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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011 29 Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE: uma etnografia das experiências de caminhada ecológica em um grupo de ecoturistas 1 Carlos Alberto Steil * Rodrigo Toniol ** O presente trabalho tem como objeto de estudo a experiência dos ecocaminhantes, um grupo de praticantes de caminhadas ecológicas que, apostando no cultivo de um bem-estar físico, mental e espiritual, realiza caminhadas em meio à natureza. A partir da etnografia da experi- ência dos caminhantes, procura-se investigar a vivência das trilhas como lugares repletos de forças restauradoras, fluidos energéticos para saúde do corpo e da alma. Com base no esforço teórico de uma proposta que pretende, sobretudo, traduzir a fenomenologia para o campo antropológico e, assim, colapsar dicotomias como mente e corpo, natureza e cultura, sujeito e objeto, busca-se refletir sobre o caráter terapêutico das caminhadas, compreendidas pelos caminhantes não apenas como exercícios físicos, mas também como uma via de acesso às questões relativas à alma. PALAVRAS-CHAVE: ecoturismo, nova era, corporeidade, corpo, caminhadas ecológicas DOSSIÊ INTRODUÇÃO Esta é uma etnografia sobre a experiência de caminhadas em um grupo de ecoturistas: o Ecocaminhantes, uma empresa de turismo ecológi- co que promove trilhas em meio à natureza. Procura- mos identificar, na pesquisa, os pontos de conver- gência entre práticas ecológicas, de saúde e de espiritualidade voltadas para o aperfeiçoamento de si. O que está em jogo é apresentar, a partir da expe- riência etnográfica das caminhadas, atravessamentos que compõem uma complexa trama de interesses, motivações, sentimentos e sensações próprias do ato de caminhar no contexto das peregrinações con- temporâneas junto à natureza. Alinhados com a proposta do paradigma da corporeidade de Thomas Csordas (2008), pro- curamos compor a narrativa etnográfica tomando como ponto de partida as experiências daqueles que caminham nas condições de sujeitos urbanos, escolarizados, religiosos ou não, defensores da causa ecológica ou indiferentes a ela. Trata-se, en- fim, de explorar como as experiências da paisa- gem, do ambiente e do lugar em que se caminha estão articuladas com as práticas e pertencimentos cotidianos dos caminhantes. Assim, procuramos privilegiar a polifonia das experiências do cami- nhar, afastando-nos da imagem de uma caravana que se desloca em uma mesma direção, tanto obje- tiva como simbólicamente, e aproximando-nos de um olhar que enfoca essa prática como uma arena de disputas capaz de acolher tensões entre dife- rentes discursos, enunciados e sentidos. A possibilidade de se estabelecer uma * Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universi- dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Antropologia. Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43311, Sala 104A -Agronomia. Cep: 91509-900 - Porto Alegre, RS - Brasil. [email protected] ** Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). [email protected] 1 Este artigo decorre da contribuição de Rodrigo Toniol ao projeto “O cultivo de Si nas paisgens da ecologia e do sagrado”, coordenado por Carlos Alberto Steil e Isabel Carvalho (PUC-RS) e financiado pelo CNPq. Ao longo do texto, a flexão verbal varia entre a primeira e a terceira pessoa, por conta da participação de Carlos Alberto Steil em apenas algumas das experiências de campo e entre- vistas citadas, enquanto Rodrigo Toniol participou de todas as idas a campo e entrevistas. Assim, a primeira pessoa do singular, usada no texto, refere-se sempre à experiência de Rodrigo Toniol.

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Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE: uma etnografia dasexperiências de caminhada ecológica em um grupo de

ecoturist as1

Carlos Alberto Steil*

Rodrigo Toniol**

O presente trabalho tem como objeto de estudo a experiência dos ecocaminhantes, um grupode praticantes de caminhadas ecológicas que, apostando no cultivo de um bem-estar físico,mental e espiritual, realiza caminhadas em meio à natureza. A partir da etnografia da experi-ência dos caminhantes, procura-se investigar a vivência das trilhas como lugares repletos deforças restauradoras, fluidos energéticos para saúde do corpo e da alma. Com base no esforçoteórico de uma proposta que pretende, sobretudo, traduzir a fenomenologia para o campoantropológico e, assim, colapsar dicotomias como mente e corpo, natureza e cultura, sujeito eobjeto, busca-se refletir sobre o caráter terapêutico das caminhadas, compreendidas peloscaminhantes não apenas como exercícios físicos, mas também como uma via de acesso àsquestões relativas à alma.PALAVRAS-CHAVE: ecoturismo, nova era, corporeidade, corpo, caminhadas ecológicas

DO

SS

INTRODUÇÃO

Esta é uma etnografia sobre a experiência decaminhadas em um grupo de ecoturistas: oEcocaminhantes, uma empresa de turismo ecológi-co que promove trilhas em meio à natureza. Procura-mos identificar, na pesquisa, os pontos de conver-gência entre práticas ecológicas, de saúde e deespiritualidade voltadas para o aperfeiçoamento desi. O que está em jogo é apresentar, a partir da expe-

riência etnográfica das caminhadas, atravessamentosque compõem uma complexa trama de interesses,motivações, sentimentos e sensações próprias doato de caminhar no contexto das peregrinações con-temporâneas junto à natureza.

Alinhados com a proposta do paradigmada corporeidade de Thomas Csordas (2008), pro-curamos compor a narrativa etnográfica tomandocomo ponto de partida as experiências daquelesque caminham nas condições de sujeitos urbanos,escolarizados, religiosos ou não, defensores dacausa ecológica ou indiferentes a ela. Trata-se, en-fim, de explorar como as experiências da paisa-gem, do ambiente e do lugar em que se caminhaestão articuladas com as práticas e pertencimentoscotidianos dos caminhantes. Assim, procuramosprivilegiar a polifonia das experiências do cami-nhar, afastando-nos da imagem de uma caravanaque se desloca em uma mesma direção, tanto obje-tiva como simbólicamente, e aproximando-nos deum olhar que enfoca essa prática como uma arenade disputas capaz de acolher tensões entre dife-rentes discursos, enunciados e sentidos.

A possibilidade de se estabelecer uma

* Doutor em Antropologia Social. Professor do Programade Pós-Graduação em Antropologia Social da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamentode Antropologia. Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio43311, Sala 104A -Agronomia. Cep: 91509-900 - PortoAlegre, RS - Brasil. [email protected]

** Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul (UFRGS). [email protected]

1 Este artigo decorre da contribuição de Rodrigo Toniol aoprojeto “O cultivo de Si nas paisgens da ecologia e dosagrado”, coordenado por Carlos Alberto Steil e IsabelCarvalho (PUC-RS) e financiado pelo CNPq. Ao longodo texto, a flexão verbal varia entre a primeira e a terceirapessoa, por conta da participação de Carlos Alberto Steilem apenas algumas das experiências de campo e entre-vistas citadas, enquanto Rodrigo Toniol participou detodas as idas a campo e entrevistas. Assim, a primeirapessoa do singular, usada no texto, refere-se sempre àexperiência de Rodrigo Toniol.

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interface entre espiritualidade, ecologia e aperfei-çoamento de si, a partir de práticas que assumemcomo central a busca por uma vida saudável,sedimenta-se numa série de trabalhos (Carvalho,2002; Carvalho; Steil, 2008; Magnani, 1999; Soa-res, 1994) que apontam para certa reordenação dopanorama religioso que teria transformado, em al-guns contextos, a relação com o sagrado. Algunsautores têm sugerido que determinadas atitudesresponsáveis em relação ao meio ambiente têmconformado uma espécie de ascese ecológica,indicativa da incorporação de sistemas de crençasreligiosas por parte de sujeitos e grupos ecologica-mente orientados que, ao fim e ao cabo, terminampor promover uma espécie de sacralização da na-tureza. Um modelo analítico para se pensar expe-riências religiosas na natureza é o sugerido porCampbell (1997), que compreende esse processocomo fruto do “espírito de um tempo”, caracteriza-do, sobretudo, pela substituição do paradigma cul-tural e da teodiceia que tem sustentado as práticas econcepções ocidentais por um paradigma quecomumente caracterizou o Oriente, o qual o autordenomina como “orientalização do Ocidente”. O queé central nessa transformação é o deslocamento danoção ocidental de religião – tradicionalmente con-cebida como transcendente – para a de imanência,característica de concepções orientais.

Uma das consequências da “orientalização”é a mudança no espaço ocupado por Deus, quedeixa de ser situado em um plano fora do mundoe passa, aos poucos, a habitar “no mundo”, tor-nando-se acessível por meio de experiências parti-culares de caráter místico e energético, fruto, espe-cialmente, de um maior contato com a natureza.Refletir sobre essa mudança é, basicamente, reali-zar um esforço para compreender como acentralidade do sagrado foi dando lugar a umaexperiência de sacralidade mais difusa, que tem anatureza como espaço privilegiado de manifesta-ção (Carvalho; Steil, 2008). Em certa medida, é essedeslocamento do transcendente para o imanenteque possibilita aos sujeitos conceberem a naturezacomo o lugar privilegiado do sagrado.

Essa centralidade atribuída ao sagrado ima-

nente incorpora outra característica da moderni-dade religiosa que, segundo Hervieu-Léger (2008),nos remete à autonomia do indivíduo em com-por seu próprio sistema de crenças.2 Essas ca-racterísticas – da imanência e da autonomia –permitem-nos situar a experiência religiosa noplano da experiência pessoal dos sujeitos, que setornam o parâmetro de certificação da verdade.Ou seja, a certificação da verdade afasta-se dasnormalizações institucionalizadas e passa a seratestada pelo próprio indivíduo – configurandoo que temos denominado como religiões do self(Steil, 1999, 2004, 2006). Nesses contextos, asexperiências dos sujeitos são os próprios princí-pios geradores de autenticidade da relação quese estabelece com o sagrado (Hervieu-Léger,1993, 2008). Pretendemos, assim, sugerir que amodernidade secular, governada em sua base pelarazão científica e técnica, ao mesmo tempo emque imprimiu uma marca a-religiosa no funcio-namento da sociedade, também permitiu a emer-gência de uma verdadeira nuvem de novas cren-ças que encontram, nos corpos que se conectamcom a natureza por meio de caminhadas, um deseus pontos de ancoragem.

