lugar, porterem recebido dali alguma graça. É Dona Emília que disse :

Ele tinha muita fama longe, viu. Até hoje tem genteque pergunta se eu sou daquele lugar que moravaaquele padre que dava aquela benção. Até hoje,quando eu vou lá em Lindóia, tem gente de longe, quepergunta: a senhora mora onde morava aquele padreque dava a bênção? Esses antigos ainda lembra, né?

"Morar no mesmo lugar que o padre que dava a bênção" é habitar um lugar já conhecido.É um passo para uma relação amistosa com o outro que antes era, para mim, umdesconhecido. Esse "lugar" é especial. O elo invade o tempo, faz com que sua famaperdure até no tempo que se chama hoje. E isso é importante do ponto de vista dosmoradores de Cascalho. Já pensou quem foi esse padre? Tão famoso que até agora hápessoas que não o esquecem. Torna-se motivo de admiração se os mais velhos, dascidades circunvizinhas, não tiverem ainda ouvido falar de Stefanello.No frontispício da igreja há uma alusão aos viajantes, aos peregrinos e a todos os quepassam por Cascalho. É um alerta. É um pedido. É uma lembrança de que aquele "lugar"pertence a todos. Há a seguinte inscrição latina: "Siste viator et ora Mariam", ou seja,viajante pare e ore a Maria. Segundo a tradição, Maria é a Nova Eva, aquela que venceuo tentador, e que ficou para esmagar a cabeça da serpente, para proteger os novos filhosde Deus. Os viajantes em Cascalho eram encomendados a Virgem Maria, no título deAssunta ao céu. Nesta frase temos um pouco da auto compreensão da comunidade deCascalho: é um lugar de passagem e oração.Muitos eram os que passavam e paravam ali para se libertarem. Para Dona Rosa, ficoumarcado o dia em que ela estava na frente da igreja e chegou um homem, em cima deum caminhão, e outros cinco homens tentando segurá-lo. Ele queria pular do caminhão.Quase que cinco homens não foram capazes de segurá-lo. Depois do encontro comStefanello, que chegou e foi mandando tirar as mãos de cima do doente, o homem ficoubom e ele mesmo disse ao padre: "-olha, eu tô bom, padre. Agora eu tô bom". E o padreperguntou: "- E primeiro o que você tinha?". E ele respondeu: "-Ah, eu não sei o que eutinha, eu não queria obedecer a ninguém, eu acho que eu não tava bom, não". ParaDona Rosa, a teimosia daquele homem, é indicação de que há algo que não está bem,pois o desobediente por excelência é o diabo. Ninguém mais é capaz de segurar. Nãoadianta a força dos homens, precisa de um outro poder aí.Ao terminar de contar o caso, Dona Rosa fez uma pequena pausa e interrogou-me: "-Você nunca soube?". A pergunta foi feita com um certo espanto, supondo que ointerlocutor, por ser do próprio município de Cordeirópolis, deveria ter conhecimento dosfatos de Cascalho, pelo menos de algumas histórias. Era impossível não saber, pois todomundo sabe, até mesmo aqueles que são "de longe". Como é que "alguém", aqui dolugar, não ouviu nunca ninguém contar? Um acontecimento desses é grande. Não saberé como não pertencer ao grupo. Esse acontecimento passou a fazer parte das tradiçõesdas famílias do bairro e de todos os descendentes de italianos.De qualquer forma, para todos, a sensação de que estavam diante de algo que nãodavam conta de explicar era evidente. A sensação de que no horizonte da história deCascalho entram outras pessoas, que buscavam um bem para a sua vida e que pareciamver surgir na peregrinação a Cascalho uma certa resposta, fez quebrar a rotina dasfamílias do lugar. Os doentes eram trazidos por suas famílias e seus conhecidos. Mas,nessas pessoas, advertia-se a presença de um intruso.

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Para os de Cascalho é fácil descrever quais as características mais evidentes desseintruso que tomava as pessoas. Como nos falava Dona Rosa, "ele não queria obedecer".Era, portanto, desobediente.Mesmo diante do padre e das orações que ele fazia, o demônio recusava sair, persistindona desobediência: "Meu sogro que viu o padre Luis dar a bênção, tirar o espírito dessagente que vinha e que tinha demônio. Coisa horrível. Não queria sair" (Dona Aparecida).Além disso, o demônio deixava a pessoa ruim:

É veio um moço do Paraná que vivia sempre doente.Achava que ele tinha um espírito mal e coisa e outra. Eficou morando bastante anos com o padre Luis. Depois,quando o padre Luis foi embora, eu acho que ele foimorrer lá no Paraná. Eu sei que ele morou bastanteanos aí, com ele. De vez em quando ele ficava ruim,esse moço. Eu sei que o padre Luis dava a bençãonele, mas nem assim. De vez em quando ele ficavaruim (Dona Rosa).

O laço estabelecido com "os que vinham de longe" tornava-se mais forte. A necessidadede ver o demônio vencido, fez com que Stefanello trouxesse esse moço para viver comele e, assim, tentar curá-lo. Esse jovem visitou pelo menos umas três vezes Cascalho,sendo apresentado pelos seus pais. Era "curado", mas depois voltava a sofrer suascrises. Até que Stefanello resolveu deixá-lo morar consigo, na casa canônica. Inclusivedona Yolanda lembra que, uma vez, teve de cozinhar para o padre, pois a empregadatinha viajado e acabou ficando sozinha na casa com esse moço, um tal de Alexandre. Umdia, ele aproximou-se dela e disse: "- Hoje eu não tô bom, viu?". Bastou falar isso paradona Yolanda deixar de cozinhar na canônica. Não se arriscava, porque pressentia queaquilo não era só doença, o moço podia estar com algum espírito demoníaco.Aliás, é muito comum você ouvir esse tipo de história, um pouco tensa, cheia de receios,produzindo nos ouvintes um certo temor, e que revela a "anarquia" instaurada pelapresença desse intruso, que, por vezes, adquiria a fisionomia animal. A animalidade era ooutro rosto do demônio. Não era mais o homem, era um animal que aparecia:

Uma vez, veio um homem arrastado. Assim, como umacobra. Eu tava no banco, assim na beirada, então veioperto e eu comecei a ficar com medo. E então, eu faleipra minha cunhada: "- meu Deus, o homem ta aqui e oquê que eu faço". E aí, o padre viu que tudo tinhamedo, então ele falou assim: "-me pega esse homem eleva pra fora. Só 1 hora eu dou a bênção". E aí, 1 horaele deu a bênção. E ele, depois, tirou o espírito dohomem. Fazia seis meses que andava de arrasto, porcausa de uma moça. Diz que ele largou dela e ela fezmal pra ele não andar mais.(Dona Augusta).

É natural que um homem que venha arrastando-se como uma cobra cause medo. Omedo era vencido pela intervenção de Stefanello. O padre enfrentava o mal. E a que malestava submetido esse homem? Parece ser um mal feito por alguém: "-andava dearrasto por causa de uma moça". E esse era um dos problemas mais comuns queStefanello enfrentava com aqueles que iam implorar sua bênção: que retirasse o mau-olhado, o mau desejado por outrem que acarretava dificuldades no cotidiano. Ainda DonaAugusta conta-nos o caso do marido que levou sua mulher, a qual - "sem juízo nenhum",tomada por um espírito - parecia um macaco:

E depois, o homem levou embora a mulher. Ela tinhacinco filhos. Dizia que ela subia em árvore. Lá emCascalho, ela subia em árvore, parecia um macaco. Jápensou uma mulher subir em árvore? Pra ver que nãotem juízo nenhum. Ele falou que tinha ainda cinco

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filhos em casa. Ele chorava. Parece que eu tô vendo,viu. Eu fui assistir muito espírito, e às vezes, vinhaquando nós estávamos na missa. Então, eles entravamna igreja e a gente via.

Esses espíritos entravam na igreja e ficavam ali. Segundo Dona Augusta, junto com aspessoas doentes havia os espíritos que as possuíam. Ela viu um mudo que o padre curou.A família dizia ao padre que ele tinha ficado mudo depois que havia largado de umamoça. A explicação dada é a de que a moça tinha feito ele ficar mudo. Com tudo o querepresentava coisas mal feitas por um outro, como no caso de um mau-olhado, defeitiçaria, de encosto, de bruxaria etc, o padre conseguia lidar com facilidade. Mas, osque apresentam maior dificuldade eram os que procuravam anteriormente um auxílioindevido, por exemplo, ficava mais difícil livrar uma pessoa que antes já tivesse passadopor uma sessão espírita. Neste sentido Stefanello observava estritamente o que o próprioRitual Romano recomendava a respeito dos espíritos demoníacos: "Alguns mostram ummalefício feito e por quem foi feito, como também o modo como deve ser retirado: paraisso porém, não deve-se recorrer a magos, ou a feiticeiras ou a outros como ministros daigreja, ou outra superstição, ou qualquer modo ilícito"(2).O demônio ficava ali na igreja. Vinha até à missa, como quando, conta-nos a tradição,em redor dos mosteiros, havia uma multidão de demônios esperando qualquer vacilaçãopor parte dos monges. Eles são atraídos também pela força da oração e querem mesmoenganar os que são firmes na fé.Stefanello, porém, nunca desistiu de lutar. Ele era mesmo fascinado, em certo sentido,pelo enfrentamento com o demônio. Sobre isso nos informa um outro sacerdote,chamado Pe. Frederico, quetinha muitas ligações com o Pe. Stefanello, no tempo em queeste estava vivendo em Águas de Santa Bárbara. O sacerdote procurou Stefanellotambém motivado por sua fama e queria aprender as técnicas para abençoar as pessoas,mas sua decepção foi constatar que para Stefanello tudo era explicado pelo demônio.Esse sacerdote dizia que o padre Stefanello tinha uma energia enorme, e que, mexendoum pêndulo, ao falar o nome do padre Luis Stefanello, o pêndulo em suas mãos giravapara cima, com uma força tão incrível, que chegava mesmo a doer-lhe o braço.Confidenciou ainda que muitas das mulheres que foram limpar o quarto do padre, apósseu enterro, se sentiram mal e desmaiaram, tamanha era ainda a força de sua presença.Uma das primeiras lutas que o demônio travou com Stefanello foi aquela dos quatorzeespíritos que dominavam duas moças. Foi uma luta tremenda. Os demônios subiam pelaparede da igreja:

Então, a primeira vez que tirou, que veio ali, foi umasmoças do Coletta, duas irmãs que moravam emAraras. Diz que elas tinham 7 espíritos cada uma. Elasvieram aí 7 noites. Toda a noite enchia a igreja degente, porque a primeira vez, elas "trepavam" praparede. Até na parede. Mas eram... pra ele difícil, elemolhava a camisa. Ele trocava, ele molhava de novo.Ele lutou tanto, mas tanto pra tirar" (Dona Emília).

Como considerar esses acontecimentos? Parecem mesmo mostrar uma luta, envolvendoas pessoas, e exigindo por parte do exorcista um trabalho. Qual era a fisionomia dopadre cheio de poder, do padre exorcista de Cascalho? Certamente era a de um homemque trabalhava, que lutava, que rezava, que pedia a Deus para ajudar a tirar o espíritoque tomava a pessoa. Por outro lado, como vemos nessa luta com os 14 espíritos, eraalgo que exigia suor do seu rosto, tinha até de trocar de roupa, chegava a molhar acamisa. Não era uma luta solitária. Ele convocava os que estavam na igreja para ajudá-lo, deviam manter-se de joelhos e rezando. O padre não só contava com a sua força paratirar os espíritos, mas necessitava da ajuda da comunidade para que Deus seconvencesse a intervir. Assim, contou dona Augusta: "-ele, quando tirava o espíritoassim, ele mandava todo mundo se ajoelhar e rezar, pra pedir a Deus pra ajudar a tirar".

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Para dona Augusta contam os fatos: um mudo que recuperou a fala e até cego que saiudaqui enxergando.Cascalho era um lugar encantado, cheio de espíritos, de demônios que rondavam aigreja, de pessoas doentes, cuja presença, aos olhos dos cascalhenses, ia tornando-sequase normal. A rotina de trabalho era quebrada pelo movimento de romeiros queesperavam a missa e a bênção dada nas tardes de domingo. Entretanto, não era tãotranqüilo ir à missa. Por vezes, durante a celebração, é que os espíritos semanifestavam. Difícil era escolher o lugar certo para se assentar, pois era possível estarbem ao lado do inimigo. Era necessário estar preparado para o susto. Contudo, sempreque os espíritos se manifestavam, o padre começava o trabalho, pedindo para quelevassem as pessoas à frente, para perto do altar. A bênção é um dos primeirostrabalhos do exorcista:

E daí, quando a gente tava na igreja e, às vezes, quasesó tinha gente de fora. Mas, na segunda missa, játinha mais gente, quase só gente de fora, porque vinhatomar a bênção. Então, às vezes, a gente tava assim enão sabia o que tinham, porque estavam quietos;quando o padre dava a bênção, começavam a levantare gritar. E a gente se assustava, ficava com medo. Jáque a gente sentava no banco, já via, tinha genteperto, já ficava com medo, porque vamos que tá comalguma coisa e a gente não sabe né? E a gente ficavacom medo, mas ele não fazia nada pra gente, né? Edepois, o padre mandava levar lá, e daí eles iam lá nafrente e ele trabalhava, até que tirava" (Dona Emília).

Nessa hora, em que Stefanello trabalhava com o espírito, a orientação aos coroinhas eraque ficassem atrás dele, que não se atrevessem a ficar perto de quem estava dominadopelo demônio. Ninguém podia colocar a mão. O momento era delicado. Assim é descritopor Dona Aparecida:

O padre gritava, batia, xingava: "-Você não vai sair?" eo padre perguntava o porquê. E ele respondia: "-Não,porque eu tô bem aqui". Dá medo, viu? Dava medo dever. Mas tirava. Gritava, batia, mas a pessoa nãosentia nada, não sentia nada.

Mas a pergunta que resta é: se a pessoa sobre quem Stefanello trabalhava não sentianada, então, sobre quem recaia os efeitos de toda essa luta? Assim responde DonaSanta:

Claro que ele batia. Ele batia, mas diz que o corpo dapessoa não sentia nada, porque ele tava batendo nodemônio. Era o demônio que tava sentindo. Ele tinhaum poder que só vendo. Todos os padres têm essepoder, só que precisa ter força. E ele tirava mesmo,mas vinha gente de longe, e ele curava.

E que instrumentos ele utilizava para lutar com o demônio? Quem responde é DonaRosa:

O crucifixo era grande, e ele dizia: "-Eu te bato com ocrucifixo se você não vai embora dessa pessoa aí".Então, disse que saía desse homem um espírito, masninguém de nós via, mas ele, eu acho que via. E aí, eledava a bênção, tudo, em nome de Jesus, e tudoficavam bom.

Não apenas o crucifixo, mas, "dizem os moradores", o padre tomava o asperge dacaldeira de água benta e ia em cima da pessoa com toda a força. Era uma verdadeiraluta, mas só o demônio é que apanhava. Depois dos golpes recebidos, ao contrário, do

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que se pensa, a pessoa dizia que estava sentindo-se muito bem. O espírito finalmente ahavia deixado em paz.Como podemos perceber pelos relatos, a prática de expulsar o mal em Cascalho, seguiaum certo ritual que os moradores conseguiram nos descrever:

(...) o crucifixo, a água benta, e jogava em cima dapessoa que estava... às vezes, ele começava a falar, àsvezes uma pessoa lá do fundo (da igreja) tambémficava ruim, então vinha na frente. O padre dava abênção, com crucifixo e a água benta, e melhorava(Dona Yolanda).

E quanto ao poder da água benta? "A água benta queimava que nem brasa pra ele, prodiabo. A água benta queimava" (Sr. Paulo). Imaginemos o quanto sofria esse pobre"diabo" nas mãos de Stefanello: a água benta era como uma água fervente que caiasobre o corpo, mais; os golpes com o crucifixo e o hissope; depois as orações e aspalavras de ordem para que o espírito se retirasse. Na verdade, como disse o Sr. José:"A água benta pr'aquele que tem o espírito no corpo, o mal, ele não quer saber da águabenta. Joga água benta ele encolhe, né?". A água benta tornava-se o sinal mais terrível,porque diante dela o espírito do mal tendia a recuar.As pessoas possuídas não ficavam passivas. Havia reações fortíssimas: gritavam,xingavam, encolhiam-se, queriam fugir, subiam pelas paredes, recusavam-se a ver ocrucifixo e a escutar as orações. Vejamos no relato de Dona Santa como se dá a reaçãodo possuído. No início a agressividade. Em seguida, a ação do padre. Finalmente, osgestos leves de quem se recuperou:

Ele ia com o crucifixo na frente dele, né? E a pessoaque tava com o demônio não queria ver, não querianem ver. Ela se jogava. Ele precisava de dois a trêshomens para segurar ele, a pessoa que tava com oespírito, e daí o padre ia falando, falando, dando abênção e falando. Aí, começava a bater, bater, bater,até que o espírito saía e ele ficava bom. A pessoaficava boa. Beijava a mão do padre. Aí, o padre falava:"-pode levar, tá bom". Olha que coisa, não? Eu vibastante disso. Ia de monte lá em Cascalho.

Por outro lado, o mal poderia possuir a pessoa não só pela ação direta dos espíritosdemoníacos, mas seria provocado pelo feitiço, mau olhado e inveja das pessoas, ouainda, ser ingerido por meio dos alimentos. Para os de Cascalho, quando se come, é maisdifícil de livrar-se do mal. Por isso, quando os entrevistados se referiam ao jovemAlexandre, que vivia com Stefanello, explicavam a dificuldade de curá-lo pelo fato deleter ingerido o mal por meio de uma fruta:

Mas fizeram mal pra ele numa fruta... Tem negócio denamoro... Ele comeu. Então, aquilo, cada vez que opadre tirava o espírito, ele vomitava aquilo, mas elenão largava dele, porque ele comeu aquele mal e,comendo, é mais difícil de livrar. Então, ele vomitava,coisava, depois ia embora, depois voltava de novo(Dona Emília).

Algumas pessoas da colônia não acreditavam naquilo que Stefanello realizava. E como opadre não conseguia curar o Alexandre, reforçava-se a tese (para os opositores) de quenão era mesmo o demônio, mas uma doença, que o moço era um epilético. Já paraoutros, como Dona Emília, a cura não vinha porque era difícil livrar-se do mal que secome; desse modo, de forma alguma, tal fato estaria ligado a um fracasso do padre.O fato de muitas pessoas ficarem boas depois do encontro com Stefanello, é que levavaa maioria dos cascalhenses a acreditar no seu poder. Ser testemunha do que aconteceu ea convivência com Stefanello, é que fazem com que muitos não duvidem do seu poder:

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"Ah, eu acredito, né? Porque eu via as pessoas ficar bem melhor, muita gente doenteficavam boas, e eu era nova, mas eu acredito. E depois, ele fez o meu casamentotambém. Ele ficou aqui 42 anos, o padre Luis" (Dona Rosa).Por conseguinte, aquelas pessoas que conseguiam livrar-se do mal e do demônio,tornavam-se gratas. O dinheiro para construir a igreja nova, por exemplo, vinha dessagratidão:

Aqueles que tava livre, não dá um dinheiro? O negócioassim de fazer a igreja, a questão do dinheiro: ah, sefosse só o pessoal de Cascalho, ele (o padre) não fazia,não. Vê lá. É tudo gente que vinha aí. Chegava lá detarde, a bandeja enchia. Colocavam lá. Todo mundo iapondo lá (Dona Emília).

Ao lado do trabalho de luta de Stefanello com o demônio, foi se estabelecendo toda umaeconomia,tanto para a igreja, como, para os próprios moradores da colônia. É o caso dosque preparavam o almoço para os que vinham, como o bar na frente da igreja: "E oRosolem fazia almoço pra turma que vinha. Ele tinha que nem um bar. Ele tinha sempreaquele bar e ele servia almoço e janta pra turma" (Sr. Guilherme). Por outro lado, comonão se lembrar do Hotel "Viaduto", que recebia os peregrinos que vinham buscar oauxílio do Padre Luis. Além disso, havia o movimento dos carros de praça, que levavamas pessoas de Cordeirópolis a Cascalho: "Em Cordeirópolis, tinha os automóveis, quetinha aquele Rocha e o Romano. Eles viviam só de trazer gente aqui. Traziam aqui, emCascalho, pro padre dar a bênção" (Sr. Guilherme).O padre Stefanello, com o seu talento pessoal, com sua força extraordinária e carisma,atraía multidões a seu redor. Essa fama trazia muitas tentações, e o padre reconheciaque o demônio podia aproveitar-se dessas ocasiões para tentar confundi-lo. O povo deCascalho sabia que, quando o padre ficava nervoso, ou soltava algumas palavrasindiscretas no sermão, ou se chateava com alguém, não era ele que estava agindo, maso tentador: "... a minha mãe falava: '- acho que não era ele que fazia, acho que ele eramuito atentado. Porque ele tirava os espíritos, eu acho que o demônio tentava ele. Elemesmo falava que ele era muito tentado pelo demônio" (Dona Santa).Com um último relato, pode-se resumir todo o caminho percorrido juntamente com opovo de Cascalho descrevendo o poderoso padre Luis Stefanello. Neste último trecho,Dona Santa fala das pessoas doentes que eram levadas à presença de Stefanello, darealidade do demônio, do poder do exorcista e das tentações que ele sofre:

Ah, eu lembro de uma nora desse Coletta, que morreu.Ela vinha na missa e ficava ruim na igreja, então elagritava, mas gritava... Ai, pegava, levava ela pra fora,levava embora e, quando era no outro dia, levava elapro padre dar a bênção. O padre benzia e ela ficavaboa. É, ele tinha poder. Diz que tem o demônio. Mastem mesmo o demônio, viu. E os padres são os maisperseguidos, são os mais tentados. Ele mesmo falava:"-nós, padres, somos mais tentados". A tentação nãofalta.

Discussão dos resultados

A potênciaComo não ficar surpreendido com a experiência da comunidade frente ao padre que paraeles é tão poderoso? Como pode uma pessoa abrir o horizonte de significado para osacontecimentos do modo como fez Stefanello? Pela interpretação da comunidade,percebe-se que isso só é possível na medida em que se está diante de alguém que foitomado por uma potência superior e utiliza esse poder em favor dos que o procuram.

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Foi van der Leeuw (1992) quem, na sua obra Fenomenologia da Religião, mostrou adinâmica da potência na experiência religiosa. Nessa obra, ele descreve, compreende einterpreta as ações e os relacionamentos que se formam entre o homem e a potênciareligiosa. Segundo van der Leeuw, a religião define-se como este grande encontro entreo ser humano, na sua imanência, e alguma coisa que tem uma proveniência misteriosa.Trata-se do fenômeno religioso. Portanto, para van der Leeuw, em todas as religiõespode-se verificar esse fenômeno no qual "alguma coisa" vem ao encontro do homem. Eesta "alguma coisa" permanece indeterminada exatamente porque assume umadeterminação particular de acordo com as características próprias de cada religião.Contudo, esta "coisa" não será jamais conhecida peloser humano de maneira total,porque é exatamente "alguma coisa" que o transcende. É o encontro com "alguma coisa"que não deriva do ser humano e que não se pode reduzir em termos humanos. O grandedesafio que assume van der Leeuw é o de mostrar que no fenômeno religioso, se nós oexaminamos com atenção, aparece a relação entre um sujeito humano e um objeto quevem ao seu encontro e que é totalmente estranho, grande, misterioso. O homemencontra "alguma coisa" de extraordinário. Ele utiliza, como já se disse, a categoria depotência que, do ponto de vista humano e em senso religioso profundo, orienta a vidareligiosa, de maneira que o homem se confia a quem é potente e que pode ajudá-lo nosdois níveis: seja no imanente, seja no da transcendência. As suas reflexões iluminam osdados expostos acima, bem como, oferecem quadros mais amplos para entender toda aação de Stefanello. Segundo van der Leeuw, a experiência religiosa caracteriza-se pelabusca de algo infinito, maior e potente que explique a vida:

A religião implica que o homem não se limite a aceitara vida que lhe é dada. Na vida, ele procura potência.Se não a encontrar, ou a encontrar numa medida paraele insuficiente, ele tenta fazer penetrar em sua vida apotência na qual ele acredita, busca enaltecer sua vida,fazê-la crescer, conquistar um sentido mais profundo eamplo. Neste sentido, a religião é a ampliação da vidaaté o limite máximo. O homem religioso deseja umavida mais rica, mais profunda, mais ampla, desejapotência (...). O homem que não somente aceita avida, mas pede algo dela - a potência -, busca atotalidade significativa: assim nasce a civilização.Assim, o homem transforma a pedra numa estátua, oimpulso em mandamento, a solidão da selva numcampo. Desse modo, ele manifesta potência. Mas ohomem não pára: persiste em buscar um sentido cadavez mais profundo e abrangente, cada vez mais além(1992, p. 536).

Na abordagem fenomenológica de van der Leeuw (1992), essa busca pela vida sacra,cheia de potência, é garantida ao homem pelo rito, no qual procura a própria salvação.Por meio do rito, o homem encontra um auxílio à sua fragilidade e suplica para que hajaum acréscimo de força para a vida. Nos ritos de passagem - batismo, matrimônio,exorcismo - a vida é tocada por uma potência e volta-se para ela (3). A dinâmica é ir aoencontro de um poder que supere o próprio homem. O sacerdote, o curador, otaumaturgo e o rei, carregam essa potência e podem transmiti-la. Desse modo, a vidahumana, na sua relação com a potência, não é, em principio, vida individual, é a vida dacomunidade.A potência de que fala van der Leeuw (1992) não se refere a algo sobrenatural, e sim aalgo extraordinário, diverso. Se analisamos as religiões primitivas, perceberemos que ascoisas mais simples têm uma potencialidade: uma pedra, uma cadeira, um cajado, etc. Omesmo dá-se com a água benta utilizada nas bênçãos para os doentes. É sinal contra asinfluências nefastas, preserva da ação do demônio, afasta fantasmas, sara as doenças,

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protege a entrada e a saída. Em síntese, a água potente ajuda o homem a superar omomento critico que vive, neutralizando a potência perturbadora (no caso, o demônio),assegurando um andamento tranqüilo da vida.Além disso, a potência faz aparecer na alma humana um certo receio ou temor. Esteproduz certas reações, tais como o medo, o respeito, a humildade e tantas outras. Apessoa nem mesmo se atreve a falar do sujeito de tal poder ou chegar perto dele a fimde criar certa familiaridade. Para van der Leeuw (1992), não há religião sem medo, comonão existe religião sem amor. O temor faz emergir na vida da pessoa o movimento derepulsa e, ao mesmo tempo, de atração.Outro elemento não menos importante é a palavra daquele que representa essapotência. A potência impele a falar, e a palavra por ele pronunciada tem comoconseqüência trazer a salvação. A palavra do padre cheio de poder, em Cascalho, éobjeto de muita atenção. Por sua palavra e ação as coisas se transformam. A sua palavraou mensagem é carregada de potência (4). No domínio dos poderes malignos, a palavratem o poder de expulsar o espírito mal. Por fim, percebemos nitidamente a função demediador que Stefanello exerce, garantindo assim o contato entre a potência e o homem.O mediador dá a própria vida neste trabalho. Todavia, o que não podemos determinaraqui é a intensidade da experiência vivida pelas pessoas no contato com Stefanello. Essaexperiência é profundamente religiosa, é um acontecimento. Os fenômenos externos têmum elemento objetivo que podemos alcançar. Mas a experiência vivida não éinteiramente acessível. Se pensarmos, por exemplo, em Dona Vitória dizendo queCascalho está linda porque o padre Stefanello zela ainda pelo lugar, estamos no nível deuma experiência pessoal que reconhece no padre um poder de tornar o lugar bonito, maso que se mostra a nós é apenas uma parte opaca de um acontecimento ainda maior, deprofundo significado para os moradores. Segundo van der Leeuw (1992): "a experiênciareligiosa vivida é de natureza escatológica, supera a si mesma (...), resta assim umresíduo, incompreensível como princípio, mas no qual a religião vê a condição para a suaprópria compreensão" (p. 359).

O mal e a curaMas é necessário ainda refletir sobre o problema do mal. Por isso, parece importanteconsiderar essa questão a partir das provocações que faz Ricoeur (1988), para quem omal é antes de tudo uma problemática que diz respeito à liberdade humana. Ele dizrespeito ao ser responsável. Por isso, o homem é chamado à missão de combater eenfrentar o mal. Para Ricoeur, a ordem da ação é aquela que impõe uma nova perguntaao problema do mal, deslocando a preocupação do plano especulativo para o prático, noqual caberia a pergunta: "que fazer contra o mal?". Diz Ricoeur:"pela ação, o mal é antesde tudo o que não deveria ser, mas deve ser combatido" (p. 48). O homem, portanto,tem uma tarefa frente ao mal: combatê-lo. Pode parecer que por meio disso o homem seesqueça de todo o sofrimento que o mal traz; contudo, o contrário é verdadeiro: ele sedá conta mais nitidamente que todo mal cometido a um ser humano é um mal que umoutro sofre. Pela ação, o homem percebe o sofrimento, porém, ele entende que podefazer diminuir o grau de violência e diminuir assim o sofrimento no mundo. Não se tratade evidenciar uma perfeição de uma ordem, com se apresenta em muitas filosofias, masde mostrar que no humano há uma liberdade que combate e que subsiste mesmo diantedas derrotas. A resposta prática, da ordem que chamamos ética, é na verdade de umâmbito diverso no qual o homem empreende um caminho de repulsa a um debate quereste apenas no plano especulativo. No nível ético aparecem as questões que vão desdea acusação de Deus até as interrogações sobre a origem demoníaca do mal no próprioDeus. Tal perspectiva prática nos faz perceber que há espaço de atuação ética e políticano combate do mal.Podemos exemplificar utilizando-nos de um relato feito pelo próprio Stefanello. Este é oúnico manuscrito em que Stefanello fala de sua forma de relacionar-se com o mal e, doseu combate e em que revela a busca por entender de onde vem o mal. Esta pergunta

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faz com que ele busque respostas. A carta é endereçada ao Padre Faustino Consoni,Superior Provincial dos Padres Escalabrinianos, datada de 22 de março de 1916, noquinto ano de sua estadia em Cascalho:

Caríssimo Pe. Faustino,Fiquei muito contente com a sua tão esperada carta.Há pouco tempo aconteceu o fato, me chamaram eimediatamente percebi que era de duvidar, mas acoisa, ao contrário era. Revelaram-se coisas que eununca havia pensado, por exemplo, que um tal hároubado e como fez e porque, quem ficou e comofizeram para fazer o mal e tantas outras coisas de nãose dizer. Diante disto chamei o Pe. Enrico que veio eimediatamente disse que era possuído pelo demônio,então eu deveria ir ao Bispo lhe contar tudo, para queme desse a permissão, e também a Vossa Revma. e aoPe. Enrico, que vem terça-feira, que esperava VossaRevma. começar às duas e o Pe. Enrico que ficou atéas três, me disse para continuar e que fizesse até asoito. Fez tantos movimentos e gritos de fino assobioque eu quase não podia resistir, mas com confiança nocrucifixo continuei por seis horas, fazendo sempreaqueles sinais como indicados no ritual, todavia ficoumais quieto, porém esta manhã não queria vir a Igreja,fugiram da casa e pela estrada quase o pegaram.Caríssimo Padre Faustino, eu rezo ao Senhor dia enoite e procuro que todos rezem, talvez seja como oSenhor que, para expulsar certos demônios, é precisoa oração e o jejum, por isso me recomendo às suasorações e faça rezar. Seguro desta tão grandecaridade, o agradeço, não sei mais o que lhe dizer.Receba minhas saudações e com toda a estima ehumildade lhe beijo a sagrada mão e (...) humildefilho,

Pe. Luis Stefanello" (Doc. 403, do Arquivo Geral daCongregação Escalabriniana).

