ecos bucólicos: relações entre as bucólicas de virgílio e a primeira

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS LEANDRO CÉSAR ALBUQUERQUE DE FREITAS Ecos bucólicos: relações entre as Bucólicas de Virgílio e a primeira parte da Marília de Dirceu de Gonzaga João Pessoa, 2008

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    LEANDRO CSAR ALBUQUERQUE DE FREITAS Ecos buclicos: relaes entre as Buclicas de Virglio e a

    primeira parte da Marlia de Dirceu de Gonzaga

    Joo Pessoa, 2008

  • 2

    Leandro Csar Albuquerque de Freitas

    Ecos buclicos: relaes entre as Buclicas de Virglio e a primeira parte da Marlia de Dirceu de Gonzaga

    Dissertao apresentada ao Programa em Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal da Parabacomo requisito obteno do ttulo de Mestre na rea de Literatura e Cultura

    Orientador: Prof. Dr. Milton Marques Jnior

    Joo Pessoa, 2008

  • F866e Freitas, Leandro Csar de Albuquerque. Ecos buclicos: relaes entre as Buclicas

    de Virglio e a primeira parte da Marlia de Dirceu de Gonzaga / Leandro Csar Albuquerque de Freitas.- Joo Pessoa, 2008. 181p.

    Orientador: Milton Marques Jnior Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA

    1. Virglio (Pblio Virglio Maro) crtica e interpretao. 2. Gonzaga, Toms Antnio crtica e interpretao. 3. Literatura comparada. 4. Buclicas crtica e interpretao. 5. Marlia de Dirceu crtica e interpretao.

    3

  • 4

    AGRADECIMENTOS Agradeo em primeiro lugar a minha famlia, sem a qual nada de minha trajetria seria

    possvel. A meu pai e a minha me, pela pacincia, carinho e incentivo; a meus irmos, pela

    companhia; avs, tios e tias, por me fazerem ver que esta mais que uma conquista pessoal; a

    tia Clarice especialmente, pelo abrigo oferecido; a Emilia por compartilhar esta trajetria

    longa.

    Agradeo tambm ao Professor Doutor Milton Marques Jnior pela inspirao e orientao

    que antecedem a este trabalho; Professora Doutora Sandra Luna, pelos mesmos motivos e ao

    Professor Doutor Juvino Alves Maia Jnior pela prontido com que sempre nos auxiliava.

    Agradeo ao CNPq, pelo financiamento e cobertura nesses dois anos.

    Finalmente a todos que de uma forma ou de outra acabaram se tornando minha famlia neste

    processo.

  • 5

    RESUMO

    Este trabalho prope uma anlise comparativa entre as Buclicas de Virglio e a primeira

    parte da Marlia de Dirceu de Toms Antnio Gonzaga. Em seu decorrer, discorremos sobre o

    gnero buclico e as caractersticas peculiares deste tipo de composio, tambm efetuamos

    um pequeno relato biogrfico de Virglio e Toms Antnio Gonzaga para a devida

    contextualizao dos autores. Seguidamente tratamos das Buclicas, analisando sua estrutura

    textual e a forma como essa estrutura auxilia na composio lrica, provendo um cenrio a

    partir do qual os temas so desenvolvidos. A anlise estrutural e a dos temas que se segue

    buscam iniciar um referencial comparativo para as duas obras, tendo em vista a antecedncia

    da obra de Virglio. A anlise da Marlia de Dirceu segue das Buclicas, novamente

    seguimos a seqncia estrutura-tema em que verificamos a distino estrutural da segunda

    obra com relao primeira, a despeito da preservao de certos temas e elementos

    expressivos. Por fim realizamos uma comparao em que apesar de verificarmos as distines

    estruturais das duas obras, apontamos similaridades e propomos um estudo de influncia.

    Palavras-chave: Buclicas, Marlia de Dirceu, poesia pastoril, Arcadismo brasileiro

  • 6

    ABSTRACT

    This research proposes a comparative analisys between Virgils Eclogues and the first part of

    Marlia de Dirceu, a poem written by the blazilian poet Toms Antnio Gonzaga. Throught

    the development of this work, we discuss Pastoral Poetry and some peculiar features of this

    kind os composition; we also perform a brief narration of both poets lifes to propiciate some

    contextualization. After the first part we deal with The Eclogues, analizing its textual structure

    and the way this structure helps the lyrical performance, providing scenes and backgrounds

    from where some themes are develop. The structural analysis and the themes analysis aim to

    build a comparative reference for the works in question, in face of the precedence of Virgils

    poem. Marlia de Dirceus analisys is the next, again we follow the structure-theme sequence

    in whic we verify a structural distiction between the second and the first text, despite of the

    preservation of some themes and expressive elements. Finally we perform the comparison in

    which we show the strutural diferences although we also point the similarities and propose an

    influence study relating the works.

    Key-words: Eglogues, Marlia de Dirceu, Pastoral Poetry, Brazilian Arcadism.

  • 7

    SUMRIO AGRADECIMENTOS.................................................................................................................................................4 RESUMO ......................................................................................................................................................................5 ABSTRACT ..................................................................................................................................................................6 SUMRIO.....................................................................................................................................................................7 INTRODUO ............................................................................................................................................................8 I - A POESIA BUCLICA - UM GNERO EM DOIS MOMENTOS.................................................................12

    IDENTIDADES............................................................................................................................................................19 VIRGLIO ..................................................................................................................................................................19 TOMS ANTNIO GONZAGA.....................................................................................................................................27

    II AS BUCLICAS, GNERO E TEMAS ..............................................................................................................47 OS MODOS DE ENUNCIAO .....................................................................................................................................50 A ENCENAES ........................................................................................................................................................72 TEMAS......................................................................................................................................................................74 A SOLUO DAS BUCLICAS....................................................................................................................................77 OS TEMAS NAS BUCLICAS ......................................................................................................................................78

    O amor ................................................................................................................................................................78 O Locus amoenus................................................................................................................................................81 Homenagens aos deuses .....................................................................................................................................86

    III O ARCADISMO ...................................................................................................................................................90 MARLIA DE DIRCEU ................................................................................................................................................97

    A Conquista de Marlia.......................................................................................................................................99 A construo de Marlia ...................................................................................................................................119 A intensidade do Amor......................................................................................................................................126

    SNTESE...................................................................................................................................................................134 IV COMPARAO.................................................................................................................................................135

    O BUCOLISMO ........................................................................................................................................................135 O Ambiente .......................................................................................................................................................137 As estruturas .....................................................................................................................................................139

    OS TEMAS ..............................................................................................................................................................144 O Amor..............................................................................................................................................................145 O Locus Amoenus .............................................................................................................................................152 Os motivos ........................................................................................................................................................157

    A INFLUNCIA ........................................................................................................................................................166 CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................................................175 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................................................178

  • 8

    INTRODUO

    Comparar natural, portanto inevitvel. Imagina-se que desde que o homem efetuou

    seu primeiro intercmbio cultural com outro grupo humano, enveredou pelo caminho das

    medidas e paralelos, observando as semelhanas e diferenas perceptveis no que diz respeito

    s solues propostas por diferentes grupos aos diversos campos da experincia humana.

    Ignorando-se as motivaes etnocntricas para tal procedimento, deve-se reconhecer que a

    comparao, como conseqncia natural dos intercmbios culturais, deu seguimento a outros

    processos que em muito auxiliaram as transformaes scio-culturais e o progresso cientfico

    e tecnolgico nos grupos que melhor a souberam aproveitar.

    Dentre todas as possveis entidades alvo de comparao, certamente os bens culturais

    so os de maior incidncia, ou ao menos os que mais comoo geram. Isso porque so mais

    do que meras produes, mas bens que, pelo fato de serem altamente significativos para as

    culturas que os engendra, tolhem a receptividade a outros bens estranhos ou aliengenas. No

    diferente com a literatura, pelo contrrio, sua modalidade de difuso, a palavra, sempre deu

    espao para propagao de idias particulares e desde o comeo foi um meio de afirmao dos

    valores culturais. Veja-se o caso das mais antigas epopias que comearam como textos orais

    e assim permaneceram por centenas de anos, sempre foram todas, em ltima anlise,

    justificadoras e difusoras dos procedimentos e modos de vida dos povos que as criaram.

    Possivelmente, a universalidade do esprito humano e o intercmbio cultural que

    realizamos desde tempos imemoriais tenham nos proporcionado a habilidade de reconhecer

    aquilo o que produzimos textualmente como parte de nossa prpria experincia humana,

    mesmo quando emissor e receptor distam quilmetros e milnios um do outro. Assim, ao

    compartilharmos histrias ou obras de arte de fontes mais distantes possveis, somos capazes

    de obter entendimento sobre suas representaes. Justifica-se assim o proceder da comparao

    livre? Em parte, pelo menos tanto quanto se justifica comparar o nascimento de um beb com

    a construo de um carro, afinal, em essncia, ambos so criaes humanas at ento no

    reproduzidas por outra espcie. No entanto, quanto mais nos aprofundamos nos objetos a

    serem contrapostos, cedo ou tarde eles revelaro pontos de divergncia a partir dos quais

    constituem entidades distintas, o que os torna incompatveis para o processo. Em se tratando

    de produes artsticas, especialmente as literrias, freqentemente nos encontramos entre os

    dois extremos da progresso, a similaridade essencial e distino ltima, tendo que justificar a

    pertinncia do procedimento de comparao no manejo dos dois plos.

  • 9

    H sempre um ponto de convergncia? Arriscamos dizer que possivelmente sim. A

    crescente gama de abordagens dos textos literrios prov muitas possibilidades para os

    estudos comparativos. Os pontos de contato entre as culturas e as redes de influncia durante

    a histria da humanidade foram muitos, permitindo a circulao de idias, temas, emoes

    que sofreram vrias abordagens e evolues na maneira de serem expressas; esses

    ressurgimentos normalmente possibilitam muitos trabalhos comparativos. Contudo, na

    posse de dois textos to distantes no tempo e espao como as Buclicas, de Virglio e Marlia

    de Dirceu, de Toms Antnio Gonzaga, mediante que critrios se justifica o estabelecimento

    de parmetros de comparao? A literatura comparada uma disciplina desafiadora que a

    cada dia supre detratores e fomentadores com mais diversos argumentos para suas convices.

    No caso das Buclicas e da Marlia de Dirceu, entretanto, vrios pontos comuns

    parecem indicar no s a possibilidade mast tambm a urgncia de uma anlise desse porte,

    ainda mais que ambos os textos se vm aproximados pelo tipo literrio conhecido como

    poesia pastoril. Nesse vis, contraporamos meramente uma obra dita fundadora e outra

    difusora do gnero se adotssemos as concepes consensuais acerca da poesia pastoril, e

    teramos possivelmente material para um trabalho coerente e extenso. Os cotejamentos dos

    pontos de convergncia e divergncia dos temas j configurariam um trabalho satisfatrio,

    uma vez que lidamos com obras de arte que seguem uma tradio.

