edição nº 61 outubro de 2019 - cress...

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Edição nº 61 Outubro de 2019 40 ANOS DO CONGRESSO DA VIRADA: O SERVIÇO SOCIAL CONSTRUINDO SEU PROJETO PROFISSIONAL 1 O III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais - CBAS realizado em 1979 em São Paulo, conhecido como o “Congresso da Virada”, é o marco histórico do rompimento do Serviço Social brasileiro com o tradicionalismo e o conservadorismo da profissão. Há 40 anos o Serviço Social se propôs a um processo de revisão da profissão que superasse a visão positivista, ahistórica e acrítica potencializando as condições para a elaboração do projeto ético-político profissional. Já na década de 1960 o Serviço Social instigado pelo movimento sociopolítico do país, especialmente com as manifestações anticolonialistas e pelo Movimento de Reconceituação da profissão que se instituiu na América Latina, estabeleceu um processo de revisão dos seus fundamentos teórico-metodológicos, caracterizando a erosão do Serviço Social tradicional com a laicização do ensino e com a inserção profissional no campo das disputas por projetos societários. Na década seguinte, a profissão direciona-se objetivamente a sua autocrítica, sendo que a partir da vertente de “Intenção de Ruptura”, conforme denominada por NETTO, iniciada no período de 1972 a 1975, se configura a crítica ao tradicionalismo e a seus embasamentos teóricos, metodológicos e ideológicos, o que propiciou a aproximação com a teoria social crítica (NEGRI, 2016). A interlocução entre o Serviço Social e a teoria social crítica de Marx iniciada na década de 1970 propiciou o questionamento do conservadorismo da profissão e criou as condições teórico-práticas para a compreensão da realidade em toda sua complexidade e contradição impulsionando o processo de amadurecimento da própria profissão. Diante desse quadro, a partir de 1977 com a reorganização do movimento sindical e popular se institui o processo organizativo dos/as Assistentes Sociais que se vincularam ao movimento sindicalista classista, autônomo e de lutas a partir da ação da Comissão Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais – CENEAS e da Associação Nacional de Assistentes Sociais – ANAS. A reorganização coletiva da categoria passava pela compreensão de que havia a necessidade de construir enfrentamento de uma realidade social e política que exigia o posicionamento dos/as profissionais, seguindo os passos da classe trabalhadora e amplos setores da sociedade que, nesse período, se organizavam coletivamente (ERUNDINA, 2012). Fabiana Luiza Negri ¹ ¹ Assistente Social, Doutora em Serviço Social, Professora da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

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ELETRÔNICO

BOLETIM

Edição nº 61 Outubro de 2019

40 ANOS DO CONGRESSO DA VIRADA: O SERVIÇO SOCIAL CONSTRUINDO SEU PROJETO PROFISSIONAL

1

O III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais - CBAS realizado em 1979

em São Paulo, conhecido como o “Congresso da Virada”, é o marco histórico

do rompimento do Serviço Social brasileiro com o tradicionalismo e o

conservadorismo da profi ssão. Há 40 anos o Serviço Social se propôs a um processo de

revisão da profi ssão que superasse a visão positivista, ahistórica e acrítica potencializando

as condições para a elaboração do projeto ético-político profi ssional.

Já na década de 1960 o Serviço Social instigado pelo movimento sociopolítico

do país, especialmente com as manifestações anticolonialistas e pelo Movimento de

Reconceituação da profi ssão que se instituiu na América Latina, estabeleceu um processo

de revisão dos seus fundamentos teórico-metodológicos, caracterizando a erosão do

Serviço Social tradicional com a laicização do ensino e com a inserção profi ssional no

campo das disputas por projetos societários. Na década seguinte, a profi ssão direciona-se

objetivamente a sua autocrítica, sendo que a partir da vertente de “Intenção de Ruptura”,

conforme denominada por NETTO, iniciada no período de 1972 a 1975, se confi gura a

crítica ao tradicionalismo e a seus embasamentos teóricos, metodológicos e ideológicos,

o que propiciou a aproximação com a teoria social crítica (NEGRI, 2016).

A interlocução entre o Serviço Social e a teoria social crítica de Marx iniciada na

década de 1970 propiciou o questionamento do conservadorismo da profi ssão e criou as

condições teórico-práticas para a compreensão da realidade em toda sua complexidade e

contradição impulsionando o processo de amadurecimento da própria profi ssão.

