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CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 285-299, Maio/Ago. 2008 285 Carlos R. S. Milani Os anos pós-Guerra Fria possibilitam uma renovação do debate latino-americano sobre as tensões entre meio ambiente, ética e política internacional. Defensores da idéia de que as relações internacionais emergem exclusivamente da interação entre entidades políticas sobe- ranas e independentes contrapõem-se aos que sustentam a centralidade na agenda ecopolítica de muitos outros atores para além do Estado. Ou seja, os princípios da soberania incondicionada e da não-ingerência – ordenadores tradicionais do sentido das “relações internacionais” – são questionados pela crescente transnacionalização das reivindicações, por redes e movimentos ambientalistas, de condutas éticas e responsáveis no campo ambiental. É com base nesses pressupostos que o presente artigo se estrutura em duas partes: (1) uma discussão sobre o processo de internacionalização da problemática ambiental e das tensões contemporâneas entre meio ambiente, ética e política internacional na América Latina; (2) uma análise dos questionamentos trazidos pelo campo do ambientalismo latino-americano operando no seio da contestação transnacional do Fórum Social Mundial. PALAVRAS-CHAVE: ecologia política, movimentos ambientalistas, contestação transnacional, rela- ções internacionais, América Latina. ECOLOGIA POLÍTICA, MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS E CONTESTAÇÃO TRANSNACIONAL NA AMÉRICA LATINA INTRODUÇÃO Os primeiros debates mais politizados e crí- ticos sobre meio ambiente, na agenda internacio- nal, datam do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, culminando com o marco histórico que representou a celebração da Conferência das Na- ções Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Es- tocolmo) em 1972. Antes disso, a representação social sobre o problema ambiental era influencia- da, sobretudo, por normas de conservação e pre- servação de ecossistemas (mares, subsolos, Antár- tica, zonas desnuclearizadas) e de proteção de es- pécies ameaçadas de extinção (aves migratórias, mamíferos aquáticos). A partir de 1972, natureza, ciência e política começaram gradativamente a cons- tituir uma agenda comum (Latour, 1999), provo- cando um diálogo entre a urgência da proteção ambiental e a necessidade do desenvolvimento. Carlos R. S. Milani * Essa agenda tem sido permeada por uma retórica do poder dos discursos institucionais (defesa da sobe- rania incondicionada, princípios de não-ingerência, representação política formal) e pela função de de- núncia e monitoramento dos discursos militantes (catástrofes ambientais, acidentes petroquímicos, expertise ambiental, produção de contra-informação). Ambos os discursos marcaram fortemente o início do processo de internacionalização da problemática ambiental. A partir dos anos 1980, notadamente no que diz respeito a temas relativos a aquecimento global, proteção da camada de ozônio e da biodiversidade, assim como desflorestamento e desertificação, o meio ambiente se converteu em um tema central na agenda mundial das negocia- ções políticas e econômicas. A crise ambiental dei- xou de ser um item setorial da pauta política e passou a integrar a agenda mais ampla de seguran- ça coletiva (Barros-Platiau, 2006; Milani, 1999). No período situado entre Estocolmo (1972) e a Confe- rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992), con- solidou-se o consenso, agora também corroborado * Professor de Pós-Graduação da Escola de Administra- ção da Universidade Federal da Bahia. Pesquisador CNPq e Coordenador do Laboratório de Análise Política Mun- dial (LABMUNDO). Av. Reitor Miguel Calmon, s/n - Vale do Canela. Cep: 40110-903 - Salvador - Bahia - Brasil. [email protected] DOSSIÊ

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Carlos R. S. Milani

Os anos pós-Guerra Fria possibilitam uma renovação do debate latino-americano sobre astensões entre meio ambiente, ética e política internacional. Defensores da idéia de que asrelações internacionais emergem exclusivamente da interação entre entidades políticas sobe-ranas e independentes contrapõem-se aos que sustentam a centralidade na agenda ecopolíticade muitos outros atores para além do Estado. Ou seja, os princípios da soberania incondicionadae da não-ingerência – ordenadores tradicionais do sentido das “relações internacionais” – sãoquestionados pela crescente transnacionalização das reivindicações, por redes e movimentosambientalistas, de condutas éticas e responsáveis no campo ambiental. É com base nessespressupostos que o presente artigo se estrutura em duas partes: (1) uma discussão sobre oprocesso de internacionalização da problemática ambiental e das tensões contemporâneasentre meio ambiente, ética e política internacional na América Latina; (2) uma análise dosquestionamentos trazidos pelo campo do ambientalismo latino-americano operando no seio dacontestação transnacional do Fórum Social Mundial.PALAVRAS-CHAVE: ecologia política, movimentos ambientalistas, contestação transnacional, rela-ções internacionais, América Latina.

ECOLOGIA POLÍTICA, MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS ECONTESTAÇÃO TRANSNACIONAL NA AMÉRICA LATINA

INTRODUÇÃO

Os primeiros debates mais politizados e crí-ticos sobre meio ambiente, na agenda internacio-nal, datam do final dos anos 1960 e início dosanos 1970, culminando com o marco histórico querepresentou a celebração da Conferência das Na-ções Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Es-tocolmo) em 1972. Antes disso, a representaçãosocial sobre o problema ambiental era influencia-da, sobretudo, por normas de conservação e pre-servação de ecossistemas (mares, subsolos, Antár-tica, zonas desnuclearizadas) e de proteção de es-pécies ameaçadas de extinção (aves migratórias,mamíferos aquáticos). A partir de 1972, natureza,ciência e política começaram gradativamente a cons-tituir uma agenda comum (Latour, 1999), provo-cando um diálogo entre a urgência da proteçãoambiental e a necessidade do desenvolvimento.

Carlos R. S. Milani*

Essa agenda tem sido permeada por uma retórica dopoder dos discursos institucionais (defesa da sobe-rania incondicionada, princípios de não-ingerência,representação política formal) e pela função de de-núncia e monitoramento dos discursos militantes(catástrofes ambientais, acidentes petroquímicos,expertise ambiental, produção de contra-informação).Ambos os discursos marcaram fortemente o iníciodo processo de internacionalização da problemáticaambiental.

A partir dos anos 1980, notadamente noque diz respeito a temas relativos a aquecimentoglobal, proteção da camada de ozônio e dabiodiversidade, assim como desflorestamento edesertificação, o meio ambiente se converteu emum tema central na agenda mundial das negocia-ções políticas e econômicas. A crise ambiental dei-xou de ser um item setorial da pauta política epassou a integrar a agenda mais ampla de seguran-ça coletiva (Barros-Platiau, 2006; Milani, 1999). Noperíodo situado entre Estocolmo (1972) e a Confe-rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambientee o Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992), con-solidou-se o consenso, agora também corroborado

* Professor de Pós-Graduação da Escola de Administra-ção da Universidade Federal da Bahia. Pesquisador CNPqe Coordenador do Laboratório de Análise Política Mun-dial (LABMUNDO).Av. Reitor Miguel Calmon, s/n - Vale do Canela. Cep:40110-903 - Salvador - Bahia - Brasil. [email protected]

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pela expertise científica, de que as intervençõeshumanas sobre a natureza têm sido de tal dimen-são, que provocam modificações irreversíveis paraa estrutura e o funcionamento dos ecossistemas(desde o nível do organismo, populacional, dascomunidades, paisagens, até o nível da biosfera),donde o caráter de urgência política de uma açãopreventiva fundada no princípio ético e políticoda precaução.