Desse modo, sugerimos que as relaçõescom o sagrado, vividas pelos sujeitos de nossapesquisa, estão implicadas com as noções deum corpo saudável para os caminhantes. Aoque parece, diferentemente da experiência dosperegrinos tradicionais, que usavam seus cor-pos penitentes como instrumentos de perdão esalvação para transcender este mundo, os ca-minhantes que acompanhamos compreendemseus corpos como o lugar privilegiado de cone-xão com o mundo e principal meio de aperfei-çoamento de si. Por outro lado, se, nas peregri-nações tradicionais, a busca da saúde física éuma dádiva divina, que pode ser concedida den-tro de um regime de reciprocidade entre sereshumanos e divinos, para os ecocaminhantes,alcançar o bem estar físico e a saúde é uma

2 As religiões afro-brasileiras, por exemplo, apesar de con-siderarem os Orixás como entidades imanentes, não são,a princípio, religiões que compõem esse novo quadro decrenças que procuramos descrever.

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responsabilidade dos sujeitos humanos, quebuscam se integrar num todo hamonioso queaponta para a superação das divisões entre cor-po e alma, natureza e cultura.

Ao longo de um ano e meio de trabalho decampo – iniciado em fevereiro de 2008 e finaliza-do em novembro de 2009 –, realizei dez caminha-das, participei de diversas reuniões dedicadas aelaborar roteiros, confraternizações para recebercaminhantes regressos de longas viagens e festasde despedidas.3 Pude eu mesmo, depois de mui-tos desconfortos musculares, desânimos e frustra-ções traduzidas na minha incapacidade física emrealizar mais que uma caminhada por mês, con-frontar-me com o meu próprio corpo, com os limi-tes físicos que ele me impunha e, com isso, apro-ximar-me da prática de caminhadas a partir da re-flexão sobre o modo pelo qual minhas própriasexperiências corporais foram sendo padronizadasnaquela prática. Para pesquisar caminhantes, fuiconvocado a caminhar, a engajar meu corpo na-quele contexto etnográfico e concebê-lo não ape-nas como objeto para reflexão, mas também comoinstrumento analítico. No que diz respeito à pro-dução da narrativa etnográfica, isso implica exportambém minhas próprias experiências, expectati-vas e sensibilidades ao caminhar. Foi somente as-sim que pude tomar o corpo como diretrizmetodológica deste trabalho, concebendo-o “nãocomo um objeto que é bom para pensar, mas comoum sujeito que é necessário para ser” (Csordas,2008, p. 367).

Realizar caminhadas com os ecocaminhantesnão apenas conduziram-nos a cultivar hábitos rela-cionados ao condicionamento físico, como tambéma nos inteirar de um vasto repertório de destinosfrequentemente percorridos por esses sujeitos. Ti-vemos de estudar os destinos mais comuns de ca-minhadas, para conversar com nossos interlocutoressobre os trajetos mais bonitos, os mais longos, osmais difíceis. Passamos a participar de listas de dis-

cussões na Internet, em que as pessoas divulgamseus roteiros, discutem sobre o peso ideal da mo-chila, o calçado mais adequado, as novidadestecnológicas para caminhantes, etc.4 A caminhadadeixou de ser experienciada como um evento pon-tual e isolado, sendo incorporada ao nosso cotidi-ano.

PEREGRINAÇÕES, CAMINHO DE SANTIAGO ENOVA ERA NAS CAMINHADAS ECOLÓGICAS

Embora o foco de interesse empírico deste tra-balho não seja o de eventos de peregrinação, os des-locamentos analisados relacionam-se, de algum modo,com tal fenômeno e com o próprio movimento turís-tico (Graburn, 1989; Steil, 1996). Do ponto de vistahistórico, a formação do Ecocaminhantes deu-se,justamente, com o rompimento dos três sócios daempresa com outro grupo de caminhadas, a Asso-

ciação dos Amigos do Caminho de Santiago

(ACASARGS).5 Ademais, a referência ao Caminhode Santiago é constante nas falas e imagens acio-nadas pelos caminhantes quando descrevem suasexperiências de espiritualidade nas paisagens danatureza. No verbete que escrevemos para o Dicio-nário Brasileiro de Teologia, já oferecemos algu-mas pistas dessa possível relação:

Na condição da pós-modernidade, as peregrina-ções têm adquirido um novo impulso que vemtanto da revalorização de tradições pré-cristãs(europeia, orientais e indígenas) quanto da emer-gência das religiões do self, que vão enfatizar adimensão da experiência pessoal e a imanênciado sagrado na paisagem e na natureza. Valorescomo o cuidado do corpo, a ecologia, o sujeitopsicológico como referência primeira para avivência da fé têm encontrado nas peregrinaçõesuma estrutura e um modelo ritual para se expres-sarem (Steil, 2008, p.784).

3 Como foi explicitado no início deste artigo, o parágrafoque segue retrata a experiência de Rodrigo, que realizoutodas as caminhadas. A reflexão metodológica quepermeia a narrativa na primeira pessoa foi realizada pelosdois autores do artigo.

4 Recebia notícias e participava das discussões, especial-mente em duas listas de e-mails sobre caminhadas: [email protected] [email protected].

5 Trata-se de uma organização sem fins lucrativos quevisa a promover e conservar o Caminho de Santiago deCompostela em percursos de caminhadas que reprodu-zem, no interior do Rio Grande do Sul, as dificuldades eas distâncias diárias percorridas no Caminho espanhol.

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Na sua raiz etimológica, o termo “peregrina-ção” deriva do vocábulo latino peregrinus, que sig-nifica “o estrangeiro, aquele que vive alhures e quenão pertence à sociedade autóctone estabelecida,ou seja, é aquele que percorreu um espaço e, nes-se espaço, encontra o outro” (Dupront, 1987). Talacepção aponta, portanto, para o encontro com “ooutro” como indicativo de um duplo aspecto. Porum lado, esse encontro remete às dificuldadesobjetivas da jornada empreendia pelo peregrinoque, ao percorrer lugares desconhecidos e enfren-tar as adversidades do caminho, termina por im-primir, nessa viagem, características de uma jorna-da heróica. E, por outro, refere-se ao ato de trans-formação de si, alcançado por meio de um deslo-camento do “eu” em busca do “Outro”, constitu-indo um percurso interior, de cunho místico eascético, a ser realizado por aquele que peregrina.

Nancy Frey, em Pilgrim Stories: on and off the

road to Santiago (1998), mostra como a peregrinaçãose inicia num período anterior à ida efetiva do pere-grino a Santiago. O movimento físico no Caminho éantecipado por uma espécie de movimento internoque convoca o peregrino a refletir sobre si, colocarem xeque seus “apegos”, obrigando-o a decidir, porexemplo, o que levará na mochila durante os longosdias de caminhada. Essa convocação ao “desapego”se apresenta aos sujeitos como um exercício não-habitual, contrastivo com sua vida cotidiana. A utili-zação desse recurso, que coloca em relevo oposiçõescomo cotidiano e não-cotidiano, trabalho e não-tra-balho, ordinário e extraoridinário, para analisar e des-crever práticas turísticas – sejam elas religiosas ounão –, tem sido frequente entre os pesquisadoresdesses fenômenos (Smith, 1989; Graburn, 1989; Urry,1996).

Embora o “desapego” e a “viagem ao interi-or de si” possam ser vistas como característicasmarcantes das peregrinações cristãs, os sentidosque elas assumem, na experiência dos atuais pere-grinos do Caminho de Santiago, apontam para astransformações pelas quais passa a religião na soci-edade moderna. A permanência de certas caracte-rísticas das peregrinações cristãs – uma jornadapenitencial, que encontra seu ápice no encontro

com uma divindade que habita o santuário – con-trasta com a busca mística de si, como uma jorna-da de santificação que encontra seu ponto de che-gada no reconhecimento de uma divindade que semanifesta no interior de cada peregrino.

A FORMAÇÃO DO ECOCAMINHANTES

Desde 1994, segundo dados da OMT (Or-ganização Mundial do Turismo),6 o ecoturismo temum crescimento constante de 20% ao ano em todoo mundo. Apesar de escassos, os indicadores so-bre esse segmento do turismo no Brasil tambémapontam para um aumento no número de agênci-as, operadoras e grupos especializados em ofere-cer atividades de turismo e de lazer em meio ànatureza. Sob certo aspecto, esse aumento foi im-pulsionado, nos últimos quinze anos, pela cria-ção de unidades de conservação ambiental oumesmo pelas adaptações infraestruturais em algu-mas cidades que se tornaram conhecidos sítios deecoturismo.7 Ademais, as atividades propostas sediversificaram e, assim, determinadas parcelas dapopulação, como a terceira idade, que até entãoestavam fora do alcance desse mercado, tornaram-se ecoturistas em potencial. Conforme aEMBRATUR (Empresa Brasileira de Turismo),8 ascaminhadas na natureza passaram a ser uma daspráticas mais procuradas do ramo, contribuindopara um salto na geração de recursos desse seg-mento, que passou de R$ 2,2 bilhões em 1994 parapouco mais de R$ 15 bilhões em 2007.9

No entanto, o aumento na procura poresse tipo de atividade, que impulsiona os inves-timentos no setor, acompanha a lógica de trans-formações históricas nas relações entre huma-nos e natureza que, repletas de disputas e confli-

6 Fonte: www.unwto.org/index.php (consultado em 08/05/2009).

7 Apenas para citar alguns que buscaram atender às de-mandas do ecoturismo: Bauru (SP), Bonito (MT) e TrêsCoroas (RS).

8 Fonte: www.turismo.gov.br/turismo/home.html (con-sultado em 08/05/2009)

9 Fonte: www.turismo.gov.br/ (consultado em 08/05/2009).

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tos, promoveram, especialmente a partir da déca-da de 1970, a expansão de certo ideário ecológico(Carvalho, 2002; Thomas, 2010). Os movimentosalinhados com a contracultura foram importantesnesse processo de contestação das perspectivas quetomavam a natureza como manancial de recursospara uso humano e passaram a concebê-la comoespaço privilegiado para a harmonização da vidacotidiana, contribuindo, assim, para a expansãode determinadas sensibilidades relacionadas aomeio ambiente.10

O grupo Ecocaminhantes consolidou-secomo uma das principais empresas de trilhas eco-lógicas do Rio Grande do Sul, mantendo uma agen-da de atividades com a média de duas caminha-das por mês. Os destinos e a duração dessas ativi-dades são variados, podendo acontecer ao longode um único dia, em cidades do entorno de PortoAlegre, durante um final de semana ou feriado,em localidades mais distantes da capital gaúcha,como São José dos Ausentes (RS), ou ainda, po-dem ser caminhadas com mais de uma semana deduração, em outros estados e países, tais como:Chapada Diamantina (BA), Deserto do Atacama (Chi-le), Aconcágua (Argentina) e diversos parques naÁfrica do Sul. Para cada uma dessas atividades,constituem-se grupos com cerca trinta pessoas,sendo a maioria formada por mulheres com ensi-no superior, idade entre trinta e cinquenta anos,solteiras e residentes em grandes cidades.11 Fun-dada e administrada por três amigos que também

são praticantes de caminhadas, a Ecocaminhantes

presta um serviço profissionalizado, em que ocontato dos clientes com a empresa é feito ape-nas virtualmente – desde a inscrição para parti-cipação nas caminhadas até os trâmites bancári-os – por meio de um website.12

Ao constituir-se como uma empresa deecoturismo, a Ecocaminhantes passou a operar emuma faixa de preço que varia entre duzentos ecinquenta e trezentos e cinquenta reais para umacaminhada de um final de semana. Ainda que osdestinos sejam variados, essas atividades podemser descritas como de médias distâncias,13 percor-ridas em trilhas com mata fechada ou em extensosdescampados, como os campos localizados na ser-ra gaúcha e regiões litorâneas pouco habitadas.Esses grupos não passam de trinta pessoas e sãosempre orientados por guias que os auxiliam aolongo do trajeto.