Nesse relato alguns elementos merecem destaque. Aqui temos um dos primeiros casoscom que se defronta Stefanello. Ele está diante de uma situação nova. Por isso, o padrepede ajuda a um outro sacerdote amigo, para que possa discernir do que se tratava. Opadre amigo sugere ser um caso típico de possessão demoníaca (5), além disso, pedeque ele consulte o bispo a fim de que possa certificar-se de que seja mesmo um caso deexorcismo (6). O bispo dá a concessão a outros sacerdotes que estão próximos aStefanello para que realizem o exorcismo. A luta contra o mal não é uma batalha que seenfrenta solitariamente, mas é um compromisso que se assume com toda a Igreja. AIgreja toda sente-se convocada a combater o mal e, por isso, é uma ação comunitária.A carta indica que o padre faz uso de algum objeto, tal como o crucifixo, além dissoutilizou algumas orações que estavam indicadas no Ritual. No que diz respeito àdescrição do sujeito que estava sendo exorcizado, vemos a menção de que fazia diversos"movimentos e gritos". Na carta, porém, não encontramos a menção de nenhum tipo dedoença. Há indicações de que o fenômeno deveria ser tratado como uma possessão doespírito do mal sobre a pessoa.Esta carta, por outro lado, ajuda a perceber o quanto Stefanello estava interessado emaprender o método para combater o mal. Certamente ele é movido por um desejo debem. O bem é justamente a necessidade de sair de si-mesmo direcionando nossa energiapara um outro diverso de nós. Stefanello não mede esforços para compreender o

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fenômeno. Reconhece que precisa de ajuda e pede conselhos, indicando que suaresposta frente ao mal é dada dentro de um contexto maior: o contexto da comunidade aque pertence.O documento apresentado converge com o que foi dito pelas entrevistas e nos dá o sinalda atividade exorcística de Stefanello. Essa carta apresenta-nos sua procura para agireticamente contra o mal, movido por um desejo do que fazer contra ele. A atividade deStefanello vai ser sinal de uma luta contra as forças sobrenaturais, e isto vai representarpara a comunidade e para os que o procuram uma oportunidade para a libertação e acura. O povo de Cascalho e, sobretudo, os que vêm de fora à procura de sua bênção,passam a reconhecer que, por meio daquele gesto ritual, uma outra realidade chega a seinstaurar na sua vida: a realidade da saúde, a cura, a resposta para o mal.A pergunta já não é "de onde vem o mal?", mas passa para outro nível, que Ricoeur(1988) chama do "nível da ação prática". O que se pode fazer para diminuir a taxa desofrimento? Só pela ação. É o agir responsável que faz diminuir as violências no mundo etransformar os homens em protagonistas da história. Neste nível é que Stefanello atua.Em Cascalho, as histórias que o povo conta são as mais diversas: pessoas acorrentadas,outras que subiam pelas paredes do templo, outras ainda que rastejavam, outras quegritavam, doentes de todos os tipos e uma diversidade de casos que atingemsingularmente cada família que se põe a relatar. Para o padre Stefanello, é o demônio oautor de todo esse mal, por isso, como recomenda a Igreja é preciso exorcizá-lo, entrarem combate.O homem não pode viver sem suas construções simbólicas. Ele sente-se fragilizadoquando não encontra os referenciais de apoio. O mundo humano é frágil, e qualqueracontecimento que coloque em xeque sua unidade é motivo de angústia e tornaintolerável o caminho. O mal e a morte parecem ser um único elemento, que coloca ohomem em crise frente a seu projeto existencial. Por isso, são necessários processos delegitimação que passam sobretudo e principalmente pela religião. O processo ritual paraexorcizar o mal aparece como uma forma de dominar o caos e, portanto, de reduzir aimpotência do ser humano.Segundo nos dizem os moradores de Cascalho, o padre Stefanello tinha consciência deque mal nenhum tem o poder de mando. O mal não manda. O que conta, de fato, é odesejo de salvar a pessoa. Um exemplo disso é o caso que mostramos aqui, doAlexandre, que o padre trouxe para morar com ele e que tinha muitos problemas desaúde. O padre coloca esse doente - que ele acreditava estar possuído pelo demônio -na sua própria casa. Muitos o criticam por esse gesto, ao que Stefanello respondia: "-Vocês não tem dó de ninguém. Eu quero salvar. É o demônio que manda no cristão? Euquero salvar essa pessoa" (Sr. Paulo). A qualidade de bondade e a capacidade desacrifício que se reconhecem em Stefanello têm uma função terapêutica, uma vez que "abondade funciona como um pólo do sagrado que, por si só, mantem afastado o seu pólooposto: a maldade" (Quintana, 1999, p. 176).O caso do Alexandre é curioso e paradigmático, desde o fato de morar com o padre até acontrovérsia sobre sua doença. Todos os entrevistados falam do Alexandre. Algunspreferem dizer que se tratava de um epilético. Outros - a maioria - aceitam aquilo que opadre dizia: que era um espírito maligno que prejudicava a vida desse moço. Interessa-nos mostrar como, na perspectiva dos moradores de Cascalho, o gesto de acolhida e atentativa de ser uma resposta para o caso foi decisivo para Stefanello.Qual era o mal que acometia o Alexandre? Para o Sr. Fausto Stefanello - sobrinho dopadre Luis - tratava-se de uma doença, mas o padre insistia em considerar como espíritomaligno:

Esse moço que tava lá junto com ele, um tal deAlexandre, que falam que ele tinha o diabo. Não tinhao diabo, não. Era epilético. Era doente da cabeça. Eradoente. Era epilético. E o padre pegou ele pra tratar

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dele: “-Não, eu vou curar, eu vou curar ele, eu voucurar ele”.

O que é certo para o sobrinho do padre é a vontade deste de curar, a determinação emquerer oferecer a cura. Porém, se de um lado há uma clara percepção de que o estadoatual do Alexandre é de uma doença, por outro lado, a forma como se conta a origemdessa doença é bastante próxima de um castigo por haver desrespeitado uma cerimôniareligiosa. É o Sr. Fausto que nos conta:

Não sei como foi descoberto. Esse tal de Alexandre, lána terra dele, lá, pra lá de Águas de Santa Bárbara, láem Avaré... teve uma procissão lá, festa de SantoAntonio, tinha umas par de rapaziada e ele também.Então, ele pegou e atravessou a procissão a cavalo.Cortou a procissão a cavalo e foi embora. Isso foi oque aconteceu. Certo? E ele daquela vez pra cá ficouruim, ficou ruim, e esse pai desse Alexandre e a mãe,e vai pra aqui e vai pra lá. E então, descobriram dessepadre Luis, que fazia a bênção, foram e foram quevieram aí. A primeira vez deu a bênção, e foramembora. Depois, na segunda vez, daí um tempo evoltaram outra vez. Foi onde que ele falou: "-Deixa eleaqui, porque eu vou dar a bênção, vou tratar e voucurar ele". Bom, não curou, não.

Mas a insistência de Stefanello por trazer um doente para perto e tratar pessoalmentedele, relatado pelos entrevistados, não pode ser vista apenas como um gesto debondade, ou como uma atitude voluntarista. O "coração de ouro" de Stefanello nãoelimina o fato dele considerar atentamente as regras indicadas pelo Ritual Romano(1880). Neste encontramos que, nos casos de possessão, o exorcista deve acompanhar ofiel, a fim de se certificar de que está realmente livre, porque o demônio é o pai damentira, e costuma proporcionar a aparência de cura e libertação, mas depois de algumtempo as crises retornam. O gesto de Stefanello pode ser entendido dentro do contextoda sétima regra do ritual (7), que diz:

Às vezes também, os demônios podem apresentaralguns obstáculos para que o enfermo não se submetaaos exorcismos, ou tentam persuadir que aenfermidade é natural; para tanto, fazem o enfermodormir durante o exorcismo e apresentam-lhe algumavisão, ocultando-se, para que o enfermo se sintalibertado (1880, p. 322).

Por outro lado, é possível considerar as semelhanças da terapêutica exorcística comoutros tipos de terapia que põem o acento na relação paciente-analista, o doente e omédico, o possesso e o exorcista. Assim, o cirurgião, o psicanalista e o exorcista,procuram de alguma forma, por meio do relacionamento próximo com o paciente, extrairo mal que o aflige. No estudo que faz Ellenberger (1994) sobre a história da psiquiatriavem sublinhado claramente como na prática exorcística há o esforço da extração doespírito que passou a habitar a pessoa, e vem indicado a parentela desta forma de "curaprimitiva" com a moderna terapia dinâmica e científica (p. 55). Quintana (1999) nos dizque esta ação (do psicanalista, do exorcista) é do mesmo teor das benzedeiras: elasprocuram recuperar uma ordem, reconstruir um sentido através do qual o cliente adquirecondições de pensar e, assim, o paciente, em interação com o terapeuta, aprende umalinguagem e, com ela, a possibilidade de representar aquilo que lhe está acontecendo.Mas, sobretudo, quando se tem diante de si uma existência psicótica (depressiva oudissociativa), é necessário que se possa testemunhar - como mostramos com Stefanello- uma capacidade humana de acolhida que passa pela fronteira da amizade. Segundo ojuízo que dá o psiquiatra italiano Eugenio Borgna (2003):

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Escutar uma pessoa, saber escutá-la com uma radicaldisponibilidade humana, significa em alguns casoscurá-la. Muitos agressivos problemas psicológicos epsicopatológicos estabilizam-se, e chegam a extinguir-se, se antes de qualquer outra coisa, consegue-setomar consciência e escutar as pessoas. Quando V. E.von Gebsattel, este grande psiquiatra alemão deintuições fulminantes, defende que não se dá relaçãoterapêutica e nem diagnóstica, em psiquiatria, que nãoseja precedida de uma simples e imediata vizinhançaentre médico e paciente, no fundo não faz senão re-sublinhar a necessidade de vir ao encontro de cadapaciente na esteira de uma atitude de acolhida e, decerto modo, de amizade (p. 176).

Segundo o depoimento do Sr. Fausto, o padre não teria conseguido curar o Alexandre.Todavia, assumindo a responsabilidade da vida dele sobre si e procurando proporcionarum ambiente em que sua doença pudesse se manifestar, Stefanello oferece um espaçoverdadeiramente terapêutico para ele. Os pais do Alexandre, ao procurarem o padre,estavam buscando a cura, alguém que pudesse tirar o mal que ele adquiriu a partirdaquele dia em que, num gesto de desrespeito, atravessou a cavalo a procissão de SantoAntônio. O que, na verdade, o Alexandre encontra é alguém que se tornou um verdadeiropai, protetor e amigo. Muitos nos relatam que o Alexandre tinha crises violentas e pordiversas vezes chegou a agredir o padre, mas este não o despedia, ao contrário,colocava-se na defesa do Alexandre e, por vezes, reagia contra aqueles que omaltratassem. Enfim, estes exemplos parecem suficientes para esclarecer a modalidadepela qual se combate o mal em Cascalho.O mal, conforme o pensamento de Ricoeur (1988), para ser entendido, exige aconvergência de pensamento, a ação e a transformação espiritual dos sentimentos. Estaúltima é o plano da lamentação e da queixa, é o do protesto contra a idéia da permissãodivina. Aqui, a pergunta diante do mal é a seguinte: até quando, Senhor? Contudo, é naconvergência de perguntas que nascem no plano emocional e dos caminhos queencontramos a nível prático que se cria o espaço para novas significações. Um espaçoque se traduz como uma procura de sentido.Verificando o livro do tombo da paróquia de Cascalho e observando os relatórios dasatividades anuais, notamos como era intensa a atividade em torno das pessoas doentes emais idosas da comunidade. De outra parte, nas entrevistas transparece o zelo com queo padre tratava alguém da família que estava doente. A seguir, o relato de DonaYolanda, mostra como que, para Stefanello, a dor - que significa sentir, sofrer junto -está muito presente frente ao mal:

Esse meu irmão mais velho, ele teve um problema decoração. Antigamente não tinha a medicina, não tinhaa experiência que tem hoje. E ele ficou doente. Eumorava em Cascalho, mas ele morava lá na fazenda. Eum dia o padre falou pro Antonio: "-Vamos visitar oArlindo, seu cunhado". O Antonio falou:"-Vamos". E eufui também, e passamos o dia lá, com o padre e meuirmão quejá tava bem ruinzinho. E depois, quando nósvinha vindo de volta, o padre falou assim: "-Por queDeus não me tira eu em vez de tirar essa criatura?". Eeu gravei aquilo, sabe? Que achou que, por ele serjovem, ele tinha vinte e seis anos, morreu jovem,jovem de tudo. E o padre falou: "-Por que Deus nãome tira eu, em vez de tirar essa criatura?". É, elegostava muito dos meus irmãos, viu.

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A frase: "Por que Deus não me tira eu, em vez de tirar essa criatura?", ficou gravadapara Dona Yolanda como manifestação do oferecimento de Stefanello em favor dodoente. A lamentação e a queixa diante da doença, da dor e da morte, provocam oordenamento da situação. Essa frase do padre não foi mais esquecida pela irmã do Sr.Arlindo. A doença aqui é re-significada, porque se expandiu numa queixa contra Deus, talcomo encontramos no grito do salmista: "Até quando, Senhor?".Este último plano, do qual fala Ricoeur (1988), é o do sentimento. Nesse, o homem élevado a dar uma nova significação ao problema do mal que o atinge pessoalmente. Oautor propõe a re-significação do mal como algo inelutável da condição humana. Alamentação e a queixa frente ao mal podem também, tal como o exercício dedesligamento do trabalho de luto, ser re-significadas. Esse trabalho, que visa umamudança qualitativa da lamentação e da queixa, permite que o pensar, o agir e o sentir,possam ser integrados. O primeiro desses estágios é o da afirmação da existência doacaso no mundo e o de que o mal não é uma punição a nenhum pecado do homem. Osegundo estágio é mesmo o da acusação de Deus, deixando emergir a queixa: "Atéquando, Senhor?". Este "até quando?" mostra a dramaticidade do problema do mal paracada pessoa. O terceiro e último estágio apontado por Ricoeur é o de "descobrir que asrazões de acreditar em Deus nada têm em comum com a necessidade de explicar aorigem do sofrimento" (1988, p. 51), porque, para quem crê em Deus como fonte detodo o bem, o sofrimento é algo escandaloso e inclui a vontade e a coragem de suportá-lo. Por isso, o trabalho de luto diz-nos que é preciso acreditar em Deus, apesar de. Esse"apesar de" é caminho de superação da revolta que se instala no humano contra o Deusbondoso e faz entender, pela chamada teologia da cruz, que Deus também sofre. Ohomem sofre, mas Deus junto com ele. Há uma solidariedade. Todos esses estágiosdizem-nos que a ordem do sentir é a da transmutação, da nova significação frente aoirredutível sofrimento da condição humana.A questão do mal, como vemos, é bastante complexa. E pensá-la dentro do contexto dacultura popular é ainda mais exigente. Tudo o que foi dito acima ilumina parcialmente osdados apresentados neste artigo, mas é necessário prestar atenção no fato de que nãose trata só das formas encontradas pelo exorcista para responder, pelo seucomportamento e agir, ao problema do mal. É preciso colher as imagens que o povoutiliza para falar do mal. Então, deparamo-nos com uma concepção do mal muito maiscomo entidade, do que com uma concepção tal como aparece no pensamento de Ricoeur,orientada por preocupações de um combate ao mal e de reorientação da vida. O maltende a ter personalidade, tende a ser visto como uma entidade exterior e não comouma questão internalizada de responsabilidade moral, como uma questão de ética. O queé claro é que a temática do mal é mais ampla do que a ética, fazendo, no entanto, partedela. No caso de Cascalho isso é bem evidente: não é possível pensar o bem semmostrar o mal. Inclusive, o padre Stefanello diz que construiu a igreja com o dinheiro dodiabo. O interessante é notar como, por meio de toda uma simbologia construída emtorno do diabo, revela-se o funcionamento e expressam-se as reações de toda acomunidade de Cascalho.No relato bíblico do pecado de Adão, por exemplo, está evidenciado o mito antropológicopor excelência. Nesse mito, o mal aparece relacionado com o homem. Nele se narra osurgimento, no seio de uma criação boa, daquela constituição má que faz o homemperder o paraíso. É no espaço de liberdade que existe entre Deus e o homem que sesitua a ação do demônio, que é o anjo decaído. Este mito antropológico, segundo Ricoeur(1960), mostra que o único homem, num único instante e num único ato, instaura oacontecimento da queda. A má escolha e a desobediência do primeiro homem sãotambém mito da tentação, da vertigem e da atração pelo mal. Esse mito introduz, porexemplo, a figura da serpente, que é a que tem a função de seduzir e atrair o homem.Com a figura da serpente, pode-se compreender que o mal não tenha começado pelohomem, mas que este o encontre: a serpente é o outro do mal humano. O malexterioriza-se, e tem uma fisionomia inumana. Ricoeur insiste em pensar neste símbolo

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da serpente porque ela nos indica que o mal é o ceder, isto é, cair nas malhas dosedutor. Tal como afirmou o Papa Paulo VI na audiência geral de 15 de novembro de1972:

O mal não é mais somente uma deficiência, mas umaeficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido eperversor. Terrível realidade. Misteriosa e temerosa.Sai do quadro do ensinamento bíblico e eclesiásticoquem se recusa reconhecê-la existente (1972, p.1169).

A vida cristã, por sua natureza, possui essa dimensão de luta tal como aqui descrita. Parademonstrar a vivacidade dessa dramática batalha, encontramos em Santo Agostinho adescrição das duas cidades, em Santo Inácio de Loyola a famosa meditação sobre asduas bandeiras que, no fundo, nos indicam que a salvação do homem e a vitória sobre omal não são automáticas, mas relacionam-se com o movimento da liberdade do serhumano. Do ponto de vista teológico, trata-se de uma abertura à confiança Naquele quevenceu, pelo poder da sua morte em cruz, o poder demoníaco. O que nos ensina acomunidade de Cascalho, tal como recebeu do Pe. Stefanello, é que a sedução do mal sevence na atenção aos gestos cotidianos: pertença fiel à comunidade eclesial, acelebração dos sacramentos, a oração, a caridade operosa e a atenção ao sofrimento dosoutros.

RessonânciasDeve-se dizer que a pesquisa desenvolvida na comunidade de Cascalho a partir do anode 1999 e levada a cabo em 2001, continua suscitando um movimento muitointeressante por parte dos moradores que, pela primeira vez, tem acesso a umapublicação a respeito do próprio lugar e, do personagem padre Luis, e puderam, por meiodo método da história oral, contar as suas próprias histórias de vida e os costumes dolugar. Aqui quer-se mostrar quais são as ressonâncias do trabalho com a memória. O quese vê é a elaboração de significados que mobilizam a vida das pessoas, um processo queagora vai por conta própria e, está em função da vida do próprio grupo.Um primeiro aspecto surpreendente e que representou uma conquista para acomunidade: foi a possibilidade de trazer uma relíquia, parte do corpo do padre LuisStefanello, para a igreja de Cascalho. A pesquisa revelou a luta que os cascalhenses e afamília de Stefanello tiveram de enfrentar junto à justiça para trazer os restos mortais dopadre de Águas de Santa Bárbara para Cascalho. O padre Stefanello deixou Cascalho noano de 1953 e, veio a falecer em Águas de Santa Bárbara em 1964, onde tambémdeixou suas marcas como exorcista, sendo ali considerado um verdadeiro "padre Cícero"do oeste paulista. A batalha judicial nos anos setentas foi perdida. Mas, graçassobretudo ao movimento que a pesquisa foi suscitando, surgiu a idéia de fazer o pedidoao pároco de Águas de Santa Bárbara para poder trazer, senão todo o corpo do padre, aomenos uma parte dele. Havendo comunicado a resolução ao bispo local e colocando-seem acordo com a comunidade de Cascalho, o referido pároco respondeu positivamenteao pedido, reconhecendo a importância da memória do padre Stefanello, que por 42 anosviveu em Cascalho, e do quanto era significativo para a comunidade manter ao menosum pequeno sinal dessa presença: deu seu aval ao pedido que a comunidade fez detrasladar o braço direito do padre para a paróquia de Cascalho, município deCordeirópolis. Mas a escolha de trazer o braço direito não é aleatória. O braço direito éaquele que abençoava, que expulsava o demônio, era, enfim, trazer o braço poderosopara Cascalho. A comunidade celebrou solenemente esse evento. A comunidade deáguas de Santa Bárbara veio em romaria à Cascalho para prestar sua homenagem. Noaltar lateral da Igreja, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, foi deposta a urna, edesde aquela ocasião os fiéis mantêm ali suas velas acessas, param para rezar e fazerseus pedidos. É causa de admiração a forma como os mais velhos relacionam osacontecimentos de hoje a essa presença de Stefanello. Prestemos atenção àquilo que diz

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o Sr. Paulo, numa recente entrevista, realizada no dia 15 de agosto de 2003, portanto,durante a festa da padroeira de Cascalho, Nossa Senhora da Assunção, ocasião em que obairro recebe tantos fiéis e peregrinos. Depois de terminada a missa solene, pergunto aoSr. Paulo o que estava acontecendo, e me responde:

O senhor não viu? Eu já falei hoje cedo. O lugar maisbonito do que esse que nós vimos hoje aqui, só no céu.Essa palavra eu já falei umas duas ou três vezes.

O mais curioso é que a Assunção é a festa na qual se celebra a entronização de NossaSenhora, de corpo e alma no céu. Essa sintonia da resposta do Sr. Paulo indica que eleestava vivendo plenamente o rito e a festa. O céu não é lugar distante, mas se vive e sevê aqui: neste lugar bonito que é Cascalho no dia da festa da sua padroeira. Devemosconsiderar que a jornada da festa da padroeira começa cedo em Cascalho. O Sr. Paulo,nosso entrevistado, estava participando de todos os eventos programados para esse dia.Quando na primeira missa matinal perguntei o que estava acontecendo ele, com uma sópalavra, respondeu-me: "o céu". No final da jornada, depois da procissão, missa ecoroação de Nossa Senhora, volto a interrogar o Sr. Paulo e obtenho a resposta de queaquela jornada é viver o céu no nosso hoje. Mas, ao ver tanta gente na festa, o Sr. Paulofaz algumas conexões entre presente, passado e futuro que são interessantesacompanhar:

E aqui agora eu não sei o que vai acontecer noCascalho. Tá enchendo de casa. Tudo as ruas temcasa. Primeiro não tinha nada. E estão fazendo cadacoisa com esse padre Luis Botteon aqui (...). O que táacontecendo aqui eu até admiro. Eu que moro aqui atéadmiro. Ele (o atual pároco) chama padres de todos oslados, aqui vem bispo, vem tudo. Bom, o padre LuisStefanello também foi baluarte. Foi uma pena que elesaiu daqui, mas o braço dele tá ai (se referindo ao altardo Sagrado Coração de Jesus onde está depositado osrestos de Stefanello).

Para o Sr. Paulo, dois padres representam uma coluna para a comunidade - o padre LuisBotteon, que no tempo presente está realizando uma obra extraordinária, e também opadre Luis Stefanello, que foi baluarte, mas que continua presente, pois seu braço direitoestá agora na igreja que ele mesmo construiu.Em segundo lugar, devemos considerar o movimento de conservação e preservação dahistória local. É importante constatar o quanto as denominadas "festas italianas" se temtornado evento comum no interior do Estado de São Paulo. Contudo, em determinadoslugares, como por exemplo em Cascalho, tais eventos têm produzido um movimento deinteresse e desejo de conhecer as raízes familiares. A paróquia de Cascalho tem levadoadiante uma proposta de resgate desses elementos, e junto com o fator religioso, comtoda a sua articulada estruturação no campo micro-social (mundo da família, dasrelações pessoais) continua a ser, nas suas várias manifestações, "topos" fundamentalpara tantas pessoas poderem reencontrar e afirmar a sua identidade. No ano de 2003,por exemplo, no qual a comunidade celebrava os 110 anos da chegada dos imigrantesitalianos, fixou-se uma programação na qual foram possíveis realizar o encontro de todasas famílias do bairro. As famílias foram divididas em 4 grupos (composto de 16 a 18nomes de famílias), que se reuniram durante o ano de 2003. Nessa ocasião puderamexpor sua história, trocar informações, estar juntos com os parentes próximos edistantes. Mas o que precisa ser destacado é a preocupação com a coleta de material edocumentos dessas famílias todas. O convite para a festa das famílias comportava,portanto, um convite a disponibilizar: fotos, documentos, objetos que estivessem ligadosao passado familiar. A idéia fundamental é manter um banco de dados na Paróquiareferentes a todas essas famílias. Vale a pena destacar alguns aspectos que tornamaquela "simples festa" um evento de construção de significados, em que participar da

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festa comporta um trabalho de escavo nas raízes familiares. A atmosfera da festa é deperguntas, de surpresas, de encontros, de descobertas de familiares e de curiosidade quevai contagiando as diversas gerações ali presentes. A praça da igreja, nos quatroencontros promovidos, era um verdadeiro laboratório de pesquisa: exposição dasgenealogias de famílias; fotos antigas e recentes dos grupos familiares; posto decadastramento das pessoas e um grupo especializado em informática que tratava derecolher os documentos, fotografar e cadastrar os participantes. Quando penso na praçade Cascalho por ocasião desses eventos, vem-me a tentação de qualificá-la de praça dahistória e da memória. Ouçamos o testemunho daqueles que participaram:

O Cascalho melhorou um 150%. É uma maravilha aquiagora. Esse ano, todo o mês uma festa. Reunião defamílias. Este ano tem mais dois grupos ainda. Nósvamos terminar o ano com festa. Festa!!! Graças aDeus. Quando esse padre Luis Botteon veio aqui... veiodo céu. E não duvido (pausa): foi mandado. Foimandado aqui. Isso eu falo a verdade, fazer o que elefez, o que está fazendo e que faz agora em poucotempo? (Sr. Fausto).

Para o Sr. Fausto, o trabalho que realiza o atual vigário de Cascalho só é possível sercompreendido na dinâmica do "mistério" no qual está envolvida toda a comunidade. OSr. Fausto ama chamar Stefanello de "abençoado padre", enquanto ao atual dá aqualificação de "enviado". Foi mandado ali mas para quê? Talvez para realizar uma obraem continuidade com a obra de Stefanello e, assim, Cascalho vai melhorando cada vezmais.O juízo que dá o Sr. Geraldo Picollini a respeito das reuniões de família nos parecebastante lúcido. No fundo, o que transparece é a preocupação pela família. Aqui o Sr.Geraldo fala da importância do encontro entre as gerações:

Eu tô achando muito bom, mesmo de verdade. Peloseguinte: eu já falei com vários parentes e alguns nãopuderam vir e outros não tem muita vontade. E eufalei: "-vocês estão perdendo uma oportunidadetremenda, porque depois dessa nós podemos ter adespedida. Aquela é um pouco mais triste, mas nãovamos morrer, vamos viver". E então eu falei: "-vamosnessa aí, porque encontramos pessoas de segundo,terceiro, quarto grau e vocês se conhecem, e isso ébonito". Porque podemos ter a diminuição do sangueno corpo da pessoa, mas o nome não vai parar". (Sr.Geraldo).