Hoje há, portanto, um conhecimento acu-mulado e uma consciência mais ampla acerca doslimites impostos pela natureza, presentes nos dis-cursos e modos de ação política dos atores estataise operadores não estatais das relações internacio-nais, tanto no plano da ecopolítica mundial quan-to no âmbito regional latino-americano. É dadialética entre a evolução lenta (porém direcionada)no campo dos ideários, da consciência coletiva edas subjetividades, de um lado, e os efeitos mate-rialmente visíveis da crise ambiental (por exem-plo, nas suas relações com a matriz energética, omodelo econômico, os padrões de consumo, ageopolítica ou a própria sobrevivência da humani-dade), de outro, que resulta a importância cres-cente adquirida pelo problema ambiental-ecológi-co na definição das estruturas de poder das rela-ções internacionais. O meio ambiente interfere napolítica regional latino-americana como represen-tação (subjetividades e identidades, afiliações po-líticas, discursos) e, ao mesmo tempo, como di-mensão material e territorial estruturante dageopolítica das trocas e das alianças entre socieda-des, mercados e governos (Rosa; Dietz, 1998;Prades, 1999).1

É verdade que, no plano das idéias e cren-ças, a revolução ecológica foi anterior à tomada de

consciência política, econômica e institucional. Osmovimentos pacifistas e contrários ao uso da ener-gia atômica, as denúncias dos efeitos nefastos da“revolução verde” e do uso de pesticidas(agrotóxicos) na agricultura, entre outros aspectos,despertaram o primeiro grito dos atores de protes-to da sociedade civil latino-americana. A estruturapolítica, em contraposição, foi fortemente instadapelo alarme do Clube de Roma, quando da publi-cação do célebre Relatório Meadows (The limits to

growth) em 1972. Ao introduzir temas relativos àameaça da penúria e à degradação do meio ambi-ente, esse relatório pôde criar o choque políticodesejado nos meios institucionais: as dimensõesecológicas, econômicas, demográficas e políticasda crise corroboraram o surgimento de uma pro-blemática nitidamente global (Andrade; Taravella,2008; Caldwell, 1984; Milani, 2000). Na AméricaLatina, o grito dos movimentos indígenas e dosseringueiros, o surgimento dos movimentos eco-logistas e dos primeiros partidos verdes, o movi-mento dos atingidos por barragens (MAB), o“boom” das organizações não-governamentais nosanos 1990, bem como as redes anti-alterglobalistasdo Fórum Social Mundial, têm levantado, de modoheterogêneo e não unificado, a bandeira da prote-ção ambiental e de reforma em profundidade dosistema econômico (Leis, 1991; Martinez-Alier,2007; Milani, 1998).

Particularmente no campo disciplinar dasRelações Internacionais, os anos Pós-Guerra Friatêm possibilitado, ainda que de maneira errática enão homogênea, uma renovação do debate sobreas tensões entre meio ambiente, economia global epolítica internacional. Se, por um lado, algunsautores defendem a idéia de que o sistema inter-nacional emerge exclusivamente da interação en-tre entidades políticas soberanas e independen-tes, por outro, parece-nos inevitável reconhecer quea ordem ecopolítica mundial também se compõede muitos outros atores para além dos Estadosnacionais. Ou seja, o princípio de uma soberaniaincondicionada, o exercício da autoridade estatalrestrita sobre o território nacional e a defesa danão-interferência – ordenadores tradicionais do

1 Rosa e Dietz (1998) tratam das diferentes lentes teóricaspara o entendimento das relações entre mudanças cli-máticas e sociedades, reconhecendo que tais transfor-mações impactam diretamente na sustentabilidade dosecossistemas e em todas as formas de organização social(humanas e não humanas). Os autores identificam duasorientações sociológicas na compreensão das relaçõesentre mudanças climáticas e sociedades: a orientaçãopor eles chamada de neo-realista que tem fundamenta-ção materialista e pressupõe um mundo objetivo inde-pendente da percepção dos atores humanos e sociais; euma outra orientação construtivista, que parte dos mar-cos interpretativos da crise provocada pelas mudançasclimáticas.

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sentido das “relações internacionais” – são questi-onados pelos processos de globalização, pelainternacionalização do problema ambiental e pelacrescente reivindicação, por redes e movimentosambientalistas, de condutas éticas e ações respon-sáveis na solução política dessa crise. As relaçõesinternacionais se construíram em torno de Esta-dos nacionais soberanos (donde a idéia de um sis-tema interestatal), fazendo com que se naturalizas-se a hipótese de que a política não existiria foradesse sistema. Essa naturalização do sistemainterestatal como lócus exclusivo da política inter-nacional não permite, porém, entender as diferen-tes formas de violação da soberania westfaliana,tais como as intervenções militares, a ingerênciahumanitária, o controle direto do território nacio-nal alheio, restrições à soberania nacional, tutelainternacional, além da movimentação do capitaleconômico – transnacional desde a sua origem(Badie, 1995; Cairo, 2006; Smouts, 2004).

A soberania nacional, como elementonorteador das relações entre sociedades e Estados,vê-se assim interpelada e desafiada pelo princípiode responsabilidade ambiental, cujos limites emtermos de regulação não coincidem, freqüentemente,com as fronteiras nacionais. Os problemasambientais, transfronteiriços por natureza outransnacionalizados por vias da ação política dosmovimentos e redes ambientalistas, renovam aagenda política na América Latina, fazendo con-vergir, não sem confrontos, os padrões éticos, asnormas políticas e as exigências econômicas naregulação dos comportamentos dos Estados e dosagentes privados (empresas e indivíduos). É evi-dente que essa convergência entre capital e ecolo-gia não ocorre sem obstáculos importantes. Nopresente artigo, serão analisados alguns dos reper-tórios políticos e demandas dos movimentosambientalistas na América Latina, sobretudo aque-les inseridos na onda anti-alterglobalista do FórumSocial Mundial. O artigo constará de duas partesprincipais: (1) uma discussão sobre o processo deinternacionalização da problemática ambiental edas relações e tensões contemporâneas entre meioambiente, economia global e política internacional

(com ênfase na América Latina); e (2) uma análisede alguns dos questionamentos críticos trazidospelo campo do ambientalismo latino-americano,que opera no seio da contestação transnacional doFórum Social Mundial.

O MEIO AMBIENTE COMO PROBLEMATRANSNACIONAL NA AMÉRICA LATINA: avisão da ecologia política

No quadro atual das mutações da políticalatino-americana, a problemática do meio ambien-te complexifica as tensões entre os princípios desoberania e de responsabilidade no mundo dosEstados, mas igualmente as relações entre os inte-resses particulares dos agentes individuais e asnecessidades macro-coletivas de justiça social eprudência ecológica. As ameaças que pesam sobreo meio ambiente (fragmentação de ecossistemas,extinção de habitats, introdução de espécies exóti-cas, ameaça a identidades indígenas) e a necessi-dade de construir ações coletivas a fim de preveni-las ou restaurá-las implicam uma reformulação dequestões políticas e éticas essenciais, re-introdu-zindo, na linguagem normativa da política latino-americana, o debate sobre o bem comum. No casoda proteção da sociobiodiversidade, por exemplo,as tensões tornam-se evidentes ao colocarem emdiálogo duas cosmovisões bastante distintas quantoaos mecanismos de regulação dos saberes e daspráticas associados à diversidade natural: de umlado, a solução apontada pelo regime de patentes(propriedade intelectual); de outro, a demanda poralguns movimentos (sobretudo indígenas eambientalistas) de reconhecimento da particulari-dade do estatuto de bem comum para os saberestradicionais e autóctones (Dias; Costa, 2008;Rezende, 2007).