    Esses indcios preliminares conduziro os procedimentos deste trabalho, que se

    pautar na busca do entendimento do gnero que perpassa os dois poemas, de suas

    repercusses temticas e finalmente da relao criativa estabelecida entre as obras. Ao final,

    pretendemos ter em mos um quadro satisfatrio das aproximaes e distncias que marcam

    as produes, e possivelmente definir a natureza da relao entre elas.

    Convm esclarecer que, no que se refere obra de Gonzaga, abordaremos nesta

    anlise apenas a primeira parte do poema. O motivo para essa escolha reside no fato de a

    segunda parte da obra ser notoriamente marcada pelos drsticos eventos da vida do poeta, sua

    priso e degredo, em virtude de seu envolvimento na inconfidncia mineira. Como a primeira

    parte j oferece todo o arcabouo estrutural e temtico que ser utilizado em toda a extenso

    da obra, sem a interferncia de acontecimentos que certamente exigem uma avaliao

    diferenciada, julgamos mais sucinto nos ater apenas primeira parte de seu poema.

    Para os fins desta anlise, seguimos uma seqncia de cinco captulos. No primeiro,

    contextualizamos a poesia buclica, apontando suas caractersticas particulares e possveis

    elementos de aproximao entre os textos em comparao neste trabalho. Uma pequena

    contextualizao foi feita de modo a melhor compreender as obras e os autores em seus

  • 10

    respectivos contextos. Para o primeiro captulo foram fundamentais os trabalhos de Mrcio

    Luiz Moitinha Ribeiro em sua dissertao A Poesia Pastoril: as Buclicas de Virglio; Pierre

    Grimmal e seu trabalho biogrfico Virglio, ou o segundo nascimento de Roma; e Adelto

    Gonalves e seu livro Gonzaga, um poeta do iluminismo.

    No segundo captulo nos dedicamos s Buclicas, buscamos abordar cuidadosamente

    a questo do gnero literrio predominante no poema como forma de explicitar o processo de

    formao do ambiente buclico. Sabe-se que as Buclicas reformularam o poema pastoril e

    fundaram um tradio muito especfica, pela anlise da estrutura do texto que justificamos

    os elementos dessa tradio. Feita essa anlise estrutural, apresentamos algumas anlises dos

    temas presentes na obra, formando o lastro para nossa comparao. No segundo captulo nos

    valemos principalmente dos textos de Kte Hamburguer, A lgica da criao literria;

    Umberto Eco, Lector in fabula; e Roland Barthes, A aventura semiolgica.

    No terceiro captulo nos dedicamos primeira parte da Marlia de Dirceu. Primeiro,

    julgamos pertinente abordar o movimento esttico em que ela se enquadra, o Arcadismo, e a

    forma como este movimento orienta de maneira bem especfica a execuo das obras nele

    inseridas. Depois, seguindo a seqncia de abordagem estrutura-tema, mostramos o quo a

    obra rcade difere da clssica no quesito estrutura e como, por outro lado, podemos aproximar

    as duas obras segundo os seus temas, que, mesmo diludos esparsamente no texto,

    contemplam os caminhos da obra clssica, as Buclicas. Para esse captulo foram

    fundamentais os textos de Antonio Candido, Formao da literatura brasileira; Jorge Luiz

    Ruedas de la Serna, Arcdia, tradio e mudana; e Olivier Reboul, Introduo Retrica.

    No quarto captulo efetuamos a comparao, o foco est nas caractersticas estruturais

    do poema buclico, levantadas principalmente no segundo captulo, e nos temas e

    desenvolvimentos levantados no segundo e terceiro captulos. Por fim, listadas algumas

    proximidades e distncias, apresentamos uma proposta de estudo de influncia que pretende

    apontar um elo concreto possvel entre as obras. Nesse captulo nos valemos principalmente

    dos estudos de Harold Bloom em sua obra A angstia da influncia; e Umberto Eco em seu

    livro Interpretao e superinterpretao.

    Por fim, no quinto captulo apresentamos as consideraes finais acerca do trabalho.

    Outros textos relevantes utilizados so Construo e Arte das Buclicas de Virglio de

    Joo Pedro Mendes; Virgile: Bucoliques de E. Saint-Denis; Virgil, the Eglogues, de Guy Lee;

    e Virglio, Buclicas, de Maria Isabel Rebelo Gonalves; Alguns usados como fontes do texto

    latino ou como fontes de tradues. As tradues prprias foram feitas com base em dois

    http://150.165.241.35/scripts/odwp032k.dll?showbrief=ufpb_wpor:ufpb_por:pn:T:CARD:NEW:plataohttp://150.165.241.35/scripts/odwp032k.dll?showbrief=ufpb_wpor:ufpb_por:pn:T:CARD:NEW:platao

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    dicionrios, o Dicionrio latino portugus de F. R. dos Santos Saraiva e o Diconrio de

    latim-portugus da Porto editora.

  • 12

    1 - A POESIA BUCLICA - UM GNERO EM DOIS MOMENTOS

    Com mais de dois mil anos de ocorrncia, a poesia pastoril um gnero de muitos

    autores e re-visitaes sem, no entanto, atrair a quantidade de ateno que outros gneros

    contemporneos ao seu surgimento obtiveram. A etimologia do seu nome acusa sua origem

    grega, seu nome deriva de bouko/loj (boieiro, pastor), e se refere a um gnero potico que

    privilegia personagens e ambientes campestres, envolvidos em atividades de criao de

    animais. Como boa parte dos gneros antigos, uma forma de poesia que no se define

    explicitamente por seu metro ou forma, e sim pelo seu assunto ou orientao temtica central.

    Ribeiro(RIBEIRO, 2006, p.123)1 a define claramente segundo esse aspecto:

    Strictu Sensu uma forma de poesia na qual o protagonista o bouclos

    (bouko/loj) , isto , o boieiro ou o vaqueiro, com predomnio para o guardador

    de gado bovino, por ser o mais antigo entre os pastores. Latu sensu, seria o

    gnero literrio, em verso, em que figuravam, num cenrio campestre, os

    guardadores de gado como principais atores, podendo ser boieiros,

    vaqueiros, pastores de cabras ou de ovelhas. (RIBEIRO, 2006, p.13)

    As origens primitivas dessa modalidade de poesia ainda so um ponto de discusso,

    sabe-se que Tecrito2 de Siracusa foi seu primeiro difusor em forma escrita na Grcia ao

    compor seus Idlios, mas a tradio que o antecedia permanece em questo. Ribeiro aponta

    uma relao entre a poesia pastoril e as colheitas das vindimas ou as dionisacas na Grcia

    antiga (RIBEIRO, 2006, p.12), afirma tambm que muitos dos rituais e elementos descritos

    pela poesia referem-se a atividades realizadas por gente do campo em celebraes deusa

    rtemis. Seja como for, com relativa certeza que podemos afirmar que os dois autores

    responsveis pela conformao do gnero como ficou notoriamente conhecido foram

    Tecrito, ao se valer de personagens e cenrios campestres na composio de seus idlios; e

    Virglio ao agregar valores filosficos aos temas propostos por seu antecessor.

    1. Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras Clssicas do DLCV da FLFCH da Universidade de So Paulo. 2 O poeta teria nascido ao final do sculo IV a.C. (em 310 ou 309), em Siracusa na Siclia e falecido no meio do sculo III a.C. (250 ou 249). De sua produo potica restam-nos os Idlios e alguns poemas esparsos; os Idlios so compostos por poemas de tipos variados entre os quais poemas buclicos.

  • 13

    Modernamente, nos afirma Ribeiro3 haver vrios termos intercambiveis para retratar

    esse tipo de poesia: idlio, gloga, pastoral, buclicas; embora na Antigidade alguns desses

    termos definissem modalidades poticas distintas. Para os fins deste trabalho, utilizaremos a

    concepo moderna que permite o livre uso de todos como sinnimos, a exceo de gloga,

    que especificamente corresponder s partes do poema de Virglio.

    A poesia Buclica foi certamente alada a uma posio de prestgio entre escritores e

    leitores mais experientes, contudo, no se pode comparar sua popularidade com a de gneros

    com a pica ou a tragdia, esses bem mais freqentadas como se pode atestar pelo nmero de

    edies, tradues e adaptaes que possuem. No obstante essa menor disseminao, essa

    modalidade de poesia logrou, ao longo dos sculos, ser esteio para muitos escritores e poetas

    que em algum momento de suas vidas cultivaram a fantasia pastoril em suas produes.

    Possivelmente, o motivo de sua timidez editorial seja o mesmo de seus no raros

    retornos e redescobertas por parte de autores e pblico; ambos, em vrios momentos da

    histria, tm retomado, a seu modo e em suas culturas, os mesmos motivos e cenrios

    estabelecidos na Antigidade greco-romana. Esse motivo seria a opo por uma representao

    no extrema das relaes humanas, representao em que no est em foco a eminncia das

    aes, seus dilemas e assombrosos resultados como ocorre na poesia pica, na tragdia; ou o

    absurdo e a ruptura com padres, como ocorre na comdia.

    Outra modalidade de composio da qual a poesia buclica de distancia ligeiramente

    a poesia de carter eminentemente subjetivo, a que convencionamos chamar de lrica. Embora

    haja uma preocupao com estados de alma e expresso do interior na poesia pastoril, no se

    pode dizer que ela rescinda de referncias objetivas e priorize os acontecimentos do eu em

    detrimento de uma conformao objetiva de um mundo. Para Rosenfeld (ROSENFELD,

    2004), a falta de objetividade lrica prescinde inclusive da configurao de um personagem

    central na busca pela expresso de um estado emocional.