No que diz respeito à formação daEcocaminhantes, ela se deu, justamente, a partirda discordância com alguns membros daACASARGS com relação, por exemplo, aos rotei-ros de caminhadas, ao caráter turístico e ao enfoquereligioso de suas atividades. A partir de então, trêsparticipantes da ACASARGS começaram a orga-nizar suas próprias caminhadas, deixando de pri-vilegiar estradas rurais parecidas com o Caminhode Santiago e passando a ter, como foco, trilhas nanatureza. Nesse sentido, pensar a própria consti-tuição da Ecocaminhantes pode fornecer uma cha-ve interpretativa para não somente situar a dimen-são religiosa do campo ecológico, como tambémpara compreender as próprias transformações docampo religioso em direção a um movimento queaponta para a natureza como lugar do sagrado.

Assim, se, por um lado, a ACASARGS cons-titui-se como um grupo de caminhadas de orienta-ção, a priori, religiosa, na qual o Caminho de Santia-go de Compostela é uma das principais referênciaspara seus integrantes, por outro, a Ecocaminhantesapresenta-se como um grupo que realiza trilhas

10 A expansão de determinado ideário ecológico, a partir dasegunda metade do século XX, esteve atrelada a um con-junto de movimentos contraculturais, que reconhece-ram nas questões ambientais uma via de acesso às críti-cas antimodernas por eles produzidas. Na esteira de al-guns analistas do campo ambiental (Ferry, 1994; Carva-lho 2002, 2009), pode-se situar o romantismo comouma importante fonte de produção da sensibilidade eco-lógica, bem como de um tipo de engajamento políticopor ela promovida. Conforme sugerem tais autores, arecusa às normatizações do fazer político, a valorizaçãodo self, da autoconscientização como ação transformadorae da politização do cotidiano individual são alguns doselementos que caracterizam esse legado romântico napostura política ecológica. Essa perspectiva histórica, quesitua o romantismo como balizador da emergência dedeterminada postura ecológica, pode ser tencionada apartir de textos que pontuam o projeto normatizadorcom raízes iluministas, que deram visibilidade às ques-tões ambientais (Baubéro, 2001; Ribeiro 1992)

11 Esses dados foram fornecidos pela empresaEcocaminhantes e estão publicados em Manieri (2008).

12 www.ecocaminhantes.com.br13 As caminhadas têm em média 10 a 15 km.

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ecológicas, pontuando, entre os objetivos de suasatividades:

Organizar e promover caminhadas que permi-tam a integração entre os caminhantes e o meioambiente; buscar percursos variados, onde o con-tato com a natureza esteja presente; incentivar econscientizar sobre a importância de nossoecossistema, despertando, assim, uma consciên-cia ecológica.14

Ao narrar os motivos que levaram Daniel, umdos fundadores da Ecocaminhantes e antigo respon-sável pela elaboração dos roteiros de caminhadas daACASARGS, a deixar o grupo de peregrinos, Ana,também sócia da Ecocaminhantes, aponta:

Ele [Daniel] queria oferecer mais para as pesso-as. Por exemplo, aquela coisa de a gente ir atrásde patrocínio, de poder dar lanche, de oferecercoisas melhores, de não pegar um ônibus comumda prefeitura, de dar um ônibus mais legal, decomer num lugar melhor. Ele queria outro pú-blico e poder fazer trilha que o pessoal da Asso-ciação não faz... Eles fazem caminho emestradinha rural. Sei lá, longos, mas fáceis. (Ana)

A fala de Ana nos auxilia a depreender doiselementos importantes que consolidam alguns dosprincipais aspectos das experiências que estão emjogo nas caminhadas: o perfil de quem caminha ea paisagem em meio da qual se caminha.

QUEM SÃO OS ECOCAMINHANTES?

Embora diversas, as principais motivaçõesque levaram os caminhantes a iniciarem a práticade caminhadas estão, na maioria das vezes, relaci-onadas com alguma ruptura, com alguma transfor-mação na vida desses sujeitos. A caminhada apa-rece, nesses casos, como uma espécie dedemarcador dessas mudanças. Vinícius, um ad-vogado paulista de 39 anos, que vem a Porto Ale-gre (RS) todos os meses para caminhar com aEcocaminhantes, afirma:

Quando era mais novo, eu caminhava, mas aí,por causa de rumos que a vida tomou, tive queparar. Agora faz três anos que me separei e tiveum grave problema de saúde e então fiz umareorientação de minha vida e a primeira coisaque fiz foi voltar a caminhar. (Vinícius)

Gilberto, outro ecocaminhante, conta que co-meçou a caminhar depois de uma mudança em suavida profissional e de uma separação conturbada:

Eu tinha uma empresa familiar, um hotel. Eraum hotel médio, tinha 70 apartamentos, mas agente ficava muito ligado e eu acho que foi nomês seguinte que terminou o hotel que eu penseiassim: eu quero me dar um presente, quero medar uma coisa prazerosa. Eu não gosto do verão,quero ir pra um lugar frio. E ai alguém comen-tou: tu não queres ir para a Patagônia caminhar?Como também tinha acabado de me separar, de-cidi ir, pra mudar de vez. (Gilberto)

Juliana, uma professora de inglês aposenta-da, já fez o Caminho de Santiago duas vezes, alémde ter sido hospitaleira15 em um albergue em Nájera,na Espanha. Ela também participou de um cursointernacional sobre o Caminho na Universidadede Santiago de Compostela, é membro do conse-lho fiscal da ACASARGS e também participanteda Ecocaminhantes. Em entrevista, conta que co-meçou a caminhar após uma depressão psíquica.

Eu tive uma vez um problema de depressão e achoque, com isso, eu comecei a me antenar com essacoisa de caminhada, mais contato com a naturezae viver uma vida mais saudável. (Juliana)

Se, ao que parece, o início da caminhada dá-se, para alguns, a partir de momentos de transfor-mação de determinados estados, a confirmação dessamudança – narram os próprios caminhantes – ocorrepor meio da manutenção da prática da caminhada.“Caminho porque gosto, agora faz parte de mim eme lembra quem sou”, diz Vinícius. É assim que aprática da caminhada torna-se uma constante navida desses sujeitos e deixa de estar restrita apenasàs atividades promovidas por empresas deecoturismo e associações de peregrinos, passando a

14 Fonte: www.ecocaminhantes.com.br (consultado em28/10/2009).

15 Hospitaleiros são voluntários que trabalham nos alberguesespalhados ao longo do Caminho de Santiago, recepcionandoe acomodando os peregrinos que chegam.

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ser planejada por pequenos grupos que se formam afim de realizar caminhadas pelo interior do Estado oumesmo grandes atividades para o exterior. As falas deGilberto, participante da Ecocaminhantes há quatroanos, e de Juliana, participante da ACASARGS e daEcocaminhantes, nos dão a dimensão de algumasdessas caminhadas:

Então, daí começou a aparecer muitos passeiostipo esses da Ecocaminhantes de final de semanae, normalmente, coisas no interior do estado. E foimuito legal. Eu acho que a maioria desses passei-os eu já fiz. Aquilo ali vai numa progressão [...]. Noano passado, por exemplo, a gente foi pra Tanzânia,fomos subir o Kilimanjaro, mas aí a gente come-çou a fazer as coisas por conta, porque fica muitomais barato [...]. A gente fazia assim: um procurapassagem, outro roteiro... (Gilberto)

A Ecocaminhantes, para um dia só, eu acho queeles estão ficando caros. E eu tenho um grupo deamigos que a gente se reúne e faz caminhadasem Morro Reuter, numa caminhada da prefeitu-ra de lá que tu pagas a alimentação e o resto é degraça, pagas uma taxinha para uma camiseta,uma coisa assim. Quer dizer, tu gastas trinta re-ais e ficas dois dias caminhando. Convives comum monte de gente. E também tem uma turmade Taquara que estão sempre organizando cami-nhadas e são pessoas muito queridas, eu cami-nhei com eles em Ivoti. Então é assim, junta ogrupo e tu passas um fim de semana legal e bara-to. A gente começa a formar os nossos própriosgrupos de caminhadas por afinidades. (Juliana)

A CONSTITUIÇÃO DE CIRCUITOS DE CAMI-NHADAS

Tanto entre os peregrinos quanto entre osecocaminhantes, a prática de caminhadas é umaconstante e não está restrita às atividades promo-vidas pelos respectivos grupos. Ao que parece, háum circuito de atividades no qual os caminhantesestão inseridos. No entanto, ainda que seja possí-vel estabelecer distinções entre essas práticas e seuspraticantes, o que nos interessa não são tanto asdiferenças entre elas, mas sim o que permite a for-mação desse conjunto. Isto é, aquilo que amálgamaessas atividades e que possibilita aos sujeitos emquestão pertencerem, com aparente facilidade, amúltiplos grupos. Seguir os caminhantes nas suasnarrativas acerca dos grupos com os quais

interagiram para chegar seja à Ecocaminhantes, sejaà ACASARGS, oferece-nos algumas pistas sobreos contornos desse circuito (Toniol; Steil, 2010).

Gilberto narra o início de sua prática de ca-minhadas a partir do contato com outra empresa decaminhadas ecológicas, chamada Rota Alternativa,16

com a qual fez sua primeira caminhada na Patagônia.