O laço familiar, desse modo, ao lado daquilo que referia o Sr. Geraldo Picollini sobre osignificado da cadeia de gerações, começa a produzir um novo sentido para a própriarealidade individual. Um sentido que abre o horizonte contra a tendência individualista dohomem pós-moderno. Tal percepção de que a história não nasce nem termina com opróprio si mesmo, mas nos precede e nos supera, é fundamental em uma sociedade naqual as diversas modificações sociais, políticas e econômicas estão produzindo umatransformação substancial no que diz respeito à situação geracional. Podemos falar deuma perda de identidade ou crise da própria ascendência. As famílias tendem a não fazermais memória histórica, o que produz graves danos no nível que tange às biografiasindividuais e, conseqüentemente, à vida da sociedade. Por isso, parece-nos fundamentalsublinhar o que vem ocorrendo hoje em Cascalho como conseqüência de uma retomadada biografia do padre Stefanello e, junto dele, das histórias dos grupos familiares.É evidente o movimento que se está provocando, e que nasce em uma comunidade quequer manter vivo os aspectos da própria identidade cultural. Conforme indicamos emnossa dissertação de mestrado (2001), defendida na Universidade de São Paulo sobre

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"As bênçãos e a prática de exorcismos na paróquia de Cascalho", na qual se afirmavaque os gestos e as realizações em Cascalho são pensados de maneira educativa. Dessemodo, quando se propõe uma festa ao redor do coreto e se convida a banda, é parareviver algo que acontecia de fato ali, nos tempos em que o Pe. Stefanello organizava abanda para tocar no coreto a fim de que as pessoas pudessem estar juntas nas noites desábado e domingo. Ou ainda: quando recentemente se propôs a construção do clube deesportes, foi lembrado aquilo que o próprio Stefanello pensava a respeito de manter efazer com que o povo possa se divertir sadiamente no próprio ambiente que vive. Assim,o que se vê é que a memória desse "padre poderoso" possibilita à comunidade umcontínuo repensar dos gestos e obras que se devem realizar no presente. Assim, asfestas das famílias e a preocupação com manter e recolher os documentos, de registrarbem os eventos e, com o cultivar a escuta dos mais velhos por meio de registrosáudios-visuais, nascem a partir da divulgação de nosso trabalho no seio destacomunidade. Certamente trata-se de um marco divisor, sobretudo, no modo com o quala Paróquia, as pessoas individualmente e as famílias de Cascalho - e oriundas dali -passaram a lidar com as recordações e a dar atenção à voz dos mais velhos, bem como,a valorizar a documentação de que dispunham.Estes são apenas dois elementos que assinalamos do que um trabalho com a memóriapode produzir no interior de certas comunidades. O pesquisador não pode deixar decolher as ressonâncias do seu trabalho quando esse se refere aos elementosestruturantes da comunidade, tal como foi expresso, pelos moradores de Cascalho naexperiência religiosa em torno ao Pe. Luis Stefanello.

ConclusãoÉ graças a essa câmara vasta e infinita da memória que se efetiva um processo decontato entre o presente e o passado. Por um lado, como diz Mahfoud (2003) retomandoas contribuições de Halbwachs, a memória é reconhecimento, porque traz o "sentimentodo já visto" e é reconstrução, porque faz um resgate dos acontecimentos passados noquadro das preocupações e interesses atuais (p. 134). O trabalho da memória, portanto,coloca-me diante de uma dependência antecedente: "eu posso porque dependo daherança". O que dá consistência ao meu próprio existir é a consciência de que dependode meu grupo, dos elementos da tradição, de que tenho uma hipótese inicial para otrabalho. É a memória coletiva, nas suas funções, que, de um lado, assegura acontinuidade temporal permitindo ao sujeito deslocar-se sob o eixo do tempo e, poroutro, possibilita o próprio reconhecimento de si.O trabalho da memória converge com o da história, uma vez que esta busca reconstruir ereconstituir os elos entre o passado e o presente, através da distância histórica. Pelostestemunhos das pessoas que conviveram diretamente com o padre Stefanello e pelomovimento de transmissão dos acontecimentos, quando se dá ouvido aos relatos,notamos uma nítida tensão entre a experiência do passado transmitida e o presente.Esse seria o movimento próprio e vivo daquilo que chamamos de "tradição", que vem aser uma busca constante de encontrar e atualizar a experiência de significado do mundo.Por isso, o trabalho com os relatos da memória é bastante enriquecedor. O movimentode ir entrevistar e sentar-se ao pé de outros para ouvir, cumpre uma finalidade socialessencial, que é devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugarfundamental, mediante suas próprias palavras. Segundo Thompson (1992, p. 42), todasas vidas são interessantes, e a partir da abordagem oral, temos a possibilidade de ouvira voz humana, viva e pessoal, que faz o passado surgir no presente de maneiraimediata. Por outro lado, torna-se claro o tema da responsabilidade histórica, tendo comoperigo permanente o fato de que, se não fazemos a história, cada vez mais perdemos aocasião de sermos feitos por ela. Assim, ser responsável pelo passado recebido é torná-logerador de novos sentidos. A necessidade de recolher os documentos, objetos, fotos,cartas, e conservá-los, passa a criar na vida da comunidade um horizonte de expectativa.Isso significa que em Cascalho se vai compreendendo que o mal é esquecer, e trazer

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vida ao passado significa dar esperanças para o futuro. Assim, ao exorcizar o mal, estacomunidade abre-se cada vez mais às bênçãos do presente.

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Notas(1) As relações de abertura da comunidade de Cascalho - tipicamente marcada pelositalianos - com outros elementos que não faziam parte de sua cultura, encontraram noPe. Stefanello um veiculo facilitador, pois com suas bênçãos ele atraía peregrinos detodas as partes do país, que passavam a conviver com os italianos de Cascalho. A idéiade diálogo com os elementos culturais brasileiros é, segundo estudo realizado por Azzi(1987), uma característica das colônias italianas no Estado de São Paulo, que difere daforma como se organizaram as colônias do Paraná e Rio Grande do Sul, onde diversosfatores colaboraram para que se formassem "guetos culturais".(2) "Aliqui ostendunt factum maleficium, et a quibus sit factum, et modum ad illuddissipandum: sed caveat, ne ob hoc ad magos, vel ad sagas, vel ad alios, quam adEcclesiae ministros confugiat, aut ulla superstitione, aut alio modo illicito utatur" (1880,p. 323).(3) Compreendemos o exorcismo como rito de passagem na medida em que esteaparece dentro da dinâmica litúrgica da vida da Igreja. Pensando, por exemplo, nosacramento do batismo, que é um dos sacramentos da iniciação cristã, encontramos opequeno exorcismo antes que o catecúmeno faça a sua profissão de fé e seja batizado.Por outro lado, precisamos observar que a prática de afastar as forças malignas épresente também na própria celebração da eucaristia, e sobretudo, se pensamos queuma vez ao ano, por ocasião da Páscoa, renova-se as promessas batismais em seudinamismo de renúncia ao demônio e aceitação da verdade salvífica oferecida por Cristona cruz a toda a humanidade, pode-se perceber com maior facilidade que a perspectivatanto do sacramento como dos sacramentais possui esse valor de passagem e derenovação para poder empreender com novo vigor as tarefas cotidianas.(4) O teólogo russo Pavel Florenskij (2001) fala do valor mágico, místico e potente dapalavra. Esse aspecto mágico da palavra possibilita ao homem compreenderprofundamente o que significa agir no mundo através da palavra. Na palavra estácondensada uma energia humana. E, além disso, quando é pronunciada dentro de ritos,seja na magia, seja no exorcismo, esta adquiri uma energia espiritual por si mesmapotente. Vejamos o que diz nosso autor: "Uma benzedeira, com as suas fórmulasmurmuradas, cujo significado nem mesmo ela compreende, ou um sacerdote quepronuncia orações parte das quais são a ele mesmo incompreensíveis, não são a nossojuízo fenômenos absurdos, como superficialmente pode parecer. Não somente aquelafórmula vem pronunciada, é indicada e fixada a relativa intenção - o propósito depronunciar a fórmula. Estabelecendo-se, assim, o contato entre a palavra e a pessoa,temos, portanto, finalizado o ato mais importante. O resto acontece por si, comoconseqüência do fato de que a palavra já existe como organismo vivente, com estruturae energia própria" (p. 76).(5) Podemos dizer que a cara cteriza ção como possessão está norteada pelas categoriasque definem estes casos, segundo o antigo Ritual de exorcismo, que põe os três sinaistradicionais para se reconhecer o caso, como: 1) o uso de línguas desconhecidas, 2)revelação de coisas ocultas, que nenhum meio natural pode explicar e 3) a exibição deforças que ultrapassam notavelmente as forças naturais do sujeito (Rituale Romanum,1880, p. 322).(6) Sobre a autorização do Bispo ou ordinário local ver Rituale Romanum (1880), p. 323.(7) O latino original recita: "Aliquando etiam daemones ponunt quaecumque possuntimpedimenta, ne infirmus se subjiciat exorcismis, vel conantur persuadere infirmitatemesse naturalem; interdum in medio exorcismi faciunt dormire infirmum, et ei visionemaliquam ostendunt, subtrahendo se, ut infirmus liberatus videatur" (Rituale Romanum,1880, p. 322).

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Nota sobre os autoresMarcio Luiz Fernandes é mestre em Psicologia pela USP-Ribeirão Preto e mestre emTeologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma, Itália.Atualmente continua o doutorado de pesquisa em Roma. Contatos: [email protected]

Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia eEducação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicasna Cultura Luso-Brasileira. Contatos: [email protected]

Data de recebimento: 26/02/2004Data de aceite: 23/04/2004

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Amatuzzi, M.M. (2004). A composição dos elementos: uma tradução do "De Mixtione Elementorum"de 78Tomás de Aquino. Memorandum, 6, 78-88. Retirado em / / da World Wide Web:http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/amatuzzi02.htm

A composição dos elementos: uma traduçã o do"De Mixtione Elementorum" de Tomás de Aquino

The composition of the elements: a translation of Thomas Aquinas' De MixtioneElementorum

Mauro Martins AmatuzziPontifícia Universidade Católica de Campinas

Brasil

ResumoApresenta-se tradução para o português - e original latino conforme edição crítica - detexto de Tomás de Aquino sobre a composição dos elementos. O interesse daquele textomedieval para a história da psicologia é que coloca as bases teóricas sobre as quais seráconcebida a estrutura mais complexa do ser humano, segundo seu autor. Os elementosmateriais simples existem no todo de um corpo composto a partir deles. Neste mesmocaminho será compreendida, em outros textos, a composição constitutiva dos seres vivos- num segundo estágio de complexidade - e a composição do ser humano onde o espíritose manifesta mais claramente, num terceiro estágio. Os elementos simples encontram-seno composto não em sua plena atualidade como quando isolados, mas virtualmente, ouseja, trazendo sua virtude para um todo maior que os integra. Comentários hermenêuticosexplicitam sua importância para uma psicologia segundo a concepção de Tomás de Aquino.

Palavras-chave: Tomás de Aquino; composição física; corpo humano; alma.

SummaryThis article presents a Portuguese translation of a text by Thomas Aquinas on thecomposition of the material elements. Presents, also, for each translated paragraph, theLatin original text according to the critical edition. The interest for the history ofpsychology of that medieval text is that it presents the theoretical bases on which it will beconceived the human being most complex structure, according to Thomas Aquinas. Thetext exposes how the simple material elements can exist in the whole of a materialcomposed body. In the same way it will be understood, in other texts, the composition ofliving beings, in a second complexity level, and the human being composition, in which thespirit is manifested, in a third complexity level. Simple elements do not exist in acomposed body in its full presence, but virtually; in other words, bringing its virtue for awhole that integrates them.

Keywords: Thomas Aquinas; physical composition; human body; soul.

IntroduçãoEsta tradução faz parte de um projeto que pretende resgatar textos de Tomás de Aquinoque sejam de interesse para a psicologia (neste sentido ver Amatuzzi, 2003). Inicialmentepretendemos selecionar, e traduzir quando for o caso, textos que se refiram, primeiro, àmatéria, em segundo lugar à vida, e, finalmente ao espírito. Esses três temascorrespondem aos três grandes níveis de complexidade observados entre os entes denosso mundo. Este primeiro texto aqui selecionado, sobre a composição dos elementossimples na formação dos corpos compostos, é um texto que pertence à física, mas jácoloca alguns conceitos básicos que serão usados ulteriormente na compreensão dos seresvivos e em particular do ser humano onde o espírito se manifesta de modo mais claro, e,portanto, na psicologia.

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A tradução foi feita diretamente a partir do texto latino tal como consta no sítio eletrônicoda Universidade de Navarra na Espanha (Tomás de Aquino, 1976), o qual, por sua vez, é otexto da Edição Leonina, de Roma em 1976. Torrell (1999) nos informa que

esse pequeno tratado é endereçado ao Mestre Filipe deCastro Caeli, professor de medicina em Bolonha e emNápoles, que consultou Tomás sobre a questão dosquatro elementos e de suas qualidades, segundo opapel que a medicina antiga lhes conferia na teoria doshumores e temperamentos. (p.412).

A data desse opúsculo, ainda segundo Torrell, é incerta; ele a situa na segunda estadia deTomás em Paris, pouco antes de 1270, sendo portanto obra da maturidade do mestre. Aúnica tradução mencionada por Torrell é para o francês, Opuscules de saint Thomasd'Aquin, feita pelo abade Bandel, edição Vivès, t.4, Paris, 1857.A divisão em parágrafos numerados, tal como consta aqui, foi feita por nós, visandofacilitar a leitura e as referências. Transcrevemos o texto latino em letras itálicas e comrecuo de margem, seguido, parágrafo por parágrafo, pela tradução em letras normais. Atradução procurou ser o mais literal possível. Contudo, como o texto é muito sucinto,acrescentamos nela, por vezes, entre colchetes, algumas palavras que, julgamos,poderiam auxiliara compreensão.A questão a que remete este opúsculo, enquanto relacionada com a antropologia oumesmo com a psicologia, pode ser colocada da seguinte forma: cada ser humano é apenasum aglomerado de partículas materiais elementares mais ou menos independentes, ou elese constitui como um todo original, dotado de uma unidade tal que o lança num nívelontológico diferente? A resposta de Tomás de Aquino procura encontrar um sentidoconsistente na linha da segunda alternativa. Se traduzimos, pois, este texto aqui é porqueele coloca fundamentos para se compreender a própria realidade humana.

Texto bilíngüeDE MIXTIONE ELEMENTORUMSancti Thomae de Aquino ad magistrum Philippum deCastro CaeliTextum Leoninum Romae 1976 editumac automato translatum a Roberto Busa SJ in taeniasmagneticasdenuo recognovit Enrique Alarcón atque instruxit.

SOBRE A COMPOSIÇÃO DOS ELEMENTOSde Santo Tomás de Aquino ao mestre Filipe de Castro CaeliTexto da edição Leonina, Roma, 1976.Copiado em fitas magnéticas por Roberto Busa SJ,reconhecido e preparado por Enrique Alarcón.

1. Dubium apud multos esse solet quomodo elementa sint in mixto.1. Costuma haver dúvida em muitos sobre como os elementos [materiais simples] podemestar no [corpo material] composto.

2. Videtur autem quibusdam quod, qualitatibus activiset passivis elementorum ad medium aliqualiter reductisper alterationem, formae substantiales elementorummanent: si enim formae substantiales non maneant,corruptio quaedam elementorum esse videbitur et nonmixtio.

2. Com efeito, parece a alguns que, estando as qualidades ativas e passivas doselementos, de algum modo, reduzidas a um grau intermediário, por causa da alteração

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[que gera o composto], suas formas substanciais permanecem [no composto], pois se nãopermanecessem, existiria corrupção [deles] e não composição [a partir da sua alteração].

3. Rursus si forma substantialis corporis mixti sit actusmateriae non praesuppositis formis simpliciumcorporum, simplicia corpora elementorum rationemamittent. Est enim elementum ex quo componituraliquid primo, et est in eo, et est indivisibile secundumspeciem; sublatis enim formis substantialibus, non sicex simplicibus corporibus corpus mixtum componetur,quod in eo remaneant.

3. Do contrário, se a forma substancial do corpo composto fosse ato da matéria sempressupor as formas dos corpos simples, estes perderiam sua razão de elementos. Masexistem os elementos a partir dos quais primeiramente se compõem as coisas, elementosque estão nelas e são indivisíveis segundo a espécie. Subtraídas, pois, suas formassubstanciais, o corpo composto não estaria assim composto por corpos simples quepermaneceriam nele.

4. Est autem impossibile sic se habere; impossibile estenim materiam secundum idem diversas formaselementorum suscipere. Si igitur in corpore mixtoformae substantiales elementorum salventur, oportebitdiversis partibus materiae eas inesse. Materiae autemdiversas partes accipere est impossibile, nisipraeintellecta quantitate in materia; sublata enimquantitate, substantia indivisibilis permanet, ut patet inprimo Physic. Ex materia autem sub quantitateexistente, et forma substantiali adveniente, corpusphysicum constituitur. Diversae igitur partes materiaeformis elementorum subsistentes plurium corporumrationem suscipiunt. Multa autem corpora impossibileest esse simul. Non igitur in qualibet parte corporismixti erunt quatuor elementa; et sic non erit veramixtio, sed secundum sensum, sicut accidit inaggregatione corporum insensibilium propterparvitatem.

4. É impossível, porém, que seja assim; pois é impossível que a matéria assuma, nomesmo ponto, diversas formas. Se no corpo composto as formas substanciais doselementos se salvassem, seria necessário que estivessem localizadas em diversas partesda matéria. Mas é impossível à matéria aceitar partes diversas a não ser que sepressuponha nela a quantidade; supressa, pois, a quantidade, a substância permaneceindivisível, como se mostra no I livro da Física [de Aristóteles]. É, pois, a partir da matériaexistente sob a quantidade [ou seja, da matéria extensa], e da forma substancial que lheadvém, que se constitui o corpo físico. Portanto [naquele caso] as diversas partes damatéria, subsistentes às formas dos elementos, tomariam para si a razão de muitoscorpos. É impossível, porém, que muitos corpos existam simultaneamente. Portanto, nãoserá em todas as partes do corpo composto que existirão os quatro elementos. Se assimfosse, não haveria verdadeira composição, mas apenas composição aparente comoacontece na aglomeração de corpos que [quando separados] não são perceptíveis porserem muito pequenos [mas o são quando reunidos].

5. Amplius, omnis forma substantialis propriamdispositionem in materia requirit, sine qua esse nonpotest: unde alteratio est via ad generationem et

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corruptionem. Impossibile est autem in idem convenirepropriam dispositionem, quae requiritur ad formamignis, et propriam dispositionem quae requiritur adformam aquae, quia secundum huiusmodi dispositionesignis et aqua sunt contraria. Contraria autemimpossibile est esse in eodem. Impossibile est igiturquod in eadem parte mixti sint formae substantialesignis et aquae. Si igitur mixtum fiat remanentibusformis substantialibus simplicium corporum, sequiturquod non sit vera mixtio, sed solum ad sensum, quasiiuxta se positis partibus insensibilibus propterparvitatem.

5. Além disso, toda forma substancial requer uma disposição própria na matéria sem aqual não pode existir; daí porque a alteração seja o caminho para a geração e a corrupção.Mas é impossível reunirem-se na mesma coisa a disposição própria requerida para a formado fogo e a disposição própria requerida para a forma da água. E isso porque é segundoessas disposições que fogo e água são contrários, e os contrários não podem existir namesma coisa. Não é possível, portanto, que na mesma parte do composto estejam asformas substanciais do fogo e da água. Se, portanto, o composto fosse formadopermanecendo as formas substanciais dos corpos simples, seguir-se-ia não haver umaverdadeira composição, mas somente em aparência, como uma justaposição de [corposque seriam como] partes imperceptíveis por sua pequenez.

6. Quidam autem utrasque rationes vitare volentes, inmaius inconveniens inciderunt. Ut enim mixtionem abelementorum corruptione distinguerent, dixeruntformas substantiales elementorum aliqualiter remanerein mixto. Sed rursus ne cogerentur dicere essemixtionem ad sensum, et non secundum veritatem,posuerunt quod formae elementorum non manent inmixto secundum suum complementum, sed in quoddammedium reducuntur; dicunt enim quod formaeelementorum suscipiunt magis et minus et habentcontrarietatem ad invicem.

6. Alguns, porém, querendo evitar essas razões, caíram em maiores inconvenientes ainda.Para poderem diferenciar a composição dos elementos de sua corrupção, afirmaram que asformas dos elementos permanecem [somente] de algum modo no composto. E para quede novo não fossem obrigados a dizer que a composição seria [nesse caso também]aparente e não verdadeira, afirmaram que as formas dos elementos não permanecem emtoda sua completude no composto, mas ficam reduzidas a um certo [estado]intermediário; dizem, com efeito, que as formas dos elementos admitem mais e menos, etêm contrariedade umas em relação às outras.

7. Sed quia hoc manifeste repugnat communi opinioniet dictis Aristotelis dicentis in Praedic., quodsubstantiae nihil est contrarium, et quod non recipitmagis et minus; ulterius procedunt, dicentes quodformae elementorum sunt imperfectissimae, utpotemateriae primae propinquiores: unde sunt mediae interformas substantiales et accidentales; et sic, inquantumaccedunt ad naturam formarum accidentalium, magiset minus suscipere possunt.

7. Mas como isso evidentemente repugna à opinião comum e às afirmações de Aristóteles,no livro dos Predicamentos, quando diz que substância não tem contrário, e nem

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[tampouco] aceita mais e menos, foram mais longe dizendo que as formas dos elementossão as mais imperfeitas uma vez que estão mais próximas à matéria primeira, sendointermediárias entre as formas substanciais e as formas acidentais; e dessa maneira, porse aproximarem da natureza das formas acidentais, são susceptíveis de mais e menos.

8. Haec autem positio multipliciter improbabilis est.Primo quidem quia esse aliquid medium intersubstantiam et accidens est omnino impossibile: essetenim aliquid medium inter affirmationem etnegationem. Proprium enim accidentis est in subiectoesse, substantiae vero in subiecto non esse. Formaeautem substantiales sunt quidem in materia, nonautem in subiecto: nam subiectum est hoc aliquid;forma autem substantialis est quae facit hoc aliquid,non autem praesupponit ipsum. Item ridiculum estdicere medium esse inter ea quae non sunt uniusgeneris; ut probatur in decimo Metaph., medium enimet extrema ex eodem genere esse oportet; nihil igiturmedium esse potest inter substantiam et accidens.

8. Por múltiplas razões essa posição é improvável. Em primeiro lugar porque é totalmenteimpossível algo ser um intermediário entre substância e acidente, pois equivaleria a serintermediário entre afirmação e negação. Com efeito, é próprio ao acidente existir em umsujeito, enquanto à substância [ao contrário, é próprio] não existir em um sujeito. Asformas substanciais existem na matéria, mas não em um sujeito, pois o sujeito é algoconstituído e a forma substancial é [justamente] aquilo que faz algo [ser] constituído, e,portanto, não o pressupõe. Além disso, é ridículo dizer que existe um intermediário entreaquelas coisas que não são de um mesmo gênero, como está provado no décimo livro daMetafísica [de Aristóteles], pois é necessário que tanto o intermediário como os extremossejam do mesmo gênero. Portanto não pode haver intermediário entre substância eacidente.

9. Deinde impossibile est formas substantialeselementorum suscipere magis et minus. Omnis enimforma suscipiens magis et minus est divisibilis peraccidens, inquantum scilicet subiectum eam potestparticipare vel magis vel minus. Secundum autem idquod est divisibile per se vel per accidens, contingitesse motum continuum, ut patet in sexto Physic. Estenim loci mutatio et augmentum et decrementum,secundum quantitatem et locum quae sunt per sedivisibilia; alteratio autem secundum qualitates quaesuscipiunt magis et minus, ut calidum et album. Siigitur formae elementorum suscipiunt magis et minus,tam generatio quam corruptio elementorum erit motuscontinuus. Quod est impossibile. Nam motus continuusnon est nisi in tribus generibus, scilicet in quantitate etqualitate, et ubi, ut probatur in quinto Physic. Amplius,omnis differentia secundum formam substantialemvariat speciem. Quod autem recipit magis et minus,differt quod est magis ab eo quod est minus etquodammodo est ei contrarium, ut magis album etminus album. Si igitur forma ignis suscipiat magis etminus, magis facta vel minus facta speciem variabit, etnon erit eadem forma, sed alia. Et hinc est quod

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philosophus dicit in octavo Metaph., quod sicut innumeris variatur species per additionem etsubtractionem, ita in substantiis. Oportet igitur aliummodum invenire, quo et veritas mixtionis salvetur, ettamen elementa non totaliter corrumpantur, sedaliqualiter in mixto remaneant.

9. Em segundo lugar é impossível que as formas substanciais dos elementos sejamsusceptíveis de mais e menos. Pois toda forma susceptível de mais e menos é divisívelacidentalmente, isto é, na medida em que o sujeito pode participar dela mais ou menos.Mas quando algo é divisível, por si ou acidentalmente, pode acontecer o fluxo [oumovimento] contínuo [e não apenas discreto ou por saltos] como fica claro no livro sextoda Física [de Aristóteles]. Existe, com efeito, mudança de lugar, [mudança por]crescimento e [por] decréscimo, no aspecto de quantidade e lugar, que são por sidivisíveis. Já a [mudança do tipo da] alteração existe no aspecto das qualidades que sãosusceptíveis de mais e menos, como o quente e o branco. Se, portanto, as formas doselementos são susceptíveis de mais e menos, tanto a geração como a corrupção doselementos seria um movimento [ou um fluxo] contínuo [com graduações infinitas, e nãoalgo discreto, de um estado a outro]; o que é impossível. De fato, o movimento contínuosó pode existir em três gêneros, isto é, na quantidade, na qualidade e no lugar [e não nogênero da substância, como é o caso da composição], como se prova no quinto livro daFísica. E mais: toda diferença no que diz respeito à forma substancial, acarreta umavariação na espécie. Naquilo que aceita mais e menos difere o que é mais do que é menossendo de certo modo contrários, como o mais branco e o menos branco. Se, portanto, aforma do fogo é susceptível de mais e menos, ser mais [fogo] ou menos [fogo] acarretaráem mudança na espécie, não sendo a mesma forma, mas outra. Daí porque o filósofoAristóteles, no oitavo livro da Metafísica, afirme que, assim como nos números a espécievaria pela adição e subtração, assim também nas substâncias. É necessário, portanto,encontrar um outro modo pelo qual a verdade da composição se salve e, apesar disso, oselementos não se corrompam totalmente, mas de algum modo permaneçam no composto.

10. Considerandum est igitur quod qualitates activae etpassivae elementorum contrariae sunt ad invicem etmagis et minus recipiunt. Ex contrariis autemqualitatibus quae recipiunt magis et minus constituipotest media qualitas, quae sapiat utriusque extreminaturam, sicut pallidum inter album et nigrum, ettepidum inter calidum et frigidum. Sic igitur, remissisexcellentiis qualitatum elementarium, constituitur exhis quaedam qualitas media, quae est propria qualitascorporis mixti, differens tamen in diversis secundumdiversam mixtionis proportionem: et haec quidemqualitas est propria dispositio ad formam corporis mixti,sicut qualitas simplex ad formam corporis simplicis.Sicut igitur extrema inveniuntur in medio, quodparticipat naturam utriusque, sic qualitates simpliciumcorporum inveniuntur in propria qualitate corporismixti. Qualitas autem simplicis corporis est quidemaliud a forma substantiali ipsius, agit tamen in virtuteformae substantialis, alioquin calor calefaceret tantum,non autem per eius actionem forma substantialiseduceretur in actum; cum nihil agat ultra suamspeciem. Sic igitur virtutes formarum substantialiumsimplicium corporum in corporibus mixtis salvantur.Sunt igitur formae elementorum in corporibus mixtis

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non quidem actu, sed virtute: et hoc est quodAristoteles dicit in primo de Gener.: non manent igiturelementa scilicet in mixto actu, ut corpus et album, neccorrumpuntur nec alterum nec ambo: salvatur enimvirtus eorum.

10. Deve-se considerar, então, que as qualidades ativas e passivas dos elementos podemser contrárias umas às outras, e aceitar mais e menos [embora isso não possa acontecercom as formas substanciais]. De qualidades contrárias, que aceitam mais e menos, podeser constituída uma qualidade intermediária que tenha o sabor da natureza de ambos osextremos [contrários], como acontece com o cinzento, que fica entre o branco e o preto,ou o tépido, entre o quente e o frio. Assim, portanto, afrouxada a primazia das qualidadesdos elementos, a partir delas constitui-se uma qualidade intermediária que é a qualidadeprópria do corpo composto, a qual pode diferir nos diversos [compostos] de acordo com asdiversas proporções de composição. É essa qualidade que é a disposição própria para aforma do corpo composto, assim como a qualidade simples o é para o corpo simples.Assim como os extremos encontram-se no intermediário que participa da natureza deambos, assim também as qualidades dos corpos simples encontram-se na própriaqualidade do corpo composto. A qualidade do corpo simples é, na verdade, diferente daforma substancial em si mesma; porém age em virtude [pela energia] da formasubstancial. Se assim não fosse o calor apenas aqueceria, sem produzir, por sua ação, aforma substancial [do fogo] em ato [no corpo aquecido], pois para isso teria que produzirum efeito para além de sua espécie [de simples calor como qualidade]. Assim, portanto, asenergias [forças, ações, virtudes] das formas substanciais dos corpos simples permanecemnos corpos compostos. Portanto, as formas dos elementos estão nos corpos compostos,mas, na verdade, não em ato, e sim em sua energia [virtude, força ou ação]. E é isso quediz Aristóteles no primeiro livro sobre a Geração, ou seja, não permanecem os elementosem ato no composto, como [por exemplo] corpo e branco, nem um corrompe a outro nemcorrompem-se mutuamente, mas permanece a energia [virtude, força ou ação] deles.

Comentários1) Com estes comentários pretendemos, além de esclarecer alguns detalhes oudificuldades da tradução, proceder a uma interpretação (hermenêutica fenomenológica) doDe Mixtione Elementorum que se aproxima do que Ricoeur (1977, 1978) chama dedistanciamento e apropriação, e Gadamer (2003) de fusão de horizontes. Haight descreveo método de se fazer isso discorrendo sobre os dois movimentos do pensamento aíenvolvidos: "o primeiro é uma certa desvinculação do significado em relação à suaparticularidade no passado; o segundo é uma recuperação desse significado em uma novasituação específica" (Haight, 2003, p.61). Em termos mais concretos, queremos nosperguntar que significado pode ter ainda, para nós hoje, este pensamento cosmológico deTomás de Aquino, explorando-o a partir de um horizonte que se tornou comum depois deNewton, no séc.17 e 18, e mesmo da física nuclear no séc.20. Não será, contudo,necessário recorrermos a toda elaboração científica moderna e contemporânea, bastandoque leiamos o mestre medieval com uma sensibilidade mais próxima à nossa visão demundo.