Diante desse quadro, a partir de 1977 com a reorganização do movimento sindical e

popular se institui o processo organizativo dos/as Assistentes Sociais que se vincularam

ao movimento sindicalista classista, autônomo e de lutas a partir da ação da Comissão

Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais – CENEAS e da

Associação Nacional de Assistentes Sociais – ANAS. A reorganização coletiva da categoria

passava pela compreensão de que havia a necessidade de construir enfrentamento de uma

realidade social e política que exigia o posicionamento dos/as profi ssionais, seguindo

os passos da classe trabalhadora e amplos setores da sociedade que, nesse período, se

organizavam coletivamente (ERUNDINA, 2012).

Fabiana Luiza Negri ¹

¹ Assistente Social, Doutora em Serviço Social, Professora da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

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Nesse período o movimento sindicalista dos/as profi ssionais, pensando no processo

organizativo da categoria, realizou três reuniões nacionais, duas em Belo Horizonte e uma

em São Paulo antecedendo o III CBAS em 1979, o que resultou num processo de crítica da

organização e programação do evento, visto que as entidades da categoria encontravam-se

sob a direção do setor conservador da profi ssão alinhados a vertente modernizadora e de

reatualização do conservadorismo (ABRAMIDES; CABRAL, 2009).

Nesse viés, o III CBAS foi organizado pelo então Conselho Federal de Assistentes

Sociais – CFAS e o Conselho Regional de Assistentes Sociais de São Paulo – CRAS/

SP, que instituiu uma Comissão de Honra para o Congresso, constituída por dirigentes

da ditadura militar. Ademais a organização da dinâmica do Congresso não favorecia a

elaboração de análises mais totalizantes das políticas sociais a que se propunha debater,

isto porque centrou as refl exões nas políticas setoriais vistas de forma desarticuladas

e parcializadas e na mesma esteira, não se previa momentos de debates coletivos e de

deliberações, assim como a participação de estudantes era restringida a dois representantes

por faculdade.

Conforme Abramides; Cabral (2009) os/as Assistentes Sociais no transcorrer dos

trabalhos de grupos realizados durante o Congresso, passaram a fazer intervenções

contundentes de crítica e repúdio às homenagens aos representantes da ditadura militar.

Mediante esse contexto, a categoria passou a realizar assembleias diárias, as quais eram

organizadas pelo movimento dos/as profi ssionais, forçando a Comissão Organizadora do

evento a alterar a programação.

A partir do segundo dia do evento sob a liderança das entidades sindicais, após a

aprovação da Moção apresentada por Elma Ribeiro, foi reconstituída a mesa de honra,

agora com a participação de representantes da classe trabalhadora, por sindicalistas

cassados e trabalhadores demitidos e perseguidos pelo regime militar.

A programação que previa os debates setorizados das políticas sociais foi substituída

por debates que compreendiam as políticas num perspectiva de totalidade, propiciando

refl exões da conjuntura social e possibilitando uma análise que estabelecesse a relação

entre as politicas sociais e a política econômica passando por leituras de totalidade no

âmbito da produção e reprodução das relações sociais, caracterizando um rumo totalmente

adverso a programação inicial do Congresso (ABRAMIDES; CABRAL, 2009).

Vale ressaltar que o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais acontece num

momento de reorganização da vida política brasileira, onde se retomam as lutas sociais,

especialmente os movimentos populares e sindicais pautado pelo protagonismo da classe

operária.

O “Congresso da Virada”, numa nova direção social, consolida os preceitos teórico-

metodológicos e ético-políticos fundamentados na teoria social crítica marxista, que já

havia se colocado para a profi ssão na década de 1960 e aprofundando na década seguinte

com o Método BH. Fruto do amadurecimento teórico, ético e político da profi ssão e

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também desse Congresso, o Serviço Social brasileiro elabora e materializa seu projeto

ético-politico. O qual se manifestará no Currículo de 1982 e, posteriormente, nas Diretrizes

Curriculares de 1996 da Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino - ABEPSS e no

processo de reorganização do conjunto CFESS/CRESS que assume papel preponderante

nas lutas e na construção coletiva do Código de Ética de 1986 e em seguida o de 1993 e

igualmente na Lei de Regulamentação da Profi ssão de 1993.