Acho que a Rota foi precursora da Ecocaminhantes[...]. E aí eu comecei justamente no programa topdeles [referindo-se à Patagônia]. Os proprietáriossão o Nelson e a esposa dele. Eu também era cli-ente deles, mas agora viramos amigos, agora agente faz passeios “extra Rota”, faz passeios porconta. A gente até está indo no mês que vem parao Vale do Pati [...]. Daí eu acabei conhecendo umpessoal que já tinha caminhado com a Eco e en-tão fui caminhar com eles também. (Gilberto)

Ana fez sua primeira caminhada com aACASARGS, a partir do convite de uma amiga, masreconstrói essa trajetória apontando uma espécie depredisposição hereditária para as aventuras.

Primeiro, o que eu posso dizer é que eu não tinhao hábito da caminhada. Nunca tive, aliás, eu sem-pre tive um hábito, uma vida meio sedentária.Ginástica sempre fiz por obrigação, por saúde, eutinha que fazer, para fazer alguma coisa mas eununca tive essa coisa de ginástica em si. Gostavade esportes e tal, sempre gostei muito do mar, des-sas atividades onde vai todo mundo. Sempre gos-tei de umas coisas meio diferentes e acho que issoé de família, tenho dois irmãos velejadores, um émontanhista. Então, todo mundo é meio ligado ànatureza. Comecei sem querer a fazer caminhadasporque uma amiga minha namorava um rapaz queera o presidente, na época, da Associação do Ca-minho de Santiago de Compostela, muito amigaminha. E eles sempre organizavam as caminha-das e sempre me convidavam: vai, vai. Mas eu nãotinha vontade, porque eu visualizava aquela coisade caminho de Santiago, peregrinação, que nãotinha nada a ver comigo: não vou, não vou, nãovou. Daí um dia ela disse: vem me ajudar. Porqueera uma caminhada que tinha muita gente, era emTorres e eu: tá, então vou pra te ajudar. Daí fuicaminhar e lá eu conheci o Daniel. Já na primeiracaminhada. (Ana)

Ao sugerir essa herança familiar como possi-bilidade explicativa de sua identificação com a prá-tica de caminhadas na natureza, a fala de Ana adquire

16 Atualmente, essa empresa promove apenas caminhadasinternacionais.

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similitudes às narrativas de uma conversão religiosa,em que uma predisposição já manifesta nos irmãosiria, um dia, manifestar-se nela também.

Fábio, primeiro, tomou contato com oAnamastê.17 Após uma passagem por esse grupo,passou a frequentar as atividades da Biodança18 e,por meio de alguns amigos da Biodança, com quemplaneja fazer o Caminho de Santiago em 2010, co-nheceu a Ecocaminhantes.

Faz seis meses que comecei a caminhar com osEco e já fiz caminhadas lá no morro Reuter, de-pois fui pra Florianópolis, Malacara, Praia Gran-de, Lagoa do Peixe e passei o ano novo com elesno Aconcágua. Mas tudo começou com um ami-go meu do teatro, na verdade, um grupo que colo-cava muitos exercícios de preparação de ator nacoisa da bioenergética que eles tinham aprendi-do lá no Anamastê, aí eu fiquei curioso. Aí eu fuilá e fiz seis aulas, eu não fiz as duas últimas. Fizum trabalho fortíssimo e decidi me poupar. Otrabalho de bioenergética é um trabalho forte,que ativa emoções que tu não conheces. Depois,conheci o pessoal da Biodança e aí fiz muitostrabalhos com eles. Neste ano, agora, vou para aNoruega e ano que vem para Santiago. É que opessoal lá da Biodança tem um lado deespiritualidade forte, na coisa do desapego. Euacho que essa coisa das caminhadas tem um lan-ce inconsciente do desapego. O fato de tu sairesda tua rotina e teres desapego à rotina, ao confor-to... Aí acho que pega a todos [esses grupos]. Mes-mo aqueles que não sabem o que éespiritualidade. Acho que a questão do desapegoestá presente em todos [os grupos]. AEcocaminhantes pode ter uma intenção pedagó-gica na parte da ecologia. Eles explicam algu-mas coisas sobre ecoturismo. Eles fizeram umaformação de ecoturismo... Então ali acho que háuma intenção pedagógica, mas pedagogia pararelações humanas ou terapia não é intenção de-les. Mas, no final todos os grupos acabam sendoda mesma linha. Todos esses trabalhos procu-ram uma integração do homem com a natureza,uma parte menos artificial. (Fábio)

A primeira grande caminhada de Viníciusfoi “Passos de Anchieta”.19 Nessa peregrinação,conheceu alguns gaúchos que já haviam feito ca-minhadas com a Ecocaminhantes:

Caminhei no Passos de Anchieta e um pessoalme comentou sobre os Eco. Agora todo mês ve-nho para cá caminhar. Sair na sexta-feira do es-critório em São Paulo e dizer que vai fazer trilhasno Rio grande do Sul tem seu charme. (Vinícius)

Juliana começou a caminhar com a Ecocami-nhantes por meio da indicação de uma sobrinhaque já conhecia o grupo. Após fazer algumas cami-nhadas, começou também a frequentar a Biodança,com quem foi para o Caminho de Santiago pelaprimeira vez. Após seu retorno de Santiago, en-trou em contato com a ACASARGS.

Eu fazia Biodança com uma facilitadora muitolegal, mas aí ela foi fazer uns cursos na Índia eacabou ficando por lá, se estabeleceu na Espanhae agora está em Ibiza. Continuei na Biodança, eos facilitadores novos fizeram um projeto de ali-ar exercícios da Biodança com o Caminho deSantiago, foi aí que fui pela primeira vez. Mas,eu já caminhava com os Eco antes disso. (Juliana)

Parece evidente, ao se avaliar os grupos pe-los quais passaram os caminhantes até chegar àEcocaminhantes ou à ACASARGS, a existência deum trânsito livre, sem muitos constrangimentos,que permite a esses sujeitos começar, parar ou per-manecer participando das atividades de diversosgrupos inadvertidamente. Exemplo disso é a parti-cipação simultânea de Juliana na Ecocaminhantes

e na ACASARGS, ou, ainda, o contraste entre ocaso de Fábio e Juliana, em que o primeiro chegouà Ecocaminhantes por meio de amigos da Biodança,e a segunda que somente após participar de cami-nhadas com a Ecocaminhantes iniciou suas ativi-dades na Biodança. Mas, afinal, o que permiteessa mobilidade entre grupos? Quais são os con-tornos desse circuito? O que há de solo comum

entre essas práticas?

17 Anamastê é uma prática de terapia alternativa que pas-sou a se difundir com mais vigor a partir dos anos 2000.“A proposta é a de alcançar, por meio de exercícios físicos,a saúde plena do espírito”. (Disponível em:www.anamastê.com.br. Acesso em: 28 jun. 2009)

18 O primeiro centro de formação em Biodança no Brasil adefine do seguinte modo: “Biodança, a dança da vida, éum sistema de autoconhecimento, de integração, reno-vação orgânica e crescimento pessoal. Através do afeto –por si mesmo, pelas pessoas, pela vida – os exercícios daBiodança, mediados pela música e pelo movimento, pos-sibilitam o reforço da identidade: ser aquilo que se é, fazero que se sonha, ter coragem para desenvolver os própriospotenciais.” (Disponível em: www.biodanzabrasil.com.br)Acesso em: 28 jun. 2009)

19 O caminho “Os Passos de Anchieta” reconstitui o trajetopercorrido habitualmente pelo Padre Anchieta no final doséculo XVI, no litoral do Espírito Santo. A rota estende-se por 105 quilômetros, margeando o litoral desde Vitóriaaté a cidade de Anchieta, onde se encontra a Matriz erguidapelo padre e que foi a sua última residência.

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Ao investigar como se dá a conformaçãode um circuito neoesotérico, que agrega práticasdistintas de xamanismo urbano na cidade de SãoPaulo, Magnani (1999, 1999b) afirma que um doselementos que possibilita esse fenômeno é:

... a intensa movimentação entre xamãs nacio-nais e internacionais, seus auxiliares, contatos,clientes, donos de espaços neo-esôs e de sítiosque sediam as vivências. Assim é formada amalha ao longo da qual floresce esta particularmodalidade de xamanismo, inventada a partirde elementos descritos em algumas obras consi-deradas clássicas, de ritos e crenças atribuídos apovos que ainda mantêm suas tradições e domultifacetado acervo mantido e continuamenterealimentado pelo circuito neo-esô (1999, p. 133).

Para Magnani (1999, 1999b), outro elemen-to que dá forma a esse circuito de práticas distin-tas de xamanismo urbano é a construção de certacontinuidade no discurso dos grupos, instituiçõese “facilitadores” que privilegiam noções como a decomunidade, de indivíduo e de totalidade. A arti-culação desses três polos, ainda que com varia-ções, parece fornecer uma matriz que demarca al-guns limites desse conjunto de práticas.

De certo modo, a articulação desses elemen-tos – comunidade, indivíduo e totalidade – atra-vessa algumas das práticas em questão. No entan-to, isso se dá não como discurso norteador, mascomo questões em voga que compõem um panora-ma mais amplo de transformações em alguns as-pectos da espiritualidade dos sujeitos.

Ao que parece, esse circuito percorrido pe-los ecocaminhantes é composto por grupos quedesenvolvem atividades sumariamente corporais.Na Biodança e no Anamastê, conforme explicaramFábio e Juliana, pretende-se, por meio de exercíci-os físicos, alcançar determinados estados psíqui-cos, ativar sensações e experiências subjetivas apartir da exaustão. Já na Ecocaminhantes, naACASARGS e na Passos de Anchieta, a atividadeprincipal é a caminhada. O que sugerimos é que ocorpo constitui-se como figura central nessas prá-ticas. Trata-se, no entanto, mesmo nos casos cita-dos de contato com o Caminho de Santiago e Pas-sos de Anchieta, não de um corpo penitente em

busca da redenção, mas de um corpo em direçãoao aperfeiçoamento pessoal e ao cultivo de si.

Enquanto caminha na natureza, o caminhan-te não cultiva apenas seu bem-estar físico, mas seucorpo se constitui como um lugar em que se esta-belece um fluxo constante entre as coisas relativasà alma, à mente e ao próprio corpo. Parece haver,no ideal de saúde desses sujeitos, uma espécie deinterdependência entre as dimensões físicas e psí-quicas, e o contato com a natureza torna-se, nessecontexto, um evento privilegiado na busca desseideal. Ao compreender a prática de caminhadaecológica como uma terapia capaz de dar contadessa concepção holística de corpo, o caminhantetraz à tona o ambiente em que caminha – a nature-za – como elemento-chave que compõe essa noçãode bem estar.