2) Qual é o projeto desse pequeno texto de Tomás de Aquino? Não é, obviamente, o depropor e relatar investigações empíricas, no sentido da ciência contemporânea, pelas quaisse resolva a questão dos modos de composição dos elementos. Na verdade o texto maisconfronta opiniões e as avalia para poder chegar a uma conclusão. Contudo essa é apenasa face mais superficial de seu caminho. A nosso ver ele pretende chegar a um modo delinguagem que faça sentido a respeito da constituição dos entes de nosso mundo e de suatransformação. Em outras palavras, pretende responder a uma questão do seguinte tipo:como podemos falar de forma correta, consistente com nossa experiência comum, arespeito da presença dos elementos materiais simples no todo de um corpo composto, sem

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que essa presença elimine nem a realidade do elemento, nem a unidade própria docomposto? É esse o projeto do texto. Para realizar isso é que ele recorre à experiênciacomum e à discussão das opiniões a respeito. E o problema ainda tem ressonância nostempos atuais: afinal, não passamos de um amontoado de elementos químicos que atuamde forma casualmente ordenada, ou existe em nós algum tipo de unidade que ultrapassa asoma desses elementos?

3) A resposta final de Tomás é que os elementos materiais não estão presentes, em suaplena atualidade, no ser que é verdadeiramente composto. Eles estão aí virtualmente, istoé, por sua virtude ou influxo, trazendo para o composto qualidades suas de algum modoalteradas pela própria composição que deu origem ao novo ser, mas que se prendem ànatureza deles como a uma fonte de energia. É através dessa alteração, quando eles seintegram uns aos outros, que criam uma nova disposição material que servirá defundamento à nova forma substancial. Em outras palavras, os elementos não estãopresentes como entidades autônomas, mas sim através de sua força ou energiaremanescente. Esse tipo de presença pode ser denominado de virtual, ou potencial:presença de poder, de fonte de energia. Laín Entralgo, no século XX, retomando umconceito de Zubiri, vai falar em "subtensão dinâmica" para designar o estado doselementos químicos quando integrados ao corpo humano (Laín Entralgo, 1995).

4) Mas isso significa também que a forma substancial do elemento simples, através daqual ele é o que é quando isolado, não existe mais quando ele se integra no composto.Tomás argumenta que se ela existisse nós teríamos dois corpos constituídos num só emesmo corpo, o que não faz sentido. O elemento simples entrando em composição, passaa fazer parte de um outro todo, e o que existe agora é a forma substancial desse outrotodo que é o composto. Esse tipo de composição se aplica melhor aos casos que nósconhecemos como composição química, quando, a partir de dois elementos mais simples,se constitui um terceiro diferente embora baseado nos anteriores (transportando para oterceiro algo dos primeiros). Tomás menciona também o outro caso: o do aglomerado, noqual não há composição propriamente dita. Aqui os elementos estão apenas justapostos,mesmo quando somente assim eles sejam visíveis (mais ou menos como acontece com ummonte de areia fina: plenamente visível no seu todo, dificilmente visível em cadapartícula). Somente neste caso é que as formas substanciais das partículas permanecem.Mas não mais podemos falar de unidade substancial, e sim, apenas, de aparência ouunidade acidental. Porque não há verdadeira composição. Algo assim pode acontecertambém com o corpo humano: ele usa e integra em seu funcionamento uma série deelementos, tirando proveito deles em função da vida do organismo, mas sem fundi-los a simesmo, digamos assim. O problema do texto, no entanto, é o de compreender averdadeira composição. Nesta, os elementos simples estão na origem, e ainda podem seridentificados por algum tipo de presença alterada por força da própria composição. Aforma substancial, contudo, que é aquilo que dá o ser específico constituindo o corpo comotal corpo, não é mais a dos elementos e sim a do composto.

5) No que diz respeito ao nosso mundo material (sub-lunar), Tomás de Aquino acolhe afísica de sua época sem discutir os detalhes. A realidade material é composta de elementossimples indivisíveis (terra, ar, água e fogo), cada um deles com suas qualidadescaracterísticas (seco, úmido, frio e quente) (ver, por exemplo, ST,I,66,r.s.c.2) (1). Esseselementos se compõem uns com os outros em proporções diversas e levando em conta acontrariedade de suas qualidades, formando outros seres que são os corpos compostos. Oesquema de pensamento é semelhante ao da química moderna (embora com um conteúdorudimentar). Mas aqui cessa a analogia, e devemos dar um passo além se quisermosmontar um discurso coerente que dê conta de nossa experiência de unidade e mudançaem nosso mundo. A constituição última do mundo material, para Tomás, não é vistaapenas em termos de elementos simples ou entidades completas em si mesmas (como

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pensavam os antigos filósofos naturalistas conhecidos por ele através de Aristóteles - verST,I,66,1). Saber de que são feitas as coisas não é suficiente para dar conta da geração denovos seres como vemos em nosso mundo físico. Eis como pensa Tomás de Aquino. Amatéria é o que permanece por trás das mudanças. O que muda é a forma. Às vezes o quemuda é a forma acidental, como a cor ou a figura, mas a substância permanece a mesma.Trata-se nesse caso de uma simples alteração que não afeta a essência: a substânciamaterial permanece. Quando, porém, a mudança é mais profunda, a própria substânciamuda. O que subjaz, então, a essa transformação radical, não sendo nem mesmo asubstância, será a matéria primeira de que são feitas todas as coisas corpóreas. Estamatéria primeira, assim concebida em sua radicalidade última, é totalmente indefinida,pois qualquer definição já seria uma forma constitutiva. Ela é, portanto, pura passividadeàs formas. Se matéria é o "de quê" são feitas as coisas, e forma é o arranjo desse materialna sua aparência, devemos ir mais longe em nossa concepção e falarmos em matériaprimeira como pura passividade, e forma substancial que é dá o "ser tal coisa" a algo. Aessa concepção se denominou "hilemorfismo" (hylé = matéria; morfé = forma). Acomposição básica das coisas não é a que existe entre os elementos, pois esses seriammatéria segunda (substância já constituída), mas a composição de dois princípiosmetafísicos: a matéria primeira (pura passividade) e a forma substancial (determinação edinamismo básicos). De onde vem, então, o que gostaríamos, hoje, de chamar de"energia" do movimento, e da transformação? Na linha do pensamento de Tomás deAquino, creio que devemos procurar essa origem na forma e não na matéria primeira, poisé a forma que é o princípio ativo de definição e desenvolvimento, enquanto a matéria, emsua radicalidade última, é apenas o princípio passivo. E uma das primeiras característicasimpressas pela da forma é justamente a quantidade ou extensão, pela qual dizemos que éuma forma material. O esquema de pensamento da física moderna se aproxima do quepara Tomás de Aquino era o pensamento dos filósofos naturalistas. Eles estavam em buscada partícula elementar, e o que se acrescenta a isso são as sofisticadas formas de medida.Mas para Tomás, desde que se possa identificar uma partícula (elemento), ou mesmosimplesmente medir um fenômeno (qualquer que seja ele), já tenho aí uma forma, e nãomais estamos diante da matéria pura. A matéria em estado puro não existe, é purapassividade; toda estrutura e todo dinamismo são forma. A forma em estado puro tambémnão existe, pois ela é determinação de alguma passividade.

6) Estamos aqui diante de problemas de tradução. Matéria e forma, para Tomás deAquino, não têm, o sentido que nós damos a esses termos contemporaneamente (matéria,como constituinte último da realidade, e forma como aspecto externo de algo). Para evitarequívocos, talvez devêssemos dizer: passividade ou receptividade, e estrutura dinâmica.Tomás afirma que "a matéria é conhecida pela forma, daí porque, considerada em simesma, ela é dita invisível e vazia" (ST,I,66,1). E: "aquilo pelo que em primeiro lugaralguma coisa opera é sua forma" (ST,I,76,1). O constituinte último da realidade corporal(matéria, no sentido atual mais comum) é a matéria (passividade) já informada (comalguma forma, estrutura dinâmica). Com o hilemorfismo, estamos além da física (aomenos no sentido moderno do termo), buscando um modo de compreender a nossaexperiência de um mundo unificado e constantemente mutante. Laín Entralgo (1995), omédico filósofo do séc.20, escolhe também o termo "estrutura" para falar de umadimensão indispensável da realidade física, mas não acredita que a "forma", de que falavaTomás de Aquino, possa ser essa estrutura. Não vejo porque não.

7) Como isso se apresentava do ponto de vista genético, para Tomás de Aquino? Adiscussão partia dos versículos bíblicos sobre a criação do mundo, especialmente aqueleque diz que no princípio a terra era “sem vida e vazia" (ST,I,1,obj.1). A questão que secolocava, então, era: existiu um estado informe, isto é, sem forma, da matéria? Tomásdirá que não, que isso é impensável. A matéria já foi criada com formas, embora essaspudessem ser rudimentares e perfectíveis (ST,I,66,1,r.s.c. 1: pequena passagem que abre

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uma grande perspectiva: a da evolução!). Mas essas formas não correspondem a umaforma comum: "também não se pode dizer que houve uma forma comum, e depoissobrevieram e ela formas diversas das quais ela seria distinta" (ST,I,66,1). E isso porque,se assim fosse, as formas subseqüentes seriam acidentais e não substanciais, esvaziando-se assim a consistência das coisas de nosso mundo, transformando a geração e corrupção(ou seja, a mutações em nosso mundo) em meras alterações externas, transformando aunidade substancial em aglomerado. E ele conclui que "a matéria primeira nem foi criadatotalmente sem forma, nem sob uma forma comum, mas sob formas distintas"(ST,I,66,1). E podemos pensar que essas formas distintas é que têm algo em comum: elassão todas formas "corporais", isto é, das quais a quantidade é a primeira qualificação (e,portanto, a extensão e a mensurabilidade).

8) É preciso mencionar aqui outros problemas de tradução. A resposta de Tomás aoproblema proposto (como os elementos existem no composto) seria, em resumo, essa: é aenergia dos elementos componentes que permanece no composto, mas não sua formasubstancial, do contrário teríamos duas formas substanciais existindo na mesma porção dematéria, o que não é pensável. Com "energia" estamos aqui traduzindo aqui o termo latino"virtus" (virtude, em português). Essa palavra tem um primeiro sentido moral, que setornou o mais comum em nossa língua: disposição permanente para atos bons. Mas seusentido geral, também muito usado em latim, é o de força, energia, fonte do impulso paraatos. Desse sentido resta em português, por exemplo, a expressão "em virtude de",significando "por força de", ou "por causa de". Poderíamos ter traduzido "virtus" por"virtude", mas optamos por "energia" para não restringirmos a compreensão ao sentidomoral. Se nos lembrarmos que "estrutura definidora e dinâmica" pode ser uma boatradução para "forma substancial", teríamos que a resposta, segundo o pensamento deTomás de Aquino, para a questão de como os elementos existem no composto poderia serdo seguinte tipo: os elementos que se agregam ao composto (constituindo, como que, ummeio indispensável para que ele possa subsistir), obviamente conservam sua estruturadefinidora independente, mas os elementos que compõem verdadeiramente o novo sernão conservam sua estrutura original autônoma, mas trazem dela a energia a partir daqual, por composição, se gera uma nova estrutura.

9) Qual a importância disso tudo para uma antropologia (enquanto compreensão do serhumano)? O ser humano é um composto, dotado de unidade substancial. Ele não é umaglomerado. A alma humana será concebida como a forma do corpo vivo, ou seja, comoestrutura dinâmica definidora e unificadora deste ser que é o homem. Todos os"elementos" a partir dos quais se constitui o corpo humano vivo, ou são elementosagregados necessários ao seu funcionamento, ou são elementos que se fundem naunidade deste corpo sob a mesma estrutura dinâmica que é sua forma substancial. Aquiestão colocadas as bases para se pensar a realidade concreta do ser humano. É preciso, noentanto, considerar que as estruturas se apresentam com complexidade crescente nacriatura corporal. A estrutura humana é a mais complexa que conhecemos. Paracompreendermos toda essa complexidade segundo a mente de Tomás de Aquino,deveremos ainda traduzir outros textos do mestre, sobre a vida, e sobre o espírito.

Referências bibliográficasAmatuzzi, M. M. (2003). Releitura de textos de Tomás de Aquino visando a construção de

um pensamento psicológico. Memorandum, 5, 42-54. Retirado em 10/11/2003 daWorld Wide Web:http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/amatuzzi01.htm

Gadamer, H.-G. (2003). Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêuticafilosófica. 5a. ed. (F.P. Meurer, Trad.). Petrópolis: Vozes; Universidade SãoFrancisco. (Publicação original de 1960).

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Torrell, J.-P., OP (1999). Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e obra. (L.P.Rouanet, Trad.). São Paulo: Loyola. (Publicação original em 1993).

Nota(1) Os textos da Suma Teológica de Tomás de Aquino, abreviados como ST, serão citadosaqui da forma convencional, a partir da edição Loyola de 2001.

Nota sobre o autorMauro Martins Amatuzzi é psicólogo, doutor em Educação pela UNICAMP, docente noprograma de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica deCampinas. Interessa-se por metodologias qualitativas de pesquisa, por processos demudança e desenvolvimento pessoal, por psicologia da religião, e pelo resgate depensamentos psicológicos antigos. Contato: R. Luverci Pereira de Souza, 1656 (CidadeUniversitária) - 13083-730 - Campinas/ SP, Brasil. E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 16/01/2004Data de aceite: 23/04/2004

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Lo "spirituale ammaestramento" di Federico Borromeoalla città di Milano: la questione antropologica

The "spiritual teaching" of Federico Borromeo in the city of Milan: theanthropological question

Marzia GiulianiUniversità Cattolica del Sacro Cuore di Milano

Italia

RiassuntoAttraverso l'analisi della predicazione nella città di Milano, raccolta a stampa nei quattrotomi de I sacri ragionamenti, si individuano i nuclei tematici della strategia pastoraledell'arcivescovo Federico Borromeo, che si confronta con l’opera di San Carlo, suo cugino,e con le nuove esigenze della chiesa post-tridentina nel passaggio fra Cinque e Seicento.Ad esse il presule risponde con l'elaborazione di una "filosofia cristiana", che è progettoculturale e pastorale. All'interno di una cosmogonia teocentrica, dalla quale discendonol'ordine e l'armonia del mondo creato, la centralità dell'incarnazione di Cristo e il ruolo diMaria quale mediatrice ed exemplum fondano una visione antropologica, che esalta lapienezza dell'umano quale unità di anima e corpo, da costruire in un cammino diperfezione, reso accessibile dalla mediazione salvifica di Cristo. Significative le tangenzecon la elaborazione teologica e spirituale della Compagnia di Gesù.

Parole chiave: Federico Borromeo; storia della chiesa; filosofia cristiana; eloquenzasacra.

AbstractStudy focused on Federico Borromeo's Sacri ragionamenti, a collection of his preaching tothe clergy and to laity of Milan from 1595 to 1631. These spiritual discourses can help usto identify the core themes of the pastoral strategy of the archbishop Federico Borromeo,connected with Saint Carl's episcopal government, his cousin, and with the newrequirements of the post-Tridentine Church. Referring to a cosmogony in which Godkeeps his central place, giving order and harmony to the whole world, created by Him,Federico emphasizes the mystery of Incarnation - identified with Redemption - and therole played by Mary in the life of Christ and in the life of every believer. This visiondignifies human nature, as a unit (spirit and body). "Perfection" is proposed as the idealof the Christian life, and can be achieved by looking at Christ, Mary and all saints.

Keywords: Federico Borromeo; Church History; Christian philosophy; sacred eloquence.

«Le cose più principan [...] insegnate al popolo per suo spirituale ammaestramento»(Borromeo, F. (1632). vol. I, p. I) è la formula semplice ed essenziale con la quale,nell'introduzione, Federico Borromeo (1565-1631) (1) definisce il contenuto de I sacriragionamenti, i quattro tomi voluminosi da lui voluti come testimonianza della suaincessante opera di predicazione durante il vescovato milanese (2), ispirata all'idealetridentino del «concionante episcopo» (3). Esplicitare la formulazione, ovvero identificarecontenuti, forme e modalità di un ammaestramento, cui è riconosciuta una valenzapedagogica di natura "spirituale", è compito arduo sia per la natura "mediata" della fontein esame, che è formalizzazione scritta di un testo pensato per la recita orale, sia per la

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Giuliani, M. (2004). Lo "spirituale ammaestramento" di Federico Borromeo alla città di Milano: 90la questione antropologica. Memorandum, 6, 89-113. Retirado em / / da World Wide Web:http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/giuliani01.htm

complessità del suo autore, il cui «universo religioso e intellettuale» nasconde ancora inparte agli studiosi il proprio «punctum stans aut cadens» (Bosco, 2002, p. 120). (4).Le redazioni manoscritte delle oltre trecento prediche e i quaderni di studio, che, comeun vasto e articolato thesaurus memoriae, dischiudono al Borromeo l'universo dei saperi,ordinato "per voci" e "per voci" interrogato alla ricerca di luoghi predicabili, fornisconouna nuova chiave di accesso ai contenuti omiletici recuperati nel loro primo strutturarsiattraverso un intenso lavoro di preparazione e "riascoltati" nella loro recita orale, di cui siscoprono tempi, luoghi e destinatari (5).Le parole, che Federico legge e medita nella solitudine dello studio, si fanno riflessionepensosa dell'uomo di fede che, chiamato alla cura d'anime nel suo più alto grado, lerende fruibili al suo popolo nella forma di un vibrante insegnamento, frutto della tensionecostante a una sintesi costruttiva, nella quale convergono positivamente cultura, fede eimpegno pastorale (6).Abbandonando un procedere rigorosamente logico argomentativo, a favore di unacospicua galleria di immagini ed exempla, il vescovo, umanista per formazione evocazione, cerca di persuadere i suoi fedeli del fascino di una «filosofia cristiana»,proposta di un modello antropologico, sul quale giocare per intero la propria umanità apartire dall'esempio di Cristo, di Maria e dei santi.

«Meraviglie d'un più luminoso cielo e d'una più fertile terra»Il più importante biografo seicenteso del cardinale, Francesco Rivola, ricordando, nellasua biografia, la prima messa pontificale di Federico osserva come

quello poi che sommamente ragguardevole rendél'attione fu che tramezzata ella venne da un bellissimoragionamento da lui fatto sopra del pergamo in laudedella Reina del Cielo, al risonare della cui voce riempitisidi spiritual gaudio tutti gli astanti con vari atti di gioia efesta dimostravano l'interior loro letizia, godendosommamente di veder rinnovellata nel novelloBorromeo l'antica maestà delle funzioni ecclesiasticheda loro passati nel santo pastor Carlo soprammodoammirata. (Rivola, 1656, p. 203).

Sin da questo primo rivolgersi ai milanesi nella forma di un panegirico «in laude dellareina del cielo», poi posto ad apertura del quinto volume dei ragionamenti, Federico fadella Vergine Madre di Dio il centro e il punto riassuntivo del grandioso quadrocosmologico, che è per lui l'orizzonte di senso e di riferimento della vita credente, nonprima di aver chiarito, nell'esordio, possibilità e limiti della sua parola di predicatore e diquella di ciascun uomo di fede.«Ogni lingua dovrebbe tacere», dice Federico, a fronte della sproporzione incolmabile frala sapienza di Dio, che è potenza creatrice, e la debole ragione umana: «se quell'infinitosapere [...] più distesamente a noi non ragiona [...], come potrà esser vero che senzagrave errore e presuntione di sì fatto soggetto più innanzi da alcuno di noi mortali siparli?» (SR, V, i, pp. 285-290, p. 286). La sapienza stessa «mostra che bello solamentesia il tacere» (Idem) (7). Il silenzio dell'ineffabilità non è però vuoto, in cui tutto si perde,ma pienezza, che, pur indicibile compiutamente, si può, almeno in parte, intravedere: laluce del cielo divino è inaccessibile agli sguardi terreni, ma l'aurora che sorge «ridona ecomparte alle cose tutti i loro colori» e «rende al mondo quella bellezza» (SR, V, i, p.287), lasciando immaginare per via analogica e intuitiva le meraviglie, altrimentiprecluse, di quel cielo divino. Le creature rimandano al loro creatore e nella trama deirimandi si apre lo spazio della similitudine, per risalire, di grado in grado, dalla «veduta»del mondo naturale «alla consideratione della divina presenza, mercé della qualescopriamo in tutte qualche singolar beneficio ad utilità ed uso nostro da sua maestàordinato» (BAMi, codice G 17 inf., n. 5, Ragionamenti familiari dell'oratione fatti allemonache, ff. 199-203, f. 200). (8).

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Da qui la scelta, in accordo con il rinnovamento dell'oratoria sacra di etàumanistico/rinascimentale (9), di un linguaggio metaforico-ostensivo, in cui l'immagine sicarica di molteplici valenze (10). È anzitutto strumento retorico che, facendo leva sugliaffetti, cerca di suscitare il coinvolgimento emotivo del lettore/uditore; non scade a meroartificio formale in quanto dotata di un vero portato conoscitivo: ogni similitudine èdisvelamento degli ordinati rapporti analogici fra i diversi gradi dell'essere. E lasomiglianza genera un processo di assimilazione qualora l'immagine sia resa oggetto dipreghiera devota: vedere diventa contemplare e chi contempla si configura perimitazione al contemplato (11).

Sì come un dipintore, riguardando fiso in una imagine equella diligentemente osservando, un'altra assaisomigliante a quella primiera con l’opera sua ne vienead esprimere, così noi per via del contemplare unacerta somiglianza di Dio vegniamo in noi stessi aformare. (SR, VII, vi, pp. 176-181, p. 178).

La creazione stessa è presentata da Federico ai fedeli come una mirabile opera d'arte,realizzata da un Dio «sovrano artefice e fabbricatore del tutto», che, «sì come gli arteficitutti per comune legge delle loro arti e per proprio vanto sogliono sempremai mettereogni sforzo in fabbricar alcun degno lavoro», così ha voluto «nella general creatione delmondo [...] per alcun modo questo medesimo ordine osservare». (SR, V, i, pp. 286-287).La similitudine delinea una cosmologia saldamente teocentrica, nella quale le realtàcreate sono disposte a comporre un'ordinata armonia, che procede per gradi, dallesostanze spirituali e quelle materiali (12). Nella creazione dell'uomo esse si incontrano esi fondono e nella perfezione dell'umano, di cui la Vergine è simbolo eloquente, trovanola loro massima evidenza di bellezza.

Formò senza comparatione maggiore e più perfetta laVergine in cui vedesi la sua chiarissima anima unita allaterrestre materia con maggior lume risplendere [...] e laterra del corpo di lei fu in guisa nobilitata, che sopratutte le gerarchie sempiternamente riposa. (SR, V, i,pp. 285-290, p. 287).

Luminosità e fecondità sono attributi incessantemente replicati nelle pagine deiragionamenti a esprimere l'eccellenza di Maria. Annota Federico in una redazionemanoscritta:

et doppo che ella fu imagine, dico che fu imagine senzaombre, con colori divini. Negli altri furono necessariel'ombre e i lumi, i chiari, gl'oscuri, ma non in Maria. Condivini colori fu espressa per essere vista al lume di Dioprincipalmente et dall'occhio di Dio. Gli scuri et l'ombrene santi sono l'imperfettioni della natura et i peccati legioie; questi parti de pittori sono stati così benecompartiti che hanno resa più bella la pittura. (13).

E prosegue:O doni concessi a Maria. Vedo sopra la terra infinitebellezze varie et stupisco prodursi da un sol raggio, dauna sola virtù celeste principalmente, fiori, frutti,herbe; dentro di essa oro, metallo, nel mare perle. Checrediamo che operasse il sole di giustizia mentreriguardò questa terra feconda dell'anima di lei? Chebellezze, che varietà et occulte et palesi nacquero!.(BAMi, G 18 inf., n. 6, f. 14r).

Tale effigie ritratta a parole sembra singolarmente affine, pur nella estrema difficoltà diindicare un brano letterario quale fonte iconografica di un dipinto (14), alla celebreMadonna della Ghirlanda dipinta da Brueghel per il cardinale. Il passo dei ragionamenticontiene tutti gli elementi del quadro, con una correlazione sintattica affine: in primo

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piano la Vergine, dietro il «paesetto», esplicitamente richiesto da Federico al pittore(Jones, 1997, p. 71); la prima, fecondata dai raggi della grazia, tiene in braccio il figlio, ilsecondo, illuminato dalla luce del sole, produce fiori e frutti, che sappiamo essere statiscelti fra i più preziosi e copiati dal vivo. I due elementi del quadro (il bambino e i cieli),mancanti nella descrizione di Federico, si trovano nella prima parte della stessa predica,con la metafora d'esordio di Maria «cielo che contiene tutti gli altri» (SR, V, v, p. 307),primo mobile (15), e la successiva descrizione del di lei corpo, illuminato «dai raggi delsole che da lei nacque» (Ivi, p. 308) (16).Immagine e parole dichiarano la centralità di Maria, in quanto protagonista della secondacreazione, che nella nascita del figlio Gesù si realizza (17). La Vergine è «orizzonte fra lecose terrene e le celesti e fra le mortali e le immortali» perché «mediante lei riconciliatosi è il cielo con la terra ed a noi si è fatto il liberal dono del tesoro degli angeli» (SR, V, ii,pp. 290-295, p. 292), che è poi la grazie spirituale. Per essa il Dio inconoscibile, che nellasua potenza ha creato il mondo, si rende accessibile allo sguardo dell'uomo nelnascondimento dell'umile grotta di Betlem in virtù del fiat di Maria.Più che gli eventi finali della passione e resurrezione, sono i vangeli dell'infanzia, cheracchiudono in sé l'evento salvifico della redenzione, l'oggetto privilegiato dellapredicazione di Federico (18), che li propone ai fedeli con una tecnica affine allacompositio loci, sistematizzata in modo paradigmatico negli esercizi ignaziani (19). Diragionamento in ragionamento, ma anche all'interno di un singolo discorso, lo sguardo ècondotto a contemplare la povertà del bimbo, il silenzio di Maria, lo stupore dei pastori,entrando nella grotta ed ascoltando persino le parole dei personaggi, come avviene«nella contemplatione per la via di applicatione de sensi» della meditazione sulla nativitànella Dispositio ad esercitia facienda (BAMi, G 19 inf., n. 2) (20). Al fedele si consiglia di«riguardare tutte le persone et notare le circostanze che circa loro occorreranno, concavarne giovamento» (21), di ascoltare «che cosa parlino» per poi sentire «con un certogusto, et odorato [...] la dolcezza et soavità dell'anima ripiena di virtù et di doni divini» einfine «immaginarsi di toccare, e basciare le vestimenta, i luoghi, le pedate, et altre cosedi quelle persone» per accrescimento della «divotione o altro bene spirituale» (Idem)(22). Ogni fedele è invitato ad ascoltare «le varie e diverse voci e tutte mirabili cheescono dal presepio» (SR, I I , VIII , p. 65). Esso, come già i cieli, è chiamato all'ufficio dioratore: «il presepe è una nobilissima e spaziosa piazza, dove si odono le voci che ciammaestrano. Ella predica con la piccolezza perché tu l'ami, co' disagi, perché tu fugga ledelitie» (Idem).Federico vescovo è il primo a porsi in ascolto e ad esemplare la propria vita di pastore edi intellettuale, o forse, meglio, di intellettuale impegnato nell'attività pastorale, sulmodello di Maria Theotokos. Il segretario Vercelloni ricorda come il cardinale tenesse una«Madonna del Pulzone»

vicino dove stava a sedere nella sua camera. Questa,quando era sopraggiunto da qualche tribolatione per ladifesa della sua chiesa, rimirava con tanto affetto edevozione che indi a poco se ne partiva tutto consolato.Si conserva nella sala del disegno a canto alla bibliotecaambrosiana; sta col capo chinato con li bracciaincrociati avanti al petto. (BAMi, G 264 inf., Miscellaneacarmina et nonnulla alia ad cardinalem FedericumBorromeum spectantia, f. 17v) (23).

Riprendendo l'iconografia tradizionale degli evangelisti, il Borromeo commissiona unritratto, che lo raffigura «di profilo, seduto e intento a scrivere», mentre, «in cerca didivina ispirazione, fissa intensamente non il consueto angelo, ma un quadro dellaMadonna con Gesù Bambino» (Jones, 1997, p. 3), quasi ad esprimere come l'intera suaattività sia un atto di omaggio alla gloria divina, visibile nella tenerezza del Figliodell'uomo, che riposa nelle braccia della Madre.Se nella definizione degli elementi visivi può aver giocato un ruolo non secondario larecentissima tradizione iconografica del "gran padre" di Federico, il Neri, la cui

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«immagine ufficiale» viene «costantemente associata a quella della Vergine, a volte dasola, ma spesso con il bambino benedicente» (Melasecchi, 1995, p. 37) (24),l'atteggiamento spirituale complessivo, che dal quadro emana, pare potersi esprimerecon le parole del «principio overo fondamento» degli esercizi ignaziani, che Federico ponead apertura della sua già ricordata Dispositio ad esercitia facienda: «l'huomo è statocreato a questo fine; accioché lodi e riverisca il suo Signore Iddio et a lui servendo al finsi salvi. Tutte l'altre cose che sono sopra la terra sono state create per l'huomo acciocchél'aiutino a conseguire il fine della sua creatione» (Dispositio, f. 2v).In ogni predica Federico rende gloria ai beneficia Dei, ora descrivendo commosso varietàe bellezza degli elementi naturali, dai grandi paesaggi del cielo, del mare o delle disteseboschive, ai più minuti capolavori del creato quali i fiori e le perle, ora alzando gli occhi,quasi rapito, verso un altro "sole" e un altro "cielo", dove sono splendori di cori angelici edi anime beate e dove la Vergine siede «su trono imperiale» (SR, V, ii, pp. 291-295, p.291), ora raccogliendosi meditativo sul miracolo di grazia rappresentato da ogni uomo,che con il proprio corpo partecipa della "terra" e nell'anima custodisce la luce del cielo eche, rinato in Cristo, può legittimamente aspirare e ad una «più fertile terra» e a un più«luminoso cielo» (SR, V, xvi, pp. 368-372, p. 368), ovvero a uno stato di perfettabeatitudine.