    Quanto mais os traos lricos se salientarem, tanto menos se constituir um

    mundo objetivo, independente das intensas emoes da subjetividade que se

    exprime. Prevalecer a fuso da alma que canta com o mundo, no havendo

    distncia entre sujeito e objeto. Ao contrrio, o mundo, a natureza, os deuses,

    so apenas evocados e nomeados para, com maior fora, exprimir a tristeza a

    solido ou a alegria da alma que canta. (ROSENFELD. 2004, p.23)

    3 Ribeiro esclarece que o Idlio era uma composio potica breve para os antigos; a gloga ou cloga, um extrato ou parte de um poema; buclica e pastoral so termos que designam praticamente o mesmo tipo potico, a poesia buclica, sendo um termo grego e o outro moderno, no tendo sido utilizado na Antigidade. (RIBEIRO, 2006, P. 1-13)

    http://150.165.241.35/scripts/odwp032k.dll?showbrief=ufpb_wpor:ufpb_por:pn:T:CARD:NEW:rosenfeld,|anatol

  • 14

    O poema buclico compe nitidamente cenrio e personagens, passos fundamentais

    para o gnero pico e dramtico, mas no preza por uma descrio de acontecimentos

    significativos que componham uma diegese, vale-se desses elementos narrativos para uso

    expressivo dos estados de alma e sensaes dos personagens, atitude preponderantemente

    lrica. Essa confuso governa um gnero complexo que efetua na prpria estrutura textual

    aquilo mesmo que faz no tema: a fuso do indivduo com o mundo que o cerca sem que

    ambos percam sua situao de entidades autnomas. Essa situao aparentemente paradoxal

    projeta um tipo de composio muito rica em que o eu se expressa atravs de cores mais

    ntidas. Isso porque na formao das imagens sempre resta um resduo objetivo dos signos

    usados para comp-la, de modo que o tropo final possa ser desdobrado no apenas em termos

    do eu que se expressa, mas tambm em termos dos elementos usados em sua composio.

    Dada a dificuldade em se executar uma composio buclica, no dificilmente vemos

    poetas de gabarito arriscando suas penas no mundo dos pastores com mais e menos

    notoriedade. certo que nem todos se destacam nesse feito, as Buclicas de Cames no so

    nem de longe to apreciadas quanto os seus sonetos ou Os Lusadas; Sannazaro, no entanto,

    estabeleceu um movimento com base em seu poema Arcdia. No decorrer da histria das

    artes, durante alguns momentos, especialmente, o retorno aos ideais clssicos de composio

    artstica, leia-se os ideais greco-romanos, alimentou rupturas em momentos vistos como

    ndulos de tenso criativa. A fantasia de que havia se perdido algo que s o retorno s fontes

    proveria possibilitou, em momentos como o classicismo e o Neoclassicismo, uma reviravolta

    necessria ao processo criativo da civilizao ocidental.

    Nesses instantes, a busca de modelos sempre recaa sobre os grandes poetas, ou pelo

    menos queles que a tradio crtica aprendeu a chamar de grandes por motivos que no nos

    convm analisar agora. Sendo assim, artistas da estatura de Homero, Tecrito, Virglio e

    Horcio eram seguidos com relativa fidedignidade, normalmente marcada por tonalidades

    ideolgicas e estticas contemporneas que viam o modelo anterior como um exemplo

    impoluto de arte sublime.

    No Brasil, nossa literatura em formao apenas pde acompanhar as revises culturais

    a partir do movimento rcade. Antes disso, durante o classicismo, no dispnhamos de

    material intelectual para tanto, a cultura letrada ainda engatinhava nos primrdios da

    colonizao. Essa mesma colonizao, entretanto, cultivou rapidamente um ambiente

    propcio, de modo que em menos de 200 anos j demonstraramos competncias literrias

    louvveis.

  • 15

    Toms Antnio Gonzaga, sendo uma dessas competncias, reivindicado como

    membro de duas literaturas nacionais, a brasileira e portuguesa. O motivo para isso est bem

    alm de sua provenincia ou de seu tempo de vida no Brasil ou Portugal, dados que os

    clamantes mais exaltados poderiam levantar em prol de suas causas, mas que dificilmente

    levariam a uma concluso. O motivo da celeuma est basicamente na maior obra do autor,

    Marlia de Dirceu. No fosse a publicao desse poema, Gonzaga se veria facilmente no

    terceiro plano da histria, como um nome menor a participar da malfadada conjurao

    mineira em 1789.

    poca de seu lanamento em Portugal, em 1792, Marlia de Dirceu foi um sucesso

    editorial tremendo. O autor, que nesse perodo j se encontrava exilado em Moambique,

    havia organizado boa parte da publicao e enviado o texto durante sua priso na Ilha das

    Cobras, no Rio de Janeiro. bem provvel que esse sucesso lhe tenha sido providencial, a

    julgar a lenincia com que foi tratado se comparado a outros inconfidentes de maior prestgio

    e poder econmico, que tiveram que cumprir degredos mais duros.

    Seguindo o gosto rcade de composio, Marlia de Dirceu se valia dos mesmos

    elementos pastoris utilizados h muito por diversos poetas para expressar de maneira ntima

    as vrias facetas e momentos de um sentimento: o amor. Soma-se a isso a tendncia de cunho

    iluminista que, em busca da clareza, chega quase a didatizar o poema, transformando-o numa

    pea de argumentao em que se projetam interlocutores intermedirios, que so justificativas

    poticas para o tom explicativo ou argumentativo em ltima anlise destinado ao leitor.

    Mesmo assim, o tom confessional e corts colore com paixo o doce ambiente buclico em

    versos curtos, dando forma a muitas ponderaes acerca do sentimento amoroso que s alguns

    anos depois se tornariam moeda corrente nas representaes literrias. Por isso, no obstante o

    tributo a duas tradies igualmente demandadoras, o Iluminismo e o bucolismo, Gonzaga

    maneja uma potica nica, o que para Slvio Romero (ROMERO, 2001) foi sua grande

    diferenciao em meio massa amorfa de poetas que abundavam em um ambiente esttico

    to marcado. Diz o crtico: Gonzaga era, porm, um verdadeiro talento; porque atravs

    daquelas roupagens arcdicas deixa notar as belezas de um lirismo franco e at as verdades de

    um realismo perfeito (ROMERO, 2001, p. 273)

    Como os outros rcades, buscaria na fonte clssica os elementos de sua potica. Essa

    tendncia teria base no neoclassicismo francs, movimento de retomada radical da esttica

    clssica que se difundia no mesmo meio que as idias iluministas. Os rcades parecem ter

    preferido apenas um aspecto dessa retomada e tiveram Virglio e sua poesia buclica como a

    fonte esttica e ideolgica do movimento. Embora tenha que se dizer que a poesia pastoril

  • 16

    antecede s Buclicas do mantuano, a partir dele que se delineia o ambiente pastoril como

    um ideal de existncia. Ao optar por escrever poemas pastoris, e desse modo trazer mais essa

    forma ao gosto romano, Virglio ultrapassa seu antecessor, Tecrito, ao propor um sutil

    equilbrio entre a rusticidade e delicadeza de esprito. No seria por acaso que comporia essa

    idia, possivelmente imbudo do esprito reformador da corte do imperador Otaviano, deu os

    primeiros passos na elaborao da estrutura ideolgica do novo governo. Ruedas de La Serna

    (DE LA SERNA, 1995) aponta essa pitoresca mescla de elementos to distintos:

    Desse modo, Virglio, ao construir sua Arcdia, no renuncia ao saber,

    cultura de seu tempo, no procura tampouco reproduzir um mundo

    primitivo, que afinal se mostraria falso, tratando de ser realista ou

    pitoresco, seno que constri um mundo ideal e, por isso mesmo, tanto

    mais real, pois se funda nas capacidades verdadeiras do esprito humano e

    para o qual convergem as aspiraes universais do homem: a liberdade e a

    felicidade. (RUEDAS De LA SERNA. 1995 p. 47)

    Para Ruedas de La Serna h um propsito nessa elaborao de Virglio que os rcades

    setecentistas claramente fizeram seu, o de propor um modelo para a restaurao do mundo em

    que valores antigos viessem a sobrepor o estado de injustia presente e reorganizar o mundo

    sua feio essencial. Bem antes de escrever sua Eneida, essa ordem para a qual tende o

    poema pico j est formada nas Buclicas, trata-se afinal de um gnero literrio fortemente

    marcado por um componente filosfico que possivelmente reconduzido tona a cada

    reincidncia.

    Um estudo comparativo da manifestao do gnero buclico nas duas obras uma boa

    justificativa para este trabalho, tratando o estudo de um modo cronolgico, poderemos

    inquirir de que forma Gonzaga se apropria do gnero e qual os desvios promovidos pelas

    diferenas culturais dos perodos e ambientes em que surgiram os textos. Mais ainda, poder-

    se- questionar de que forma o Gnero determina o prprio modo de enunciao apresentado

    na obra, se h rigidez ou se possvel associar textos to dspares estruturalmente sob um

    mesmo modo esttico.

    Um outro ponto para a aproximao em uma anlise o dos temas veiculados pelos

    textos. Certamente vinculado ao estudo do gnero, este vis de anlise pode conduzir a

    observao das diferentes elaboraes dos temas e do modo como os motivos referentes a eles

    so explorados nas duas obras. Prontamente pode-se vislumbrar o grande tema que perfaz

    ambas as produes, o amor; no caso das Buclicas, explorado em diversas manifestaes, e

  • 17

    na Marlia de Dirceu, trabalhado exausto em uma manifestao nica. Contudo,

    certamente no se trata do nico tema presente, uma vez que podemos depurar outros

    advindos do gnero textual que compartilham, a exemplo do locus amoenus.

    Desde Virglio vemos que a poesia pastoril, mesmo empenhando muito de sua

    extenso na composio de cenrios, insere temas externos sobre os quais pondera valendo-se

    do arcabouo temtico do universo buclico. Essas inseres, normalmente tratadas como os

    assuntos da obra, extrapolam os temas convencionais, valendo-se deles como prefigurao

    ideolgica, pois conduzem a uma opinio acerca do referido assunto condizente com a

    organizao ideolgica do universo pastoril. este o caso das glogas I e IX das Buclicas

    em que se apresentam as conseqncias de uma desapropriao de terras aos pastores;

    tambm temos elementos dessas intruses na Marlia de Dirceu, obra conhecida por valer-

    se claramente de elementos da vida do poeta para engendrar os assuntos por ela tratados,

    especialmente em sua segunda parte.

    Welleck e Warren (2003) inserem o tipo de anlise que se vale de tais elementos

    biogrficos numa categoria intitulada abordagem extrnseca do estudo da literatura, nessa

    abordagem incluem-se tambm os estudos que se valem de elementos de psicologia, dados

    sobre a sociedade, idias que marcam a obra e tambm a relao da literatura com outras

    artes. Contraposto a esse tipo de procedimento est o estudo intrnseco que se pauta na

    abordagem do texto com entidade autnoma. Consideramos as abordagens extrnsecas

    desnecessrias para os fins deste trabalho por serem muito marcadas por elementos

    contextuais e biogrficos, tais caractersticas tornariam uma anlise criteriosa um tanto difcil.

    Evitaremos, portanto, s constataes que encontram na biografia dos autores as justificativas

    para este ou aquele procedimento na obra, embora nos casos das duas obras em questo,

    isoladamente, seja este um procedimento pertinente. Ao invs, seguiremos um estudo

    intrnseco e optaremos por entender de que forma os complexos temticos do bucolismo

    conduzem a abordagem de certos temas em dois momentos distintos do gnero. Portanto, os

    temas abordados para esta comparao sero aqueles contingentes poesia buclica, de modo

    a possibilitar uma avaliao das diferenas de suas manifestaes nos dois textos.