A busca pelo aperfeiçoamento de si a partirdo exercício físico da caminhada na natureza dizrespeito também a uma tentativa por atingir o bem-estar das coisas relativas à mente e à alma, que seestende para o ambiente. Perpassa essas práticas umanoção ampla de saúde que extrapola os próprioslimites corpóreos dos sujeitos e incorpora os con-tornos físicos em que esses corpos estão situados,como condição para que se intaure uma experiênciade bem-estar e saúde para tais sujeitos. Ou seja, nãohá possibilidade de os indivíduos alcançarem o ide-al de saúde física ou mental em descontinuidadecom a saúde e o cuidade do ambiente.

Essa relação, que torna intrínseca à expe-riência o ambiente em que se caminha, pode sermelhor compreendida quando refletida a partir danoção de paisagem explicitada por Tim Ingold, emseu livro The perception of the environment

(2000). Sua perspectiva afasta-se de concepções quetomam esses espaços como objetos, panos de fun-do, palcos, ou ainda como um cenário inerte noqual que se inscrevem as relações sociais. ParaIngold, a paisagem é a própria condição de ser nomundo, onde cultura, natureza e sujeito estão en-trelaçados. A paisagem é concebida não comoelemento externo às relações, mas ela própriaconstitui e é constituída pelas relações daquelesque a habitam. Nas palavras do autor:

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... nossa percepção do ambiente como um todonão provém de uma ascensão, de uma perspecti-va panóptica e global, mas surge na passagem deum lugar para outro, e em histórias de movimen-to e de horizontes variáveis ao longo do caminho.(Ingold, 2005, p.93.)

Assim, é na medida em que estabelecemosrelações, constituímos histórias, e percorremos apaisagem que ela toma forma. Apreender o quesignifica a experiência da caminhada para os cami-nhantes envolve, portanto, um esforço que com-preende a maneira como esses sujeitos se relacio-nam com a paisagem em que caminham. Busca-mos, assim, entender a paisagem não mais comoalgo externo à cultura, mas como constitutiva dasdinâmicas sociais e temporais daqueles que a ha-bitam, bem como, ela mesma, constituída pela redede relações entre humanos e não-humanos que seencontram engajados nela.

Ao justificar sua falta de interesse em fazer oCaminho de Santiago, Gilberto afirma: “Parece quea paisagem lá não é o bicho, e nosso grupo valorizamuito a paisagem”. Ao saírem da ACASARGS, osfundadores da Ecocaminhantes parecem ter deslo-cado a preocupação com elaborar roteiros que re-metam ao Caminho de Santiago,20 para priorizardestinos que coloquem os sujeitos em contato di-reto com certo tipo de paisagem ecológica, comoé apresentado em seus objetivos.21

O que sugerimos, enfim, é que há umaimportante dimensão na prática de caminhadas eco-lógicas que cria sensibilidades e orienta a experi-

ência dos sujeitos para certo ideário ecológico quesó se torna eficaz porque tais práticas se efetuamnuma paisagem que remete a uma concepção denatureza associada a uma ruptura com o cotidia-no, vivido no meio urbano. Assim, não é somenteo fato de estar ambientada numa paisagem bucólicaou rural que faz da caminhada uma prática ecoló-gica, mas a própria noção de natureza, que incluihumanos e não-humanos numa totalidade e numasimetria relacional, o que a torna um evento capazde se disseminar, de forma crescente, em muitaspartes do país e do planeta.

Ana, uma das fundadoras da Ecocaminhantes,Fábio, também frequentador da Ecocaminhantes,e Juliana, que caminha tanto com a Ecocaminhantes

como com a ACASARGS, relatam a relação entre acaminhada, a paisagem e a percepção:

É super importante na caminhada ter a paisagem;acho que é um momento que todo mundo para,olha e relaxa. O pessoal fica curtindo, é necessá-rio. Faz parte, assim, para sair um pouco da vidada cidade. Por que caminhar no meio do mato ounuma estradinha? Eu acho que tem que haver umatrativo... Como paisagens diferentes sempre:mar, serra, cânion. Os cânions, por exemplo, acaminhada em si é uma caminhada de campo otempo inteiro, mas o que é legal é caminhar e, nofinal, tu teres a paisagem: uma vista maravilho-sa. (Ana)Nossa sociedade está muito acostumada ao raci-ocínio, sempre olhamos pela lógica, e isso servepra algumas coisas e outras não. Então, a gentetem que treinar a percepção direta do mundo. Àsvezes, a gente está acostumada com uma rotinasó, e nossa forma de perceber o mundo fica vici-ada. Então, a percepção é o carro chefe da cami-nhada. (Fábio)Eu, sinceramente, não gosto de repetir paisagem,não gosto de fazer circuitos, de caminhar em cír-culos. Com os Ecocaminhantes, por exemplo, jáfui duas vezes para Fazenda Potrerinhos. Lá émuito lindo, muito legal. Mas, quando começa arepetir, não vou mais. (Juliana)

Mesmo que essas posições possam mar-car algumas descontinuidades entre as caracte-rísticas e perfis dos sujeitos que participam dosdiferentes grupos de caminhada apresentados, oque nos interessa aqui, sobretudo, são as conti-nuidades, as possibilidades de sobreposições dasexperiências. Ao sugerir interfaces entre as di-

20 As caminhadas promovidas pela ACASARGS consistemna realização de trajetos que reproduzem, em alguma me-dida, na paisagem, a dificuldade e as distâncias que o pere-grino enfrentará diariamente enquanto estiver percorrendoos quase 800 quilômetros do Caminho espanhol. Os traje-tos são sinalizados com setas amarelas, como as existentesno Caminho de Santiago, as quais auxiliam o peregrino aencontrar sozinho a rota correta que deve seguir. A coloca-ção desses sinais é justificada pelos membros da diretoriado grupo como tentativa de tornar aquela caminhada o maisparecida possível com o Caminho.

21 Conforme o website, os objetivos da Ecocaminhantes são:organizar e promover caminhadas que permitam aintegração entre os caminhantes e o meio ambiente; buscarpercursos variados, onde o contato com a natureza estejapresente; incentivar e conscientizar sobre a importância denosso ecossistema, despertando, assim, uma consciênciaecológica; incentivar e conscientizar a prática da atividadefísica como manutenção da saúde mental e física; permitira participação de todos os caminhantes, independente dapreparação física, da idade e do ritmo de caminhada.

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mensões ecológicas e religiosas, estamos apostan-do não nas transformações, mas, justamente, napermanência de determinadas sensibilidades emjogo. Trata-se de evidenciar, na constituição de gru-pos identificados com práticas de turismo ecológi-co, como a Ecocaminhantes, trocas, disputas, ten-sões que envolvem outros universos de sentido,como o Caminho de Santiago de Compostela. E,assim, chamar a atençao para a porosidade entre oecológico e o religioso que aparece no contextoetnográfico que vimos acompanhando, experien-cialmente imbricados.

“VAMOS CAIR NA TRILHA”: a experiênciadas caminhadas ecológicas

Diante de uma oferta bastante ampla de locaisem que se pode realizar uma caminhada, osidealizadores da Ecocaminhantes procuram proporroteiros que convirjam para seus próprios interesses.

... [o roteiro] é da nossa vontade, é o que a gentetem vontade de fazer. Porque é bem isso, como [aadministração] da Ecocaminhantes é uma ativi-dade que a gente tem que juntar com o nossotempo livre de férias, então tem que ser umacoisa que a gente está com vontade de fazer tam-bém. Nas minhas férias, eu quero ir pra Patagônia.Então, tentamos montar, organizar um passeio ejuntar as duas coisas. Para o Aconcágua, eu e oDaniel fomos no ano passado de férias e a gentefalou: temos que trazer o pessoal pra cá. Então,sempre que a gente gosta de ir para um lugar, agente tem vontade de levar todo mundo... É en-graçado isso. Assim, num final de semana, a gen-te sai para passear... Bah, aqui era legal de trazero grupo, então a gente está sempre tentando en-xergar esse tipo de coisa. (Ana)

A maior parte desses destinos se concentraem trilhas na natureza. No entanto, apesar depredominantes, essas trilhas não são os únicostipos de paisagem em que se realizam as cami-nhadas. Como transparece nas falas registradasacima, essa escolha está também relacionada coma “não-monotonia da paisagem”.

Nossas praias [as do Rio Grande do Sul], por exem-plo, é aquela reta interminável, com super ventoque não dá trégua, e caminhar ali não é umacoisa agradável e acho que tem que juntar um

pouco de paisagem, um pouco de tudo. [...] Porexemplo, nesse final de semana, a gente vai paraFlorianópolis, que é caminhada de praia, masnão é como aqui no Sul, que é uma reta só. Látem costão, sobe morro, desce morro, umpouquinho de praia plana, aí passa nas dunas...Então, é um pouco isso que a gente gosta de fazer,mesclar o tipo de paisagem. (Gilberto)

O tipo de paisagem em que se caminha bemcomo o fato de sempre haver novos roteiros sãocaracterísticas apontadas pelos participantes comoalgumas das principais razões pelas quais aEcocaminhantes se tornou um dos grupos commaior visibilidade na promoção desse tipo de prá-tica no estado. A periodicidade dos passeios e aexistência de uma loja virtual, na qual se pode,além de escolher a caminhada, efetuar seu paga-mento, também possibilitam que a empresa tenhaclientes espalhados pelo país.