«Rapsodia de a more divino»La profezia di Isaia, che immagina «alla fine dei giorni il monte del tempio del Signore[...] eretto sulla cima dei monti [...] più alto dei colli» (Is., 2, 2), ricorre nei ragionamentiquale prefigurazione del compimento della gloria futura. Sulla scorta di Gregorio Magno,Federico annota nel primo quaderno dei Coniectanea che il versetto «intellegit de beataVergine», perché «Maria, quia Mater Dei, est domina creaturarum» (25). In unaaccezione più estensiva, se ne serve nel primo ragionamento dedicato alla festa di tutti isanti, significativamente titolato «che mirabile è Iddio ne suoi santi» (SR, V, i, pp. 379-381, p. 379), per indicare lo stato di perfetta compiutezza donato agli uomini che, comeMaria, accettano di affidarsi senza riserve alla grazia di Dio.Nella visione della Gerusalemme celeste la Vergine appare trionfante fra i cori dellegerarchie angeliche e le schiere dei beati, ricreate dal «supremo artefice Iddio, quasinuovo fabbricatore delle membra humane» (SR, VII I , iv, pp. 295-299, p. 295), dellastessa bellezza di cui risplende Maria. I loro corpi rilucono «in quel modo che noiveggiamo un cristallo esser vestito di verde, d'azzurrino e di purpureo colore ed in quellaguisa parimente che i chiarissimi diamanti quantunque colmi sieno di luce, in vista paionobellissimi» (SR, I I , ix, pp. 411-418, p. 415). La bellezza esteriore dei beati è riflesso diun'armonia interiore, che si esprime in un pieno e sereno dominio dell'anima sul corpo (lostesso di cui può vantarsi Maria) con il coinvolgimento di tutte le potenze interioridell'uomo, a partire dai cinque sensi, chiamati ad un pieno e simultaneo appagamento. Silegge in una riflessione di Coniectanea prima titolata «rapsodia de amore divino»:

La terra come opaca, non per ogni luogo, ricerca il lumedal sole in uno stesso tempo, perché dove è l'aurora,dove l'occaso, dove il mezzo del giorno, dove poifruttifica, dove è arida. Così sono gli affetti nostri inquesta vita. Non tutti sono compiuti del suo desiderio:quello che è cibo dell'uno de sensi è fame dell'altro. Chié ricco, non è honorato, così de sensi. Non si trovadelicia così compita che in un tempo sacii tutti i sensi,alcuni restano opachi. Anzi uno resta attorto nel piaceredell'altro et di più resta stanco come la terra doppohaver prodotto il frutto di giugno, perdendo il naturalvigore che al lume dell'affetto si consumò. Però si fa avicenda ne sensi et ne gli obietti dilettosi. Hora nellapatria del cielo questa terra erit sicut christallum. Tuttatrasparente il giorno chiaro in ogni sentimento et parte

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dell'anima, et in ogni obietto generico et specifico, ettutto ciò in un punto. (Coniectanea prima, f. 47).

L'idea è sviluppata da Federico fra gli anni 1615/1621 in una serie di prediche dedicatealla glorificazione dei corpi attraverso la piena beatitudine nella gloria dei cinque sensi(26): si parte dalla vista, il più nobile, e si arriva al tatto, il più basso ed umile (27). Ladefinizione di ciascuno ricorre a categorie aristotelico/tomistiche. Posto il paragone tral'occhio e la parte razionale dell'uomo (SR, V, ix, pp. 411-418, p. 417), il modo di«governo» sugli altri sensi è definito «politico, non dispotico» (28), termini usati daAristotele per indicare il controllo della ragione sulle passioni (cfr. Zanlonghi, 2000, p.120). Sulla scorta del «grande peripatetico» (29), la beatitudine è «un certo beneperfetto» (SR, VII, vii, pp. 182-187, p. 184), come confermato «dagli scrittori i qualinelle sacre scuole si leggono a tutte l'hore» (idem), ovvero san Tommaso e gli altrirappresentanti autorevoli della scolastica, fra cui Alberto Magno, chiamati in causa perspiegare le diverse modalità concrete di pieno appagamento, dunque di beatitudine, diciascun senso.Se da tempo è stato rilevato come i temi della felicità e del piacere/diletto siano dariconnettersi alla spiritualità filippina (30), poco sottolineato è il debito verso la tradizionearistotelico-tomistica, viva nel pensiero teologico della seconda scolastica, elaborato conil contributo determinante dei gesuiti (cfr. Buzzi, 2003). Per loro tramite (31) Federico siaccosta a questa filosofia, sulla quale si basa la propria visione antropologica, chevalorizza la dimensione corporea e i relativi appetiti sensoriali come elementi qualificantidell'essere persona (32). Si noti come le prediche dedicate alle «doti» dei «corpi gloriosi»sembrino amplificare l'«esercitio del paradiso», della già più volte ricordata Dispositio,che segue da vicino struttura e temi degli esercizi ignaziani:

considera che godimento haveranno i beati dopol'universal risurrettione per quelle quatto doti del corpoglorioso, che sono sottigliezza, impassibilità, agilità etchiarezza. E per la gloria de' sentimenti, ciascuno de'quali haverà il suo particolare diletto. Perché gli occhigoderanno della vista de' corpi gloriosi, e delle stanzeornatissime del cielo; l'orecchio udiranno continuemelodie et cantici soavissimi. Il gusto sentirà unadolcezza ineffabile, la qual vincerà la suavità di tutti isapori. Et tutti gli altri sentimenti saranno mirabilmentericreati con oggetti a loro proportionati, si rallegrerannoancora per la piena satietà di tutte le potenzedell'anima e per vedere l'adempimento di tutti i suoidesideri possedendo perfettamente tutto quello, chepuò bramare corpo humano. (Dispositio, f. 33, n. 8).

Nelle prediche l'amplificazione è svolta tralasciando le sottili disquisizioni argomentativedei maestri della scolastica e illustrando con immagini, tratte dai libri della scrittura, dellanatura e dell'arte, ma anche dalle pagine degli amati autori classici, la pienezza di unapproccio al mondo di tipo percettivo/sensoriale, di estrema modernità (33). La memoriadegli antichi affiora nella lode dell'udito e del gusto. Le orecchie dei beati potrannoascoltare la «meravigliosa armonia» della platonica musica dei cieli, che per Federico è il«concento» delle lodi a Dio nella Gerusalemme celeste (cfr. SR, V, x, pp. 421-422) (34);l'ambrosia e il nettare gustati nei campi elisi secondo le favole degli antichi poeti, o lamanna assaggiata dai patriarchi nell'antico testamento, sono nulla a confronto dei saporiofferti in cielo alla bocche dei beati (SR, VII, xiv, pp. 225-231, p. 226). Un pallido sentoredegli odori, di cui loro godranno, si può avere sfogliando il «sacro e maestoso libro dellacantica», nel quale «si dispose Iddio di volgere gl'animi humani all'amore di semedesimo, etiandio col far mentione di fiori, d'odori, d'aromati, d'odoriferi frutti, di lietecampagne e di giardini dilettevoli, le quali cose tutte sogliono recar meraviglioso piacereal sentimento dell'odorato» (SR, VII, vii, p. 183).

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Interessi scientifici e spiritualità contemplativa si uniscono a celebrare la vista come il piùimportante fra i sensi già dai tempi del Philippus: «alla conservazione e all'esercizio delcorpo umano molto contribuiscono le mani, i piedi e le altre membra, ma nessuna partedel corpo presta un aiuto maggiore e più nobile dell'occhio» (Valier, 1975, p. 123) (35).Solo attraverso di esso, che riassume in sé tutte le altre facoltà percettive, si scopre ilmondo:

tu vedi la neve e il ghiaccio e senti il freddo; e riguardil'immagine e parti di udirne le parole; ed i fiori dipintirendono per certo modo a noi grato l'odore. Quindi èche per questo gran potere dell'occhio humano,chiamar lo possiamo il soprastante ed il reggitore ed ilmaestro della casa de sentimenti e delle altre membrahumane (SR, V, ix, p. 416) (36).

I sensi, dunque le esperienze percettive, sono per il Borromeo alla base della conoscenza(37) e in questo processo agli occhi, così collegati alla ragione da esserne quasi simili,spetta il compito della verifica, perché tutti gli altri sensi si rivolgono ad essi per avere«conferma» (SR, V, ix, p. 417), e alla voce, «madre degli umani ragionamenti e ministradella ragione» compete la funzione di trasformare in parola quanto esperito (SR, V, x, pp.418-423, p. 418).É chiara l'intrinseca bontà che Federico riconosce alla natura umana, a partire dalla suadimensione più corporea e dunque terrestre, non a causa di un facile irenismo, che siripiega nella contemplazione di un mondo ideale, abbandonando il terreno della storia,ma in virtù dell'enfasi posta sull'incarnazione del figlio di Dio, che ha assunto su di sé lastessa carne dell'uomo, restituendola alla sua dignità primigenia, ante peccato originale.

Verso la perfezione: la convenevol proportioneSe la creazione del mondo e la glorificazione della Vergine e dei beati hanno come loroattributi specifici la bellezza e la grazia di un'opera d'arte, uscita dalle mani dell'arteficedivino, anche il destino personale di ogni credente si inscrive in un quadro di superiore esquisita armonia. La virtù ha l'aspetto visibile di una "forma bellissima", che è l'esito diuna vita vissuta come un ininterrotto processo creativo.

Teco medesimo discorri, qual vorresti che fossequell'huomo, che l'uficio, il qual hora tieni, amministrardovesse. Dipigni hora l'immagine di esso nella tuamente; ma con questo patto, che mentre ciò fai, nonrimiri te stesso. Fornito poi che haverai di effigiarequesto perfetto ritratto, in te rivolger lo sguardo dei, edappresso paragonare, e distinguere le parti di questedue forme, ed i diversi loro lineamenti. Con questamirabile arte egli è gran tempo che fabbricata ne fu unaperfetta immagine, la qual hora io sono disposto dimostrarti. (SR, IV, v, p. 208) (38).

Le forme di virtù possibili sono molteplici, perché ciascuna è relativa allo stato specificocui appartiene il fedele nella società (39), ma l'attributo loro essenziale è solo uno, laperfezione (perfetto ritratto, perfetta immagine), ovvero la qualità primaria del mondocreato da Dio. In relazione alla creazione divina, fatta di «peso, ordine e misura, [...] trequalità [..] di tanto valore e momento» da essere «quasi la vita del mondo» (SR, IV, i, i,pp. 135-139, p. 136), e presentata a modello per la convivenza fra le creature «rationalie Iddio», Federico definisce il peccato, per contrapposizione in negativo, «un pervertirel'ordine dell'humana via e della natura» (SR, IV, i, i, p. 137). La bellezza donata all'uomo,con «mirabile artificio [...] da Dio fabbricato» (SR, IV, vi, pp. 209-211, p. 210), così cheil suo corpo appaia «un miracolo della natura» e la sua anima «un miracolo della gratia»,é sfigurata dal peccato, per il quale «cadde il magnifico edificio dell'humana natura daquel supremo artefice fabbricato e da quella grande ruina ucciso ne fu chi di quella fucagione, e gli altri insieme» (SR, IV, v, i, p. 190) (40).

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La «bruttezza del peccato» (SR, IV, i, i, p. 135) consiste nella disarmonia fra gli elementicostitutivi dell'essere persona, gli appetiti sensoriali da una parte, e la facoltà razionaledall'altra. La ragione, che dovrebbe riconoscere in Dio il fine ultimo, la meta, e tramite lavolontà, indirizzare a lui le potenze sensitive, si lascia soggiogare ora dalla "parteconcupiscibile" ora da quella "irascibile". Con esplicito riferimento ai termini delle scuole,ovvero al sistema antropologico artistotelico-tomistico, Federico spiega che

essendo in noi senso e ragione, il senso hora s'impiegain odiare, in ingiuriare, in percuotere ed in uccidere; equesta è la parte irascibile. Hora è tutto occupato inamare, in giovare, in godere, e ne' diletti, sé e ad altruicompiacendo; e questa è la parte concupiscibile. Laragione poi, overo la volontà, è quella che, quasi reina,stando in mezzo di queste due ancelle, volgesempremai lo sguardo al bene, e quello naturalmenteproccura e cerca di conseguire e, quando nol fa, ad unadi queste due serve troppo credendo, perde ogni suohonore e grandezza. SR, IV, iii, i, pp. 172-176, p. 172(41).

Lo smarrimento della ragione è all'origine della conflittualità fra anima e corpo, che,«stretti amici in apparenza» e «con una comune legge congiunti», sono «cotanto l'unoall'altro infedeli, e d'inclinatione così poco fra se conformi, che in ogni cosaguerreggiano» (SR, IV, v, i, p. 190).Se questo è il punto di partenza, per «trovar perfettamente la perfettione della virtù»(Dispositio, f. 91r), si rende necessario ritessere un dialogo, che, lungi dal mortificare gliappetiti sensibili e le legittime esigenze della corporeità, sappia dare ad essi unaespressione proporzionata alla loro natura effettiva. Come si legge nella Dispositio «nonsi ha da curare i primi moti come di cosa minima»: ogni istinto passionale meritaattenzione e non si deve in alcun modo «estirpare totalmente le passioni, come volevanogli stoici» (ibidem). Occorre piuttosto trovare la misura conveniente: «sicome tutte lecose create hanno la perfettione loro nella debita misura, et le imperfettioni e vitio postonello eccesso, o difetto di quella» (Dispositio, f. 88v), così anche le passioni devonotrovare la loro «convenevol proportione» (SR, I I I , xi, pp. 29-32, p. 30), la loro giustamisura, che riguarderà anzitutto l'oggetto del desiderio e secondariamente l'intensità deldesiderio stesso. Il concetto è esemplificato con riferimento alla vista:

non devi abhorrire la passione o senso moderato dellavista nelle attioni, come se fosse male con voler imitarea modo di simia l'istinto particolare divino di alcunisanti ch'havevano ciò in uso; ma admettere tal senso,et con libertà dominarli con l'uso della ragione et rifinireil tutto in Dio.(Dispositio, f. 91r).

La connotazione morale, qui applicata alla vista, è propria anche degli altri sensi ed inessa risiede il discrimine fra il piacere disonesto, che genera occasioni di peccato, e quelloonesto, delineato, nel già ricordato ciclo sui cinque sensi, a partire da un confronto congli "antichi" che, sul tema, appare piuttosto serrato. Dalla speculazione greca si originanodue posizioni antitetiche: per Platone «la cagione di tutti i mali dell'infelice terra» è «nelpiacere», verso il quale troppo indulge «la mal disposta mente» (SR, V, viii, p. 409) (42);Epicuro, «alla guida de' sensi solamente attendendo» (SR, I I , xiii, p. 103), vede nelpiacere «il maggior bene» (SR, V, viii, p. 409) e lo ricerca «fra le lascivie e fra nobiliconviti» (SR, I I , xiii, p. 103).In una mediazione fra i due estremi si colloca la posizione di Federico. Egli asserisce conforza, sebbene smorzi prudentemente l'affermazione con un «siami licito [...] dire», che«nella scuola di Christo [...] le porte di esso (cfr piacere) libere sono ed aperte; e che ibelli e grandi piaceri non s'interdiscono al cristiano» (SR, V, viii, p. 409). Constata peròcon preoccupazione come «i sensi troppo più che non ci sarebbe di mestiere ci accecanoe ci fanno vivere in miseria e tengono quasi del continovo la ragione così imprigionata,

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che poco lume ella discerne» (SR, I I , xiii, p. 104). La ricerca delle delizie fine a se stessaé da rifiutare, ma i diletti sono il premio di una vita onesta; è Dio a produrre «mari efiumi di celestiali diletti» (SR, VIII, xi, pp. 325-330, p. 325), con il pieno appagamentodei sensi (detti anche sentimenti) e l'illuminazione dell'intelletto, che dona al cuore lafelicità.Cristo, nella sua opera redentiva, ricompone l'unità ab origine impressa in ogni uomo dalcreatore, accordo di ragione e sentimenti, armonia di anima e corpo, equilibrio di vitaattiva e contemplativa (43) e dunque consonanza perfetta fra microcosmo emacrocosmo. L'opera redentiva è un processo che avviene nell'oggi della storia ed hacome protagonisti ciascuno degli uomini di fede cui il Borromeo si rivolge.La prima forma di espressione "sensibile" da recuperare in pienezza per conferire allapropria vita la "bellissima forma della virtù" è per Federico quella della meraviglia (44),che si fa riconoscenza e lode per la costante iniziativa d'amore di Dio nel mondo creato enella storia personale di ciascuno. Il rendimento di grazie risponde all'essenza stessadell'essere umano, «creato per intendere le opere del mondo della natura e del mondodella gratia e per ammirare quanto in amendue si contiene e per ringratiare, benedire,lodare ed amare il sommo bene offertogli con prontezza» (SR, V, x, pp. 327-329, p.328). E' quanto, in forma sintetica, recita il fondamento ignaziano nell'esordio dellaDispositio («l'huomo è stato creato a questo fine, acciocché lodi e riverisca il suo SignoreIddio») ed è tematica cara anche alla spiritualità filippina, cui proprio il giovane Borromeodà voce nel dialogo Philippus, asserendo che la vera gioia consiste nel «continuo ricordodei benefici divini» (Valier, 1975, p. 23) (45). In ragione di questo atteggiamentopositivo Dupront (1932, 1935, 2001) ha creato la categoria dell'«ottimismo cristiano»,che ha ottenuto molta fortuna presso gli studiosi, ma la cui forza ermeneutico-interpretativa va forse riequilibrandosi alla luce delle nuove acquisizioni critiche (46).Se lo sguardo è invitato ad alzarsi verso i cieli, è altresì sollecitato a farsi strumento diuna acuta introspezione interiore, che si inabissa in oscure profondità, ben lontane dauna visione ingenuamente ottimistica. La dimensione dell'interiorità è espressa attraversol'immagine del cuore, «povero ed oscuro», niente più di un «diversorio ed un miseroalbergo pieno di viandanti, di strepiti, e di confusioni» (SR, I I , iii, pp. 17-28, p. 27) (47).In esso il peccato giace come «fiero mostro» «nelle più nascoste parti [...]; e fuggendosidalla luce come è costume delle salvatiche fiere continuamente dimora; e quivi appenaveder si può il suo crudel sembiante» (SR, IV, ii, i, pp. 157-161, p. 157) (48). Persnidarlo «il natural lume dell'intelletto col divino fuoco della gratia» deve ravvivarsi e«per ogni lato andar ben ricercando i più riposti luoghi del cuore e le più occulte esolitarie sue grotte» (SR, IV, i, ii, pp. 139-143, p. 139) (49).

Questa indagine razionale é Tésame della coscienza, da compiersi ogni sera (50) esempre prima della confessione, secondo due regole principali: individuare le cause delpeccato ed «esaminare le circostanze che il nostro peccato accompagnarono» (SR, IV, i,ii, p. 140) (51). In esse sono da ravvisare le categorie aristoteliche, valide sia per ildiscorso retorico (52) che per quello etico: «nella Filosofia morale compare la nozione dicircostanza intesa come occasio particolare per la realizzazione delle azioni morali»(Zanlonghi, 2000, p. 24) (53). Le circostanze determinano l'occasione del peccato, che èbene imparare a riconoscere subito (54) per evitare che l'azione peccaminosa si trasformiin habitus (altra categoria aristotelica) o in pessima usanza, magari dell'intera città, comeavviene per lo sconcio parlare o per la profanazione dei luoghi di culto, al centro delleriprensioni di Federico ai milanesi.La gravità dei due peccati è proporzionale al peso della loro rilevanza pubblica, allaprofondità delle loro radici in interiore homine e al reciproco interagire di questi dueaspetti. Ogni espressione corporea, nella visione antropologica federiciana, è segno checomunica. Ogni gesto è rivelazione dell'interiorità, in quanto «le parole sono indicedell'animo» (Miscellanea Vercelloni, f. 21r) (55) e il culto esteriore è specchio di quellodel cuore, ed è, per il suo essere visibile (56), exemplum virtuoso o peccaminoso.Raccomandare un parlare onesto o prescrivere atteggiamenti devoti ad civilem cultumurbanitatemque non è, perciò, rinuncia ai grandi temi pastorali, per ripiegare sulle

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semplici buone maniere cristianizzate, ma è forte ambizione pedagogica di chi ancoracrede nella persona come unità e pienezza di anima, corpo e sensi e di chi è convinto chel'esempio, in virtù di una imitazione che si fa assimilazione (57), sia forza capace ditrasformare il cuore dell'uomo (58) e il volto della società.A Milano il Borromeo propone la Gerusalemme ultraterrena quale punto di partenza, edinsieme modello esemplare di riferimento, cui tendere in un incessante lavoro di«reformazione» (SR, VIII , xvi, pp. 350-354, p. 352). Dalla gerarchia celeste che lacaratterizza

quasi per riverberatione e per ripercotimento, ne vieneformata e come colorata con finissimi lineamenti esembianti questa terrena. Sì come adunque la gerarchiaceleste è come misura e forma della terrena, cosìquesta prender dee ogni sua bellezza e perfettione,quasi da esemplare, da quella primiera e sovrana idea,alla quale noi tutti dobbiamo sempremai studiared'assomigliarci. (Idem).

Come ciascuna gerarchia angelica assolve a una propria specifica funzione, così «fardovrebbe ciascun fedele di Christo, faticando e travagliando secondo le leggi del suouficio e del suo stato» (Ibidem) (59). L'accordarsi di ciascuno al ruolo che gli è statoassegnato è la condizione perché possa risuonare l'armonia del mondo: «per tal modoquesta cetera sentirassi accordata e vedrassi questa scala delle cose create, cominciandodalle inferiori infino alle superiori, salire infin'al cielo ordinatamente» (SR, VIII , xv, p.345).Non si tratta di una visione irenica perché la nascita della compagine sociale è connessa,più che alla socialità naturale di aristotelica memoria, alla situazione di indigenza epovertà propria di ogni natura finita, in accordo con l'affiorare a fine Cinquecento didottrine neostoiche; è piuttosto un appello accorato a inverare nell'oggi la perfezioneinsita nel cosmo dei corpi sociali quale riverbero dell'armonia del mondo creato.

Per una filosofia cristianaLo spirituale ammaestramento di Federico al suo popolo è dunque tutto giocato in unacostante «dialettica di visibile e invisibile» (Bosco, 2001, p. 135). Essa non necessita diuna comprensione solo razionale, poiché non nasce da una speculazione semplicementeintellettuale, bensì chiede una «compartecipazione» totale a quella «profonda esperienzadel divino» dalla quale si origina lungo il cammino di una intensa vita spirituale (ibidem).Il suo centro ispiratore è nell'incarnazione del Figlio di Dio, che è il luogo per eccellenzadell'incontro di visibile e invisibile.In nome di una parola che si fa carne, Federico può definire il proprio pensiero,sull'esempio di Clemente Alessandrino, una «filosofia cristiana», ovvero «uncogniugnimento degli ottimi costumi con la soprannaturale dottrina» (SR, I, xxxiv, pp.339-360, p. 344) (60). In nome del verbo incarnato egli definisce se stesso un vescovofilosofo, la cui parola si fa gesto ostensivo, quasi «mano dell'animo per mezzo della qualehabbiamo da operare cose straordinarie per il divino servitio» (BAMi, G 20 inf., n.8, ff.2v-3r) (61).Appare ancor oggi "fuori dall'ordinario" che per oltre vent'anni, in più di trecentoprediche, Federico con energia inesausta, nonostante la sempre maggiore difficoltà deitempi, si incarichi di mostrare a tutti che la pienezza dell'umano attende di essere ognigiorno scoperta fra i «tenebrosi splendori» della grotta di Betlem (SR, VII, viii, pp. 187-192, p. 187) (62).

Riferimenti bibliografici

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Codici con gli originali manoscritti delle prediche:

BAMi, G 18 inf., n. 6, In nativitate beatae Virginis. Commentaria concionum.

BAMi, G 18 inf., 8, In psalmo 18. Commentaria concionum, n. 8.

BAMi, G 18 inf., 10, In festo penthecostis. Commentaria concionum, n. 5.

BAMi, G 15 inf., Notae quaedam et schemata concionum, quas card. FedericusBorroemus [...]

BAMi, F 16 inf., Selva di prediche et altri ragionamenti fatti in diverse feste, solennità efunzioni dal card i na le Federico Borromeo arcivescovo di Milano.

Quaderni di studio del cardinale. Appunti di lettura sono contenuti in:BAMi, G 9 inf., n. 1, Excerpta et notae, vol. I I , n. 41. Si sono individuati anche il primo e

il terzo volume di questa serie nei codici G 24 inf., n. 7 e G 23 inf., n. 3.

BAMi, G 21 inf., n. 3, Patres. Clemens Alexandrinus, n. 36.

Appunti di lettura e spunti vari di riflessione sono annotati in tre codici checostituiscono la serie dei Coniectanea:

BAMi, G 19 inf., n. 1, Coniectanea prima, n. 35

BAMi, G 19 inf., n. 4 , Coniectaneorum lib., 2, n. 37

BAMi, G 19 inf., n. 5, Coniectaneorum lib. 3

Appunti per un trattato di filosofia moraleprogettato dal cardinale ma mai portato a termine. Queste note sono strettamentecorrelate a quelle contenute nel primo quaderno dei Coniectanea:

BAMi, G 21 inf., n. 6, Philosophia christiana, n. 24.

Opere manoscritte del cardinale:

BAMi, G 17 inf., n. 5, Ragionamenti familiari dell'oratione fatti alle monache

BAMi, G 19 inf., n. 2, Dispositio ad esercitia facienda

BAMi, G 309 inf., n. 35, Tumultuariae tabulae

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Ravasi, G. (2002). Francisco Soto de Langa e il card. Federico Borromeo: un carteggioinedito della Biblioteca Ambrosiana. Studia borromaica, 16, 285-293.

Rivola, F. (1656). Vita di Federico Borromeo cardinale del titolo di Santa Maria degliAngeli ed arcivescovo di Milano. Milano: Dionigi Gariboldi.

Rostirolla, G. (2001). La musica a Roma al tempo del cardinal Baronio: l'oratorio e laproduzione laudistica in ambiente romano. In G. Rostirolla; O. Mischiati & D.Zardin (Eds.). La lauda spirituale tra Cinque e Seicento: poesie e canti devozionalinell’Italia della controri forma. (pp. 1-209). Roma: Ibimus.

Spitzer, L. (1967). L'armonia del mondo: storia semantica di un'idea. (V. Poggi , Trad.).Bologna: Il Mulino. (Edizione originale nel 1963).

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Fonti primarieA stampa

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Borromeo, F. (163_), De concionante episcopo. Milano.

Borromeo, F. (163_), De sacris oratoribus libri quinque. Milano.

Borromeo, F. (1673), Ragionamenti spirituali. Milano: Vigone.ManoscrittiBiblioteca Ambrosiana di Milano (BAMi). La titolazione dei codici, che recupera la versioneoriginale federiciana, si discosta in molti casi da quella della attuale catalogazione, a cuisi riferisce l'inventario del Marcora (1988), che si basa su una schedatura successivaall'originale.

Codici con gli originali manoscritti delle prediche:BAMi, G 18 inf., n. 6, In nativitate beatae Virginis. Commentaria concionum.

BAMi, G 18 inf., 8, In psalmo 18. Commentaria concionum, n. 8.

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BAMi, G 18 inf., 10, In festo penthecostis. Commentaria concionum, n. 5.

BAMi, G 15 inf., Notae quaedam et schemata concionum, quas card. FedericusBorroemus [...]

BAMi, F 16 inf., Selva di prediche et altri ragionamenti fatti in diverse feste, solennità efunzioni dal cardinale Federico Borromeo arcivescovo di Milano.

Quaderni di studio del cardinale. Appunti di lettura sono contenuti in:BAMi, G 9 inf., n. 1, Excerpta et notae, vol. I I , n. 41. Si sono individuati anche il primo e

il terzo volume di questa serie nei codici G 24 inf., n. 7 e G 23 inf., n. 3.

BAMi, G 21 inf., n. 3, Patres. Clemens Alexandrinus, n. 36.

Appunti di lettura e spunti vari di riflessione sono annotati in tre codici checostituiscono la serie dei Coniectanea:BAMi, G 19 inf., n. 1, Coniectanea prima, n. 35

BAMi, G 19 inf., n. 4 , Coniectaneorum lib., 2, n. 37

BAMi, G 19 inf., n. 5, Coniectaneorum lib. 3

Appunti per un trattato di filosofia moraleprogettato dal cardinale ma mai portato a termine. Queste note sono strettamentecorrelate a quelle contenute nel primo quaderno dei Coniectanea:

BAMi, G 21 inf., n. 6, Philosophia christiana, n. 24.

Opere manoscritte del cardinale:

BAMi, G 17 inf., n. 5, Ragionamenti familiari dell'oratione fatti alle monache

BAMi, G 19 inf., n. 2, Dispositio ad esercitia facienda

BAMi, G 309 inf., n. 35, Tumultuariae tabulae

BAMi, G 310 inf., De suis studiis commentarius

Note(1) Cugino del più famoso Carlo Borromeo, è chiamato al governo della diocesi di Milanonel 1595, dopo la morte di Gaspare Visconti. Manca ancora una biografica critica, cheripercorra l'intera vicenda umana, pastorale e culturale del presule. Si dispone però di unagile lavoro divulgativo, che cerca di fare il punto sullo stato delle conoscenze e al qualesi rimanda per ulteriore bibliografia: Pelizzoni (2003).

(2) Borromeo, F. (1632). I sacri ragionamenti. Milano, vol. I, p. I. I quattro tomi sonopubblicati postumi. I primi due escono senza indicazione dello stampatore nel 1632: ilprimo contiene le concioni sinodali, il secondo le omelie recitate in Duomo nelle solennitàmaggiori, raccolte per nuclei tematici. Il terzo tomo è pubblicato da Dionigi Gariboldi nel1640. E' costituito dai volumi terzo e quarto, in cui si leggono le prediche indirizzate aspecifici stati di persone, e dal quinto, con i sermoni pronunciati nella natività di Maria enella festa di tutti i santi. L'ultimo tomo è stampato nel 1646 sempre da Dionigi Gariboldi.É composto dagli ultimi quattro volumi con le prediche recitate durante le principalisolennità religiose, disposte secondo il calendario liturgico. Notizie bibliografiche relativeall'opera in: Gornati (1990-1991); Buzzi (2001). Per gli aspetti linguistico/retorici

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dell'opera si vedano: Girardi (1988); Giombi (1999); Molinari (1980); Morgana (1988,1991). Per una analisi dell'aspetto culturale e pastorale dei contenuti: De Boer (2001);Martini (1975).