    Ainda h um ponto importante a se considerar para os procedimentos deste trabalho.

    Embora o gnero seja um elemento de aproximao analtica entre as duas obras, no s pela

    forma do texto em si, mas pelos complexos temticos que dispe, ele no o nico. Um fator

    complicador deve ser considerado como presente na relao entre os textos em questo: a

    noo livremente difundida de que Gonzaga bebeu exaustivamente da fonte virgiliana.

    Embora seja um ponto de consenso, no s com relao a Gonzaga, mas quanto aos rcades

  • 18

    de maneira geral, no se encontram muitos estudos que se disponham a averiguar esse fato na

    prtica. Normalmente, as afirmaes so centradas na influncia do neoclassicismo francs,

    este sim notoriamente conhecido por esse fato.

    Interessante como uma idia to difundida nos manuais de Literatura Brasileira tenha

    rendido, na prtica, to poucas buscas efetivas dessas relaes. Em geral, os estudiosos se

    resumem a mencionar essa suposta relao e ter como certo que os bancos educacionais dos

    autores proveram os contatos necessrios. Se essas relaes estticas so tidas por garantidas,

    e pouco h alm de associaes rpidas que as comprovem, necessria a realizao de

    averiguaes efetivas dessas relaes, contemplando as fontes reais com os textos rcades,

    no apenas tomando a conhecida mediao dos ditames neoclssicos como prova definitiva.

    Uma pergunta a se fazer nesse sentido qual o tipo de relao estabelecida por cada

    autor com suas fontes clssicas? de se esperar que se a relao existe, como notoriamente

    aceito, ela deve se basear na leitura que o poeta rcade fez de sua fonte. Toda leitura que

    fomenta um novo texto est na verdade motivando um tipo de reviso ou re-visita a

    determinado elemento desse texto, entender a natureza dessa reviso em cada caso pode

    compor um melhor quadro da feio neoclssica dos rcades brasileiros.

    No caso de Gonzaga, as freqentes associaes com Virglio so reforadas pelas

    semelhanas na elaborao do ambiente entre a Marlia de Dirceu e as Buclicas, e o fato de

    serem obras extensas que se valem de personagens, cenrio e motivos pastoris. Mas a relao

    entre as obras possivelmente transcende a coincidncia de gneros ou a satisfao, por parte

    de Gonzaga, de elementos estticos em voga em seu perodo literrio. certo que o poeta

    rcade leu as Buclicas como parte de sua formao no colgio e mesmo posteriormente;

    alega-se que ele as teve em grande considerao, quase como um espectro pairando sobre sua

    criao, como referncia e censura. Muito embora isso seja perfeitamente plausvel, em toda a

    literatura pesquisada para este trabalho apenas encontramos uma meno direta dessa possvel

    ocorrncia, isolada mas certamente respeitvel; Adelto Gonalves (GONALVES, 1999) em

    sua extensa biografia do autor nos diz:

    J levava o gosto pela Antigidade que marcaria sua poesia. Carregava uma

    predileo manifesta por Virglio, pois considerava a stira uma forma do

    gnero pico. Era contumaz leitor das Buclicas. Mas no negava o gnio do

    italiano Tasso que sonhava superar Homero e Virglio. (GONALVES,

    1999, p. 70)

  • 19

    Uma afirmao como essa chega a soar corajosa no meio de tantas omisses de peso.

    Talvez simplesmente essa idia tenha ficado corrente demais para sequer demandar um estudo

    analtico ou um levantamento mais cuidadoso, mas o fato que, agora suficientemente

    embasada, ela justifica a conduo deste trabalho nos meandros do estudo da influncia.

    Assim, seria a leitura de Gonzaga das Buclicas determinante do ponto de vista das opes

    feitas por ele na Marlia de Dirceu? Est seu texto marcado de alguma forma pela eminncia

    atribuda a Virglio em seu poema pastoril?

    O tema da influncia certamente espinhoso uma vez que pode sempre conduzir a

    comparaes esprias e a erros de diagnstico por desconhecimento de outras relaes mais

    pertinentes, um escrutnio cauteloso dever fornecer bases slidas para esse procedimento. A

    anlise comparativa se estabelecer sobre os citados parmetros: gnero, temas e influncia.

    Para tanto, procederemos inicialmente a um estudo independente de ambas as obras a fim de

    melhor contextualiz-las sem apressar ou forar concluses por via da utilizao de

    procedimentos inadequados de anlise.

    1.1 Identidades

    Embora no seja este um estudo comparatista de vis biogrfico, cremos que no

    poderamos proceder sem uma exposio ligeira das trajetrias de vida dos poetas. Isso

    porque pretendemos fazer referncia a acontecimentos e caractersticas que apenas sero mais

    bem compreendidos se apresentados e coligidos dentro de uma descrio biogrfica. De que

    outra forma viramos a melhor compreender o universo de idias e influncias a que ambos

    estiveram submetidos e que foram essenciais para o respectivos caminhos trilhados? Com

    intuito de evitar menes vazias ou intruses e notas explicativas no decorrer da anlise,

    esperamos que essa rpida elaborao biogrfica proveja as informaes importantes a que no

    referiremos no decorrer deste trabalho.

    1.2 Virglio

    Virglio certamente uma daquelas figuras histricas cujas realizaes e falta de dados

    precisos compem um quadro por demais colorido de suas vidas, dada a aura com que suas

    figuras acabam ungidas. Certamente, as melhores referncias em termos de dados biogrficos

    seriam as daquelas pessoas que viveram num perodo prximo ao da pessoa biografada. Outra

    fonte confivel de dados no caso de uma biografia ilustre, sempre so os registros da poca,

    tendo em mente a necessidade de provirem de uma cultura letrada no caso de estarmos

  • 20

    lidando com uma cultura antiga. Se considerarmos ento a projeo alcanada pelo poeta de

    Mntua no Ocidente e o fato de ele ser um poeta de inigualvel envergadura entre os romanos,

    poderamos esperar montar um rico mosaico com todos os fragmentos supostamente

    disposio.

    Nada poderia ser mais enganoso neste caso especial, justamente a projeo e o sucesso

    parecem ter contribudo de alguma forma para as vrias distores nos relatos biogrficos,

    alm, claro, de seu incio no ilustre, que logicamente impediu a fixao de dados acerca do

    incio de sua vida. O caso especial da projeo do poeta no imaginrio do povo romano trata,

    muitas vezes, de preencher lacunas irremediveis com narrativas apaixonantes, mas

    dificilmente crveis; parecendo muito mais narrativas de uma cultura popular oral ciosa por

    perpetuar a imagem alentadora do vate iluminado, atravs de feitos de picardia e perspiccia.

    Os autores que nos do conta da biografia de Publio Virglio Maro repetem-se ao dizer

    que o poeta teria nascido durante o primeiro consulado de Pompeu e Crasso, em 70 a.C., em

    outubro, no povoado de Andes, prximo a Mntua. Como viveu 52 anos, acompanhou um dos

    perodos mais marcantes da histria romana: os ltimos momentos da repblica agnica e a

    construo do imprio que projetou para a histria a imponncia da cidade. Outros dados a

    respeito dos quais os bigrafos parecem no discordar so os nomes de seus pais, o pai

    Tambm era Virglio e a me chamava-se Magia Polla. A origem humilde do Virglio pai

    inicia os pontos de discordncia, ora oleiro segundo uns, ora viator4 (GRIMMAL, 1992, p.17)

    do pai de sua futura esposa, um magistrado, segundo outros; o fato que, aparentemente, teria

    angariado uma quantidade satisfatria de bens graas ao trabalho, tanto que poca do

    nascimento do poeta, j usufrua de uma condio de vida mediana.

    O que se sabe de sua educao pelos relatos dos bigrafos que, apesar de sua

    condio no abastada, usufruiu de uma educao de boa qualidade. Sua infncia teria sido

    em Cremona, onde seus pais possuam sua principal propriedade, l teria estudado as

    disciplinas em voga, gramtica e lngua grega. Uma interpolao ao texto de Donato presente

    em um manuscrito Bodleiano do sculo XV(MENDES, 1997, p. 368) acrescenta ainda

    medicina e matemtica a estas disciplinas. Segundo o tal manuscrito, o poeta teria se aplicado

    a estas duas disciplinas de forma a se destacar5.

    Alternativamente, atribuem-se os estudos em medicina e matemtica sua estadia em

    Milo e Roma, o que parece ser digno de mais crdito. Segundo os bigrafos, o poeta teria

    4 Viajante, mensageiro, uma forma de representante comercial. 5 Essa interpolao, no entanto parece mais justificar uma anedota que aparece posteriormente no texto, no podendo ser creditada com seriedade.

  • 21

    rumado para Milo aps receber sua toga viril no ano de 55 a.C.; Virglio teria ento 16 ou 17

    anos. A Milo teria ido para estudar retrica, nessa disciplina foi aluno de Epidio, estudou

    tambm direito romano, o que seria trajeto comum ao jovem em situao econmica mediana

    do perodo. No que se refere retrica, no teria mostrado nenhum entusiasmo, sofreu uma

    significativa frustrao em um discurso em algum frum romano, o que fez com que essa

    fosse sua nica investida na profisso durante sua vida. Aproveitou melhor o tempo se

    inteirando a respeito das disciplinas de matemtica e medicina. Nesta ltima, os estudiosos da

    obra potica acusam ter Virglio seguido as concepes cientficas de Prsias (GRIMAL,

    1992, p.32) (doutrina de asclepades). Quanto matemtica, teria se interessado pelo

    esoterismo pitagrico, essa idia amplamente apoiada por algumas anlises das Buclicas

    que explicam a estruturao das glogas e a contagem dos versos em cada uma com base em

    modelos elaborados pela escola pitagrica.

    No se sabe ao certo quanto tempo teria Virglio permanecido a estudar, sabe-se que

    teria nesse perodo transitado entre Milo e Roma e especula-se, dada sua situao e

    ambientes que teria freqentado, que teria tido contato com futuras figuras histricas de

    importncia capital para o imprio romano e para sua vida, incluindo o prprio futuro

    imperador, Otaviano. Ainda em Roma, teria se familiarizado com a poesia de Lucrcio e tido

    assim o seu primeiro contato com a filosofia Epicurista, o que seria responsvel por uma

    mudana de ares e de rumo em sua vida.