COMPRANDO UMA ECOCAMINHADA: ogrupo e seus atores

A empresa Ecocaminhantes não tem umasede física, mas sim o domínio de um espaço naInternet, no qual divulga e comercializa caminha-das. Nessa página, encontram-se a agenda de ativi-dades do grupo, fotografias dos passeios já reali-zados e algumas seções especiais que dão desta-que a destinos como Patagônia, ChapadaDiamantina, Aconcágua e África do Sul. Há aindauma seção dedicada ao programa Trilha Limpa,que, segundo seus idealizadores, ao incentivaros caminhantes a recolherem o lixo que encon-tram pela trilha, endossa o principal objetivo daempresa: o de propiciar, por meio de caminha-das na natureza, “o desenvolvimento da ativida-de física e da consciência ecológica”.22

Cada passeio a ser realizado é apresenta-do no site com informações sobre a programa-ção geral da atividade e uma classificação da ca-minhada segundo seu nível de dificuldade. Se-

22 Fonte: www.ecocaminhantes.com.br (Acesso em: 01 dez.2009).

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gue-se uma descrição dos trajetos a serem percor-ridos. A trilha do Rio do Boi (SC), por exemplo,classificada com um grau de dificuldade “pesado/difícil”, é assim descrita na página do Ecocami-

nhantes:

Trilha do Rio do Boi: a caminhada ocorre no inte-rior do cânion Itaimbezinho, sendo seu início emtrilha por mata nativa, e, após, caminhada pelaspedras, no leito do rio do boi, com diversas tra-vessias no mesmo rio, com direito a parada parabanho nas piscinas e nas cachoeiras. Caminhadade aproximadamente 7h e dificuldade alta.23

Além da obtenção de informações pelo site,os caminhantes também podem se atualizar sobreas atividades do grupo por meio de informativosvia e-mail. A demanda pelos passeios é crescente,e muitas caminhadas têm o número de vagas esgo-tado em menos de uma semana após sua divulga-ção. Segundo Ana, mais de mil pessoas estão ca-dastradas no mailing da empresa, das quais cercade seiscentas já participaram de alguma das cami-nhadas promovidas. Embora sejam números ex-pressivos, a Ecocaminhantes não se utiliza de ve-ículos de propaganda além do próprio site.

A gente não faz propaganda. Então, ou vai ser porindicação de alguém que a pessoa fica sabendo denós. Já aconteceu de gente que está procurandoalguma coisa para fazer, digitou no Google “cami-nhada” e aí apareceu “Ecocaminhantes”. Com umou outro já aconteceu isso, mas normalmente épor indicação. Nem é no site que se entra primei-ro. Muitos ligam direto, sem entrar no site. Nor-malmente é por indicação e nunca por propagan-da. Até porque, como a gente não tinha a ideia detransformar isso num negócio, a gente nunca quisfazer propaganda, porque aí tu tem que estar pre-parado para receber uma demanda grande. (Ana)

Ao que parece, a indicação configura-secomo elemento central do ingresso nesse tipo deatividade. Trata-se, portanto, não somente de umaprática na qual os sujeitos se engajam por inte-resses pessoais, mas também por estarem envol-vidos em determinadas redes de sociabilidadeque proporcionam essa entrada. A caminhada,nesse sentido, constitui-se num evento de socia-

bilidade não apenas para aqueles que já se co-nhecem, mas também para aqueles que preten-dem estabelecer novos contatos:

Tem duas coisas que são boas: a caminhada emsi, que independe do lugar, e também tem umtipo de gente que faz essas caminhadas que é otipo de pessoas com quem eu gosto de estar, queeu me sinto bem. Não importa se é com aEcocaminhantes, com a Rota. Nem precisas sa-ber se tem algum amigo teu. Tu vais encontraralguém, às vezes eles mudam de nome, mas nofinal são todos iguais. (Gilberto)

Diversos trabalhos (Amirou, 1995; Siqueira,2006; Steil, 2003), que tiveram como foco de inte-resse atividades turísticas, sugerem a existência,nesses contextos, da emergência da modalidade deinter-relacionamento que Turner denominou decommunitas. É essa experiência da communitas,marcada pela facilidade em estabelecer vínculos, pelacamaradagem e pelo espírito de igualitarismo, quepermite, por exemplo, a Gilberto afirmar que ossujeitos apenas mudam de nome, “mas no final sãotodos iguais”. Para Turner, todos esses aspectos sãocaracterísticos de momentos não-estruturados, nosquais as marcas da diferenciação social, as posi-ções, enfim, tudo aquilo que classifica os sujeitosem uma determinada estrutura desaparece, permi-tindo o surgimento de um modelo de relações não-pautado pelo que é normativo e estruturado, massim pelo não-estrutural (Turner, 2008).

Contudo, um dos limites desse tipo de lei-tura é que, ao se creditar à communitas relaçõesde tipo não-estrutural, corre-se o risco de não per-ceber que, embora possam parecer fluidas eindiferenciadas, essas relações se originam da con-vergência das posições estruturais ocupadas portais sujeitos. Isto é, o modelo de análise processualturneriano, que concebe a dinâmica social comofruto da contínua tensão entre estrutura ecommunitas, quando verificado empiricamente,parece um tanto rígido. Nessa mesma linha, argu-mentamos que: “A estrutura e a communitas seconjugam dentro do próprio evento, desconstruindoa ideia da contradição entre o espaço da estrutu-ra e o da communitas enquanto entidades separa-das” (Steil, 2003, p. 34)23 Fonte: www.ecocaminhantes.com.br (Acesso em: 01 dez. 2009).

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Outra característica marcante das caminhadasé a predominância de mulheres em relação aos ho-mens.24 Algumas atividades chegam a ser realizadascom a presença, exclusivamente, feminina.

Eu acho que os homens pensam que caminhadanão é para homem. Homem, se convidar paraum raffting ou rapel, eles vão, mas, se é pra umacaminhada... Isso é totalmente preconceito mas-culino. Eles pensam que não é coisa que homempossa fazer: passar o fim de semana caminhan-do. Talvez, se a gente desse outro nome, apare-cessem mais homens. As mulheres têm, nessesentido, mais atitude. Quando estão sozinhas equerem fazer uma coisa, elas vão atrás, buscam,procuram e se juntam com outras para isso. Mas,homem sozinho, acho que é mais difícil de fazerisso. Se não é um amigo que convida, alguémque traz junto... Acho que dificlmente, por contaprópria, ele olha um anuncio e diz: “vou cami-nhar”. Mas, é sempre muito mais mulher. (Ana)

A fala de Ana traz à tona dois focos explicativospara a pouca presença masculina nesses eventos.O primeiro deles se refere ao caráter da própriaprática da caminhada, a qual parece não estar tãoafeita às masculinidades quanto os chamados es-portes de aventura. O segundo diz respeito à difi-culdade, por parte dos homens, de se mobiliza-rem para participar dessas atividades. Tendo emvista que as caminhadas são encaradas por muitoscomo um promissor evento de sociabilidade, aausência masculina desestimula a permanência dealguns sujeitos no grupo. Como ocorre no casonarrado por Gilberto, “a própria pessoa que meconvidou para caminhar pela primeira vez paroude caminhar, porque disse: ali eu não arrumo nada.Até porque noventa por cento é mulher”.

A CAMINHO DA CAMINHADA

A construção de um corpo caminhante nãoocorre somente nas caminhadas. Esses corpos,na verdade, são forjados gradualmente, confor-me os sujeitos se engajam na prática de cami-nhar e incorporam determinados sensos éticos,

ecológicos, religiosos. O engajamento informa aocaminhante as habilidades técnicas, os gestos eo saber-fazer valorizados nesses eventos. É ne-cessário compreender, portanto, que o universodas caminhadas remodela os corpos, converten-do-se em um marcador temporal na vida dessessujeitos, transformando sua rotina e, possivel-mente, alterando suas categorias de apreciação.

Tornar-se caminhante é apropriar-se deuma determinada corporeidade, de modos espe-cíficos de estar atento “a” e “com” o corpo, semque, no entanto, haja distinção entre aquilo que édomínio do físico, do mental ou do espiritual. Nocorpo, tudo isso está conjugado, e a corporeidaderefere-se, justamente, a tais arranjos.

Se, por um lado, a mediação da agênciade turismo é importante e valorizada nas falasdos ecocaminhantes, por outro, ela também équestionada e pode se tornar dispensável, demodo que os seus participantes acabam valori-zando as caminhadas organizadas e empreendi-das por eles mesmos. Como relata Gilberto:

Aparecem muitas dessas viagens curtas [...]. Porexemplo, minha família tem apartamento emGramado, então nós já fomos três vezes emGramado caminhar. Meu irmão tem apartamen-to em Torres, aí nós fomos lá nos dias 12 e 13 desetembro, numa mistura de gente e inventamosuma caminhada. Estas caminhadas acabam nãosaindo tão caras, porque tem só que pagar passa-gem. O pessoal também gosta de cozinhar e aífazemos a caminhada. Nós também fomos paraTeutônia, uma das gurias mora lá. Em Caxias, tam-bém a gente foi para Caravagio, isso acaba saindobem barato. E acho que tem opções... Fomos paraSertão Santana num dia desses também. O pesso-al acaba saindo por conta, parece que dá uns esta-los, o pessoal começa a se afastar das agências efazer as coisas por conta. (Gilberto)

Como podemos perceber, essas iniciativasindependentes das agências são formas de gruposde caminhantes, que possuem uma sociabilidadeanterior estabelecida a partir de outras redes derelacionamento, se encontrarem. Mas essa socia-bilidade pregressa pode aparecer no âmbito daspróprias agências. Em algumas caminhadas, umgrupo de cinco ou seis pessoas faz a inscrição nomesmo evento e se integra ao grupo maior. O senti-

24 Segundo dados fornecidos pela empresa Ecocaminhantese publicados em Manieri (2008), 76% dos participantesdas caminhadas são mulheres.

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do coletivo da prática da caminhada informa aoscaminhantes o modo pelo qual devem se mover,relacionar-se com a paisagem, enfim, sustentar de-terminada hexis corporal. Esse compar-tilhamentoestá relacionado com a construção de uma técnicado corpo específica que, conforme definiu MarcelMauss (2003), é obra da razão prática coletiva e in-dividual. Em parte, é a partir da incorporação des-sas técnicas que o corpo do caminhante é forjado.

A relação entre a coletividade da prática e aincorporação das estruturas de sentido fomentadaspor essas práticas constitui também questão centralao paradigma da corporeidade de Thomas Csordas.No entanto, se, para Mauss, essa coletividade éconstituída por sujeitos que compartilham deter-minadas técnicas corporais, para Csordas, a coleti-vidade se dá com o compartilhamento decorporeidades. Noutro paralelo possível, aquiloque, para as teorias cognitivistas, é a intersub-jetividade, na proposta de Csordas configura-secomo intercorporeidade. Isto é, trata-se da comu-nhão de determinados modos culturalmente ela-borados de experienciar o mundo.

Nas caminhadas, os participantes do grupotrocam informações sobre os roteiros que devem eos que não devem ser feitos. Essa troca não apenasinforma um elenco de destinos interessantes paraos caminhantes como também ajuda a constituir,de algum modo, um sistema hierárquico de classi-ficações desses roteiros. A partir de um conjun-to heteróclito de elementos, tais como o contatocom a natureza, a exoticidade e as dificuldadesenfrentadas durante a viagem, os destinos turís-ticos são hierarquizados e posicionados comomais ou menos autênticos entre os caminhan-tes. Partilhar esses esquemas de classificação eposicionar-se como consumidor das caminhadasmais valorizadas é um elemento importante nademonstração do engajamento nessa prática.