Parafraseando Sousa Santos (2006), a criseambiental engendra zonas de contato interculturalem que se explicitam conceitos e significados quan-to à definição dos bens a proteger, assim comopráticas referentes à explicitação dos conflitos e àimplementação de mecanismos de proteção ou res-

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tauração ecológica. Nas zonas de contato, entramem diálogo visões diferenciadas sobre o meio am-biente. Do ponto de vista normativo, a diversida-de não é assim considerada como fator de frag-mentação ou isolamento, mas como elementoinstigador de um sentido de “incompletude recí-proca” e de solidariedade, condição sine qua non

para a efetivação do diálogo intercultural (SousaSantos, 2006).

A problemática do meio ambiente é, nesse sen-tido, um dos fatores que influenciam a reacomodaçãoda ordem mundial contemporânea em diversos ní-veis, porquanto alude, concomitantemente, a umamaior complexidade dos processos ecológicos (efei-tos sistêmicos das alterações climáticas, por exem-plo), mas também porque participa do duplo jogodas regulações internacionais por solidariedades(ações concertadas de agentes sociais e Estados) epelo mercado (interdependência econômica).Como lembra Brenton (1994), é evidente a impor-tância do problema ambiental na reflexão sobre aordem política contemporânea, tendo em vista quea dialética entre os interesses particulares e a pos-sibilidade de uma ação coletiva impõe uma deli-cada agenda de negociações entre os atores públi-cos e privados, individuais e coletivos.

Uma vez que apresenta constrangimentosclaros à expansão sem limites do modo capitalistade produção, a crise ambiental está integrada à or-dem política da atualidade, desconstruindo nu-merosos mitos relativos ao progresso tecnológico,à eficiência econômica e ao crescimento sem ris-cos. São recolocados em debate postulados da eco-nomia neoclássica, mas também da análisemarxiana clássica. No campo da economianeoclássica, a economia ecológica (Costanza, 1991;Daly; Cobb, 1989) passa a considerar a degradaçãoambiental como externalidade negativa. A soluçãodo problema ecológico implica a internalização doscustos externos negativos na equação econômica dodesenvolvimento, sendo necessário atribuir valo-res monetários aos recursos e serviços ambientais.Como lembra Martínez-Alier (2007, p.45):

Os economistas ecológicos questionam asustentabilidade da economia devido aos impac-

tos ambientais e a suas demandas energéticas emateriais, e igualmente devido ao crescimentodemográfico. As pretensões de atribuir valoresmonetários aos serviços e às perdas ambientais,e as iniciativas no sentido de corrigir a contabili-dade macroeconômica, fazem parte da econo-mia ecológica.

Isso significa que os economistas ecológicosbuscam modelar as interações entre a economia e omeio ambiente, utilizando instrumentos de gestãodos mais diversos, entre os quais a avaliaçãoambiental integrada, o cálculo da capacidade de cargae de resiliência, a análise dos riscos e das incertezase a contabilidade do capital natural. De regra, nãohá preocupação, no uso de tais ferramentas, quantoaos limites éticos e aos conflitos de naturezadistributiva que os mecanismos de regulação pelosmercados podem suscitar. Por exemplo, aos bensnaturais que não apresentam valor econômico dire-to pode ser atribuído um preço fictício (shadow

price), permitindo, desse modo, a sua integração nalógica do crescimento econômico.

No que diz respeito à análise marxiana, con-trariamente ao que afirmam Chesnais e Serfati(2003), defendemos aqui a hipótese de que a criseecológica, do ponto de vista normativo e empírico,põe em xeque as condições de reprodução e defuncionamento do capital, ao destruir ou danificargravemente o ambiente natural. É evidente que aexaustão da natureza e a gestão de recursos natu-rais raros podem ser transformadas em campos devalorização do capital e mercados de acumulaçãoportadores de novos rendimentos para proprietá-rios e acionistas. O capitalismo avançado engen-drou direitos de propriedade sobre elementos vi-tais (ar, água, solo, biodiversidade, saberes tradici-onais) ao converter bens livres ou bens comunsem esferas de valorização, como no caso da teoriado capital natural e na definição de mercados ad

hoc que gerem os direitos de poluir. A“re(in)volução verde”, por exemplo, foi, sobretu-do, um formidável vetor de exportação de fertili-zantes e inseticidas produzidos pelos grandes gru-pos da indústria química, tendo contribuído paraaumentar a estrutura de desigualdades entre oscamponeses de muitos países latino-americanos(Chesnais; Serfati, 2003; Martinez-Alier, 2007). No

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entanto, seguindo o pensamento de O´Connor(1994), defendemos aqui a idéia de que, ao adentrara agenda latino-americana de negociações interna-cionais, a internalização dos custos econômicosprovocados pela crise ecológica apresenta constran-gimentos claros à reprodução do sistema capitalis-ta no seu nível sistêmico e produtivo. A criseambiental, ao remeter às fronteiras da sobrevivên-cia humana e à interdependência complexa entresociedades e modelos de produção, decomposi-ção e consumo, desvela os limites do sistema pro-dutivo atual.2

Além disso, para além das relações econô-micas no nível sistêmico, a crise ambiental naAmérica Latina envolve confrontos ecológicos econflitos distributivos, como os evidenciados naresistência dos camponeses peruanos contra amineradora Cerra de Pasco Copper Corporation (deNova York) desde os anos 1920, ou na contestaçãoaos modelos de desenvolvimento para a Amazô-nia exercida pelo sindicato dos seringueiros lide-rados por Chico Mendes no Brasil dos anos 80.3

Ou seja, o ativismo ambiental não se explica tão-somente a partir da evolução de uma consciênciaecológica, mas é, nesse caso, reflexo da combina-ção desigual de fatores tais como a localização dosimpactos ambientais, as possibilidades reais desolução tecnológica acessível e a incerteza das ame-aças. Isso significa que, nos países latino-america-nos, a desigualdade também se refere a uma desi-gual incidência dos danos ambientais e da criseecológica. Como lembra Acselrad et alii (2004), ademanda por justiça ecológica não se restringe àsolidariedade intergeracional (entre as geraçõespresentes e futuras), mas traz o conflito entre na-tureza e economia para as relações sociais de hoje.Na perspectiva de Martínez-Alier (2007), há algode universal nas distintas lutas por justiçaambiental que diz respeito ao nexo entre lutas pordistribuição e demandas por reparação de danosecológicos. Esse seria o substrato filosófico funda-mental da ecologia política, como sublinhaMartínez-Alier (p. 113):

Por distribuição ecológica são entendidos os pa-drões sociais, espaciais e temporais de acesso aosbenefícios obtidos dos recursos naturais e aosserviços proporcionados pelo ambiente como umsistema de suporte da vida. Os determinantes dadistribuição ecológica são em alguns casos natu-rais, como o clima, topografia, padrõespluviométricos, jazidas de minerais e a qualida-de do solo. No entanto, também são claramentesociais, culturais, econômicos, políticos etecnológicos.