O movimento político ocorrido no IIICBAS - “Congresso da Virada” - confi gurou no

âmbito da profi ssão as possiblidades de articulação com os movimentos sociais e sindicais,

potencializando as condições para a construção do projeto ético-político do Serviço

Social, pautado na teoria social crítica de Marx, que permite a elaboração de concepções

críticas na leitura da realidade social afastando-se de entendimentos funcionalistas,

moralistas e conservadores na perspectiva positivista. Desse modo, refi rma-se que a

tradição marxista pode elucidar a ação profi ssional e “[...] contribuir para iluminar as

nossas mobilidades de intervenção socioprofi ssional, especialmente fazendo indicações

sobre realidades emergentes” (NETTO, 1989, p. 99). Ou seja, fundamentado na teoria

social crítica, o Serviço Social estabelece condições reais de construir leituras mais

consistentes da realidade com a qual lida cotidianamente e de perspectivar parâmetros

para o planejamento de ações.

No tempo presente em que se aprofunda a crise em todas as esferas: econômica, social,

ética e ideopolítica, a apropriação da teoria social crítica marxista contribui com a direção

social da profi ssão no sentido de defesa da garantia dos direitos, do exercício da cidadania,

da participação social e da democracia.

A partir da fundamentação téorico-metodológica consubstanciada na teoria social crítica

a profi ssão compreende seu papel, promove os debates políticos necessários, assume

posições em defesa dos direitos humanos e da liberdade como valor central, articula-se

à classe trabalhadora e se reconhece como profi ssionais inseridos nos espaços sócio-

ocupacionais na condição de assalariados, lidando cotidianamente com demandas que

perpassam o campo das relações sociais.

A teoria social crítica marxista “apresenta-se como um conhecimento racional do

mundo, que continuamente se aprofunda e ultrapassa a si mesmo” (LEFEBVRE, 2009, p.

23), assim sendo, é uma teoria que se constitui de fi losofi a e de método, que se desenvolve

por meio da crítica, sem destruir seus princípios. Fundamentada no materialismo dialético

permite desvendar as expressões de uma época histórica, das relações sociais e seus

desdobramentos na vida social, fazendo-o através da análise do movimento do real em

sua totalidade.

Ainda que no processo histórico do Serviço Social a aproximação com a teoria social

crítica se confi gurou de forma enviesada, a ampliação dos estudos, o adensamento da

produção de conhecimento, e os movimentos políticos da categoria instituíram um processo

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Expediente: Este boletim é uma publicação do CRESS 12ª Região - Gestão 2017-2020.Comissão de Comunicação: Cassiano Ferraz, Flávia de Brito Souza Garcia e Lenir Hermes. Colaboradoras: Fabiana Luiza Negri, Miriam Martins Vieira da Rosa e Natalli Pazini Silva. Diagramação: Cassiano Ferraz - Assessor de Comunicação ([email protected])

CRESS 12ª REGIÃO - Rua dos Ilhéus, nº 38 - Ed. APLUB - Sl. 1005Centro - Florianópolis/SC - CEP 88010-560

Telefone: (48) 3224-6135 - E-mail: [email protected] Externo: Seg/Sex das 10h às 16h

de crítica e retomada dos seus conceitos e princípios levando a profi ssão a formular um

posicionamento ético-político e um conhecimento teórico-metodológico no entendimento

de que a profi ssão se realiza no contexto da relação capital/trabalho no campo das relações

sociais, tornando-se possível afi rmar que a apropriação e interlocução do Serviço Social

com a teoria social crítica foi e permanece sendo o motor impulsionador do processo de

amadurecimento da profi ssão.

Referências:

ABRAMIDES, Mª B; CABRAL, Mª S. A Organização Política do Serviço Social e o Papel da CENAS/ANAS na Virada do Serviço Social Brasileiro. In: 30 Anos Congresso da Virada, Brasília: CFESS/CRESS SP/ABEPSS/ENESSO, p. 55-80, 2009.

ERUNDINA, Luiza. A Chama em meu peito ainda queima, Saiba! Nada foi em vão – Depoimento. In: Seminário Nacional: 30 Anos do Congresso da Virada, [Anais], Brasília: CFESS, p. 39-46, 2012.

LEFEBVRE, Henri. Marxismo. Tradução: William Lagos. Porto Alegre – RS: L&PM Pocket, 2009.

NEGRI, Fabiana L. O Pensamento de Antonio Gramsci na produção Teórica do Ser-viço Social Brasileiro, [Tese Doutorado], Florianópolis: PPGSS/UFSC, 2016.

NETTO, José Paulo. O Serviço Social e a Tradição Marxista. Serviço Social e Socieda-

de. São Paulo: Cortez Editora, n. 30, p. 88-101, Abr. 1989.