    Por ter se encantado com os princpios do epicurismo, nesse aspecto os bigrafos

    concordam que levava j uma vida bem ao gosto de algumas das doutrinas do sistema

    filosfico, partiu de Roma a Npoles. No bem conhecida a data quando essa mudana teria

    ocorrido, contudo, de se esperar que tenha sido no depois de 49 a.C. quando a rivalidade

    entre Pompeu e Csar se acirrava causando apreenso entre os cidados de Roma. Ia a

    Npoles em busca dos ensinamentos da doutrina Epicurista, especificamente do filsofo

    Siro. L, passaria muitos anos aprendendo o modo de vida da doutrina e recebendo os

    ensinamentos de seu mestre, teria tambm nesse ambiente conhecido uma outra leva de

    amigos ilustres, entre os quais AlfenoVaro, que em algum tempo o ajudaria bastante,

    merecendo por isso uma homenagem em uma de suas glogas.

    Embora parecesse gozar de tranqilidade material e espiritual em Npoles, no tardou

    para as confuses que agitavam o imprio prevalecerem na vida do poeta. Saiu em 43 ou 42

    a.C. da cidade, possivelmente em virtude de ter sido pessoalmente afetado por uma poltica de

    compensao aos soldados romanos que tomaram parte nas guerras civis entre Otaviano e

    Antnio aps a batalha de Filipos em 42 a. C. Cremona seria a cidade inicialmente afetada

  • 22

    pelo processo de expropriao, mas a quantidade de soldados a serem beneficiados

    ultrapassou as possibilidades geogrficas da regio e Mntua acabou inclusa. Essa teria sido a

    razo mais factvel para o trnsito do poeta para a Glia Cisalpina que estava sob o governo

    do lugar-tenente Asnio Polio, nomeado por Marco Antnio.

    Virglio teria recorrido a trs pessoas em busca de iseno no caso da desapropriao,

    Polio, j conhecido seu, teria sido o primeiro; posteriormente teria recorrido ao futuro

    sucessor de Pilo, Alfeno Varo e finalmente a Caio Cornlio Graco, atravs deste,

    possivelmente, passou a ter o contato com Otaviano. No h dados concretos acerca do que

    teria acontecido propriedade do poeta em Mntua, a tradio muito facilmente deduz que ele

    as teria reavido no atravs de suas amizades, mas pela interveno do prprio Otaviano, que

    em uma visita do poeta teria lhe garantido a restituio. A favor desse argumento a crtica

    utiliza a citao da gloga I, que representa o ocorrido atravs de seus personagens. O fato

    historicamente constatado que Virglio jamais voltou a Mntua, do que facilmente se deduz

    no ter reavido a propriedade, mas ter sido beneficiado pelo imperador de maneira distinta.

    Todo esse processo parece ter durado um longo perodo, durante o qual o poeta ficou

    sob a proteo de Polio na Cisalpina. Justamente Polio quem, segundo os bigrafos, teria

    incitado o poeta a compor as Buclicas, tarefa essa que iniciaria sob o seu governo e

    terminaria posteriormente, durante um trinio conforme atestam Suetnio e Donato. As

    perturbaes continuaram entre os poderosos de Roma e a batalha de Pergia em 40 a.C.,

    onde Otaviano derrotou o irmo e a esposa de Marco Antnio sem que este tomasse parte no

    conflito, forou uma retirada de Polio at Brindisi. Em Brindisi a soluo foi pacfica,

    Otaviano enviou Mecenas para a negociao e Polio ainda terminou esse ano como cnsul.

    Marco Antnio casaria com Otaviana, irm do futuro imperador de forma a garantir uma paz

    duradoura.

    Em 39, quando possivelmente terminou suas Buclicas , a Cisalpina j se encontrava

    sob o governo de Alfeno Varo, tudo o que se pode deduzir a partir daqui at os primeiros

    contatos com Mecenas, que Virglio j gozava de algum prestgio, pois o veremos mais

    frente rodeado pelos partidrios de Otaviano, transio essa que o poeta fez num momento

    oportuno e que lhe garantiu os muitos sucessos posteriores. Grimal (1992, p.96) conjectura

    que um importante agente nesse processo de mudana poltica tenha sido o poeta Caio

    Cornlio Graco, partidrio de Csar tanto quanto Polio, que teria lutado pela causa de Marco

    Antnio aps o assassinato do cnsul mas logo cedo teria aderido ao lado de Otaviano. Isso

    teria sido muito proveitoso para Virglio, que havia desfrutado anteriormente da hospitalidade

  • 23

    de um conhecido adversrio, Polio, ainda que as contendas estivessem temporariamente

    resolvidas pela via da paz.

    Seja como for, em 39 a.C. as Buclicas so publicadas, possivelmente graas s boas

    relaes estabelecidas com Mecenas, que rapidamente deve ter percebido o valor do poeta

    bem como sua utilidade formao de um novo iderio, afeito s orientaes de Augusto.

    Mecenas pouco a pouco compunha sua corte pessoal de poetas e intelectuais, caracterstica

    que o faria conhecido pela histria. Horcio cita uma viagem, realizada em 37 a.C., momento

    em que Mecenas e sua comitiva de ilustres viajam at Brindisi com vistas a amenizar Marco

    Antnio a respeito da retomada das hostilidades entre Otaviano e Sexto Pompeu em 38.

    Compuseram esta comitiva Horcio, Vrio, Plcio Tuca, Mecenas e Virglio, indicando a boa

    relao que j mantinha o poeta com quem viria a ser seu mais importante incentivador.

    Durante esse perodo, j estaria Virglio ruminando os primeiros versos de seu

    segundo poema de grande extenso, As Gergicas. Diz-se que Mecenas teria sido o

    fomentador do poema e teria mesmo incitado o poeta a escrever a obra como forma de

    propagar a filosofia de governo de Augusto. Grimal afirma ser essa uma interpretao

    anacrnica, marcada pelo pensamento iluminista, que no condiz com a natureza das relaes

    entre Virglio e o poder romano naquele momento. Diz Grimal que a agricultura no era a

    principal fonte de renda do imprio e sim os impostos recolhidos das provncias; no faria

    sentido partir de algum membro do governo uma incitao a um tema que no representaria

    ganhos ou adeses s polticas de Otaviano. Virglio, ao iniciar o poema parece ter pensado

    mais profundamente o processo de transformao do estado romano.

    O fato que o poeta no escrevia para atender alguma exigncia feita por um superior,

    ao acompanhar a pacificao que lentamente vinha sendo propiciada pelo novo cnsul, pode

    ter desejado promover na poesia aquilo que avaliava ser a cura para os conflitos que ainda

    pairavam. Teria se valido de velhas concepes romanas de comedimento e piedade que

    sempre incitavam os cidados a preferirem a segurana da terra e do trabalho ao desvario.

    Esse valor caracteristicamente romano estava em crise devido ao rpido surto de crescimento

    que o ltimo sculo havia propiciado por causa da expanso e das guerras. O maior exemplo

    era dado pela aristocracia, que havia aumentado exponencialmente as riquezas devido seus

    crescentes negcios e incurses no mundo exterior, Grimal (GRIMAL. 1912, p.140) aponta

    um surto desse desejo de retorno terra partindo do povo em direo aos governantes.

    Uma idia profundamente arraigada na conscincia romana queria que a

    classe dirigente tirasse seus rendimentos da agricultura e no do comrcio ou

  • 24

    da usura. Mesmo depois de todas as transformaes que, ao longo dos

    sculos, haviam modificado profundamente a sociedade romana, essa

    tradio obstinava-se em continuar viva: parece que s os homens

    acostumados vida no campo, com seus valores, sua ascese, estavam

    qualificados para dirigir os assuntos de Roma.

    Virglio no estava seguindo recomendaes ou pedidos para o poema, tinha ele idia

    prpria do que seria melhor e soube lidar com os anseios do povo ao construir uma pea

    didtica que falava do trabalho na terra. Fomentava o gosto pela terra e valorizava o velho

    comedimento romano, era definitivamente um artista consciente e visionrio, sem dvida

    nenhuma consciente do prprio trabalho. Sabia que os cidados romano, cansados de tantos

    embates internos que h muito dominavam o cenrio poltico e militar, estavam mais

    propensos a reforar as tradies em nome de um pouco de paz, coisa da qual ainda no

    usufruiriam por completo at a batalha de cio, em 31 a.C. O poeta demorou sete anos para

    finalizar a obra, de 37 a 30 a.C., tempo em que passou principalmente em Npoles, cidade que

    elegera como morada.

    Donato descreve Virglio como de alta estatura, feies rsticas e de sade frgil,

    sofrendo de dores de cabea, estmago e garganta. Era tmido, evitando ir a Roma e quando

    ia, no freqentava as multides. Mesmo em Npoles os habitantes do local o apelidaram de

    a virgem, um trocadilho com o seu nome que aludia ao fato de ele se comportar como uma,

    ao ficar maior parte do tempo em casa. Esse carter tmido e frgil se mostrava obstinado

    quanto se tratava de suas composies, era criterioso e lento, pois fazia questo de apurar ao

    mximo os seus versos.

    Consta que ele comeava o dia ditando certa quantidade de versos medida

    que ia compondo e que os remanejava durante o resto do dia, retomava-os,

    fazendo supresses, de tal forma que, no incio da noite s restava um

    pequeno nmero deles (GRIMAL. 1912, p.123).

    Aps a vitria de cio em 31 a.C., onde Otaviano derrotou as foras de Marco

    Antonio, o cnsul permaneceu por quatro dias em Atela para se recuperar, l teria desfrutado

    de uma audio das Gergicas realizada por Virglio e Mecenas. O mundo romano finalmente

    seguia rumo pacificao sob os auspcios daquele que viria a ser o primeiro imperador, a

    competncia potica do mantuano seria mais que desejada para a fixao e justificao dos

    feitos grandiosos que Augusto realizara e ainda realizaria. O tom pico seria o melhor

  • 25

    possvel para a representao desses eventos, Virglio certamente estaria interessado nessa

    misso, ensaiava seu grande poema havia muito e certamente estava a altura da tarefa.

    Contudo, novamente no seria essa obra feita da maneira que desejavam seus

    demandantes; o critrio elevado do poeta no o permitiria escrever como um simples

    louvaminheiro da escolta do cnsul, para esse trabalho haveria vrios outros. A magnitude da

    obra que conceberia ultrapassaria em muito as pretenses dos governantes de Roma, pois

    mais do que alardear a propaganda governista, iria fixar no imaginrio romano e mundial a

    histria mtica da fundao da cidade.

    Apesar de se alar a Eneida mesma categoria da Ilada e Odissia, em termos de

    grandeza esttica, so obras ligeiramente diferentes no que se refere a sua concepo.