A ecologia política faz sentido no contextolatino-americano porque parte do princípio de queos problemas ambientais não afetam a todos osindivíduos e grupos sociais uniformemente, alémde reafirmar que a concentração de riqueza é tam-bém resultado de processos de controle sobre de-terminados recursos ambientais. Por exemplo, emvários países latino-americanos, os camponeses sãoobrigados a cultivar solos com declives (causandomaior erosão das encostas), porque a terra do valeé, em sua maioria, propriedade dos latifundiários;a pobreza rural também tende, em muitos dessespaíses da região, a intensificar a coleta de lenhaem terras áridas e a utilização do esterco como com-bustível, o que traz efeitos negativos para a fertili-

2 Concordamos com O´Connor (1994), um dos fundado-res da revista Capitalism, Nature, Socialism, o qual afir-ma a necessidade de enriquecer a análise marxista paracompreender a crise ecológica. Hoje, o capitalismo seconfrontaria, segundo o autor, com uma segunda con-tradição (a primeira seria a superprodução de mercadori-as e superacumulação de capital), situada no âmbitomais amplo das condições de produção (incluindo osmeios de comunicação, as infra-estruturas, as condi-ções pessoais de produção do trabalhador, além das con-dições físicas e ambientais). Um dos tenores da ecologiapolítica socialista e crítica, James O´Connor, defende aidéia de que a crise ecológica nos remete a um conflitodistributivo novo, donde a necessidade de vincular aexploração dos dominados pelos possuidores de riquezae a destruição da natureza e da biosfera. O autor buscasuperar, assim, uma leitura produtivista do trabalho deK. Marx e F. Engels que foi realizada durante décadas.

3 Martinez-Alier (2007, p.93 e seq.) lembra que a minera-ção no Peru esteve, durante muito tempo, dominadapela Corporação Cerro de Pasco, até que, na década de1960, a extração de cobre se deslocou para o sul do Peru,onde o minério é explorado a céu aberto – gerando sedi-mentos, deteriorando a água em regiões onde os recur-sos hídricos são escassos e poluindo o ar com o dióxidode enxofre das fundições. Hoje, a Southern Peru CopperCorporation, cuja fundição foi construída em 1969, queexplora o minério, constitui uma das dez maiores pro-dutoras de cobre no planeta e, desde 2005, depois daaquisição da empresa por um grupo mexicano, passou achamar-se apenas Southern Copper Corporation. Parauma introdução à ecologia política como campo, ver ocapítulo 4 de Martinez-Alier (2007), além dos periódicosJournal of Political Ecology (Estados Unidos), Ecologieet Politique (França), Ecología Política (Espanha),Capitalism, Nature, Socialism (fundado por JamesO´Connor e Barbara Laurence).

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dade do solo; no Equador (por meio das organiza-ções Acción Ecológica e Fundación de DefensaEcológica, por exemplo) e no Brasil, a expansão dacarcinicultura em regiões de mangue, geralmenteterras públicas por se situarem em zonas de ma-rés,4 tende a expulsar populações pobres que ti-ram seu sustento da exploração dos manguezais(Martínez-Alier, 2007). Ademais, a ecologia políti-ca evidencia que os conflitos ambientais ocorremem diversas escalas, apresentando origens no pla-no interno e externo das fronteiras do Estado naci-onal. No Brasil, a expansão do cultivo dostransgênicos, por exemplo, resulta, sobretudo, depressões externas, ao passo que o agribusiness dasoja e a produção de alimentos põem em relaçãointeresses tanto nacionais quanto internacionais(Acselrad, 2004).

A crise ecológica transforma igualmente, noplano político, a identidade dos sujeitos e a açãoestratégica dos agentes, re-situando os modos de or-ganização da política em termos de redes, dehorizontalidade da decisão e de fluidez organizacional(Comolet, 1991; Deleage, 1992). A crise ambientalevidencia um sujeito social complexo que, dotadode um “pensamento ecologizado” (pensée

ecologisée), o qual ultrapassa diferentes fronteiras(territórios, disciplinas, setores), posiciona-se àmargem ou além das formas clássicas de afiliaçãopolítica individual e coletiva (classe social, nação).Quando os movimentos sociais do campo exigema manutenção de suas condições de vida e a con-servação do meio ambiente, estão também expres-sando uma tomada de consciência política acerca

da interconexão entre as destruições ecológicas eas agressões contra as condições de sua própriaexistência como produtores. Na América Latina,os conflitos de ordem distributiva e ambiental es-tão, assim, diretamente relacionados entre si. Asatuais reivindicações do MST e da Via Campesinade acesso a terras e promoção de um desenvolvi-mento ecologicamente equilibrado ilustram taisreivindicações.

O CAMPO DO AMBIENTALISMO LATINO-AMERICANO NAS REDES DO FÓRUM SOCIALMUNDIAL

É interessante notar, como demonstram aTabela 1 e o Quadro 1 a seguir, que as redes emovimentos ambientalistas da América Latina re-presentam mais de 55% do total das organizaçõesparticipantes dos processos do Fórum SocialMundial que afirmam integrar a bandeira do de-senvolvimento sustentável e da defesa do meioambiente em suas lutas. Do total de 102 organiza-ções e movimentos da América Latina e do Caribe,80 são originárias do Brasil, 4 do Uruguai, 3 doEquador, 2 da Argentina, do Chile, Panamá, Perue Paraguai.5 Muitas dessas organizações da contes-tação anti-alterglobalista contribuem para que odebate sobre as relações entre proteção do meioambiente, ecologia política e desenvolvimento sus-tentável se encontre no centro das atenções doFórum Social Mundial e suas declinações regio-nais e temáticas. É fundamental perceber que anatureza desse debate no seio do anti-alterglobalismo é bastante distinta da forma como

4 As zonas de mangue (manguezais) são, de regra, outor-gadas pelos governos para o cultivo do camarão via con-cessões privadas, gerando uma lógica de criação de cer-cas (enclosures) e privatização de bens comuns, geral-mente explorados por populações ribeirinhas. A produ-ção comercial do camarão é apoiada pelo Banco Mundial,entre outras instituições, como estratégia que visa aimpulsionar exportações não-tradicionais. Essa estraté-gia é conhecida mais amplamente como “RevoluçãoAzul”, que industrializa e capitaliza a nova fronteira eco-lógica que representam os recursos hídricos e marinhos.A Revolução Azul refere-se ao rápido desenvolvimentoda aqüicultura nos últimos anos, em contraponto à Re-volução Verde da alta produtividade de grãos, ocorrida apartir dos anos 50. Segundo dados divulgados pelo EarthInstitute da Universidade de Columbia (coordenado peloeconomista Jeffrey Sachs), entre os anos 50 e o presen-te, a pesca total, em águas abertas e abrigadas, quasequintuplicou, passando de aproximadamente 20 milhõespara 95 milhões de toneladas métricas.

5 Essa coleta de dados concerne à participação de ONGs emovimentos ambientalistas que tenham participado doFórum Social Mundial em 2002, 2003 e 2008 (Dia deAção Global). Foi priorizada a identificação de informa-ções de caráter geral: país sede da organização, ano defundação, informações sobre a área de atuação (passívelde categorização futura) e endereço eletrônico, para pos-sível aprofundamento posterior. Em termos gerais, fo-ram enquadradas como ambientalistas as organizaçõesque fizeram referência a: ecologia, meio ambiente, de-senvolvimento sustentável, direito ambiental, educa-ção ambiental, sustentabilidade ecológica, justiçaambiental e proteção de recursos naturais em seus obje-tivos principais. Esses dados foram coletados e organi-zados pelo estudante de iniciação científica Davi RibeiroBrazil (2007/2008).