(3) L'espressione deriva dal titolo del trattato De concionante episcopo, al quale, insiemeal De sacris oratoribus libri quinque, Federico Borromeo affida la propria riflessione sucompiti, modi e funzioni dell'omiletica sacra, a partire dall'ineludibile modello carolino.Sull'omiletica carolina e sulla sua esemplarità nella chiesa post-tridentina si vedano:Fumaroli (2002), in particolare il capitolo terzo della prima parte, intitolato Il concilio diTrento e la riforma dell'eloquenza sacra (pp. 117-172); O'Malley (1997); Delcorno(1987). Poche, invece, sono le riflessioni dedicate al pensiero retorico federiciano (cfr.nota precedente), molte delle quali leggono ogni eventuale elemento dicontinuità/discontinuità rispetto all'oratoria carolina o come sterile imitazione o qualerinunciatario ripiegamento. Emblematici in tal senso: Prodi (1965, 1971, 1985).

(4) Bosco (2002) offre una acuta valutazione storico-critica dell'universo culturale espirituale federiciano a fronte delle più recenti acquisizioni critiche. Si rimanda perciò aquesto studio per un ragguaglio bibliografico relativo alla figura del secondo Borromeo.Altri approfondimenti nelle note successive.

(5) Si tratta di almeno cinquanta codici, per la cui identificazione e analisi mi permetto dirinviare a: Giuliani (2002-2003). Ivi anche la tabella cronologica dei ragionamenti, qualesi evince dai manoscritti. Una presentazione sintetica di questi materiali in: Giuliani(2003). Quelli usati in questo lavoro sono presentati nell'appendice dedicata alle Fontiprimarie. Sul metodo di lavoro dei predicatori fra Cinque e Seicento, si veda: Giombi(2002). Sulle opere che Federico dedica al metodo degli studi si vedano: Ferro (2001,2002). Il ricorso alla mnemotecnica da parte di Federico è indagato dalla Bolzoni, al cuistudio si rimanda per la bibliografia sul tema: Bolzoni (1995, pp. 79-81).

(6) Appare perciò infondata la tradizionale impostazione critica (cfr. gli studi di Prodi,1965, 1971 e 1985), che legge la figura di Federico nel segno della scissione fra il suomondo interiore e privato, intonato alla riflessione pensosa e al piacere dello studioerudito, e il versante pubblico, di vescovo, chiamato a un compito per lui ingrato esempre alle prese con l'ingombrante modello carolino.

(7) Idem. Due sermoni sono dedicati ad esaltare il silenzio di Maria come espressione piùautentica e adeguata di lode: SR, VIII , xii; xvii, pp. 354-358; xx, pp. 368-372. Il rinvio èalla "pienezza" della teologia negativa, per la quale si veda: De Certeau (1987).

(8) BAMi, codice G 17 inf., n. 5, Ragionamenti familiari dell'oratione fatti alle monache,ff. 199-203, f. 200. Il ragionamento alle monache (si tratta del XIV) è analizzato daBaffetti (1994), che lo definisce «un percorso ermeneutico nel quale la corrispondenza trasegno e senso è garantita da Dio in un ordine razionale superiore» (p. 91). Egli citadall'edizione a stampa: Borromeo, F. (1673). Ragionamenti spirituali. Milano: Vigone, pp.127-131. Come ben illustrato da Bosco (2001, p. 133), Federico riprende il tema dellascala creaturarum, cui dà ampio sviluppo ne I tre libri della laudi divine (cfr. Martini,1975). Per la diffusione del tema nella cultura coeva: Jori (1995); Giustiniani (2000).

(9) Oltre al già ricordato studio di Fumaroli (2002), si vedano, con specifico riferimentoalla corte papale che è il centro del rinnovamento: O'Malley (1979); McGinness (1995).Federico frequenta la corte papale negli anni romani e prima di partire per Milano chiedeconsiglio al gesuita Francesco Toledo, oratore presso il papa dal 1569 al 1571 e dal 1573al 1594, per affrontare il compito della predicazione da vescovo. Si vedano: De sacrisoratoribus, pp. 125-130; BAMi, G 309 inf., n. 35, Tumultuariae tabulae, ff. 30-31.

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(10) Per il carattere ostensivo della predicazione cinque-seicentesca: Jori (1998) pp. 139-174.

(11) Su questo tema nella cultura fra Cinque-Seicento illuminanti sono le pagine cheFumaroli (1995) dedica al rapporto «visione e preghiera», soprattutto il paragrafo Utpictura rhetorica divina, pp. 291-313.

(12) Nell'elaborare il tema dell'armonia universale, nei termini di "armoniosaconsonanza" e di "mescolanza ben temperata", Borromeo sembra attingere direttamentealle fonti culturali pitagoriche e platoniche, mediate dalla riflessione dei padri greci, inparticolare Clemente d'Alessandria. Nei ragionamenti vengono riproposte spesso le notedel codice Patres (BAMi, G 21 inf., n. 3, Excerpta Patres), f. 1, che derivano dalProtrettico: «sed praeterea universum mundum composuit armonicum. Elementorumdiscensionem in ordinem redigit consonantiae. Ignis vehementiam aere emollit velutdoricam armoniam lydia attemperans»; «concludit Deum uti mundo ac praecipue hominetamquam instrumentum musico, multarum vocum»; «homo cithara est Dei propterarmoniam». I passi sono inventariati alle voci «mundus», «deus», «homo», «musica».Per il tema dell'armonia riferimento obbligato è Spitzer (1967).

(13) Nel manoscritto l'immagine è introdotta da un riferimento molto concreto al mondodel fare artistico: «et non bastando a quell'artefice divino di haver formato cosa cosìbella, mai satio d'ornarla, sempre l'ha resa più meravigliosa con lo sguardo. Ad usanzaperò più tosto de pittori formò questa imagine, che di scultori [...]. I scultori formanol'imagine levando dal sasso il superfluo, i pittori aggiungono, senza levare, colori etombre»: BAMi, G 18 inf., n. 6, ff. 12r-15v, f. 13v.

(14) Si leggano le ammonizioni di padre Pozzi (1993, p. 43). Si considerino le altreinterpretazioni del dipinto. La Jones pone l’opera in relazione ai brani delle Laudi dedicatialla bellezza della terra ed afferma che nel quadro di Brueghel Federico abbia vistorappresentata la «vastità e ricchezza della realtà metafisica» in linea con il suoottimismo: Jones (1997, p. 3 e 74). Motta (1999) accosta la descrizione dell'opera nelMusaeum con un brano dell'Arcadia di Sannazzaro (p. 143).

(15) SR, V, v, p. 307. Di lei si dice, prosegue Borromeo (Id.), «esaltata est sancta Deigenitrix super chorus angelorum ad caelestia regna».

(16) Id., p. 308. La descrizione della predica, però, non spiega la struttura ad arco ditrionfo. La familiarità con le immagini esprimenti una potenza tutta mondana, da reginaterrena, è in un ragionamento precedente, dove si asserisce che Dio, creato il mondo eriassunta nell'uomo ogni bellezza di esso, ha posto la Vergine sul trono imperiale (ivi, V,ii, pp. 290-295, p. 291).

(17) Ad esprimere la partecipazione di Maria alla seconda creazione, che riconcilia cielo eterra, è una bella immagine dell'ottavo ragionamento (SR, V, viii, pp. 318-323): «il corpodi lei fu il velo sottilissimo et delicatissimo che nel tabernacolo (Ex., 26) sparso tutto dicherubini, divideva la parte superiore et la sancta sanctissima dal resto del tabernaculumet dividendolo l'univa et unendolo lo divideva. Et era un bel mezzo fra le due estremeparti» (G 18 inf., n. 6, ff. 6r-8v f. 7r).

(18) L'enfasi sull'incarnazione, che esalta il ruolo della mediazione di Cristo in termini diarmonia ritrovata fra il cielo e la terra, è tratto diffuso, seppur con accenti diversi, nellecorrenti spirituali della Roma di fine Cinquecento: se ne fanno portavoce i predicatoridella corte papale (McGinness, 1995, p. 95); se ne alimentano tanto i gesuiti, per i qualinel Cristo incarnato della riflessione paolina «trovano riconciliazione il cielo e la terra, lacarne e lo spirito, il temporale e l'eterno, il visibile e l'invisibile» (Baffetti, 1997, p. 81), e

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i padri oratoriani, «nella cui spiritualità cristocentrica il mondo naturale e quellosoprannaturale, dei quali Cristo rappresenta l'anello di collegamento, hannoun'importanza particolare» (Jones, 1997, p. 65).

(19) Circa le influenze esercitate dagli esercizi ignaziani sugli sviluppi della retoricacinquecentesca si veda: Ossola (1988).

(20) BAMi, G 19 inf., n. 2, Dispositio ad esercitia facienda, (d'ora in poi Dispositio). Per ladescrizione del manoscritto si veda: Marcora (1988, p. 52).

(21) È questo solo il primo punto della "immaginazione".(22) Id. Si tratta rispettivamente del secondo, del terzo e del quarto stadio.(23) BAMi, G 264 inf., Miscellanea carmina et nonnulla alia ad cardinalem FedericumBorromeum spectantia, f. 17v (d'ora in poi Miscellanea Vercelloni). Il quadro può essereidentificato con la Madonna dipinta nel 1596 da Scipione Pulzone da Gaeta, donata aFederico da Francesco Maria della Rovere (Jones, 1997, pp. 258-259). La Jones supponeche l’opera, oggi perduta, rappresentasse una Mater dolorosa, come appare anche dalladescrizione inedita del Vercelloni. Questi, a riprova dell'interesse del cardinale per leimmagini mariane, racconta anche un aneddoto, che avrebbe avuto come protagonistaaddirittura Michelangelo Merisi. A lui il cardinale si sarebbe rivolto per la commissione di«un quadro della beata Vergine col manto stellato». «Il pittore promise di farlo et lo tiròin lungo anni e anni», finché alla pacate rimostranze di Federico rispose: «se voletevedere la Vergine stellata andate in paradiso. Il cardinale si tacque [...] e si servì di altropittore» (Miscellanea Vercelloni, f. 26r). Sui possibili rapporti diretti di conoscenza fraFederico e Caravaggio: Marghetich (1988, p. 108).

(24) La devozione stessa alle immagini e il loro uso nella preghiera meditativapresentano elementi di affinità con la spiritualità oratoriana, ben illustrata in: Barbieri(1995).

(25) BAMi, G 19 inf., 1, Coniectanea prima, ff. 114-115, voce Maria (d'ora in poi:Coniectanea prima). Il concetto è amplificato in SR, IX, i, pp. 399-406, p. 403.

(26) Nel quinto volume, dopo due ragionamenti dedicati in termini generali alla gloria deicorpi (il VII e l'VIII), inizia l'analisi dei cinque sensi a partire dalla vista (IX) e dall'udito(X). È probabile che i due ragionamenti datino al 1614/1615, vista la seguente notamanoscritta in BAMi, G 15 inf., f. 54: «tractavi hoc anno 1614 circa sensum visus. Reliquisensu supersunt sed animadvertundum quod insit varietas in modo tractandi etmoralitatibus». Il discorso sui sensi è completato nel settimo volume, con il ragionamentosull'olfatto e sul gusto, rispettiva mente nel 1618 e nel 1619 (VII, XIV) per finirenell'ottavo con la trattazione del tatto (IV) nel 1621. Con il ragionamento successivo(VIII), «acciò che non paia che possa esser troppo materiale la descrittione dellabeatitudine» (BAMi, F. 16 inf., ff. 122r-123r, f. 122r), hanno inizio una serie di sermonisulla cognizione dei beati in paradiso.

(27) Forse per questo è usato, insieme alla terra e all'aria, come termine di paragone perdefinire l'umiltà in: SR, I I , xv, pp. 125-140, p. 133: «o umiltà beata! Mi piace ora diparagonarti col sentimento del tatto sparso e diffuso per qualunque parte del nostrocorpo, essendo per lo contrario gli altri sensi ristretti in determinati luoghi. Tu sei a guisadell'aere, per cui spiriamo e respiriamo di punto in un punto, il qual aere è comecontinuativo nutrimento delle nostre vite e ripieni ne sono etiandio i sentimenti delvedere e dell'udire e dell'odorare. Ultimamente tu se la bassa terra, che sopra il suodorso ci sostiene e non ci lascia rovinare nell'abisso». Il passo è ripreso da BAMi, G 21inf., n. 6, Semina rerum sive de Philosophia christiana, f. 97: «Pare questa virtù esseresenza alcun termine et misura et necessariamente si richiede in ogni virtuosa operatione

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et è come il sentimento del toccare sparso et diffuso per tutto il corpo et all'operare deglialtri sentimenti giovevole molto. Et è a guisa dell'aere, dalla quale spiriamo di punto inpunto, necessario sostegno, et quasi nudrimento delle nostra vita. Overo assomiglia allabassa terra, che sostentandoci fa che noi nell'abisso non cadiamo».

(28) Si veda il brano manoscritto in BAMi, G 19 inf., n. 4, Coniectanea secunda, f. 22(d'ora in poi Coniectanea secunda), al quale rimanda la redazione manoscritta dellapredica (F 16 inf., ff. 194r-195v, f. 195r): «Pepigi foedus cum oculis. Non per manco checonsiderandosi insieme le potenze si può tenere a freno il vedere; non bastaleggiermente proporsi di farlo, ma foedus inire, che è delle cose gravi, difficile porrerimedio. E per così dire il governo degli occhi non è dispotico, ma politico».

(29) Nella redazione manoscritta (BAMi, F 16 inf., ff. 146r-147v): «Aristoteles, eticorum1, 1c.7, tom.5» (ivi, f. 146v).

(30) L'affermazione federiciana che «la patria celeste è il proprio regno della letizia»richiama immediatamente al clima dell'oratorio della Vallicella. Per un approfondimento:Armogathe, 2001.

(31) Nei primi anni di formazione Federico ha modo di accostare i gesuiti: a Bolognamatura addirittura la decisione di entrare nell'ordine; a Pavia è affidato a un precettoreche segue il metodo di lavoro del Toledo. Scrive infatti Domenico Ferro a san Carlo: «Hoparlato coll'illustre sig. conte Federico acciò me accenni il modo che più li piacerebbe perli studi suoi. Sua Signoria Ill.ma l'ha remesso in me, et io fo pensiero (quando sia lavolontà di V. S. Ill.ma) tenere la maniera del padre dottore Toledo nel leggere et dareall'illustrissimo signor conte, per lo studiare, quel metodo che il medemo padre Toledome soleva insegnare» (Majocchi & Moiraghi, 1916, p.190). Nella propria autobiografialetteraria, il De suis studiis commentarius (BAMi, G 310 inf.), egli ricorda fra leconoscenze romane molti gesuiti: il Toledo stesso, Benci, Maffei, Tuccio, Clavio, eBellarmino. Sulla spiritualità dei primi gesuiti: O'Malley (1999).

(32) In sintonia, appunto, con i dettati della tradizione aristotelica fatta propria dallariflessione culturale e spirituale dei gesuiti, così sintetizzata dalla Zanlonghi (2003): «Èpossibile fin d'ora ipotizzare [...] che nel progetto retorico si rispecchiava la stessaunitarietà della persona, irriducibile ad una "sola dimensione": l'antropologia filosoficaaristotelica, unitaria, avversa ad ogni dualismo fra forma e sostanza, comportava unapsicologia attenta a descrivere e riconoscere le molteplici interazioni fra intelletto epassione, fra razionalità ed emotività. Le frequenti metafore corporee con le quali sidesignava la sfera del linguaggio attestano questa omologia fondativa».

(33) Il Borromeo segue da vicino il dibattito epistemologico sollevato dalla nuova scienzagalileana, come evidenziato negli studi recenti tra i quali, oltre i già ricordati lavori diBaffetti, si consideri almeno Bellini (1999).

(34) SR, V, x, pp. 421-422. Frequentando l'oratorio di san Filippo, Federico impara adapprezzare la musica sacra come strumento di devozione e di meditazione. A lui nel 1588Francesco Soto dedica il Terzo libro delle laudi spirituali a tre e quattro voci, ricordando«la particolare affettione» che il cardinale «dimostra portare a questo esercitio,havendolo tante volte honorato con la presenza sua»: cfr. Rostirolla (2001, p. 91);Ravasi (2002).

(35) Per Baffetti (1994, p. 90) questa considerazione esprime «quel mutamento didisposizione percettiva, che, tra Cinque e Seicento, attraversa i campi più diversi, dallamistica, all'arte, alla scienza, segnando l'affermarsi di una nuova antropologia: [...] leoperazioni "intellettuali" connesse al vedere svolgono un ruolo fondamentale».

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(36) Nella redazione manoscritta (BAMi, F 16 inf., f. 195v) si ha il rimando a Coniectaneasecunda, f. 13: «grande deve essere la custodia del vedere, imperocché l'occhios'intromette negli affari degli altri sentimenti et usurpa gli altrui confini et è quasi uncompendio et una quinta essentia de gli altri sentimenti. Tutto questo si conosce esserevero, perché quello che vediamo ci pare spesso di toccarlo, di udirlo. Vedi la neve e sentiil freddo et vedi la imagine et ti pare che odi le parole et i fiori dipinti mandano gl'odori».Il brano è inventariato alla voce «oculi». Esso presenta forti analogie con il passo del Desuis studiis in cui il cardinale descrive, fra le altre sue ricreazioni, il piacere che gli derivadalla contemplazione dei fiori e della frutta, mediata, durante l'inverno, da dipinti, cherallegrano comunque la vista e lasciano addirittura immaginare il profumo. Si veda:Jones (1997, p. 68), dove la studiosa ricollega a questa sensibilità federiciana il gusto perle nature morte e i paesaggi, ampiamente documentato nella collezione d'arte delcardinale.

(37) È interessante che questa affermazione, di matrice aristotelica (Baffetti, 1997), siaripresa da Clemente alessandrino. Si legge in Patres, f. 17: «sensus basis scientiae».Come il filosofo nel primo libro degli Stromati si occupa di definire i saperi in relazione alsapere per eccellenza, la filosofia cristiana, Federico non è interessato alla scienza in sestessa, ma in relazione all'altra forma di conoscenza, che è la contemplazione delle veritàdi fede, che non esclude, ma integra la prima. Si veda anche: SR, VI, iv, vii, pp. 78-84,p. 79: «noi non apprendiamo gli oggetti con l'intelletto come coi sensi s'apprendono.Questi più agevolmente le grandi, che le piccole cose fanno discernere, laddovel'intelletto, apprendendo alcuna cosa, s'ingegna di farla in certo maggior, che ella non è».Questa digressione di tono scientifico è inserita in una retorica excusatio perl'impossibilità di lodare degnamente Ambrogio per l'altezza del soggetto.

(38) Forse più efficace, nella sua sinteticità, la versione manoscritta: «non vi è niunotanto dilicato, né rozzo, che non gusti della propria arte, di perfezionarla, di crescervidentro; così noi emendando i difetti del proprio stato, verremo senz'altro a sempremeglio e più lodevolmente esercitarla. Et ogn'uno è vago per naturale istinto diriconoscere la sua imagine, o in fonte, o in specchio; altri con più maniere et alte configure con statue quella si ingegnano di rappresentar et quella dell'anima noiperfettamente non studiamo di vedere?» (BAMi, G 18 inf., n. 8, f. 41v).

(39) In accordo con l'aristotelismo politico d'antico regime, il Borromeo intende lastruttura della società come un cosmo ordinato di corpi sociali. Sulla fortuna di questomodello si vedano gli studi di Chiara Continisio: Continisio (1994); Continisio (1995, p.338). Per un approfondimento relativo al pensiero del Borromeo: Burgio (2002).

(40) A proposito del peccato come perdita della posizione di eccellenza assegnataall'uomo: «quando la natura humana nel primiero stato felice si viveva piena di honori, ed'ornamenti e di bellezza, il corpo era soggetto all'anima. Guastandosi poi questobell'ordine, ruinarono tantosto sopra di noi tutti i mali» (SR, I I , vi, p. 181).

(41) L'anima rischia di corrompersi nel corpo: essa «immortale e celeste [...] se per sestessa e solamente per la sua natura vien considerata, delle terrene e delle bassepassioni punto non è circondata e vestita, ma se poi quella consideriamo come unita alcorpo, allora si dice esser in queste tutta involta e quasi da esse assediata e sommersa»(SR, IV, v, i, p. 189).

(42) Nella stampa si parla di «antichi maestri, uno dei quali, tra gli altri tutti savissimo».Nel manoscritto (F 16 inf., ff. 184r-185v) si legge: «Plato disse che».

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(43) Maria è icona per eccellenza di questo equilibrio. La sua anima è paragonata alla giàcitata scala di Giacobbe: «sì come per gli gradi di essa vedevansi a tutte l'hore gli angelisalire e discendere, così nell'intelletto della Vergine i santi suoi pensieri hora sisollevavano al cielo, muovendosi dalla terra, ed hora si partivano dal cielo, calando versola terra, che è come a dire, che ella contemplava ed operava vicendevolmente» (SR, VII,vi, pp. 176-182, p. 177).

(44) SR, VIII , xix, pp. 363-368, p. 363: «dagli alti conoscimenti che avranno di Dionell'eterna gloria i beati, cagionerassi in loro una grandissima meraviglia: e di chemaravigliar ci dovremmo noi nella presente vita».

(45) Vale la pena riportare il passo che esemplifica le meraviglie tanto della naturaquanto della grazia: «se alziamo gli occhi al cielo, se consideriamo l'ampiezza e labellezza dell'universo, se con sguardo interiore contempliamo la Gerusalemme celeste,nostra patria, se ammiriamo lo splendore del sole, la varietà delle stelle, l'ordine deglielementi, la natura e le proprietà diverse delle piante e degli animali e soprattutto semeditiamo la superiore natura dell'uomo creato a immagine del Re del cielo e della terra,non siamo certo soli, anzi, per grazia di Dio, ci sentiamo pieni di gioia. E più ancora serivolgiamo pensieri al riscatto antico e alla nostra redenzione, guardando a quell'Agnelloimmacolato, che tolse i peccati dal mondo, prese su di sé le nostre colpe, per noi siimmolò sulla croce e trionfò su satana riaprendoci i cieli. [...] Una sola cosa è necessaria:la meditazione delle altissime verità; una cosa sola è necessaria: il continuo ricordo deibenefici divini». Queste tematiche sono riprese nella «contemplatione per eccitare in noil'amore di Dio», della Dispositio.

(46) Cf. Dupront, A. (1932). Autour de saint Filippo Neri: de l'optimisme chrétien. InMélanges d'archéologie et d'histoire de l'Ecole francaise de Rome, XLIX, 219-259;Dupront, A. (1935). D'un «humanisme chrétien» en Italie à la fin du XVIe siècle. Revuehistorique, 175, 296-307; I Dupront, A. (2001). Genèses des temps modernes: Rome,les réformes et le nouveau. Paris: Le Seuil; Gallimard.

(47) Cfr. anche: SR, I I I , v, v, pp. 202-205. Il passo del primo libro degli Stromati èsunteggiato in Patres, f. 16: «cor depravatum simile diversorio. Perforatur, effoditur,inquinatur».

(48) Frequente è il ricorso all'immagine degli animali selvaggi come termine di paragonecon il peccato. Ricorrente con insistenza è anche il tema della difficoltà di riconoscere ilpeccato, a partire dalle parole di Agostino, «sottilissimo investigatore dei segreti di Diopiù di molti altri» (SR, IV,v, v, pp. 202-206, p. 203).

(49) Molte immagini sono altrove usate per visualizzare l'oscurità del cuore, ivi compresequelle tratte dalle conoscenze anatomiche: «egli è cosa soprammodo malagevole [...] ilveder il cuore humano, ed il penetrare i suoi più nascosti seni ed il discernere i varisembianti di esso, e l'udir i suoi occulti ragionamenti, ed il mirare le orme fallaci, ed idisusati sentieri de' suoi viaggi. Perciò forse fu con debita ragione involto in tante fasce edi tanti veli ricoperto dalla natura, la quale, locandolo nel bel mezzo del petto, agli occhihumani lo venne a celare» (SR, IV, ii, i, pp. 157-161, p. 157).

(50) Nel secondo volume degli Excerpta, risalente al 1594 (BAMi, G 9 inf., n. 1, Excerptaet notae) Federico sunteggia un brano dei Carmina aurea di Pitagora, sottolineando comeesso possa connettersi al tema cristiano dell'esame di coscienza: «id quod nos vocamusexamen conscientiae descrivitur ita: neque somnium mollitur oculis inducas priusquamdiu (giornaliere, vuol dire) operum singula ter anima percurras» (ivi, f. 141). Dieci annidopo Federico si serve di questa osservazione nella prima delle lezioni circa gliimpedimenti della vera penitenza. Egli esorta il suo lettore/uditore a ricercare le cause

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del peccato, dicendo: «né voglio hora che tu impari quali esser debbano da Agostino, néda Basilio, né da Bernardo nostri saggi maestri, né da altri sacri dottori, ma sì da unantico greco filosofo, il quale ci lasciò scritto ne' suoi versi d'oro: giammai il sonno noningombri i tuoi occhi se prima ben tre volte non avrai pensato a ciascuna opera di quelgiorno» (SR, IV, i, ii, p. 141).

(51) Le occasioni di peccato sono determinate dal «concorso delle cause seconde» (SR,IV, v, iii, pp. 196-200, p. 198). Esse vanno estirpate, prendendo a modello un'ideale divita monastica: «hai in prima a troncare ed a estirpare le occasioni del peccato. Gliantichi monaci, come un approvato scrittore racconta, entravano nelle ampie solitudini, esi nascondevano negli spaziosi diserti, spinti colà dallo spirito dell'humiltà ed etiandio perfuggirsi maggiormente dalle occasioni di peccato» (SR, I I , vi, p. 183).

(52) Il Borromeo ne tratta nell'opera De ordine, stampato nel 1625 a Milano. Latrascrizione del manoscritto volgare del De ordine si ha in: Ferro, R. (1998-1999). Gliscritti di Federico Borromeo sul metodo degli studi. Tesi di laurea, Università Cattolica delSacro Cuore. Milano.

(53) Zanlonghi (2000) ritorna sulla «duplice declinazione, retorica e morale, dellanozione di circostanza» a proposito delle osservazioni di Emanuele Tesauro sulla«moralità della retorica» (p. 32 ).

(54) De Boer (2001) si sofferma sul tema delle occasioni di peccato nel pensiero dei dueBorromeo. La sua analisi, peraltro puntuale, si sviluppa dall'assunto esclusivo che laconfessione sia stata in età moderna strumento di un rigido disciplinamento sociale (cfr.pp. 67-73). In rapporto alle indicazioni pastorali di Carlo, quelle di Federico sono lettecome una «form of social discipline», che preferisce basarsi «on interior discipline ratherthan public shame». Ne I sacri ragionamenti il lavoro interiore, richiesto dall'esame dicoscienza, con la conseguente individuazione delle circostanze e delle occasioni dipeccato, mira piuttosto a produrre una conversione profonda dei fedeli per unrinnovamento dei costumi sociali in senso cristiano.

(55) Citando Plutarco, Federico afferma che «le parole sono come ombra, che sempresegue il corpo del nostro operare: anzi sono come immagini rappresentanti quello chealtri far suole» (SR, VI, iv, x, pp. 98-102, p. 102). L'affermazione è proposta anche in:ivi, IV, x, i, p. 227; I I , iii, pp. 472-478, p. 478. Nella redazione manoscritta diquest'ultima predica è annotato: «Sermo actionis est umbra: Plut. de lib. educand. f. 15ex scrittis Democratis» (BAMi, G 18 inf., n. 10, ff. 3r-4v, f. 4v). L'indicazione della fonte èriportata negli stessi termini in Coniectanea prima: «sermo actionis umbra. Plut. de lib.educ. f. 15 ex sententia Democritis dictum» (ivi, f. 147, alla voce «verba»). Il segretarioVercelloni ricorda che Federico «per preservar l'uso e frequenza del disonesto parlare [...]fece comporre et stampare un libretto di Mons. Luigi Rizzo, canonico ordinario e teologodella metropolitana et ne fece dipingere i cartelli [...] che ancora hoggidì si vedono: leparole sono indice dell'animo» (Miscellanea Vercelloni, f. 21r).

(56) È definito non a caso attraverso il paragone con l'immagine: «bello sarebbe ilparagonare l'esempio con l'immagine che tu generi nello specchio, mentre in essoriguardi, la qual pure tu vedi con tutti i suoi fini colori, e co' movimenti, e co' lineamentirappresentarsi. Se tu ridi, ella ride, se tu piagni, ella piagne, se tu parli, ella parla; edinsomma è quasi altra persona, come sei tu. Questa è l'imagine viva che in altrui vieneformata» (SR, I I , xi, pp. 362-368, p. 364).

(57) Si consideri, a titolo esemplificativo, il processo di assimilazione a Maria. Impararedal «suo esempio» significa, come nel caso di Cristo, assimilarsi a lei per via di imitazionein un processo che coinvolge intelletto e cuore. L'intelligenza, riconoscendo l'amore

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straordinario della Vergine per il figlio e, in lui, per ciascuno dei mortali, dispone il cuoread accogliere un siffatto amore. «Il sole della cognitione», dice Federicometaforicamente, «quasi in noi riflettendo, un altro ne produce cioè quello dell'amore»,per via del quale si raggiunge l'imitazione: «alcuna somiglianza ed alcun sembiante diessa (ndr: dell'imitazione) n'apparisce nel nostro intelletto come quello che ha usanza difarsi alle cose che apprende somigliantissimo» (G 18 inf., n. 6, ff. 27-33, f. 29v).L'immagine si fa medium conoscitivo, che genera una vera e propria trasformazionenell'uomo disposto a lasciarsi illuminare dal sole di Maria.