    Estruturalmente, para a construo da Eneida, alm de Homero, Virglio j tinha disposio

    modelos histricos de escrita como as de Herdoto, Tucdides e exemplos de narrativa mtico-

    histrica romana vindo de autores como nio. Quanto ao assunto de sua obra, muitos

    elementos esparsos havia nas narrativas locais e na histria para serem coligidos em um

    modelo mtico unificado que justificasse a fundao de Roma. A exemplo das lendas da

    fundao da cidade, dos primeiros reis e mesmo os relatos amplamente difundidos que davam

    conta que Enias, um guerreiro troiano sobrevivente ao massacre da cidade, havia aportado

    nas terras do Lcio. Por fim, havia tambm as instituies romanas, todas com base na

    religio, mesmo as administrativas, j h muito se perpetuavam sem que houvesse qualquer

    conhecimento difundido de seu princpio, Virglio buscaria justific-las atravs de seu poema;

    o arremate poltico seria a associao da famlia do cnsul Otaviano descendncia de

    Enias, valeu-se para isso do nome do filho do heri, Iulo, ao qual apresentou com antigo

    ancestral da Gens Julia, qual pertencia Jlio Csar, tio av e pai adotivo de Otaviano. Desse

    modo, contemplaria as pretenses polticas do governante sem comprometer a narrativa

    central de sua obra com a louvao de eventos recentes e ainda no claramente absorvidos

    pela opinio popular, talvez, por isso, sob risco no sofrerem recepo menos controversa.

    O empenho com que trataria o trabalho seria o mesmo com que realizara os anteriores,

    por isso demorou cerca de 11 anos, de 30 a 19 a.C., em sua escrita sem que conseguisse

    finalizar o poema a contento. Otaviano acompanhava a progresso do trabalho, e sempre,

    atravs de correspondncia, estimulava o poeta e lhe pedia para conhecer os fragmentos

    prontos. A correspondncia de Virglio, alm de dar satisfao do progresso do trabalho,

    justificava a demora devido a pesquisas que estavam sendo realizadas, alegam os crticos e

    historiadores que essas pesquisas eram as leituras dos textos sibilinos.

  • 26

    Otaviano teve oportunidade de apreciar a progresso da Eneida, ao menos tem-se o

    registro de uma ocasio, em 23 a.C., em que ele e a irm participaram de um audio de trs

    cantos prontos. Conta-nos Donato que ao ler os cantos II, IV e VI na corte do imperador, o

    poeta provocou o desmaio de Otaviana, ao ler uma passagem em que consta o nome de seu

    filho, Marcelo, morto no ano anterior, presente no canto IV, nos versos 882 a 883.

    O tempo empenhado na elaborao da Eneida parece no ter sido o bastante para os

    brios do poeta, acostumado a tratar com excessivo zelo suas obras. Aps onze anos de escrita,

    faltava, em sua opinio, checar os pontos cruciais de sua narrativa com seus prprios olhos,

    empreendeu uma viagem para a sia Menor e Grcia para realizar seu intento. Sobre esse

    evento seu amigo Horcio teria dedicado uns versos em sua ode I, 3:

    Sic te diua potens Cypri,

    sic fratres Helenae, lucida sidera,

    uentorumque regat pater

    obstrictis aliis praeter Iapyga,

    nauis, quae tibi creditum

    debes Vergilium; finibus Atticis

    reddas incolumem precor

    et serues animae dimidium meae

    (HOR. Ode I, 3, v. 1-8)

    Assim tu poderosa deusa da Cpria

    assim os irmos de Helena, estrelas luzentes,

    e o pai dos ventos6 te conduza

    com outros ligados, exceto o Ipige7,

    nave, que a ti foi confiado Virglio, deves;

    que tu o Restituas intacto da fronteira da tica,

    e guardes a metade de minha alma.

    Em 19 a.C., aos 52 anos, deu incio sua ltima jornada com a intenso de permanecer

    em viagem por trs anos, aps isso pretendia a aposentadoria e a dedicao filosofia

    (SAINT-DENIS, 200, p.19). Como parte de seu itinerrio, foi a Mgara de onde saiu

    combalido. Aparentemente o sol forte afetou sua frgil sade de tal forma que no continuaria

    6 Trata-se de olo. 7 Originalmente Ipix ( )Iaouc) era um heri cretense, fillho de Ddalo. Aps aventuras decorridas na Itlia, o heri e seus companheiros tentaram regressar Creta, no entanto, empurrados por uma tempestade, desembarcaram na regio de Tarento, no sul da Itlia. O nome do heri passou ento como designativo do nome dos ventos que ocorrem naquela regio.

  • 27

    sua viagem, dirigiu-se para Atenas onde encontrou-se com a comitiva de Augusto retornando

    do Oriente onde efetuara visitas s provncias do imprio. O imperador, vendo o estado do

    poeta convenceu-o a seguir com ele de volta, mas Virglio no sobreviveria viagem,

    sobreveio-lhe a morte no 11 dia das calendas de outubro na cidade de Brindisi.

    Os comentadores reproduzem uma histria segundo a qual antes da viagem, vendo o

    estado incompleto em que se encontrava sua obra, Virglio incumbiu Vrio da queima dos

    manuscritos da Eneida, no caso de algo lhe suceder. J prximo a sua morte, teria renovado o

    pedido, a negativa de Vrio fez com que o poeta exigisse outra promessa, de Vrio e de Tuca,

    de que no publicassem nada que ele mesmo no houvesse publicado. Coube ao Imperador

    Otaviano a interveno direta no assunto, afinal, ele no poderia permitir que a obra que

    definiria culturalmente e intelectualmente seu imprio fosse perdida. Sendo assim, ordenou a

    Vrio e Tuca que se encarregassem dos arremates que se fizessem necessrios.

    Virglio foi enterrado em Npoles, teria ele mesmo composto seu curto epitfio, mas

    quanto a isso permanecem controvrsias:

    Mantua me genuit, Calabri rapuere, tenet nunc

    Parthenope, cecini pascua, rura, duces

    Mntua me gerou, os Calbrios me arrebataram, me tem agora

    o Partenope, cantei pastagens, os campos, os generais.

    Seu tmulo terminaria sendo alvo de devoo, aparentemente a excelncia de sua obra

    lhe outorgou o velho desgnio do vate inspirado, essa influncia marcou mesmo idade mdia

    crist que no deixava de ver valor vaticinante em seus versos.

    1.3 Toms Antnio Gonzaga

    Dada a natureza oficial das profisses que exerceram Gonzaga e seu pai, o poeta

    uma figura histrica mais facilmente rastrevel do que Virglio. Contudo, durante muito

    tempo, poucos dados precisos de sua vida foram conhecidos, mesmo tendo sido ele to

    impactante editorialmente e tendo logo ingresso no patamar dos grandes escritores de lngua

    portuguesa. O motivo para isso, como veremos, deve-se ao fato de ter vivido uma trajetria

    quase nmade, que exigiria do pesquisador de sua biografia a herclea tarefa de efetuar um

    levantamento de documentos em trs continentes e mais de seis cidades.

  • 28

    Tal trabalho ficou muito tempo por fazer, at que em 2000 o jornalista Adelto

    Gonalves publicasse um extenso tratado biogrfico a respeito do poeta8, fruto de anos de

    investigao nos arquivos reinis no Brasil e em Portugal. Seu trabalho se diferenciou dos

    demais pelo volume de pesquisas realizado e pelo fato de incluir um perodo at ento

    desconhecido da vida de Gonzaga, seu exlio em Moambique. Desse tratado, extramos, com

    muita confiana, a absoluta maioria das informaes acerca do poeta e de sua trajetria.

    Nascido em 11 de agosto de 1744 no Porto, Toms Antnio Gonzaga era o stimo

    filho dos primos Joo Bernardo Gonzaga e Tomsia Isabel Clark. Seu pai e seu av paterno

    eram cariocas e sua me filha de um negociante ingls chamado John Clark com a portuguesa

    Mariana Jason. Joo Bernardo era sobrinho de Mariana, e foi a Coimbra estudar Direito em

    1726, hospedava-se constantemente na casa da tia, envolveu-se amorosamente com a prima

    com quem veio a casar e ter os sete filhos.

    Aps se formar em 1732, Joo Bernardo Gonzaga entrou para a o servio pblico, em

    1740, foi nomeado juiz de fora em Montalegre, funo que desempenhou at 1742. Estava no

    Porto na ocasio do nascimento de seu stimo filho, tambm na morte de sua mulher nove

    meses depois. Em 1745, foi nomeado Juiz de Fora em Tondela, onde ficou at 1750

    exercendo a funo, deixando os filhos mais novos aos cuidados dos tios e da av.

    Nesse nterim, Portugal passava por uma crise financeira e de poder que

    proporcionaria uma mudana extraordinria em sua histria. A decadncia de D. Joo V e a

    ascenso de D. Jos ao trono proporcionaram um longo vcuo de poder pela enfermidade do

    primeiro e a inapetncia do segundo, nesse vcuo ascendia o ministro Sebastio Jos de

    Carvalho e Melo que viria a ser o Marqus de Pombal. Foi Justamente o prprio ministro

    quem despachou Jos Bernardo para o cargo de ouvidor-geral de Pernambuco, em 20 de

    novembro de 1751, tendo partido no mesmo ano com os dois filhos mais novos, Jos Gomes e

    Toms Antnio.

    Em Recife, Joo Bernardo espalhou fama de funcionrio diligente, acumulava muitas

    funes alm da de ouvidor geral. Morou em Olinda e l conheceu sua segunda esposa,

    Madalena Tomsia. Embora convivesse com ela amorosamente, o ouvidor tinha que obter

    permisso real para matrimnio, o que no fez por muito tempo. Quanto aos meninos,

    provvel que tenham comeado a estudar no Colgio dos Padres da Companhia de Jesus,

    coisa que em breve ia mudar.

    8 GONALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do iluminismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

  • 29

    Em Lisboa, o terremoto de 1755 serviu para consolidar o poder do futuro marqus de

    Pombal; ele iniciou uma perseguio aos inimigos polticos e aos Jesutas que culminaria na

    desativao da Ordem alguns anos depois. Em janeiro de 1759, Joo Bernardo foi transferido

    novamente, dessa vez para o cargo de Intendente do Ouro e Presidente da Mesa de Inspeo

    na Bahia. Chegando na Bahia, o pai de Gonzaga se deparou com um estado de tenso

    constante, levando em conta as perseguies efetuadas contra os desafetos do ministro

    Carvalho e Melo.

    Nesse clima, quase certo que seus filhos tenham sido matriculados em outra escola

    que no a Jesuta, a prudncia era uma das caractersticas de Joo Bernardo. Gozava de uma

    situao confortvel, tanto em termos de poder quanto financeiramente; novamente se

    destacou pela diligncia com que cumpria a funo. Certos testemunhos do conta que o

    jovem Toms Antnio tenha passado certo tempo na casa da tia Lourena Felipa no Rio de

    Janeiro, possivelmente durante a fase de adaptao da famlia na Bahia, seja como for, para l

    retornou rapidamente e nesse estado completou seus estudos.