Acho que isso mexe com a inveja, que o pessoalfala: bah, eu fui para...; bah, quero fazer esse aítambém. Aí o outro: ah, mas eu fui para África.Eu acho que tem uma oferta, uma troca de infor-mação... (Fábio)Hoje a gente tem bastante contato com o pessoalque caminha. Aí, é um dando dica para o outro, e

a gente fica cheio de coisas na cabeça e fica sóanotando e, claro, conforme o tempo dá, a gentevai fazendo as coisas que as pessoas falaram e oque a gente realmente acha legal. A gente gostade fazer coisas diferentes, sair do padrão. (Ana)Eu acho que as coisas vão crescendo, que é umcaminho natural. Tu começas com umacaminhadinha pequena, depois você vai indo,indo, e aí tu queres fazer mais, não sei se chega ater um espírito de competição. Um fala: olha, eufiz isso. Aí o outro fala: isso é melhor. Eu acho quetem uma coisa de consumo, por que não? Quediferencia até... Você conhece a pessoa e pensa: ocara já foi para tal lugar. Tem um grupo aqui queestá fazendo a cordilheira branca, no Peru, e elestêm o objetivo de caminhar em todos os lugaresdo mundo e não repetir nenhuma caminhada.(Gilberto)

Se a troca de informações sobre roteiros éum aspecto importante da constituição de um ca-minhante, é na própria caminhada que esse aspec-to fica mais evidente. Durante uma das saídas decampo que realizei – um passeio de três dias pelosCampos de Cima da Serra Gaúcha, no municípiode Cambará do Sul/RS – tomei a seguinte nota:25

Gilberto foi um dos últimos a chegar e, assimque colocou sua mala no bagageiro, entramos noônibus e começamos a viagem para Cambará doSul/RS. A ida é o momento de menor interaçãodo grupo, mesmo tendo uma grande quantidadede pessoas que procuram esta atividade justa-mente para estabelecer amizades. Sentei-me comGilberto e começamos a conversar sobre algumastrilhas que ele havia feito. Depois de algum tem-po de viagem, Ana juntou-se a nós e nos apre-sentou Vinícius, que estava sentado no banco logoà nossa frente. Ana acabara de voltar de umaviagem de férias na África do Sul e narroudetalhadamente todas as trilhas que ela e Danielfizeram nos parques daquele país. Gilberto nãoperdeu a oportunidade e passou a nos relatar asdificuldades que estava enfrentando na prepara-ção de sua viagem ao Nepal, aonde iria, com umgrupo, subir até o acampamento base do Everest.Vinícius, como que para apresentar sua relaçãode viagens, passou a nos descrever as principaiscaminhadas que já havia feito: “...o primeiro pas-seio que fiz foi logo depois que me separei. Cha-ma Passos do Anchieta, são quatrocentos quilô-metros entre o Espírito Santo e São Paulo. Aí pe-guei gosto pela coisa, vim pra cá fazer o Cami-nho das Missões e depois fiz duas coisas que sem-pre tive vontade, subir o pico da Bandeira e o daNeblina, bicho, foi rojão! Lá eu conheci duas pes-soas que me convidaram para caminhar na

25 Diário de campo de Rodrigo Toniol.

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Eslovênia, voltei de lá na semana passada. Cami-nhei em vários parques lá também.” [Nota de 15de agosto de 2008]

Uma das ideias-chave que vimos desenvol-vendo neste artigo é a de que há uma relação entreocupar uma posição privilegiada num sistema hi-erárquico que classifica as caminhadas como maisou menos autênticas e o grau de dificuldade quetal destino impõe ao caminhante. Isto é, quantomais difíceis de serem acessados e concluídos, maisvalorizados são os destinos. No entanto, se, porum lado, as dificuldades enfrentadas contribuempara a valorização de uma viagem, por outro, essasdificuldades devem estar circunscritas a um limitede tolerância que precisa ser respeitado.

Alguns que caminham com a gente curtem irpara hotéis tipo Casa da Montanha, que é consi-derado quase um resort, é um hotel padrão clas-se A. Eles são ligados à natureza, mas queremluxo, querem passar bem. Podem sofrer na ca-minhada, não tem problema em se sujar todo, seencher de lama, tomar banho de chuva, isso nãoimporta, mas depois querem chegar a um lugarbom, confortável para poder tomar seu vinho etal. (Ana)O mais importante pra mim não é chegar, massim caminhar, com certeza. Assim, o objetivo nãoé ir lá, não! Uma das coisas que foram se refor-çando com o tempo para mim foi isso. Eu nãorecomendaria a Tanzânia, por exemplo, nem paraum inimigo, porque o final dela é muito, muitodifícil, e quando tu chegas nesse ponto, a coisafica desagradável, porque sai do controle, não temessa de dizer: Eu subi o Kilimanjaro. Grande coi-sa, o objetivo é o caminhar, não a chegada. Maspara o pessoal é... Tanto assim que, no Everest,quando tu chegas no campo base e o pessoal estámuito cansado, a 5600 metros, caminhando mui-to devagar e realmente não é o ponto mais boni-to, você vai lá para dizer que chegou. O mais bo-nito não é lá, está atrás... Mas a maioria vai paradizer: eu cheguei. (Gilberto)Tem uma coisa de provação também. A gente feza caminhada no Aconcágua e estávamos liquida-dos, alguns passando mal e tal, mas é aquela coi-sa: “Passei pela dificuldade, pelo desconforto,mas agora eu vou pra Mendoça e quero a partefácil.” Aí a gente foi em vinícolas, free shop, aídá pra notar que ali teve o turismo como prêmiopela provação que passou. (Fábio)

Uma vez apresentado esse panorama geralda Ecocaminhantes e da prática da caminhada,

pretendemos retomar a questão da corporeidadecom que iniciamos este artigo. A experiência decaminhar que vimos acompanhando aponta parao delineamento de dois modos somáticos de aten-ção que, ao que parece, constituem o corpo do ca-minhante: a exaustão física e a relação estabelecidacom a natureza.

MODOS SOMÁTICOS DE ATENÇÃO E OPARADIGMA DA CORPOREIDADE: uma breveretomada

O projeto teórico de Thomas Csordas é ode desenvolver a corporeidade com um paradigmapara a antropologia. Esse modelo analítico conce-be o corpo não como como a base existencial dacultura. O que está em jogo, na corporeidade, écompreender o corpo como a própria condição daexistência humana e o solo da cultura. Amparadonas contribuições da Filosofia Fenomenológica deMerleau Ponty (1971, 2000) e da Teoria da Práticade Bourdieu (2008), Csordas compõe seu próprioarranjo teórico, tornando central, para sua análise,as experiências culturalmente padronizadas noscorpos dos sujeitos, onde reside o lócus da cultu-ra. Assim, para refinar seu constructo teórico etornar a corporeidade um procedimentometodológico, ele lança mão do conceito de modosomático de atenção, que remete à experiênciacultural de estar no mundo atento “a” e “com” ocorpo. “Estar atento a diz respeito à atenção dadaao estado do corpo no mundo, um modo de es-tar atento ao meio intersubjetivo que ocasionaaquela sensação. Estar atento com refere- se aomodo de engajar os sentidos numa determinadaatenção.” (Csordas, 2008, p.372).

Para Csordas, é justamente na variação dosmodos de estar atento “a” e “com” o corpo, nacorporificação das experiências e no compartilhamentodessas corporeidades, que se deve iniciar umaanálise fenomenológica da cultura. “O que querodizer é que as maneiras pelas quais damos atençãoaos e com os nossos corpos, e mesmo a possibili-dade de dar atenção, não são nem arbitrárias nem

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biologicamente determinadas, mas são cultural-mente constituídas” (Csordas, 2008, p.374).

A EXAUSTÃO DOS CORPOS DOS CAMI-NHANTES E A VALORIZAÇÃO DA EXPERIÊN-CIA DA CAMINHADA

Partindo da premissa teórico-metodológicade que a experiência corpórea é o fundamento exis-tencial da cultura e do sujeito (Csordas, 2008),buscamos colocar em foco a maneira pela qual al-guns aspectos da prática das caminhadas são arti-culadas nos corpos dos caminhantes. Trata-se detomar, como ponto inicial de análise, umafenomenologia cultural das experiênciascorporeificadas pelos caminhantes para, dessemodo, poder refletir sobre seus pertencimentos,suas sensações e os seus sentidos, postos em jogona caminhada.

O modo somático de atenção que delinea-remos nesta seção é o da “exaustão física” duran-te e após as caminhadas com a Ecocaminhantes.Como já foi apontado noutro momento, parecehaver uma relação entre as dificuldades enfrenta-das, sejam elas de acesso a um destino ou naconclusão de um trajeto com muitos obstáculos aserem ultrapassados, e a valorização do consumodo roteiro por parte dos caminhantes. Aqui, porsua vez, nos interessa atentar para as dificulda-des físicas que a caminhada impõe aos sujeitos.Essas dificuldades podem ser expressas a partirde diversas experiências corpóreas. Dentre elas,podemos citar a dor.

No horizonte de uma visão cartesiana,onde prevalece uma “preeminência da mente so-bre um corpo visto como inerte, passivo e estáti-co” (2008, p. 370), a exaustão e a dor seriamdescritores de uma ordem cultural que se inscre-ve no corpo. Ao passo que, quando analisadossob o paradigma da corporeidade, tanto a dorquanto a exaustão tornam-se centrais em termosepistemlogicos e analíticos para que se possa com-preender a experiência vivida pelos caminhantese o solo cultural que sutenta a sua prática. Essa

experiência, na medida em que é compartilhadapor uma coletividade, conforma uma situação deintercorporeidade em que os caminhantes seveem engajados existencialmente.