(58) Dispositio, f. 89v. Il rapporto interno/esterno, anima e corpo come tema qualificantela trattatistica sul comportamento fiorita nell'età moderna è al centro dell'intervento dipadre Pozzi (1996). Per lo studioso l'attenzione al comportamento da parte soprattuttodella chiesa si traduce in «una specie di neutralizzazione di tutto ciò che è caratteristicanon solo individuale, ma anche di classe, di casta, di corpo, neutralizzazione non vuoldire distruzione o livellamento: vuol dire blocco delle energie proprie a ciascuna nelproprio raggio d'azione senza alcun travaso al di fuori» (ivi, p. 138). L'attenzione diBorromeo circa il comportamento può però essere letta nel segno di una apertura diorizzonti, piuttosto che di una chiusura, in quanto a ciascuno è proposta una medietàconcepita come perfezione, che è sempre, ancora da raggiungere.

(59) Id., VIII , xvi, p. 352. Sulla forma della virtù propria di ciascuno stato si legga: «Setu artefice? Pensa un poco qual vorresti che fosse un ottimo artefice e so che bramerestiche fosse non divoratore, non ingannatore, non contentioso, non taverniere, nonbestemmiatore, non dishonesto parlatore. Se tu nobile? Come vorresti che fatte fosserole immagini delle nobili persone? Io vorrei primieramente, odo subito chi mi risponde, chechiunque di nobili parenti è disceso, non fosse ingiusto amatore dell'altrui roba, nédell'honore, ma più tosto diligente guardiano della sua casa e che si mostrasse a ciascunovero padre de' suoi figliuoli, e della mogliere compagno, e marito, e non tiranno: edappresso. Io amerei di vederlo, non giudicatore, né ingiuriatore, ma mansueto edubbediente a chi lo regge. Se' tu donna di alto, overo di basso stato? Considera quelloche tu sei, e non amare più il corpo, che l'anima e non voler sempremai dominare:poiché serva nascesti ed all'huomo soggetta, secondo gli ordini della natura e di Dio. Setu ornato di sacerdotale dignità? Attendi al proprio uficio, ed in esso solo con tutte leforze dell'animo intendi; e non voler essere né avaro, né iracondo, né superbo; enell'habito, e nelle parole, e negli atti fa che rappresentata si vegga del continuo labellissima forma della virtù. Se tu terreno principe, e governi tu i corpi, e la vita civile de'tuoi soggetti? Studia di esser vero principe; che è a dire, di esser benefattore, e padre, epastore de' popoli. Raccordati, che coloro i quali hai presi a reggere, sono il tuo corpo: etu che se' l'anima, quelli governar dei, ed affettuosamente curare (Ivi, IV, v, p. 208).

(60) Una prima riflessione sulla filosofia cristiana a partire da questa citazione è statapresentata da Domenico Bosco: Id., Sacre conversazioni, pp. 130-131. È interessantenotare che il Borromeo progetta la realizzazione di un trattato addirittura in 40 volumi difilosofia cristiana, che presenta in: BAMi, Z 108 sup., Dei miei scritti, f. 6r. Abbandonaperò l'idea, verificata l'esistenza di un numero rilevante di opere di tema morale di altriautori (BAMi, R 181 inf., n. 2, Sacrarum rerum semina, f. 17-18). Del progetto inizialerimangono gli appunti contenuti nel già ricordato codice G 21 inf., n. 6 e per la maggiorparte rifusi nella scrittura dei ragionamenti. Questo sembra indicare come il Borromeoaffidi alla predicazione l'espressione della sua filosofia, o, meglio, come l'omiletica possaessere considerata la summa del pensiero federiciano.

(61) Nell‘immagine ritorna l‘idea della stretta dipendenza di anima e corpo, per cui lamano può farsi parola che esprime l‘interiorità.

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(62) Un quadro, che Federico ha tenuto sempre con sé nel palazzo arcivescovile, sembravisualizzare questa idea. È il Presepe, opera di Federico Barocci, che affida alle manil'espressione dei sentimenti. Nella penombra dell'umile capanna, la luce del bimbo, sullasinistra, illumina la madre, che apre le braccia a dire tutto il suo stupore. Dietro di lei,san Giuseppe, in piedi, di profilo, alza il braccio, per indicare con la sua mano possente laculla di Gesù ai pastori, che timorosi fanno capolino da una porta, relegata sullo sfondodel dipinto. I gesti delle mani guidano lo spettatore del quadro ad ascoltare la predica delpresepe. Per la committenza del dipinto da parte del Borromeo: Mojana (1998).

Nota al riguardo dell'autriceMarzia Giuliani è dottore di ricerca presso l'Università Cattolica del Sacro Cuore, dovericopre l'insegnamento di Storia del corpo e del comportamento presso la Facoltà diScienze della Formazione (sede di Piacenza). Contatto: Via Vodice 4, 20148 Milano,Italia. E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 20/10/2003Data de aceite: 05/03/2004

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Nepomuceno, D.M. & Campos, R.H.F.(2004). Fontes para difusão das idéias psicológicas em Minas 114Gerais entre 1830 e 1930. Memorandum, 6, 114-123. Retirado em / / d a WorldWide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/nepcampos01.htm

Fontes para difusão das idéias psicológicasem Minas Gerais entre 1830 e 1930

Sources for the diffusion of psychological ideasin Minas Gerais from 1830 to 1930

ResumoEssa pesquisa apresenta um levantamento bibliográfico de fontes de difusão das idéiaspsicológicas em Minas Gerais entre 1830 e 1930. As palavras-chave utilizadas foram:psicologia, psychologia, moral, moraes, moralidade, hygiene, higiene, aluno, estudante,alumnos, professor, mestre, educador, manual, programas, programmas, inteligência,instrução, educação e escola. Bibliotecas pesquisadas: Arquivo Público Mineiro, BibliotecaPública Estadual Luiz de Bessa, Sistema de Bibliotecas da UFMG e suas Coleçõesespeciais, Biblioteca da UFSJ e suas obras raras, Biblioteca Municipal de São João Del Reye Sistema de Bibliotecas da PUC-MG. Os 244 títulos localizados foram analisados poridioma, acervos e datas. O acervo com o maior número de títulos foi a Biblioteca Pública,com 53,79% da pesquisa bibliográfica. Os idiomas encontrados foram o francês,português, espanhol e inglês. O número de publicações aumenta a partir de 1920, o quepode ser explicado pelas reformas de ensino então realizadas e pelo própriodesenvolvimento cultural do país.

Palavras-chave: fontes; história da psicologia; Minas Gerais.

AbstractBibliographical search of sources for the diffusion of psychological ideas in Minas Gerais(1830-1930). The keywords used were: psychology, psychologia, moral, morality,hygiene, student, alumnae, teacher, master, educator, manual, programs, syllabus,intelligence, instruction, education and school. The libraries chosen were: Minas GeraisPublic Archives, State of Minas Gerais Public Library, System of Libraries of the FederalUniversity of Minas Gerais and their Special Collections, Library of the Federal Universityof São João Del Rey, City Library of São João Del Rey and System of Libraries of theCatholic University of Minas Gerais. The 244 titles that were found were analyzedaccording to language, date of publication and collection to which each of them belongs.The number of publications increases from 1920 onwards, and this can be explained bythe educational reforms then enforced and by the cultural development of the country.

Keywords: sources; history of psychology; Minas Gerais.

Esta pesquisa teve por objetivo fazer o levantamento bibliográfico de fontes de difusãodas idéias psicológicas em Minas Gerais entre 1830 e 1930, visando a elaboração de umcatálogo de fontes primárias (1) para a historiografia da Psicologia em Minas Gerais.Considera-se que idéias psicológicas são conceitos relacionados à descrição e/ouinterpretação da natureza humana em seus aspectos psicológicos, isto é, relativos aofuncionamento da mente, do pensamento e dos afetos, elaborados no período anterior aoadvento da psicologia científica, antes do final do século XIX. Fazem parte também docampo das idéias psicológicas a psicologia filosófica e a própria psicologia científica.Assim, o conceito "idéias psicológicas" é um conceito genérico, destinado a delimitar ocampo de reflexão e de elaboração de diferentes concepções sobre o psicológico ao longoda história da cultura.O período escolhido para o levantamento bibliográfico coincide com o períodoinstitucional de desenvolvimento e difusão de teorias psicológicas no Brasil, que, segundo

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Nepomuceno, D.M. & Campos, R.H.F.(2004). Fontes para difusão das idéias psicológicas em Minas 115Gerais entre 1830 e 1930. Memorandum, 6, 114-123. Retirado em / / d a WorldWide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/nepcampos01.htm

Pessotti (1988), inicia-se no século XIX, logo após a Independência, e termina no final dadécada de 1920. O que caracteriza este período é a instalação das primeiras instituiçõesde ensino superior no país, nas áreas do Direito e da Medicina, e de uma rede de escolasnormais e de instituições de assistência à saúde mental. Nessas instituições é que oensino de conteúdos relacionados à psicologia se inicia, especialmente nas Faculdades deMedicina e escolas normais, enquanto a psicologia filosófica é ensinada sobretudo nosseminários (Massimi, 1990). Em Minas Gerais, este padrão será também observado:ensino de conteúdos relacionados à psicologia nos seminários e escolas normais duranteo século XIX, e, a partir da fundação das primeiras escolas de nível superior, nas áreasdo Direito (1892) e da Medicina (1911), as idéias psicológicas são difundidas nos cursosde Criminologia e de Psiquiatria (Campos, 1992; Assis, 2004).Trata-se de uma pesquisa de orientação internalista, pois focaliza-se a evolução dessaárea de conhecimento e de investigação científica a partir das contribuições originais dosautores. Segundo Massimi, Campos e Brozek (1996), essa leitura historiográfica é"...sem dúvida muito fecunda, sobretudo ao evidenciar os problemas teóricosfundamentais da psicologia moderna e ao proporcionar uma leitura epistemológica daevolução histórica da Psicologia" (p.45).A escolha de Minas Gerais como foco da pesquisa se justifica pela grande expressão quea vida intelectual mineira teve no contexto brasileiro, pelo menos desde fins do séculoXVIII. Assim, pode-se considerar que o ensino da Psicologia filosófica ou da nascentePsicologia científica nas escolas mineiras, ao longo do século XIX e início do século XX, érepresentativo da situação do ensino nos demais estados brasileiros no período, pelomenos nos núcleos mais urbanizados.Rodrigues (1986) caracteriza o desenvolvimento cultural mineiro, na primeira metade doséculo XIX, como uma referência no processo de formação da consciência danacionalidade brasileira. Durante o ciclo do ouro, formou-se uma civilização urbana emMinas, caracterizada por um

povo que se reunia em irmandades e corporações deofícios, (...) representado no Senado da Câmara, (...)que pagava impostos, que via diante de si juízes esoldados, povo que era "repúblico", pois a coisa públicaestava presente, e muito latinamente num Senado aconstruir chafarizes como se fora Roma. (Torres, s/d,citado por Rodrigues, 1986, p.23).

O mesmo autor, em pesquisa nos jornais provinciais da época, dá conta da existência decadeiras de Filosofia Racional e Moral nas Escolas Régias Mineiras, desde o início doséculo XIX, em Mariana, a partir de 1828 em Ouro Preto, em 1830 em São João Del Rey.Em 1841, existiam 9 cadeiras de Filosofia funcionando no Estado (Rodrigues, 1986,p.39). A partir de 1850 criam-se colégios leigos em Diamantina, Barbacena, Sabará,Baependi, São João Del Rey, Mariana e Ouro Preto, onde o ensino da Filosofia abriga adifusão de idéias psicológicas. Também nos Seminários de Mariana, Diamantina e doCaraça o ensino da Filosofia estará presente.No decorrer do século XIX, a principal influência filosófica em Minas Gerais provém dacorrente de pensamento denominada em Portugal de "empirismo mitigado". Trata-se "deuma tentativa de conciliar o empirismo ao racionalismo, evitando tanto os excessos dosensualismo quanto as dificuldades do pensamento racionalista" (Campos, 1992, p.22).Essa orientação eclética visava conciliar o pensamento tradicionalista católico com osprincípios empiristas.Em obras filosóficas dessa época, foram encontrados livros que tratam especialmente daPsicologia, como o livro de José Antonio dos Santos, Esqueleto das Faculdades e Origemdas Idéias do Espírito Humano (1845), e o livro de R. J. Ferreira Bretas, Novo Esqueletodas Faculdades e origem das idéias do espírito humano (1854). Com abordagensdiferentes os autores dedicam-se principalmente ao estudo das faculdades, da moral e daética.

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Nepomuceno, D.M. & Campos, R.H.F.(2004). Fontes para difusão das idéias psicológicas em Minas 116Gerais entre 1830 e 1930. Memorandum, 6, 114-123. Retirado em / / d a WorldWide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/nepcampos01.htm

Em termos gerais, o período de 1830 a 1930 se caracteriza, no Brasil, pela elaboraçãode produções intelectuais locais nas Faculdades de Medicina de Salvador e do Rio deJaneiro, relatadas nas teses de final de curso elaboradas pelos estudantes, e pela difusãoda Psicologia nas escolas normais e seminários. Ao longo do século XIX, temaspsicológicos são ensinados aos futuros professores primários como parte das disciplinasde Pedagogia e de Higiene, ou nas áreas de educação intelectual e moral. A partir de1916, a matéria "psicologia infantil" passa a integrar explicitamente a cadeira dePedagogia e Higiene (Boschi, 2000). Em 1925, a Psicologia torna-se uma cadeiraautônoma, no Curso Normal, com programa voltado para o estudo do desenvolvimentopsicofisiológico, intelectual, sócio-afetivo e moral. Com a reforma de ensino de 1927/28(Reforma Francisco Campos), a cadeira é desdobrada em Psicologia Infantil e HigieneEscolar, para o Curso Normal de Io Grau, e Psicologia Educacional (em dois anos), para o2° Grau, com previsão de exercícios práticos de aplicação dos conhecimentos psicológicosvisando "melhor conhecimento do aluno", como propunha Édouard Claparède (1873-1940) (Boschi, 2000; Nepomuceno, 2002).

MétodoA consulta à literatura secundária permitiu selecionar inicialmente alguns títulos. Entre oslivros mencionados por Rodrigues (1986) como referências importantes no ensino deFilosofia em Minas Gerais. Como representativos do debate filosófico ocorrido em Minasno século XIX, são de especial interesse para o estudo das idéias psicológicas osseguintes volumes:

• Verney, Luís Antonio (1713-1792). Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá daCosta, 1950 (reedição crítica organizada por Antonio Salgado Júnior doclássico editado em Nápoles, em 1746. O original parece ter sido amplamentedifundido em Portugal, nos séculos XVIII e XIX, e no Brasil, no século XIX,como introdução às idéias iluministas);

• Bretas, Rodrigo José Ferreira (1815-1866). Novo Esqueleto das Faculdades eorigem das idéias do espírito humano, segundo os princípios de Mr.Laromiguière ou da psychologia vigente. Ouro Preto: Typographia do BomSenso, 1854.

• Genovesi, Antonio (1713-1769, conhecido como "O Genuense"). As Instituições daLógica. Rio de Janeiro: Documentário, PUC-RJ; Brasília: Conselho Federal deCultura, 1977 (reedição da obra As instituições da lógica, traduzida do originalitaliano por Miguel Cardoso e editada pela Real Impressão da Universidade deCoimbra em 1786. Na edição portuguesa o nome do autor (Genovesi) aparececomo Antonio Genuense. A obra parece ter sido indicada pelo Marquês dePombal como leitura introdutória à ciência moderna aos alunos daUniversidade de Coimbra. Através de estudantes brasileiros em Coimbra, aobra chegou ao Brasil);

• Santos, José Antonio dos. Esqueleto das Faculdades e Origem das Idéias doEspírito Humano. Mariana: Typographia Episcopal, 1847.

• Santos, Joaquim Felício dos (1828-1895). Ensaios filosóficos. Rio de Janeiro:Tipografia da Gazeta da Noite, 1880.

• Americus (Miguel Calmon Du Pin, 1794-1865). Idéias elementares sob um sistemade educação nacional. O Universal. 1826 (n. 90, 10 de fevereiro, p. 360; n. 92,15 de fevereiro, p. 367-368; n. 93, 17 de fevereiro, p. 371-372; n. 94, 20 defevereiro, p. 376; n. 95, 22 de fevereiro, p. 379-380; n. 96, 24 de fevereiro,p. 389-384; n. 97, 27 de fevereiro, p. 387-388; n. 98, 1 de março, p. 391-392; n. 99, 3 de março, p. 394-396).

• Franco, Augusto (1876-1906). Estudos e escritos. Belo Horizonte: ImprensaOficial, 1906.

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Outros títulos, desta vez representativos da psicologia científica, parecem ter integradoas bibliotecas dos professores mineiros nas primeiras décadas do século XX. A Profa

Alexina de Magalhães Pinto preparou em 1907 uma Lista de Bons Livros, de acordo comos programas de instrução pública mineiros, para uso dos educadores. A lista foireeditada em 1908 e 1912 (Magalhães Pinto, 1912), e dela constam, na área daPsicologia, alguns títulos, com referências um pouco incompletas. No quadro abaixoreproduzimos a referência como consta na Lista, seguida da obra à qual provavelmentese refere:

Quadro I: Referências bibliográficas em Psicologia listadas por Magalhães Pinto (1912),títulos aos quais se referem, e dados sobre os autores

Referencia bibliográfica nofnmnfltfi elabnrarin parMagalnáes Pinto (1912)Nogisi' (s/d). L'&düeotion ateífaou/tés tríenteles de l'enfanl.París: Baillene et Fílí.Quiyrat ( í /d) . D« 1' krtbjir&tiotichoz i'erfunt. Para,

BaMwin, i, (1901), Psvchology

Appk-lor. ;.•:•:•

Sully, James. 77ie textierhsndbxif of psvcho/ogy, (trad,Italiana de Villa; Frafctlli Bocea aq. Via Caflo Alberto 3j Tormo}.Le 6o n, G. (sAi). Psvchoío&e del'éáiMstinri- Paris: Fhm marión.

Villa, <5, (s/U). PsicologíaCoriigrTfayen&i. Torino: FratailiBocea.Fcji l lé, A. (s/d). L'araetgnemanitcft; point de wje nationsí. Paris,

Dsfnouüfij Ed. (s/d) L'&dueationmoderne. Paris.

Painipr. /•itstcry f>f f r fucaíí in.inteiTiatiera! Educación SarieSjEUA.

Domíniciíj 5. (s/d). Socvlcgi?P#i*gí>gia*. Terina: RenseStneglio.

Referencia similar encontrada no catálogo daBibliatecque Mationale de Frunce (300J)

Plogier, JasephOJ« (Or.) L'&faaiticti * Í facut ié imentales. Paris: J .-B. BaNlétie et fils, 159?, 176 p.

Qua^raíj Frídíric. í.'*n»jjrtííñin *í faí t»/rííi*í ctitz/'enÁnt, é!uc(; de ptycboSogie experiméntale Bppttquéeé !'4<Ajcatión íotoJtecfMstfo. Paris: F. Alean, 1393, 162 p.(2a. Ed,199t)

Ou

Quefrat, Frédéric. Les jeux d'enfantf, éíí«(e fer/írtlaí/nSÍ/flrt CrJ*ínC* Cv^J fefifofyí. Parií: F. Alean,19Ü5J 1S£ p.

Le 6on, Gustave US97) Psycño/ope de t'Education,Parif: Flamniaricn, 302 p. (obra reeditada ioúrfwfeívejes)

Feuillé, ftlfred. £dueat!or! fror< a natíonaf síantpotít(ir^nilated and edited witb a pnefeoe by W. J.Gnvefirtreet)- Lor,den¡ L Arnold, 1892, 33£ p.

Pamtsr. Híftory pf Eduzation. A ed, Mew York: D-ftpplatan ard Compafi^j l?07.(led. l f l íé)

Dados sobre o autor

Nogier, Josepíi-luteí (1839-1921)

QireyrJtj Frader-ic (1858-19?)prefessor de filosofía no ColligeMauriac, Paris,

Baldwin, Jannes-Mardk (1361-1934)- Psicólogo e tociótoqa americanti,profesíor na John Hopkin-i(Jniversitv, Baltifnone.Sully, :3meí (1842-19Í3) - filósofo« psicólogo naícido na Ingtateira,pfoféíidr da Filosofia nú UnivírtilyCallegej Londrej.Le 6on, Guítave (1641-1931) -Médico psiquiatra francés-,considerado um dos fundadores dapsicología ÍOCJI.

Foijillt, Alfned (1S3S-1912) -Filósofo f rancés-

Damoulinj Ed morid (IB 52 • 1S 07)-Sodcioao franoés, dinetor da ftevued& la ScJenoe Eooale.Painbfrj Franklin yerzeliui Newton(1852-1931)- PnoíaKoi- delinguagení modernas e literatura! noHoanofce Colleoe.

Constam ainda da bibliografia sugerida as biografias de Johann Heinrich Pestalozzi(1746-1827), pedagogo suíço considerado precursor do movimento de renovação escolarconhecido como "Escola Nova", e de Horace Man (1796-1859), conhecida liderança domovimento pela educação pública nos Estados Unidos da América, no século XIX. Sãocitadas as biografias elaboradas por Jules-Gabriel Compayré (1843-1913), AugustePinloche (1856-?) e Roger de Guimps (1802-1894), provavelmente as seguintes:

Compayré, Gabriel (1902) Les grands éducateurs. Pestalozzi et i'éducation élémentaire.Paris: P. Delaplane, 126 p.

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Compayré, Gabriel (1907) Les grands éducateurs. Horace Mann et recolé publique auxÉtats-Unis. Paris: P. Delaplane, 121 p.

Guimps, Charles-Frédéric-Louis-Roger de (Baron). Histoire de Pestalozzi, de sa pensée etde son oeuvre, par Roger de Guimps. Lausanne: G. Bridel, 1874, 548 p.

Pinloche, Auguste (1856-?). Pestalozzi et l'éducation populaire moderne. Paris: F. Alcan,1902, 217 p.

A autora não lista livros em português, "por achar que os livros supramencionados ossubstituem com vantagens". E acrescenta uma observação divertida ("calo-me para nãomaldizer"), deixando subentendida a crítica à produção local (Magalhães Pinto, 1912,p.55-6).Esses títulos serviram como uma iniciação, especialmente os livros publicados porClaparède (1873-1940) (2), no período estudado, para a seleção de palavras chaves aserem usadas na pesquisa bibliográfica. As palavras foram as seguintes: psicologia,psychologia, moral, moraes, moralidade, hygiene, higiene, aluno, estudante, alumnos,professor, mestre, educador, manual, programas, programmas, inteligência, instrução,educação, escola e colégio.O uso de palavras escritas em português arcaico, como alumnos, se justifica pelo fato deque muitas vezes os livros, entre 1830 a 1930, são cadastrados por palavras quemantém uma fidelidade ao original, nesse caso, por exemplo, procurar pelo títuloDissertações moraes, utilizando a palavra moral seria inútil.As bibliotecas escolhidas para pesquisa, pelo conteúdo de seus acervos foram: o ArquivoPúblico Mineiro, a Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa (Coleção Mineiriana,Patrimonial e Obras Raras), Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal de MinasGerais e Coleções especiais da Biblioteca Universitária da UFMG, Biblioteca daUniversidade Federal de São João del Rey e Biblioteca Batista Caetano (obras raras daUFSJ), Biblioteca Municipal de São João Del Rey, Biblioteca do Centro de Referência doProfessor e Sistemas de Bibliotecas Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.A pesquisa foi feita nos sites das bibliotecas que possuem acervos informatizados ou emprocesso de informatização, e em bases de dados locais, informatizadas ou não.

ResultadosOs resultados foram organizados em listas. Cada busca bibliográfica nos diferentesacervos resultou em uma lista de títulos em ordem alfabética. No final da pesquisa,organizou-se uma grande lista em ordem cronológica com todos os títulos encontrados.Ao total 264 títulos foram encontrados, sendo que 20 destes se repetiram, resultandoportanto 244 títulos originais. O acervo com maior número de títulos foi o da BibliotecaPública Estadual Luiz de Bessa, onde constam 142 exemplares, um total de 53,79% dapesquisa bibliográfica. O acervo com o menor número de títulos foi o da BibliotecaMunicipal São João Del Rey, com 1,14%. Isto se explica pelo fato de sua coleção deobras raras, a Biblioteca Batista Caetano, ter sido transferida para a Universidade Federalde São João Del Rey. No Centro de Referência do Professor, não foi encontrado nenhumlivro para a pesquisa. A tabela abaixo descreve o número de títulos encontrados em cadaacervo e sua respectiva porcentagem em relação ao número total de títulos da pesquisabibliográfica.

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Tabela 01: Títulos encontrados por acervo

Tabela 1: Títulos encontrados por acervoAcerva Total de títulos Porcentagem

Colectes especiáis da BibliotecaUniversitaria -UFMGSistema de Bibliotecas UFMGBiblioteca Batista Caetano - UFSJBiblioteca Municipal Sao Joao Del ReyBiblioteca PúblicaArquivo PúblicoSistema de bibliotecas PUCTotal

13

37393

1421812

264

4,92%

14,77%1,14%

53,79%

4,54%

A próxima análise dos dados refere-se ao idioma dos títulos encontrados. O gráficoabaixo permite caracterizar por idioma os títulos localizados em cada acervo (2).

Gráfico 01: Idioma dos títulos por acervo

Idioma dos títulos de ceda acervo

BUUfMO

ulos erft pcrtugirBí • N*di muíasam fñinc&s g l 4 ' m tí\\ü>t ern csjHñhol • » * da L'LIIIK

Pode-se observar na figura 1, que os idiomas predominantes são o francês, português,espanhol e inglês. Foram encontrados também manuais em latim, alemão e italiano, masem pequena quantidade.Em grande maioria os documentos encontrados estão escritos em francês ou emportuguês. Na Biblioteca Pública Luiz de Bessa e na Universidade Federal de São Del Reyencontramos um número maior de volumes em língua francesa, no primeiro 50% dostítulos encontrados são em francês. Enquanto que, nas coleções da BibliotecaUniversitária da UFMG, no sistema de Bibliotecas da Universidade Federal de Minas

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Gerais, na Biblioteca Municipal de São João Del Rey, no Arquivo Público Mineiro e noSistema de Bibliotecas da PUC-MG o português é o idioma predominante.Aparentemente esses dados podem sugerir que os títulos em psicologia de 1830 a 1930eram, em sua maioria, escritos em português, mas para essa análise é necessária umaclassificação dos títulos encontrados por idioma ao longo do período especificado, comomostra a tabela a seguir.

Tabela 02: classificação dos dados por idioma e data.

Número de títulos em

Data Portugués Francés Espanhol Inglés Italiano Alemao Latlm Total181018201830184018 SO186018701880189019--J1900191019Z01930s.d.Total

2

44583S415Zl10539

215

s76145112143174114

2154

21

11s1

11

11

221591211231010193376229

244

A tabela acima permite observar a influência de títulos publicados no exterior na difusãode temas psicológicos em Minas Gerais entre 1830 e 1930. Para melhor visualizaçãoelaborou-se o gráfico a seguir:

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Nepomuceno, D.M. & Campos, R.H.F.(2004). Fontes para difusão das idéias psicológicas em Minas 121Gerais entre 1830 e 1930. Memorandum, 6, 114-123. Retirado em / / d a WorldWide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/nepcampos01.htm

Gráfico 02: freqüência dos idiomas por décadas

Fregué ncia dos idiomas per décadas

161(1 1820 1330 1*« 1 8 » 1860 18TO 1360 iSSO [19H 1B00 1910 1S2ÜDécadas

Os dados demonstram uma predominância de publicações em francês, em todo o períodoconsiderado, sendo que o número de livros em francês apresenta crescimento até 1860,sofrendo uma pequena oscilação e voltando a crescer até 1880. Em uma década, sofreuma queda brusca, repete o movimento de crescimento e queda, alcançando seu ápiceem 1920, onde começa novamente a decrescer.Os títulos em português, por sua vez, aparecem em 1850, alcançando seu ápice tambémem 1920. Os outros dois idiomas (inglês e espanhol), quantitativamente menosexpressivos, aparecem somente a partir de 1900.Mesmo considerando a possibilidade de que muitos manuais utilizados na época tenhamse perdido ao longo do tempo, pode-se afirmar que a influência francesa foi significativana Psicologia mineira no período delimitado. Medeiros e Albuquerque (1924), afirma na2a edição do livro Testes, um dos livros encontrados na pesquisa, que "...entre nós, nodomínio intellectual, nada entra sinão vindo da França." (Medeiros e Albuquerque, 1924,p.8). Apesar disso, os manuais escritos em português também são significativos noperíodo de 1830 a 1930, resultando em 36,47% dos títulos encontrados. Deve-seconsiderar, contudo, que alguns desses manuais são traduzidos do francês e de outraslínguas.De modo geral, o número de publicações aumenta a partir de 1920, 31,15% dos títulossão dessa década. Este período coincide com a expansão dos sistemas de ensinoprimário, secundário e superior no estado, e com as reformas educacionais promovidas apartir de 1928 por Francisco Campos, fortemente influenciadas pelos avanços daPsicologia científica (Campos, 1980).