    Em 1761 os dois filhos de Joo Bernardo, com os estudos de Filosofia e Retrica

    concludos, partiram numa nau para Lisboa a fim de se matricularem em Coimbra. Jos

    Bernardo s foi em 1764, l finalmente pde contrair npcias com Tomsia Madalena aps

    anos de solicitaes. Dos dois irmos, apenas Gonzaga viria a cursar a universidade, Jos

    Gomes preferiria a carreira no comrcio, mesmo assim, devido a uma doena, o jovem

    Gonzaga s ingressaria em Coimbra em 1763.

    Na universidade, Toms Antnio Gonzaga travou contato com importantes influncias

    para sua vida posterior, seu companheiro de aventuras foi Incio Jos de Alvarenga, na poca

    j estudante adiantado do curso de Leis da Universidade de Coimbra. O contato com os

    pensadores humanistas no se deveu, contudo, s ctedras da universidade; na poca a

    reforma do ensino promovida por Pombal no havia ainda atingido o nvel superior, coisa que

    s ocorreria em 1772.

    Estando a universidade ainda presa a uma grade curricular atrasada, o contato do poeta

    com textos e idias iluministas e humanistas possivelmente se deu atravs dos grmios

    secretos que se difundiam entre os alunos da universidade. Amplamente influenciados por

    Verney, seria uma das principais influncias do pensamento iluminista por se difundir em

    Portugal, esses grupos liam Montesquieu, Pope, John Locke e Hobes; e as influncias

    Humanistas tais como Voltaire, Shakespeare e Horcio.

    Formou-se em 1768, com o ttulo de bacharel, poderia dedicar-se ao exerccio da

    profisso ou mesmo pleitear a magistratura. Retornou ao Porto onde permaneceu por quase

  • 30

    um ano, de l foi a Lisboa viver com o pai e exercer a profisso de advogado. Amante das

    letras e leitor de poetas clssicos como Virglio e Horcio, recentemente liberados com a

    extino do index jesutico, o jovem Gonzaga, possivelmente enfunado pelas mudanas

    culturais e transformaes no ensino promovidas por Carvalho e Melo, se candidatou a uma

    vaga na magistratura na Universidade de Coimbra em 1773.

    O seu por muito tempo obscuro Tratado de Direito Natural nasceu da sua tentativa em

    angariar prestgio e aprovao para a posio que pleiteava. Talhado com cuidado, o texto

    satisfaz os complicados meandros ideolgicos impostos pelas aes do ministro Carvalho e

    Melo, ora flertando com preceitos ilustrados, ora com o absolutismo, tudo isso com

    justificativas retricas e laudatrias ntidas. Mesmo com essa tentativa, Gonzaga nem obteve

    resposta, no se sabe se foi objetivamente descartado ou se nem sequer foi lido, o fato que

    no assumiu a ctedra e, ao que parece, preferiu ele mesmo esquecer o texto, passando o resto

    da vida vivendo e escrevendo muitas concepes contrrias que l professava.

    Em 1777 caiu o Ministro Carvalho e Melo sem que lhe fossem imputadas penas pelos

    anos de despotismo esclarecido. O novo governo portugus temperou a dose de retrocesso

    poltico que promoveu, dados os ntidos avanos econmicos e sociais estabelecidos pela

    poltica do controverso marqus de Pombal. Graas queda do Marqus, inmeras pessoas

    condenadas ao ostracismo ou priso puderam retornar a seus ofcios e suas vidas. Esse

    parece ter sido o caso de Gonzaga e seu pai em 1778, ele nomeado a Juiz de fora em Beja, e

    Joo Bernardo promovido Casa da Suplicao em Lisboa. Em Beja, Gonzaga permaneceu

    por dois anos, de 1779 a 1881, l gozaria de posio de poder e prestgio e faria seu primeiro

    filho, Luiz Antnio Gonzaga, a quem no criaria.

    Em Beja, permaneceria at ser nomeado Ouvidor Geral de Vila-Rica (GONALVES,

    1999, p.84), voltou ento para Lisboa e de l partiu para o Rio de Janeiro. No comeo da

    dcada de 1780, Minas estava no meio de uma crise econmica que comeara 30 anos antes.

    A vila, embora j no fosse mais um acampamento mineiro, era ainda um amontoado de casas

    de pedra, pau-a-pique, igrejas e poucos edifcios. Compunha-se de 320 mil habitantes, sendo

    os negros maioria. A vila havia se desenvolvido com base em duas freguesias histricas, Ouro

    Preto e Antnio Dias nas partes baixas das colunas prximos a crregos; os povoados

    encontraram-se posteriormente no alto do Santa Quitria.

    Gonzaga chegou em Vila Rica em 12 de dezembro de 1782, substituindo Manuel

    Joaquim Pedroso. Ao chegar, a primitiva situao burocrtica da colnia fez com que

    Gonzaga viesse a acumular funes de ouvidor, situao corriqueira para uma terra em que

  • 31

    faltavam homens doutos 9. Os homens ricos eram poucos e logo foram conhecidos por ele. A

    maior parte da populao variava de pobre a miservel, destacavam-se os funcionrios

    pblicos, o clero, comerciantes e os envolvidos com a extrao do ouro. A capitania tinha que

    importar muitos dos bens consumveis em virtude do fato de a maioria das pessoas estar

    comprometida com a extrao.

    Dom Rodrigo Jos de Menezes, governador quando da chegada de Gonzaga, alertava a

    coroa sobre a necessidade de mudanas estruturais a fim de contornar a crise e parar a

    derrama de riquezas pelo contrabando, contudo tais mudanas propostas sempre caminhavam

    para a construo de uma maior autonomia da regio o que no interessava ao ministro

    Martinho de Melo e Castro.

    O ouvidor Gonzaga era conhecido por seu rigor, sobretudo, tendia a agir ao p da letra

    judicial e com muito rigor quando os envolvidos fossem os menos privilegiados. Estava entre

    o sqito do governador a comparecer s tertlias noturnas em seu palcio. Havia outros

    como ele, o Intendente do Ouro, Pires Bandeira; dom frei Domingos da Encarnao Pontevel,

    amigo e interlocutor de Gonzaga em debates acerca de religio; Padre Pascoal Bernadino

    Lopes de Matos, ex-jesuta e figura de prestgio junto ao governador; Cludio Manuel da

    Costa; o mdico Toms de Aquino Belo e Freitas; Joo Rodrigues de Macedo; o velho Jos

    Lus Saio, secretrio do governo.

    Contudo, a situao poltica de Minas estava para mudar. Vindo de Gois, onde j

    tinha sido governador desde 1778 at 24 de junho de 1783, Cunha Menezes trazia o seu

    sqito em 23 de Agosto de 1783, mas s tomaria posse em 10 de outubro. Cunha Meneses

    era um homem prtico, no distinguia entre reinis e mestios no que se refere aplicao de

    benefcios ou outorgao de direitos, o que freqentemente irritava os magistrados

    portugueses. Era conhecida tambm sua vida bomia e escandalosa para os padres da poca,

    a seu favor tinha a fama do homem que havia pacificado a tribo dos Caiaps no serto de

    Gois. Quando tomou posse j causou m impresso ao ouvidor por no cumprimentar os

    ministros e camaristas que acompanhavam o seu cortejo, deixou-os ao relento durante a

    cerimnia.

    9 As suas atribuies eram a jurisdio ordinria civil e criminal; corregedoria oficial da comarca encarregado de confirmar as eleies do senado. Fiscalizava tambm o comportamento das autoridades menores, juzes e procuradores; pedia as contas aos testamenteiros (provedor de resduos), arrecadava as contas dos finados com herdeiros ausentes (provedor de defuntos e ausentes). Era tambm membro da junta de administrao e arrecadao da Real Fazenda junto com os deputados, procurador, tesoureiro geral, escrivo e o governador. Tinha tambm a superintendncia das causas sobre a terra e a gua, presidia as disputas militares e a junta julgadora dos recursos da vara eclesistica.

  • 32

    Claramente, Cunha Menezes procurava agradar ao seu sqito mais do que aos

    homens de poder da regio, o que lhe angariou de cedo antipatias. Pouco a pouco tais pessoas

    foram substituindo os aristocratas locais nos cargos de poder e confiana. Com esse cenrio o

    novo governador pde, sob o pretexto de combater o contrabando, enriquecer a si mesmo e a

    seus comparsas. Outros antigos membros da oligarquia corrupta souberam tirar proveito e se

    aproximaram do governador continuando na rede de benefcios sobre os recursos do Estado.

    Um dos seus primeiros feitos foi ordenar a reedificao das casas da Fazenda dos Pastos, em

    Cachoeira dos Campos sem consultar a cmara. Enfrentou a oposio da junta da fazenda, que

    alegava estarem os gastos proibidos pela coroa, o procurador Bandeira e Gonzaga, entre

    outros, protestaram, mas ele efetuou a obra assim mesmo.

    Comearam as cartas queixosas de Gonzaga rainha, o governador tambm tratava de

    fazer o mesmo ao passo que restringia cada vez mais o campo de ao do ouvidor. Assim

    prosseguiam as relaes entre o ouvidor e o governador, e as arbitrariedades do segundo,

    chegando este a mandar soltar 30 presos acusados de contrabando depois de fazer o meirinho

    que os prendeu arcar com as expensas dos rus.

    Um ponto fulcral nas desavenas entre os dois foi a reunio da junta da real fazenda, a

    fim de definir o melhor contrato para as entradas em 3 de dezembro de 1784. Joaquim

    Silvrio dos Reis tinha sido o arrematante anterior e devia somas avultadas a fazenda.

    Gonzaga e Bandeira uniram-se em torno de um nome, o capito da ordenana Antnio

    Ferreira da Silva, que apresentava melhores condies e fiadores. Por questes de desavenas

    dos outros membros da junta acabou se impondo a vontade do Governador e o capito de

    cavalaria auxiliar, Jos Pereira Marques, arrematou o contrato pelo perodo de seis anos, o

    dobro regulamentado, mesmo sem as condies claras de sust-lo.

    As acusaes bilaterais se sucederam a Portugal, o procurador Bandeira e o ouvidor

    Gonzaga trataram de apresentar o caso da arbitrariedade do governador ao Errio Rgio e ao

    ministro Martinho Melo e Castro; o governador por sua vez acusou os dois de se unirem num

    compl; O Errio Rgio ficou com os magistrados, enquanto Melo e Castro preferiu a verso

    do governador. O relatrio enviado pelo escrivo e deputado Carlos Jos da Silva, da Junta da

    Real Fazenda, ao ministro Martinho de Melo e Castro sobre ocorrido com o contrato das

    entradas foi decisivo para a formao de uma imagem negativa do ouvidor na mente do

    ministro. Tambm no fez boa imagem do governador e concluiu que era um caso de gangues

    diversas disputando o Errio Rgio por interesse.