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evoluem as negociações intergovernamentais noseio das instituições das Nações Unidas e das agên-cias econômicas internacionais.

Na edição de 2001 do FSM em Porto Ale-gre, o desenvolvimento sustentável integra o se-gundo eixo de discussão do Fórum, intitulado“acesso à riqueza e sustentabilidade”, no âmbitodo qual as oficinas temáticas discorrem acerca docontrole social sobre o meio ambiente, a democra-tização do conhecimento científico e a privatizaçãodo saber por meio do regime internacional de pro-priedade intelectual. Em 2002, mantém-se o mes-mo eixo de discussão, porém as oficinas enfatizammais as relações entre tecnociência, ecologia e ca-pitalismo; a agroecologia e os direitos de proprie-dade intelectual; o consumo verde e sustentável;

e, finalmente, as cidades como espaços sustentá-veis. Em 2003, ocorre uma mudança de eixostemáticos: o primeiro deles diz respeito ao desen-volvimento democrático e sustentável, estabelecen-do uma ligação direta entre democracia, promoçãodo desenvolvimento e proteção do meio ambiente.No discurso anti-alterglobalista, a gestão dos re-cursos naturais passa necessariamente pelaredefinição de mecanismos democráticos de con-trole social sobre o acesso aos bens e recursos.

Quando do quarto FSM em Mumbai (2004),um conjunto de movimentos e redes (Peoples World

Water Forum, Asia Pacific Movement on Debt and

Development, Public Citizen, Sweetwater Alliance,Council of Canadians e Cry of the Water) organi-zam o Fórum popular mundial das águas. Mili-tantes reconhecidos internacionalmente (VandanaShiva, Ricardo Petrella e Tony Clarke) participamdos debates. No âmbito do Fórum socialpanamanônico (nas diferentes edições de 2002 e2003, em Belém do Pará, e de 2004, em CiudadGuayana), militantes latino-americanos analisam odesenvolvimento sob o ângulo da soberania ecoló-gica, da gestão sustentável e popular do território,da preservação das zonas florestais protegidas (re-servas extrativistas), da segurança alimentar emrelação com a produção agroecológica pelas famíli-as rurais, mas também debatem o tema da

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geopolítica da água e a gestão democrática dos re-cursos hídricos.6

Ademais, a partir da leitura de vários arti-gos apresentados na “biblioteca das alternativas”do website oficial do FSM e com base nos discur-sos pronunciados por militantes em diferentesedições do Fórum,7 pode-se afirmar que os anti-alterglobalistas criticam a institucionalização cres-cente do debate sobre desenvolvimento sustentá-vel e a recuperação política das estratégias desustentabilidade por corporações e instâncias eco-nômicas internacionais. Um dos pontos de parti-da das críticas trazidas pelos anti-alterglobalistasconcerne ao Relatório Brundtland “Nosso FuturoComum” e à Agenda-21 (plano de ação da Confe-rência do Rio), dois dos documentos mais citadospelas agências internacionais atuantes no campoda proteção ambiental (Programa das Nações Uni-das para o Meio Ambiente, Banco Mundial,UNESCO, cooperação bilateral, entre outras) e quelhes servem de fundamento filosófico e político nadefinição de seus programas. Ambos os documen-tos, resultantes do trabalho de intelectuais do Nortee do Sul (o que poderia dar uma forte impressãode diversidade na representação dos interesses),produziram uma linguagem política multilateralfundada no consenso e não na conflitualidade ine-rente às relações entre ecologia política e desen-volvimento econômico, proteção do meio ambien-te e expansão do comércio internacional, promo-ção da justiça ambiental e defesa da neutralidadetecnológica, ou ainda o desenvolvimento voltadopara fora (exportações) e o desenvolvimento orien-tado para dentro (mercado doméstico). Buscando

evitar as oposições e construindo pontes entrecosmovisões distintas, tais documentos incorremquase ingenuamente na armadilha de terem pro-duzido fórmulas vagas ou soluções que implicamaportes financeiros pouco realistas. O RelatórioBrundtland, por exemplo, não atenta para os ver-dadeiros custos e as diferentes visões culturais dodesenvolvimento sustentável.

Outro exemplo de crítica importanteconstruída pelos movimentos ambientalistas latino-americanos inseridos na onda anti-alterglobalista dizrespeito ao não tratamento da questão central daecologia política, no que se refere à distribuição dasriquezas. Apontam os militantes e as lideranças anti-alterglobalistas que o Relatório Brundtland (assimcomo muitos dos programas desenvolvidos pelasinstituições onusianas e do sistema de BrettonWoods), ao mencionar somente o crescimento dariqueza como fundamento para uma redistribuiçãofutura, de fato, deixa de estabelecer uma distinçãonítida entre os graus da sustentabilidade ecológica:a sustentabilidade forte e a fraca.8 As agências inter-nacionais tendem a não radicalizar o debate e a op-tar pela segunda via, uma vez que a sua adoção écompatível com uma regulação da crise ambientalpelos mercados, sem tocar no cerne da questão po-lítica relativa às assimetrias espaciais e às desigual-dades sociais. No entanto, como lembram Redclifte Sage (1998, p.499 e seq.) em relação ao papel daideologia no debate sobre as mudanças climáticas:

Na perspectiva dos países em desenvolvimento,as questões distributivas encontram-se no cora-ção das mudanças climáticas. [...] Na perspecti-va sociológica, a eqüidade é fundamental parapensar as mudanças climáticas não somente pe-las diferenças mensuráveis dos fluxos de ener-gia e de materiais, dos níveis de consumo do-6 A coordenação desse Fórum regional (FSPA) esteve a car-

go da ONG Caritas, do Conselho Indigenista Missionário(CIMI), da Coordenação das Organizações Indígenas daAmazônia Brasileira (COIAB), da CUT, do Grupo de Tra-balho Amazônico (GTA) e do Sindicato dos Escritores. OFSPA foi o primeiro fórum regional a se organizar noprocesso histórico do Fórum Social Mundial. Durante osegundo FSPA, mais de 10 mil pessoas se reuniram emtorno do tema central: “Todos contra a ALCA”.

7 O autor do presente artigo participou de todas as ediçõesdo FSM no Brasil e de algumas edições regionais etemáticas, tendo entrevistado lideranças e participantes(Sérgio Haddad, Iara Pietricovski, Fabio Monroy Martinez,Pedro Carrano, Chico Whitaker, entre outros líderes demovimentos e organizações na América Latina), a fimde fundamentar empiricamente sua análise sobre a con-testação política transnacional.

8 Como lembra Beckerman (1994), a sustentabilidade for-te prioriza a preservação do meio ambiente, ao passo quea sustentabilidade fraca privilegia o apoio ao crescimen-to. A segunda fundamenta-se na distribuição das dife-rentes formas de capital (natural, manufaturado, hu-mano, social) entre as gerações. Essa concepção não res-ponde a algumas questões: Como comparar as diferen-tes formas de capital? Elas seriam fungíveis? Somente oprogresso tecnológico permite a reparação de perdas decapital natural? A primeira traz para o debate dois cons-trangimentos a mais: Haveria formas de capital naturalque não sejam passíveis de substituição? Como fazerfuncionar, politicamente, o princípio de precaução nasrelações econômicas?