Considerações finaisA pesquisa bibliográfica permitiu o levantamento de um número significativo (244) defontes primárias para a história da Psicologia e em particular para história da Psicologia

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Nepomuceno, D.M. & Campos, R.H.F.(2004). Fontes para difusão das idéias psicológicas em Minas 122Gerais entre 1830 e 1930. Memorandum, 6, 114-123. Retirado em / / d a WorldWide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/nepcampos01.htm

mineira. De modo geral, verifica-se que a influência francesa em Minas foi predominanteem todo período, como mostra a figura 2, 46,72% dos títulos localizados são franceses.Mas, uma produção na língua portuguesa também pode ser observada a partir de 1850.Os títulos em português ganham corpo a partir de 1890, se comparados aos títulosfranceses. Esse é um dado interessante que vem legitimar, dando uma dimensãoquantitativa, um discurso acadêmico de que no final do século XIX a educação mineirasofreu fortes influências francesas.Como um desdobramento dessa pesquisa (4), será realizada a leitura dessas fontes como preenchimento de fichas. Essas fichas contêm: o número de chamada do documento,sua localização ou nome acervo, o título, título original (em caso de tradução), nome doautor (es), nome do tradutor (es) (em caso de tradução), local de edição, editora, ano depublicação, número de páginas, o sumário da publicação, um pequeno resumo, dadossobre o autor, caracterização da forma do documento (se ele é manuscrito, impresso,microfilmado ou outros) e observações.Esse trabalho nos permitirá o mapeamento mais detalhado das idéias psicológicas emMinas Gerais no período mencionado, e, a partir daí, inúmeras inferências sobre asmesmas poderão ser feitas, podendo inspirar pesquisas mais aprofundadas sobre omovimento das idéias psicológicas em Minas.A pesquisa bibliográfica estará disponível na Sala Helena Antipoff, no 3o andar daBiblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais, para aqueles interessados noassunto, e em breve na internet, no site http://www.bu.ufmg.br.

Referências bibliográficasAssis, Raquel M. (2004) Psicologia, Educação e Reforma dos Costumes: lições da Selecta

Catholica (1846-1847). Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UniversidadeFederal de Minas Gerais (Tese de Doutorado).

Boschi, M.F.L. (2000). O Ensino de Psicologia para Educadores em Minas Gerais (1920-1940). Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Psicologia, UniversidadeFederal de Minas Gerais (Dissertação de Mestrado).

Campos, R.H.F. (1980). Psicologia e Ideologia: um estudo da formação da Psicologiaeducacional em Minas Gerais. Belo Horizonte: Faculdade de Educação daUniversidade Federal de Minas Gerais (Dissertação de Mestrado).

Campos, R.H.F. (1992). Notas para uma história das idéias psicológicas em Minas Gerais.Em C. R. Drawin, e outros. Psicologia: possíveis olhares, outros fazeres. BeloHorizonte: Conselho Regional de Psicologia - 4a Região (MG/ES), pp. 11-64.

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Medeiros-e-Albuquerque, J.J.C.C. (1924). Tests: introdução ao estudo dos meiosscientificos de julgar a intelligencia e a applicação dos alumnos. 2aed. Rio deJaneiro: Livraria Francisco Alves.

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Nepomuceno, D.M. & Campos, R.H.F.(2004). Fontes para difusão das idéias psicológicas em Minas 123Gerais entre 1830 e 1930. Memorandum, 6, 114-123. Retirado em / / d a WorldWide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/nepcampos01.htm

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Paim, A. (1977). Introdução. Em A. Genovesi (1977). As Instituições de Lógica. Rio deJaneiro: PUC-Rio, Conselho Federal de Cultura, Editora Documentário, pp. 9-11.

Rodrigues, J.C. (1986). Idéias filosóficas e políticas em Minas Gerais no século XIX. BeloHorizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP.

Serrão, J. (Org.) (1971) Dicionário de História de Portugal. v. VI. Lisboa: IniciativasEditoriais.

Notas(1) Literatura primária refere-se aos livros originais em diversos idiomas (Brozek eGuerra, 1996).

(2) Durante o período dessa pesquisa bibliográfica, realizamos um estudo maisaprofundando da vida e obra de Édouard Claparède, o que resultou na monografiaÉdouard Claparède e a psicologia experimental: problemas e soluções educacionais(Denise, 2002), sob a orientação de Regina Helena de Freitas Campos..

(3) Siglas dos acervos no eixo x são as seguintes: Coleções da Biblioteca Universitária daUFMG (BU UFMG), Sistema de bibliotecas da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), Biblioteca da Universidade Federal de São João Del Rey e Biblioteca BatistaCaetano - obras raras da UFSJ (UFSJ), Biblioteca Municipal de São João Del Rey (B.Municipal S.J.D. Rey), Coleção Mineiriana da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa(Mineiriana), Patrimonial da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa (Patrimonial) ObrasRaras da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa (Obras raras B. Pública) ArquivoPúblico Mineiro (Arquivo Público), e Sistemas de biblioteca Pontifícia UniversidadeCatólica de Minas Gerais (PUC).

(4) A equipe é composta, além das autoras, pela professora da PUC-MG Raquel Martinsde Assis e duas orientadas Fernanda Luiza Simões Rosa e Karine Teixeira Pedrosa,graduandas em Psicologia na PUC- MG.

Nota sobre as autorasDenise Maria Nepomuceno é estudante de Pedagogia na Faculdade de Educação daUniversidade Federal de Minas Gerais, bolsista de Iniciação Científica - CNPq. Contato: R.Frei Cristóvão, 88- João Pinheiro. 30.530-510 Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail:[email protected] Helena de Freitas Campos é professora de Psicologia da Educação e História daPsicologia na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsistade pesquisa do CNPq, presidente do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff.Contato: Rua Professor Saul Macedo 111 - Belvedere. 30320-490 Belo Horizonte, MG,Brasil. E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 23/09/2003Data de aceite: 14/04/2004

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Sanchis. P. (2004). Folias de Reis: festa raiz. Memorandum, 6, 124-127. Retirado em / / 124do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/sanchis01.htm

Resenha

Folia de Reis: festa raiz

Folia de Reis (King's Frolic): a root party

Pierre SanchisUniversidade Federal de Minas Gerais

Brasil

E uma alegria participar do lançamento deste trabalho (1). Um trabalho belo (ousariafalar em "obra de arte") - e original... Esta qualidade é que os autores dos Prefácios e aApresentadora destacam (2). E também o fizeram os membros da banca que presidiu adefesa de tese. Pode-se confiar nestas exigentes opiniões... que qualquer leitor - comoeu o fiz - confirmará. Um filão inovador na abordagem de um universo simbólicoconcreto. Quero primeiro tentar dizer porquê.

A.1) Constrói uma estratégia que visa escapar ao "reducionismo". Um reducinismo que,segundo o Prof. Geraldo José de Paiva, orientador e autor de um dos Prefácios, seriadimensão da psicologia social. Introduzem-se aqui, então, perspectivas "outras": a daantropologia, da história , da ecologia, da fenomenologia... O que não deixa, aliás, desuscitar uma pergunta. Estas disciplinas todas (menos a fenomenologia, talvez?) seapresentam como "ciências". E, na verdade, é a "ciência" que, por princípio, é"reducionista". Daí a pergunta: por mais multidisciplinar que seja, um trabalho que nãoaceita "reduzir" o seu objeto estaria por isso situado fora da "ciência"?Provavelmente, o Prof. Miguel responderia que só pretende limitar a carga reducionistaque qualquer empreendimento de cunho "científico" implica, graças à multiplicidade dospontos de vista e, sobretudo, graças à retotalização progressiva da "experiência",operada pelo olhar fenomenológico.Ou, quem sabe, e mais radicalmente, questionaria a noção tradicional de "ciência"... Nãoestaria sozinho, hoje. Para falar só de antropologia, são vários os antropólogos "pós-modernos" que não se sentem à vontade quando incluídos nesta classificação de"ciência"... Para eles, quem sabe, a antropologia se aproximaria da literatura, articulandocom mais liberdade duas (ou três) sensibilidades - melhor, subjetividades: a do "sujeito"(não mais "objeto") da pesquisa, a do próprio pesquisador e até a do leitor. Já há temposfalava Geertz em "interpretação de interpretações". Para estes antropólogos, trata-se de"fusão de horizontes"; para Miguel, longe da "explicação", seria leitura (descoberta,epifania) do "implicado" (num comportamento, num rito, na narrativa mítica, namemória dos sujeitos) graças ao aparelho já elaborado de sua própria subjetividade /intelecção.

A.2) Isso introduziria o segundo aspecto da originalidade sintética do seu trabalho: o seuolhar - e o seu texto - estabelecem a simbiose, difícil e preciosa, do singular e docoletivo.Já a psicologia social se dá classicamente esta missão. Mas aqui ela é realizada demaneira mais próxima ao (à totalidade do) vivido. Um vivido coletivo apreendido nosingular (com o nível intermediário, demultiplicado, da comunidade - fala-se até em"psicologia comunitária"); o passado cristalizado no presente, o legado existencialmenteatualizado - tudo isso, tanto do lado "deles" quanto do lado pesquisador.Num certo sentido poderia se falar em "habitus" (com Bourdieu). Também com estaperspectiva o antropólogo se sente à vontade, pelo menos em princípio. Ela articulateoria e participação existencial. O Universo simbólico constitui-se para ser vivenciado,mas é vivenciado neste processo mesmo que o constitui. Uma mútua penetração.

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A.3) Um terceiro ponto que chama a atenção sobre a riqueza - e a contemporaneidade -do livro que se entrega agora ao público, é a afirmação (a exposição) de que aquilo querealizaria esta síntese no concreto dos grupos humanos seria a experiência religiosa: "umsignificado totalizante, que permite superar as contradições vividas nas comunidadesestudadas e articular o pessoal e o coletivo, o presente e o passado" (p.16).Falei em "afirmação". É preciso frisar a beleza de escritura e o caráter progressivo,iniciático, revelador e epifânico desta demonstração, ao longo dos capítulos emcrescimento desde a primeira parte. Em resposta à famosa pergunta, que atravessa todoo texto, como atravessou toda a pesquisa: "Por que? O que lhes causa tanto impacto?Por que se emocionam assim? Qual o significado de tudo isso?".

A.4) Enfim, somos assim levados a outro caráter original do livro. Ele começa, na suaprimeira parte, pela imersão direta do leitor num oceano de sentido. Diria: faz o leitorentrar à força (é claro, com a delicadeza calculada das perguntas sucessivas, como quede dúvida em dúvida) num oceano de sentido, que vem explodir - também em chave deperguntas e dúvidas - no capítulo final desta primeira parte: "Perplexidade e gratidão".Só depois se abre a caixa de ferramentas, revelando os segredos deste olhar, suasreferências instrumentais, os autores-fonte, a teoria que está por trás. Não é comumeste caminhar. Que exige primeiro a fé, só depois dá as chaves da justificativa e dacompreensão. Amoldamento ao tema? Em todo o caso, esta injunção ao leitor para que,primeiro, seja companheiro de indagação e de caminho é parte do encanto da leitura.Mas por isso será só no fim que as possíveis inquietações deste mesmo leitor-admiradoracabam sendo, senão totalmente respondidas e sossegadas, pelo menos esclarecidas.Quais inquietações? Precisamente as decorrentes destas mesmas riquezas que acabamosde enumerar.

B.1) Uma primeira, precisamente devida ao impacto deste misto de "perplexidade egratidão". Quanta riqueza ali descoberta assalta o leitor! Seria mesmo isso tudo? Coisastão simples implicariam "realmente" tal densidade de significação? Para explicar estaemergência, não haveria, além dos "dados" feitos "fatos" através da vivência significativade nossos sujeitos, outra fonte de inteligibilidade (o próprio mundo simbólico dopesquisador), talvez demasiado presente e até determinante? O autor se programa nachave da "Participação", sim (p.23-24), mas também fala em "desejo de verdade" (como caráter "objetivo" que a categoria conota), tanto para o pesquisador, quanto para oleitor (cf. "Boa leitura!", p.27). Até onde, nesta aporia entre a entrega à "participação" ea procura distanciada da "verdade", chega o papel da subjetividade? Será legítimo passarda "participação" para certa "projeção" mútua? Há momentos de silêncio dos atores. Umdeles, em torno da expectativa diante da porta fechada, foi aludido na Apresentação.Vejam ainda este trecho: "A caminhada é momento de silêncio, sim, mas também dememória e de reflexão. Outras vezes, trilhando sozinho, os passos firmes e o olharatento daquelas pessoas me faziam companhia e me convidavam igualmente à memóriae à reflexão" (p.33). Mas estes silêncios, no texto, acabam falando... Riqueza de umaexperiência de pesquisa realmente participante, até com a presença intencional - eeloqüente - dos efetivamente ausentes. Mas em que medida a voz deste silêncio, a faladeste olhar, não poderiam repercutir, de fato, o monólogo do pesquisador, mobilizandosua própria memória e seus próprios quadros simbólicos? Pessoalmente("subjetivamente"...) recebi o choque desta pergunta, logo antes do capítulo daperplexidade e da gratidão, na p.114, a propósito de São Gonçalo - um santo, e umadevoção, que conhecia bem por causa das romarias de Portugal, especialmente daromaria de São Gonçalo de Amarante. Como pular das modestas testemunhas de umculto tão singelamente orientado para tais profundezas metafísicas? Fui entender - comluz e cinzenteza, explicação e dúvida - quando li, citado através de van der Leeuw, adescrição que Kierkegaard faz do "observador psicólogo" à p.128. Valeria reportá-la

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inteira..., mas aqui vai o final: "Ele deve também possuir em sua alma a espontaneidadede um poeta, para assim extrair e modelar num conjunto ordenado tudo o que oindivíduo sempre expõe por meio de fragmentos esparsos e desordenados". Trabalho depoeta, então (e por que não?), mas cuja poiesis criadora deveria se adstringir a pôr emforma os "dados" (sei que já trabalhados na sua própria construção) que ele pôderecolher. Como saber em que medida o princípio mesmo desta ordenação (revelação desentido) foi aqui haurido da fonte ou projetado pelo olhar do pesquisador poeta? Boaexperiência-teste seria uma pesquisa de perfil semelhante, mas em terreno simbólicototalmente (ou amplamente) estranho ao universo simbólico-religioso do pesquisador, demodo a tornar menos evidente a pista de leitura, menos tentadores os prolongamentosmetafísicos, menos compartilhado o horizonte. Seria mais difícil então a simples"abertura condicionada", ponto de partida do processo de (re)conhecimento?

B.2) Outra "inquietação" poderá surgir no leitor. A "experiência religiosa" seria a doadorado significado totalizante, a articuladora da memória - do grupo e do indivíduo - com oconcreto de sua existência. Mas tal afirmação não constituiria precisamente hoje umproblema? (Só uma dupla alusão. A um autor: Gauchet; a um tema: secularização). Seida reserva explicita às "comunidades estudadas", sem generalização indevida. Mas estascomunidades fazem parte de um universo maior, que a problemática ecológica, oturismo, a implantação de uma rede viária, as aspirações para comunicações de massa,os sonhos da juventude acabam tornando presente ou pelo menos despontado nohorizonte. E neste mundo novo não é tão simples descrever assim o caráter totalizante edoador de sentido da experiência religiosa. Em todo caso, no nível dasociedade/comunidade: cultura, memória, imaginação prospectiva. Claro que não sepode dizer tudo num texto só. O autor escolheu um recorte relativamente sincrônico, quelhe permite afirmações de caráter quase estrutural (cf. Dumézil, precisamente noPrefácio a Mircea Eliade, citado: O sagrado do mito "é um elemento da estrutura daconsciência e não uma etapa da história da consciência"). Mas até estas estruturas estãona história. Talvez a galeria dos autores-fonte ganhasse com a inclusão de mais um:Marshall Sahlins, que se dedica a mostrar a resistência das estruturas (cultura,memória), frente ao correr do tempo, e o seu papel na conformação do entendimentopresente da história, mas também a ameaça de que estas estruturas são objeto - suafragilidade e suas transformações - diante da investida dos acontecimentos. Hoje, naJuréia, diante do advento da modernidade. Que a "festa" pode acabar - e que estaameaça está presente - você o mostra. Mas não analisa como e por que ela serásubstituída no seu papel totalizador. Por uma nova experiência religiosa?, pela funçãosubstitutiva de outra realidade social? Ou estaria evanescendo inclusive a necessidade deum fundamento?

B.3) Mais uma inquietação? Esta decorre da precedente. E simplesmente reforça umasnotações suas, freqüentes, mas que, em outros momentos, parecem mais esquecidas. Seo impacto da modernidade é gradativo e diversificado, as suas conseqüências devemcultivar várias memórias, fomentar várias festas, criar várias perspectivas de futuro. Nãosó entre os jovens, provavelmente, mas conforme a exposição diversificada dos váriosgrupos a este impacto (aliás, enquanto a leitura do texto faz surgir imagens de atoresadultos ou mais velhos, as fotografias, pelo contrário, parecem indicar uma dominânciadas jovens gerações... ilusão minha?). O autor fala dos grupos locais, fala dos jovens, àsvezes até mostra o reconhecimento e a reconstrução sendo possíveis graças à folia deum só (Pradel, cf. p.72). Mas outras vezes parece operar-se certa "fusão" comunitária: otrabalho de memória é apresentado como realmente coletivo e comum (por exemplo,p.69). Até nas suas eventuais rupturas. Uma pitada a mais de sociologia talvez pudesseter ajudado a diversificar e caracterizar grupos, experiências, aspirações, destinos. Afenomenologia, afinal, também teria o seu "quê" de reducionista?

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Mas são detalhes. Que não querem senão apontar pistas para outros trabalhos. Desejoque todos eles tenham o mesmo encanto, a mesma ousadia criativa; levantem asmesmas - e outras - dúvidas, e também as respondam.E que este diálogo seja com muitos, os muitos leitores que o livro merece - e comcerteza terá.

Notas(1) O presente texto é baseado na apresentação do livro em questão na ocasião de seulançamento na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, em novembrode 2003. Optou-se por manter o estilo coloquial.

(2) Os Prefácios são de Regina Helena de Freitas Campos (UFMG) e Geraldo José dePaiva (USP) e a Apresentação é de Olga R. de Moraes von Simson (Centro de Memória /Unicamp).

Nota sobre o autorPierre Sanchis, antropólogo, formado na Universidade de Paris VII, com Doutorado naEcole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Hoje professor emérito da UniversidadeFederal de Minas Gerais (Departamento de sociologia e antropologia), continua, comopesquisador do CNPq, a estudar o campo religioso brasileiro, especialmente o catolicismonas suas relações com a modernidade. É autor de: Arraial: a Festa de um Povo. Asromarias portuguesas (1983. Ed. Francesa, 1997) e coordenador de: Catolicismo (1991,3 vol) e Fiéis e Cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil (2001). Contato:[email protected]

Data de recebimento: 22/11/2003Data de aceite: 26/02/2004

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Nota

Josef Brožek: história e memória (1913-2004)

Marina MassimiUniversidade de São Paulo

Regina Helena de Freitas CamposUniversidade Federal de Minas Gerais

Brasil

No dia 18 de janeiro de 2004, faleceu em Saint Paul (Minnesota, EUA), Josef Brožek, umgrande homem e um grande cientista. "O meu desejo principal é ser útil": era umaexigência que ele afirmava freqüentemente. O relato de sua longa e fecunda vidadocumenta a realização plena deste seu desejo. E se, como ele mesmo dizia, "jamaistemos repouso: o presente é perpétuo", a longa existência, por ele intensamente vivida,realizou este ideal.Josef Brožek foi protagonista de uma dramática e belíssima história de vida. Nasceu em1913, na cidade de Melnik, na Boêmia, atual República Tcheca. Viveu sua juventude emVarsóvia (Polônia), entre 1913 e 1915 e junto com sua família foi deportado na Sibéria(1915-1920). Em junho de 1937, tornou-se PhD pela Charles University, em Praga, naTchecoslováquia, com uma tese sobre "Memória: suas medidas e sua estrutura". Atuoucomo psicólogo nesse país, na área da orientação vocacional e da psicologia industrial,nos anos de 1938 e 1939. Em 1939, devido aos inícios da Segunda Guerra Mundial,emigrou para os Estados Unidos e naturalizou-se americano em 1945. Continuou suaatividade de pesquisador e assumiu diversos cargos universitários na Europa e EUA,desde 1936, entre eles, a partir de 1941, como pesquisador no Laboratório de HigieneFisiológica, onde desenvolveu pesquisas sobre os efeitos da desnutrição nocomportamento humano, e no campo da psicologia do trabalho; e no M.I.T.(Massachusetts Institute of Technology), em 1980-1981. A partir de 1958, foi nomeadoprofessor de Psicologia e Pesquisador da Lehigh University, em Bethlehem, Pennsylvania,nos Estados Unidos.Autor de vários trabalhos de pesquisa, publicados em inúmeros artigos e livros,destacam-se os relativos a Comportamento na Desnutrição e História da Psicologia. Comefeito, Josef Brožek foi um dos pioneiros na pesquisa em História da Psicologia Moderna.Em 1965, participou da criação da Divisão 26 da American Psychological Association,dedicada à História da Psicologia, e da organização do periódico Journal of the History ofthe Behavioral Sciences, que se tornou um dos principais veículos de difusão da pesquisacientífica na área. Até recentemente Brožek integrava o corpo editorial desse periódico.Para colaborar na institucionalização do campo de estudos da História da Psicologia,Brožek organizou, em 1966, juntamente com R.I. Watson, um curso de verão na área,destinado a professores, na Universidade de New Hampshire. O curso foi repetido maistarde na Universidade de Lehigh, em 1971. A partir desse esforço em reunir oshistoriadores de psicologia, surgiu em 1968 a International Society for the History ofBehavioral and Social Sciences, mais tarde denominada Cheiron. Em 1969, Brožekcontou com a colaboração de Mary Henle, da Universidade de Princeton, historiadora dapsicologia da Gestalt, na organização do primeiro congresso da nova sociedade.Na área da História da Psicologia, Brožek realizou inúmeras pesquisas em arquivos ebibliotecas dos EUA e da Europa, especialmente da Europa Oriental. São trabalhoshistoriográficos originais quanto a conteúdos e métodos. Através da organização eparticipação em congressos, de visitas científicas e de contatos epistolares mantidos comfidelidade até o fim de sua vida com pesquisadores do mundo inteiro, incluindo jovensem formação nessa área de estudos, tornou a historiografia da psicologia um domíniointernacional, envolvendo nesta construção não apenas estudiosos de países de língua

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anglo-saxônica, mas também de idiomas eslavos e latinos, inclusive o Brasil. Suas visitasentre nós foram determinantes para a criação e articulação do grupo de historiadoresbrasileiros da psicologia, bem como para a publicação de trabalhos na área. Ele mesmoencarregou-se, em colaboração com M. Massimi, da preparação da versão brasileira da"Historiografia da Psicologia Moderna" (1998), que considerava a "jóia da coroa"(crowning glory) de sua colaboração com os pesquisadores brasileiros.A primeira visita ao Brasil ocorreu no Rio de Janeiro, a convite do Professor AntonioGomes Penna, organizador do Primeiro Seminário Latino-Americano de História daPsicologia (1988). Na ocasião, Brožek fez também uma breve visita a São Paulo, aconvite da Professora Maria do Carmo Guedes, da Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo. A segunda visita ocorreu em 1996, quando esteve em Ribeirão Preto (SP), aconvite da Professora Marina Massimi, para lecionar curso de História da Psicologia parapós-graduandos e pesquisadores, e em Teresópolis (RJ), onde participou com muitointeresse, no âmbito do Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio Científico da AssociaçãoNacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia, da reunião em que ocorreu aconsolidação de nosso grupo de trabalho em História da Psicologia. Este grupo reúnepesquisadores brasileiros na área, e permanece ativo até hoje.Em 1997, Brožek visitou novamente nosso país, desta vez começando por São Paulo,onde participou do Congresso Internacional da Sociedade Interamericana de Psicologia.Nesse Congresso proferiu uma conferência memorável, sobre o desenvolvimento docampo da historiografia da psicologia ao redor do mundo, e de uma mesa-redonda, emque destacou o desenvolvimento de estudos psicológicos na Tchecoslováquia (entre 1989e 1992) e na República Tcheca (a partir de 1993), após a chamada "Revolução deVeludo" (“Velvet Revolution"), que encerrou o período do totalitarismo e reintroduziu ademocracia na região. Em seguida, viajou a Belo Horizonte, para conhecer o Centro deDocumentação e Pesquisa Helena Antipoff (CDPHA) e o grupo de pesquisa que, naUniversidade Federal de Minas Gerais, empreendia a tarefa de organização do acervoAntipoff. Encantado com a riqueza dos materiais que compõem esse acervo e com atrajetória de vida de Helena Antipoff, que, como ele, havia deixado a Europa Oriental,passando pela Europa Ocidental para desenvolver intenso trabalho em psicologia eeducação no continente americano, Brožek decidiu doar parte de sua biblioteca pessoalpara o Centro. A partir dessa doação, que contem uma preciosa coleção de livros,periódicos, teses e manuscritos do autor, além de fotografias e slides, o acervo doCDPHA se ampliou, e novos temas de pesquisa vieram a ser explorados pela equipe, emcuja orientação Brožek participou com grande disponibilidade. O acervo doado por Brožekestá disponível na Sala Helena Antipoff, na Biblioteca Central da UFMG, juntamente como acervo do CDPHA, constituindo os "Arquivos UFMG de História da Psicologia no Brasil".Um dos resultados da sua colaboração com o Grupo de História da Psicologia da ANPEPPe o CDPHA foi a publicação, em 2001, do Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil,editado com o apoio do Conselho Federal de Psicologia, no qual Brožek figura como co-autor. Como testemunho de sua inesgotável energia, nosso amigo enviou recentementeao Journal of the History of the Behavioral Sciences resenha do Dicionário, publicada novol. 39, n. 4, outono 2003, na qual ressalta as qualidades da obra como referência para aHistória da Psicologia no Brasil.

Da imensa "obra" de Josef Brožek - que abraça na área científica o estudo das relaçõesentre Desnutrição e Comportamento e a consolidação da Historiografia da Psicologia nomundo - cabe destacar o método de trabalho, o qual baseava-se inteiramente em tecerrelações: relações entre países e áreas geográficas distantes - como se evidencia emsuas inúmeras pesquisas desenvolvidas em diversas áreas do mundo e possibilitadas peloseu grande conhecimento dos idiomas; e relações entre pessoas - através da promoçãode cursos, simpósios e eventos científicos e do fortaleci mento de associações, sociedadese grupos de trabalho; mas sobretudo pela amizade, que ele mantinha através de visitas ede contatos epistolares mantidos com fidelidade até o fim de sua vida com pesquisadoresdo mundo inteiro, incluindo jovens em formação em sua área de estudos. A amizade fiel,generosa e atenta com jovens pesquisadores, cultivada com respeito, simpatia e

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abertura extraordinárias era, de fato, um elemento integrante do método de trabalho deBrožek.Sua grande disponibilidade é evidenciada por tantos exemplos: entre eles, contamos umdo qual fomos testemunhas. Octogenário, Brožek aprendeu a língua portuguesa com ointuito de responder ao nosso convite para ministrar uma disciplina junto ao curso depsicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Foi assim que,no mês de maio de 1996, lecionou uma disciplina introdutória de historiografia dapsicologia, para os alunos do primeiro ano de curso. Foi uma experiência inesquecívelpara todos: aquele senhor alto e simpático, que falava um correto português, recitavapoesias, tocava violoncelo e guitarra e assobiava músicas no meio de lições claras eprofundas, fascinou a todos com seu sorriso cativante e sua irresistível e intensahumanidade, juntamente a uma incomparável competência histórica e historiográfica. Ocurso por ele proferido e redigido em português, foi editado nesta revista (Brožek eMassimi, 2001, 2002, 2002a).Em correspondência de 8.7.1996, comentando o curso de Ribeirão Preto e planejandonovas colaborações com os estudantes presentes, Brožek afirmava: "I love to work withstudents, be it directly or at a distance, and I always did. In fact: I ‘feel’ to be more a‘student’ than a ‘professor'!" (Gosto de trabalhar com estudantes, diretamente ou àdistância, e sempre gostei. De fato, sinto-me mais um estudante que um professor). Namesma correspondência, ele parece querer explicar porque faz planos que incluem osestudantes e professores com quem interagiu no Brasil: "To me, research has alwaysbeen a collaborative endeavor" (Para mim, a pesquisa sempre foi um empreendimentocolaborativo).Esta postura aberta e disponível - que lembra a pedagogia de Paulo Freire - é quetornava especialmente prazeroso o trabalho conjunto com Brožek. E foi seguindo essecaminho que ele tornou a historiografia da psicologia um domínio internacional,envolvendo nesta construção não apenas estudiosos de países de língua anglo-saxônica,mas também de idiomas eslavos e latinos, como o Brasil.Para Brožek, a dedicação ao estudo, ao ensino e à difusão da história da psicologia nasciada consciência de que, como ele mesmo nos disse naquela ocasião

todos somos herdeiros. Os nossos conhecimentos, anossa força (ou fraqueza) econômica, política,intelectual e moral - todas essas coisas nos vêm degerações anteriores. Nunca esquecerei o comentário deum professor de sociologia que dizia: nossacontribuição pessoal aos conhecimentos humanos é depeso tão leve que um pássaro pequenino poderia levá-la embora. O estudo da história das ciências deve nosensinar a virtude da modéstia. Além do mais, ajuda-nosa nos orientarmos de modo mais rápido e inteligente nopresente e antecipar o futuro (Brožek e Massimi, 2001,p.74).

Citando o artista francês J. Braque, afirmava que "o conhecimento do passado fazpossível a revelação do presente". Todavia, acreditava, "a realidade não se revela se nãofor iluminada por um raio poético".O raio da poesia da vida, de fato, iluminava sua pessoa e sua atuação: era esta luz que otornava capaz de descobrir em cada ser humano, em cada jovem, seu valor, suadignidade, intuindo talentos às vezes escondidos e acompanhando seu desvelar-se. Eraesta luz que tornava sua humanidade intensamente amiga de todos e atraída por tudoque é belo, verdadeiro e bom: a pesquisa, a música, a boa comida, o cheiro do café e osabor da fruta, o prazer da arte e o encanto das flores e das folhas que amavacontemplar. Um homem grande, cujo coração sabia conter as dimensões universais,demonstrando sensibilidade e empenho diante dos graves problemas do mundo, mas quesabia também como abraçar cada pessoa que encontrava e acolhia com cativantesimpatia e simplicidade.

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Nota sobre as autorasMarina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia eEducação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicasna Cultura Luso-Brasileira. Contatos: [email protected] Helena de Freitas Campos é professora de Psicologia da Educação e História daPsicologia na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsistade pesquisa do CNPq, presidente do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff.Contato: Rua Professor Saul Macedo 111 - Belvedere. 30320-490 Belo Horizonte, MG,Brasil. E-mail: [email protected]

Memorandum 6, abril/2004

Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/nota01.htm