    Queixas contra o governador nunca faltaram em Portugal, ainda assim a distncia o

    favorecia e ele acabava sempre agindo com audcia e autoritarismo. No se importava

  • 33

    tambm com os gastos pblicos, um ms aps a sua posse ficou insatisfeito com as contas da

    cmara que havia pedido, ainda assim providenciou para que se construsse um prdio nico

    para a Casa da Cmara e a Cadeia. Em 1 de Abril de 1874, o governador se dizia de posse da

    autorizao para efetuar a construo, ele mesmo pediu auxlio ao ouvidor para que facilitasse

    o processo, a cmara fez o mesmo, Gonzaga no se ops.

    Para tal construo, a falta de recursos foi remediada com a organizao de uma loteria

    e a falta de mo e obra com a utilizao dos prisioneiros vadios, negros fugidos e pessoas em

    dvida com a lei. O ouvidor se arrependeu do apoio por conta da violncia com que os homens

    eram tratados, bem como com o ponto de corrupo em que a nova casa da Cmara se

    tornaria. Por esse e outros motivos, suas crticas s posies do governador tinham que partir

    de um ponto annimo, era perigoso para um homem em sua posio ousar sair s claras.

    Entretanto, embora construsse um quadro muito desagradvel do governador,

    criticando inclusive seu comportamento libidinoso, havia muita incoerncia na maneira de

    agir do ouvidor. Enquanto ele mesmo questionava a moralidade do governador, incorria no

    mesmo erro ao se deitar com escravas ou ao manter um caso amoroso com Maria Anselma,

    em quem faria um filho que no criaria, ainda que no o enjeitasse oficialmente. O que lhe

    incomodava era a clareza com que Cunha Meneses exercia sua devassido sendo um homem

    pblico. O fato que a ferrenha oposio que fazia Gonzaga, s contribua para a diminuio

    do seu prprio poder e prestgio.

    As cartas queixosas para a coroa se sucediam de ambos os lados, entre as queixas do

    governador contra Gonzaga estava a de no proceder com as cobranas devidas ao seu cargo,

    bem como as prestaes de contas de suas aes e da cmara. Havia atraso nas prestaes de

    contas real fazenda e no pagamento das teras que a cmara devia fazer. Esses atrasos

    deviam-se principalmente morosidade do sistema burocrtico, e a problemas de cobranas

    de pequenas dvidas em grande nmero, de qualquer forma era combustvel para o embate.

    Em 1786, com a morte de Pedro Jos da Silva, tesoureiro da Real e Almoxarife dos

    armazns reais, repetiu-se a situao da arrematao dos contratos das entradas. Com vrios

    nomes propostos e sem consenso, o governador decidiu por um seu protegido para o cargo.

    Outras cartas do ouvidor se seguiram a Lisboa, mas ao final o protegido do governador

    permaneceu no cargo.

    Como praticamente no podia exercer sua autoridade de direito em plena funo,

    Gonzaga a exercia com excessivo zelo nos limites dados, assim em casos pequenos era de um

    rigor extremo e desproporcional ao caso. Uma das searas que ainda lhe ficava eram as

  • 34

    questes religiosas, Cunha Menezes nunca se ocupou delas deixando ento ao cargo do

    ouvidor sem suas interferncias.

    No comeo de 1786, com a chegada da notcia dos casamentos entre as cortes de

    Portugal e Espanha, em 8 de maio do ano anterior, Cunha Meneses decide realizar uma festa

    de grandes propores. Em 15 de maro, o governador determinou que a Cmara deveria

    realizar a festa, esta, por estar devendo dinheiro das teras, pediu a Gonzaga um adiamento na

    cobrana, pois a festa seria substancialmente cara, e mesmo os recursos a serem adiados

    no seriam o bastante.

    A Cmara encontrava a presso constante do lado do governador e a inexorabilidade

    do ouvidor em adiar as cobranas e aprovar as contas, o ouvidor dizia agir de acordo com uma

    ordem Rgia de 1765, que recomendava limitar os regozijos pblicos e festas de igreja. Os

    camaristas cederam presso, prevaleceu a vontade do governador. O ouvidor ainda tentou

    contra-argumentar, mas os camaristas fizeram ouvidos moucos, ainda que os planos

    grandiosos do governador ultrapassassem muito os recursos da cmara.

    Em 14 de maio de 1786, realizou-se a proclamada festa de Cunha Meneses. Por se

    tratar de uma festa de cunho oficial, o ouvidor no podia faltar. As conseqncias no

    demoram a chegar, Albergaria, o presidente da cmara que aprovou os gastos da festa, havia

    decidido que no poderia pagar os dividendos. As cobranas passaram ao seu sucessor no

    cargo da Cmara, Cludio Manuel da Costa, que tratou de intimar Albergaria que sempre saa

    com uma desculpa insuficiente.

    Os olhos se voltavam agora para o Ouvidor, o relatrio a ser enviado ao Errio Rgio

    por ele certamente condenaria os camaristas a tirar do prprio bolso as altas expensas da festa.

    Mas tudo foi habilmente manejado por Gonzaga, ele sabia que os camaristas, os maiores

    prejudicados no caso de uma deciso judicial desfavorvel, haviam sido forados pelo

    governador execuo da festa. Concedeu ento aos mesmos quatro anos para a confirmao

    das contas, tempo suficiente para que a burocracia, a lentido e as sucesses dessem tudo por

    perdido

    O estado de desagregao poltica e os resultados exguos nas cobranas da coroa

    comearam a irritar o ministro Martinho de Castro e Melo, no confiando mais em nenhuma

    das partes do longo litgio preferiu acreditar na palavra de seus funcionrios e espies e

    atribuir igual desonestidade e culpa ao ouvidor e ao governador pelos desgovernos das

    finanas. A 10 de agosto de 1786, o Viscondede Barbacena foi nomeado governador de

    Minas, um ms antes Gonzaga havia sido nomeado relao da Bahia, estas alteraes,

    embora sugeridas, ainda levariam tempo e a soluo a curto prazo efetuada por Martinho e

  • 35

    Melo foi ordenar a Cunha Menezes que fizesse o necessrio para tapar os vazamentos de

    dinheiro em Minas

    Logicamente, o Governador tratou de perseguir com afinco seus inimigos enquanto

    ainda agia com condescendncia com os seus amigos. A ferocidade do governador provocou

    muitos descontentamentos, inclusive da oligarquia local, pois muitos dos afetados pertenciam

    a famlias de prestgio. Os excessos cometidos pelo governador, desta vez por zelo, enchiam o

    ouvidor de trabalho, uma vez que seu cargo acumulava muitas funes. Ao passo que tratava

    com rigor os que no compactuavam com sua poltica e eram pegos em contravenes, Cunha

    Menezes dava carta branca aos seus, foi assim que deu a Jos Pereira Marques poderes para

    cobrar as dvidas dos inadimplentes.

    No final de 1786, Jos de Sousa Lobo e Melo, novo comandante do destacamento da

    Serra Diamantina, sob ordens do governador, comeou a prender indiscriminadamente

    culpados e inocentes de contrabando. Ao mesmo tempo a Junta Diamantina efetuava prises e

    encaminhava presos para o ouvidor para efetuar as expulses. Alguns desses presos eram

    aliviados pelo governador por terem sido presos cumprindo ordens dos seus protegidos.

    Apesar de toda conturbao poltica enfrentada pelo ouvidor, sua vida pessoal

    apontava um futuro promissor, desde o incio de 1786 Gonzaga nutria o amor por Maria

    Dorotia Joaquina de Seixas filha do capito Baltazar Joo Mainrique, motivo para o ouvidor

    ir missa todos os domingos, ainda que fosse um homem cultivado pelo iluminismo. A

    paixo possivelmente teve incio com as visitas da menina casa da tia Antnia Cludia

    Casimira Seixas, vizinha do ouvidor. O pai de Dorotia sofreria um revs nesse mesmo ano,

    sendo substitudo por Jos de Souza Lobo e Melo no destacamento da Serra Diamantina de

    Itacambiriu, acusado de colaborar com o contrabando.

    As acusaes contra Mainrique nunca seriam levadas ao termo, Gonzaga tambm no

    tratou de ajudar o pai da amada no processo, possivelmente por saber disso. O fato que o

    substituto, o tenente Lobo, superaria em muito o apoio ao contrabando na regio. A relao

    com a famlia de Dorotia corria bem, tanto que o casamento foi marcado para o final de

    1787, o capito estava tambm preso ao ouvidor e lhe devendo em virtude do que devia

    justia. Como estava nomeado desde fevereiro para a Bahia, Gonzaga queria estar livre e, para

    garantir que isso acontecesse, solicitou corte que o processo fosse feito localmente por Pires

    Bandeira, houve aceite em setembro de 1786.

    O ministro Martinho de Melo e Castro no recebeu bem o ato e a rainha o revogou em

    12 de setembro de 1787, mandando que o ouvidor apenas se movesse com a chegada do

  • 36

    substituto. O vaie-vem ainda teve outro revs quando em novembro a rainha nomeou Pires

    Bandeira Juiz Sindicante. De qualquer forma, Gonzaga ficaria no cargo at 1788.

    Por essas pocas, o capitalista Joo Rodrigues de Macedo, um dos homens mais ricos

    da regio, andava s turras com a real fazenda. Desde 1783 ele havia sido avisado a no

    continuar com as suntuosas obras de sua manso, pois devia muito ao errio rgio para exibir

    tal quantidade de dinheiro. Como muitos, ele se confiava, com a chegada de Cunha Meneses e

    Gonzaga, em fazer as amizades e postergar os problemas ao infinito, j possua os camaristas

    nos bolsos e daria um jeito em outras autoridades. Contudo, os tempos eram outros, o ministro

    Martinho e Melo olhava com ateno para os desmandos da capitania, Portugal havia gastado

    avultadas quantias com o ouro que comeava a escassear.

    As desculpas do governador sempre recaam sobre os cobradores, Gonzaga sendo o

    principal deles, enquanto fazia vazar para seus bolsos quantias enormes de ouros e diamantes.

    Gonzaga sentia-se insatisfeito com o estado das coisas, provvel se imaginar que muitas de

    suas queixas pessoais comeassem a ressoar um tom nacionalista diante dos desmandos

    cometidos pela coroa. Macedo era um dos capitalistas a quem uma eventual independncia

    mais favoreceria pelo