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méstico ou das dificuldades em chegar a acordosinternacionais, mas igualmente por razões ideo-lógicas. [...] Talvez o melhor exemplo de fatoresideológicos influenciando o debate diz respeitoà construção do ‘desenvolvimento sustentável’ ou‘desenvolvimento verde’, freqüentemente pola-rizada entre soluções ligadas a valores de trans-formação tecnológica (modernização ecológica)e mudanças culturais de cunho mais radical (eco-logia profunda).

Ao contrario, os movimentos e organizaçõesno seio do anti-alterglobalismo privilegiam o deba-te sobre a sustentabilidade forte, redefinindo e pro-pondo mudanças mais ou menos profundas nasrelações entre natureza, capital e sociedade(Rousset, 2002): não se trata tão-somente de saberse o ser humano poderá ainda transformar a natu-reza e conquistá-la, mas de dar-se conta do quãopouco os ecossistemas ainda podem suportar. Apromessa dos avanços tecnológicos transformou-se em ameaça, engendrando o que Jonas (1979)havia predefinido como uma “heurística do medo”.Tais movimentos desafiam, no campo doambientalismo, a adesão exclusiva ao “culto da vidasilvestre” e ao “evangelho da eco-eficiência”, umavez que abraçam os princípios da justiça ambientale do ecologismo dos pobres.9

Ademais, ao radicalizar o debate sobre o de-senvolvimento sustentável, as redes ambientalistaslatino-americanas demandam uma regulação inter-nacional sobre os bens comuns do planeta combase em princípios éticos de solidariedade, evi-denciando que a definição do sentido desustentabilidade é uma questão política e não me-ramente econômica. Definir o sentido do que ésustentável envolve discutir o presente e o futurodas sociedades, pôr em diálogo distintas represen-tações sociais do problema ambiental, rever o sen-tido das metas econômicas, avaliar os impactosecológicos negativos de acordo com grupos e clas-ses, bem como os diversos modos de conceber asrelações entre natureza, mercado e sociedade.

É assim que movimentos e redesambientalistas reivindicam uma participação polí-tica crescente na formação de opiniões públicas enos processos decisórios, denunciando o déficitdemocrático das instâncias econômicas internaci-onais (Teivanem, 2004) e a falta de confiança nossistemas políticos institucionais. Quer com o pro-pósito de convencer as populações a modificaremseu comportamento em relação ao meio ambiente(por exemplo, na gestão dos resíduos sólidos, nouso de transportes coletivos ou na redução da re-frigeração e da calefação), quer com o objetivo depromover transformações nos processos produti-vos (e, portanto, no comportamento dos operado-res econômicos), os movimentos ambientalistasquestionam o status quo por meio de estratégiasde visibilidade típicas do repertório moderno dasações coletivas (manifestações, petições), mas igual-mente pelo viés de ações midiáticas (happenings),pelo lobby e pela produção de relatórios científi-cos por meio de redes profissionais e universitári-as por eles mobilizadas.

As redes e movimentos interferem direta-mente no ciclo de vida das políticas públicasambientais por meio de ações que caracterizam aluta pela inclusão do tema na pauta pública (agen-

da-setting), a formulação, o controle ou omonitoramento de programas, além daimplementação de soluções via projetos experimen-tais. Trata-se de movimentos associativos de um

9 Martinez-Alier (2007, p.21-39) analisa detalhadamenteessas três correntes do ambientalismo contemporâneo esuas vertentes na América Latina. O culto ao silvestre secaracteriza por ser, cronologicamente, a primeira escola ase desenvolver dentro do movimento e por assumir umapostura de inviolabilidade da natureza, a partir da preser-vação dos poucos espaços que restam no mundo denatureza intocada. Em relação à situação do sistema in-ternacional, não apresenta uma postura de confrontodireto, tendo como base científica a biologia da conser-vação e a manutenção de um discurso onde prevalececerta sacralização da natureza. O culto ao silvestre contacom grandes organizações pelo mundo como aInternational Union for the Conservation of Nature(IUCN) e a Worldwide Fund of Nature (WWF). No casodo evangelho da eco-eficiência, a natureza não é encara-da como algo sagrado, mas como um recurso; isso emfunção da centralidade dada à economia por esse ramodo ambientalismo. Por fim, o ecologismo dos pobres,também denominado de justiça ambiental, caracteriza-se pelo seu desenvolvimento no Terceiro Mundo e temcomo principal característica a percepção da naturezacomo fonte de subsistência. A importância atribuídapelo autor a esse movimento decorre tanto da suamarginalidade quanto da sua tendência a não ser carac-terizado ou não se autodenominar como parte do movi-mento ecologista. Sua principal argumentação está narelação entre o aumento do crescimento econômico e aampliação dos problemas ambientais, principalmente emrelação ao deslocamento de matérias-primas (relação entreNorte e Sul) e as áreas de despejo de resíduos. Seu de-senvolvimento deu-se em função da luta de movimen-tos indígenas e camponeses nos países menos desen-volvidos, mas também graças à contribuição do movi-mento de racismo ambiental nos Estados Unidos.

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novo tipo, baseados no esgotamento ideológico dospartidos tradicionais e na necessidade de assumir,à esquerda como à direita, os mesmos constrangi-mentos da gestão da economia de mercado a serrepensada e transformada. A partir de uma estru-tura organizacional em rede, eles fazem política àmargem dos partidos políticos e se comportamcomo grupos de pressão e de contra-poder, cujostemas oferecem alternativas à ideologia econômicae às práticas políticas dominantes.

Por conseguinte, eles demandam o reconhe-cimento de um estatuto de competência particularna agenda ecopolítica mundial. As redes e os mo-vimentos ecológicos latino-americanos, apesar desua grande heterogeneidade (inclusive quantitati-va, segundo os países da região, como evidencia oQuadro 1, apresentada anteriormente) e dos confli-tos internos que os envolvem, também chamam aatenção para os novos estilos de vida e a busca deuma qualidade de vida fundada na auto-satisfação,para a necessidade de ruptura com o consumismoe a busca de uma nova ética no comércio (comérciojusto). Eles demandam ser reconhecidos e integra-dos nos processos de tomada de decisão (como for-ma de participação política) e reivindicam um esta-tuto de competência técnica (contra-expertise) nasnegociações intergovernamentais. É evidente que acrise do multilateralismo, as limitações dointergovernamentalismo estrito, a manutenção dounilateralismo norte-americano (exacerbado duran-te os oito anos do governo Bush) constituem umimportante pano de fundo de legitimação de taisreivindicações. Como lembram Devin (2004),Wallerstein (2004), Della Porta e Tarrow (2005), ointergovernamentalismo encontra-se sob forte pres-são política face à emergência dos atores e movi-mentos da contestação transnacional.

Retomando algumas das categorias de análisepropostas por Milani e Laniado (2007a; 2007b), pode-se reiterar, resumida e esquematicamente, que o cam-po do ambientalismo, inserido nas redes de contes-tação do Fórum Social Mundial, contribui para atransnacionalização do problema ambiental graças atrês ordens de fatores mais importantes, quais se-jam: a articulação de escalas e territorialidade; a

problematização do tempo ecológico vis-à-vis o tem-po político; e a construção de identidades múltiplas.

Territorialidade e articulação de escalas

Do ponto de vista do território e da articula-ção das escalas, é importante notar que as mensa-gens políticas e as ações propostas pelos movi-mentos ambientalistas latino-americanos adquiremenvergadura verdadeiramente transnacional. Nes-sa abordagem, a escala transnacional correspondea um continuum territorial que se estende do localao global (da menor à maior abrangência) e redefine,assim, a identidade, a estratégia e os recursos dasorganizações-em-rede. Da mesma forma que o ca-pital transnacionalizado induz mudançassistêmicas no regime de acumulação (que,gradativamente, passa de nacional e internacionala um regime global de acumulação), as redes, orga-nizações e movimentos ambientalistas tendem aorganizar-se e a constituir-se transnacionalmente.Criada em abril de 1992, a Via Campesina (VC) éum exemplo claro de rede de movimentos sociaiscamponeses de abrangência global, em que atemática ecológica é tratada em relação com os con-flitos distributivos locais.10

O nexo local-global constrói o sentido dotransnacional, porquanto, no processo de apropri-ação política e econômica dos espaços pelos movi-mentos e redes, o território da crise ecológica nãoé parcial nem limitado a uma escala local. O con-teúdo dessa crise e sua extensão, as ameaçasintroduzidas pela desigualdade social e pelos esti-

10 A VC é um movimento social transnacional que coor-dena organizações rurais, grupos de pequenos e médiosprodutores, movimentos de jovens e mulheres rurais,comunidades indígenas, movimentos de pessoas quenão têm acesso à terra produtiva (os sem-terra) e deassociações de trabalhadores agrícolas migrantes. Ela seautodenomina um movimento social de natureza autô-noma, plural, independente, sem fins lucrativos, semafiliação política ou partidária. É composta por oitentaorganizações do campo, de todos os continentes (inclu-sive a América Latina), em um total de cinqüenta e setepaíses, segundo dados de julho de 2007. A VC pretenderepresentar a voz camponesa no sistema internacional,participando da estrutura da FAO e buscando ter umapresença cada vez mais marcante nos protestos e coali-zões sociais organizadas durante os encontros da OMC,do FMI ou do Banco Mundial, assim como no âmbito doFórum Social Mundial (Milani, 2008).

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los de vida, bem como a necessidade de rever osmodos de produção ultrapassam as fronteiras na-cionais, gerando conflitos cuja solução políticaimplica forçosamente a negociação multilateralentre os atores governamentais, econômicos e so-ciais (Sachs, 1994). Os problemas ambientais, dolocal ao global, têm um impacto sobre a definiçãoda segurança coletiva (aquecimento). Eles colocamem questão um conjunto de princípios fundamen-tais da ordem mundial contemporânea: as frontei-ras administrativas dos Estados nacionais, a sepa-ração entre o nacional e o internacional, a defini-ção monolítica do interesse nacional, a ação estatalbaseada na razão de Estado, assim como a sobera-nia incondicionada dos Estados. A problemáticaambiental perturba, assim, o mundo moderno daterritorialidade contínua e justaposta. Como afir-ma Porto Gonçalves (2001, p.71-72):

Se o conceito de espaço vital foi tão essencial naépoca de F. Ratzel, como para dar sustentabilidadeao desenvolvimento calcado no Estado nacional [...]em um capitalismo mundializado o espaço vitalnecessário para dar sustentabilidade ao sistema jánão é o Estado nacional. [...] Estamos frente a umaclara tensão de territorialidades dentro do proces-so atual de reorganização social, em que a questãoambiental, ou seja, a relação entre a sociedade e anatureza, cumpre um papel constituinte.

Mais do que isso, em muitos casos – quan-do pensamos no agravamento dos impactos nega-tivos sobre o ambiente biofísico e humano causa-dos por projetos no campo nuclear, construção debarragens e hidroelétricas, exploração de minéri-os, pesquisas sobre biodiversidade (e suas rela-ções com a “biopirataria”), uso de transgênicos ede praguicidas na agricultura, por exemplo –, aresistência de redes e movimentos latino-america-nos atua contra o Estado, podendo, eventualmen-te, contar com aliados situados no interior do apa-relho estatal. Como lembra Martinez-Alier (2007),existe freqüentemente, em vários países latino-americanos, uma pauta de cooperação entre as al-tas posições estatais e as empresas privadas es-trangeiras quanto à utilização dos recursos natu-rais no interior do território nacional, como no casoda Bolívia que, em 2003, viu o seu governo pro-mover um acordo com a corporação Repsol-YPF, a

fim de exportar gás a preço baixo para a Califórnia.Esse acordo despertou a insurreição popular e aresistência de sindicatos, movimentos indígenas ealguns líderes políticos.

Torna-se evidente, assim, que confrontosdessa natureza desafiam a política ambientalinstitucionalizada dos ministérios, a legislaçãonacional e seus programas de monitoramento eco-lógico. O caso dos transgênicos no Rio Grande doSul (Brasil), denunciado e combatido pelo Movi-mento dos Sem Terra, Pastoral da Terra, ViaCampesina e Confédération Paysanne desde 1999,mas também o que se refere à autorização dadapelo Ministério do Meio Ambiente da Colômbiapara que a Occidental Petroleum desenvolvesse aexploração petrolífera, nos anos 1990, em plenoterritório dos povos u’was (cujos direitos são re-conhecidos pela constituição colombiana), ilustramas contradições crescentes entre Estado, movimen-tos sociais e industrialização da agricultura.

No entanto, sem incorrer na armadilha deuma análise exclusivamente construtivista dosdiscursos (o que contradiria as origens da ecologiapolítica), é importante lembrar uma outra dimensãodo território, que vai além da materialidade objetivado desenvolvimento dos processos produtivos. Acrise ecológica contribui igualmente para evidenci-ar a expansão da idéia de multiterritorialização(Haesbaert, 2006). Na modernidade, os territóriossão construídos pelo sujeito nacional em suas re-lações com o Estado na qualidade de territórios-zonas (fixos, enquadrados, hierarquizados). Namodernidade avançada, os novos territórios sãoterritórios-redes (descontínuos, fragmentados, si-multâneos). São esses territórios-redes que servemde suporte ao crescimento do ativismo ecológicotransnacional na América Latina, à entrada no ce-nário político de projetos que envolvem atoresmúltiplos do Norte e do Sul11 e, como já afirmara

11 Como afirmou Durkheim, à medida que avançamos nahistória, veremos que uma organização que se fundasobre agrupamentos territoriais (aldeias, vilas, distritos,províncias) se tornará cada vez menos importante; semdúvida, pertencemos todos a uma comuna, a um depar-tamento, mas esses laços que nos unem serão cada vezmais frágeis e mais fluídos. Essas divisões geográficasserão majoritariamente artificiais e não despertarão emnós sentimentos profundos. O espírito provincial terá

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Viola (1992), para a institucionalizaçãomultissetorial do ambientalismo nos anos 1990 ou,como prefere Porto Gonçalves (2001, p.76), para atransferência do terreno da ação coletiva do exclu-sivamente nacional a uma nova “territorialidadeplanetária”.

Temporalidade

O tempo ecológico intervém na políticatransnacional de diferentes maneiras: por meio dadefinição de solidariedades diacrônicas entre asgerações (proteger o meio ambiente hoje com opropósito de garantir as condições mínimas dedesenvolvimento para as gerações futuras), peladefinição de prioridades políticas e de recursospara resolver as crises ambientais (o tempo geoló-gico do meio ambiente é diferente do curto prazodos mandatos da democracia representativa), ouainda por meio da necessidade de internalizaçãodos custos econômicos pelas empresas (acompetitividade e a produtividade dos mercadosque funcionam na base do curto prazo, em contra-dição com as projeções futuras e os custos associ-ados às mudanças de modelos tecnológicos).

É evidente que, nesse contexto, a questãoambiental impõe uma negociação política entre osinteresses em conflito, perfilando-se como umadenúncia do ‘laissez-faire’ típico do liberalismoeconômico: o horizonte temporal do economistanão ultrapassa os dez ou vinte próximos anos (ouas próximas semanas para o mercado acionário),ao passo que o horizonte temporal da natureza sedá em termos de décadas ou mesmo de séculos.Daí resulta, hoje, a necessidade de se fazerem arbi-tragens políticas no que tange à definição dos bens

a proteger, dos mecanismos a serem implementadospara a sua preservação, além dos meios e recursosfinanceiros a serem disponibilizados. Um pontofundamental, mas altamente complexo, diz respeitoa que tais decisões devem ser tomadas na ausên-cia de certezas e de definições claras das conseqü-ências das degradações ecológicas. De fato, não háconsenso científico que sirva de fundamento ab-soluto às decisões políticas; há muitas incertezasquanto aos impactos futuros (D’Amato, 1990;Sachs, 1994). A problemática ecológica é marcadapor incerteza e imprevisibilidade, o que aumentade forma significativa os riscos econômicos e astensões políticas.

Identidades e representações sociais

A terceira categoria de análise diz respeito àsmúltiplas identidades e representações sociais domeio ambiente na construção dos problemas ecoló-gicos que contam na agenda política contemporâ-nea. As construções individuais e coletivas doambientalismo se distinguem em função das repre-sentações do tempo, do espaço, da sociabilidade e,ao mesmo tempo, das normas aplicáveis à soluçãodos problemas coletivos (Comolet, 1991). Por exem-plo, o meio ambiente pode ser concebido comomomento harmonioso, mítico e a-histórico, comopolaridade voltada para um futuro incerto, marca-do pela atividade humana, ou ainda como um meioambiente que consagra um sonho passado, tal comoum verdadeiro ‘jardim do Éden’. Essas diferentesrepresentações sociais são fundamentais no proces-so político e econômico de tomada de decisões, sejano nível dos governos, seja no nível da sociedade edos indivíduos (Lascoumes, 1994).

Nesse sentido, o meio ambiente é antes vistocomo uma construção social: ele não é nem umbem pré-existente, nem um patrimônio a-histórico,nem uma entidade dotada de uma essência a-temporal. O meio ambiente é uma naturezatrabalhada pela política: é um produto da história.A tradução da representação em problema políticopode ser compreendida como uma atividade que

desaparecido de forma definitiva; o patriotismo de paró-quia se tornará um arcaísmo que não poderá mais serrestaurado (Durkheim apud Haesbaert, 2006, p.23). Issonão quer dizer que as circunstâncias territoriais fixasestão predeterminadas a desaparecer completamente dapolítica contemporânea, tendo em conta que as institui-ções antigas não desaparecem do dia para a noite frenteàs novas agências que surgem. O antigo sempre deixaseus vestígios. Entretanto, a organização política e soci-al, de fundamento territorial e espacial exclusivo, coe-xiste com novas formas e conteúdos de reterritorialização,notadamente aquelas relativas às solidariedadestransnacionais em torno da ecologia política.

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compõe a agenda (agenda setting); pode ocorrerpor meio da prática da mídia e do setor privado,da ação político-administrativa, ou por meio daação associativa e cidadã, revelando, assim, ocaráter intersetorial e pluridimensional da ecologia.A democratização do conhecimento dos problemasdo meio ambiente e das escolhas econômicas,tecnológicas e sociais que surgem desse processonos guiam pouco a pouco para a constituição deum público mais ampliado, indispensável para aconcretização de soluções democráticas para osproblemas ecológicos.

Sem dúvida alguma, o meio ambiente integra,então, o espaço público de discussão internacionallatino-americano. Pelo viés das solidariedadestransnacionais, os movimentos e redes ecologistassão novos atores políticos que promovem umadesconstrução da exclusividade da cidadanianacional, ao projetar os fundamentos de uma idéiade “cidadania planetária” (Morin; Kern, 1993).Ademais, os movimentos sociais podemreconfigurar suas identidades e integrar valores daecologia política, como no caso dos seringueirosda Amazônia brasileira que, segundo PortoGonçalves (2001, p.213), transitam da identidadeeconômica de profissionais da exploração daborracha a outra, de cunho político e sociocultural,de protetores dos interesses da floresta.

CONCLUSÃO

O campo do ambientalismo coloca para aação política, na América Latina, a necessidade desuperar pelo menos três dilemas: entre soberaniae interdependência, entre globalização neoliberal epromoção dos bens comuns, assim como o dilemaentre os interesses locais/nacionais particulares eos interesses regionais/supranacionais coletivos.Parafraseando Badie (1995), a problemáticaambiental põe em evidência a hipótese da “sobera-nia perdida”, vez que impõe o princípio de res-ponsabilidade na ação política transnacional. Aotrazer esse princípio ético e político para o planodas relações internacionais, é importante ter em

conta o Estado e seu sistema interestatal, mas, prin-cipalmente, é fundamental levar em consideraçãoas autoridades superpostas (Mercado, agências in-ternacionais e Estados), as lealdades múltiplas e anoção de soberania condicionada (pelo capital e pelapolítica da natureza). Se, na modernidade, as co-munidades de pertencimento (a topofilia da políti-ca) se desenvolveram em torno do Estado, o campodo ambientalismo renovado nas redes anti-alterglobalistas mostra que novas comunidades deconsciência se desenvolvem externamente às con-tradições estatais, sem levar sempre e exclusiva-mente em conta as fronteiras do Estado e as nacio-nalidades. Para que a esfera pública, originalmen-te conceituada de forma co-extensiva à comunida-de política soberana estatal, seja re-politizada e façasentido para os cidadãos (permitindo, uma vezmais, questionamentos sobre igualdade, paridade,reconhecimento, inclusão e participação), é neces-sário conceber a formação das opiniões públicas ea constituição de interlocutores políticos para alémdos limites e dos parâmetros de Westphalia, cons-tituindo o que Nancy Fraser denomina de “mode-lo pós-Westpaliano de soberania desagregada”(Fraser, 2007, p. 55). Enfim, retomando Rosenau(1992) e sua noção de um “mundo multicentrado”,os transnacionalismos engendrados pela crise eco-lógica na América Latina ganham forma graças, tam-bém, à ação dos indivíduos mais informados e commaior aptidão para agir no mundo da políticamundial – os skillfull individuals de JamesRosenau. Os sujeitos, na modernidade avançada,têm uma base de lealdade que é igualmenteterritorializada (são cidadãos de um Estado), mascolocam em cena múltiplas formas de solidarieda-de e afiliação política que lhes permitem umareterritorialização na qualidade de ecologistas edefensores de um ideal de cidadania planetária.

(Recebido para publicação em junho de 2008)(Aceito em agosto de 2008)

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