A descrição da experiência da caminhada, paramuitos dos caminhantes, tem como fio condutor ospercalços, as dificuldades enfrentadas nas distânci-as percorridas, os terrenos íngremes, as intempéries.A exaustão física é posta em relevo, e essa valoriza-ção das dificuldades contribui para tornar mais “au-têntica” a experiência entre os sujeitos. Corporalmen-te, essa sensação é narrada por meio de modalidadessensoriais indeterminadas, que oscilam entre a ex-pressão da sensação de um “corpo esgotado” e deuma “mente revitalizada”. A elaboração de descri-ções ambivalentes, que ora tendem para expressõesrelativas ao corpo e ora para expressões relativas àmente ou alma, remete a um fluxo contínuo entremodalidades sensoriais capazes de estarem presen-tes nessas duas alçadas. Isto é, ao proporcionar des-crições somáticas que se configuram a partir de umarranjo híbrido, que conecta sensações físicas e ex-periências da ordem da mente ou alma, as caminha-das tornam-se um contexto privilegiado para a análi-se que tem como uma de suas premissas básicas ocolapso entre essas esferas.

A exaustão corporal parece ser somatizadapelos caminhantes como aspecto essencial para quea experiência da caminhada torne-se autêntica. Emum passeio com os ecocaminhantes na cidadede Mostardas (RS), perguntamos a Fábio se con-siderava aquela uma experiência turística:

Não, porque turismo, como eu vou te dizer?Quando você faz turismo tudo está certinho, nadadá errado, você não vive aquele lugar direito, écomo se você não estivesse ali, é como fazer sexocom camisinha! Aqui na Eco vivo intensamentea caminhada. Prova disso é que a gente fica exaus-to, o corpo cansa e por isso não é turismo, aqui éde verdade. (Fábio)

A fala de Fábio torna evidente que a expe-riência vivida como ecocaminhantes está distan-te do que pode ser experimentado como turismo,não apenas em termos conceituais, mas, sobretu-do, corporais. Assim, se a ausência da dor e da

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exaustão – satisfação e lazer – caracterizam o tu-rismo, a presença dessas sensações somáticas é amarca do engajamento corporal dos ecocaminhan-tes. Assim, a sensação de mergulho numa ativi-dade em que a dor é intensa e o esgotamento físi-co profundo torna-se o divisor de águas entre oque esses sujeitos vivenciam como turistas e comoecocaminhantes.

A dor e a exaustão são, assim, vividas comouma espécie de via de acesso ao bem-estar produzi-do pela intensa atividade corporal – a caminhada –que termina por constituir-se como “uma maneirade purificar a mente e a alma, um refúgio pararecarregar as energias e um momento paradesestressar” (Marina). Caminhar junto à naturezatorna-se, desse modo, uma experiência corpórea queestabelece um fluxo e uma corrente contínua entreo físico e o mental, o material e o espiritual, o corpoindividual e o seu contorno ambiental. Nesse senti-do, dois depoimentos são ilustrativos desse colap-so que se realiza na experiência aqui analisada.

Fiz uma reorientação de vida em que decidimudar. Para deixar de ser obeso, podia fazer ci-rurgia de estômago, mas não ia estar saudável.Tem que se encontrar consigo mesmo pra ficarsaudável. (Vinícius)Através de exercício físico, você rompe com ascouraças que se formam nos chacras das pessoaspor causa da falta de meditação, concentração,bons fluidos, etc. Com as couraças quebradas, osujeito alcança determinado estágio que é portodos almejado. Caminhar te coloca em certo es-tado mental interessante. (Fábio)

Ao lado da dor e da exaustão, que remetemà corporeidade como um modo específico de estaratento “a” e “com” o corpo, a experiência dosecocaminhantes define-se também pela paisagemem que transcorre a caminhada. Como nos referi-mos anteriormente, assim como o corpo, a paisa-gem aparece aqui como um elemento ativo queatravessa e constitui as experiências daqueles quea percorrem nas caminhadas ecológicas. “É nanatureza, e somente nela”, afirma Marina, umacaminhante de 29 anos, “que podemos sentir omundo de outro jeito, de um jeito em que a gen-te não está acostumada”. Essa relação especial com

a paisagem poderia ser percebida, segundo osecocaminhantes, pela constatação de que eles com-partilhariam de uma sensibilidade que seria capta-da por meio da técnica fotográfica. Como apontaFábio, “... tem um dado importante, acho que opessoal todo se interessa muito por fotografia, podever que eles querem tirar foto na natureza porque édiferente de tudo, a imagem da natureza é diferen-te, e isso é uma coisa da percepção.” (Fábio).

Enfim, se a experiência da dor e da exaustãocorporal aponta para uma espécie de interdepen-dência entre as dimensões físicas e mentais ou es-pirituais, a referência à paisagem permite perceberque os corpos que estão em jogo não podem sercompreendidos como meros substratos biológicos,mas, ao contrário, são eles mesmos incorporadosnuma dimensão holística que os circunscreve. Éjustamente essa experiência de uma naturezarevitalizante, capaz de gerar sensações que conectemcorpo, mente ou alma e paisagem, que procurare-mos apresentar, na próxima seção, como outro modosomático de atenção presente na intercorporeidadedos ecocaminhantes.

A RELAÇÃO CAMINHANTE–NA TUREZA COMOUM MODO SOMÁTICO DE ATENÇÃO

O modo somático de atenção referido a par-tir de agora – o da relação caminhante–natureza– é articulado entre os ecocaminhantes em ter-mos da potência dessa paisagem específica emproduzir sensações ligadas a uma espécie de aper-feiçoamento de si, tais como “autoconhecimento”,“mente e alma purificada” e “sensação de pleni-tude”. A maior parte desses relatos está afinadacom certo “espírito Nova Era”, cuja relação com osagrado se dá a partir do contato com uma natu-reza investida de forças místicas e energéticas,capazes de ser incorporadas pelos sujeitos.

Ao sugerir a existência de um modosomático que articule caminhante–natureza, que-remos chamar a atençao do leitor para uma for-ma específica de sensação corpórea na qual algu-mas das experiências vividas na natureza são vivi-

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das como contatos com um transcendente.26 Essasexperiências são geralmente descritas como: sensa-ção de energia passando pelo corpo, purificação damente, leveza do corpo, sensação de presença deboas energias, corpo revigorado, descarga de másenergias acumuladas, relaxamento. Esse breve in-ventário de sensações, retirado dos nossos diáriosde campo, reitera a existência de um engajamentosensório específico que se concentra em três moda-lidades perceptivas: tato, visão e aquilo que chama-remos de cenestesia.27

As experiências táteis aparecem geralmen-te associadas às manifestações sentidas na formade energias. Um movimento corporal caracterís-tico dessa modalidade é a imposição de mãossobre pedras e árvores, acompanhada pelo fe-chamento dos olhos. Por meio desse contato, afir-ma Mariana, uma caminhante de quarenta anos,“posso descarregar minhas energias ruins e rece-ber as boas que a natureza tem para me ofere-cer”. Num outro trecho do diário de campo, re-gistrado na caminhada à cidade de Caará (RS),na nascente do Rio dos Sinos, anotei:28

Chegamos à nascente e nos deparamos com umacachoeira de cento e vinte metros de quedad’água. Sentei-me perto de Marina e pergunteicomo se sentia. Descreveu-me que a natureza ti-nha o potencial de “purificá-la”, uma força quepoderia sentir agir em seu corpo por muitos diasapós aquela experiência. Enquanto conversavacom Marina, observava Mariana, que se aproxi-mou de uma grande pedra e abraçou-a vagarosa-mente permanecendo ali por alguns minutos.

Essa descrição aponta para dois efeitos pos-síveis, que são buscados no contato entre os cor-pos dos caminhantes e os elementos da nature-

za. No primeiro, o contato tátil e direto entre ocorpo e a pedra permite ao caminhante incorpo-rar as “boas energias” que esse elemento emana.No segundo, o contato visual com a paisagembusca a purificação e o rejuvenescimento doscorpos humanos. Essas experiências de contem-plação da natureza podem harmonizar o estadocorporal e espiritual de sujeitos em sua relaçãocom uma paisagem que integra, numa totalida-de, humanos e não-humanos. Ao descreveremessas sensações, os caminhantes recorrem comfrequencia a um léxico concernente ao “idiomareligioso”, tais como “purificação”, “plenitude” e“totalidade”.

Ainda na caminhada até a nascente do Rio dos

Sinos, questionei Mariana sobre possíveis motivações

religiosas em sua participação naquela atividade:

Motivação religiosa não tenho nenhuma. A natu-reza é o lugar da espiritualidade, não é uma reli-gião, porque não é rígida, não impede o sujeito dedespertar suas próprias crenças. A natureza éviva, não tem dogmas. Você não acredita que aque-la árvore ali está agora nos olhando? Aqui a genteé total, não está amarrado pela igreja. (Mariana)

Noutro momento, enquanto conversáva-mos sobre roteiros de viagens, Joana, uma pro-fessora universitária, relatou:

Olha, teve uma vez que me perdi com meu filhonuma trilha em Fernando de Noronha e a gentecaiu num lugar lindo. Demos sorte de ver o pôrdo sol e vou te dizer que podia morrer naquelemomento, estava num estado de plenitude. Nãoimporta o que acontecesse, era como se não esti-vesse mais ali (Joana).

O que parece estar em jogo, nessas falas,são experiências do sagrado intimamente associa-das à paisagem, em que a identidade religiosa éresolvida no plano da individualidade. A atençãodo modo somático a que nos referimos está dirigidaa essa paisagem natural que, experienciada pormeio de sentidos como o tato e a visão, terminapor promover um tipo de relação específica como sagrado.

Uma última modalidade de experienciaçãoa ser descrita é a que chamaremos de cenestesia,referindo-nos, sobretudo, à sensibilização corpo-

26 A ideia de transcendência utilizada nessa passagem, nãose refere a uma Transcendência da Revelação, como a quepauta o cristianismo. Mas diz respeito a umatranscendência na imanênicia, em que a relação com osagrado não se dá a partir da mediação da Igreja, mas simnum plano individual, imanente. (Ferry; Gauche, 2008)

27 Agradecemos a Luiz Fernando Dias Duarte que, porocasição da apresentação de uma versão inicial destetexto no 34º Encontro da ANPOCS, sugeriu o uso dessetermo. Trata-se, segundo o dicionário Houaiss (2001),de uma “designação genérica para as impressões senso-riais internas do organismo, que formam a base das sen-sações, p.ex., de estar com saúde, de estar relaxado etc.,por oposição às impressões do mundo externo, percebi-das por meio dos órgãos dos sentidos”

28 Trecho do diário de Rodrigo Toniol.

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ral dos sujeitos para que possam perceber o fluxoenergético que os atravessa na sua relação com anatureza. Essa percepção é resultado de uma edu-cação para a atenção que permite aos caminhantesconferirem agência a elementos como árvores, ani-mais, lua, sol, pedras, que, por sua vez, passam aser capazes de agir sobre a própria percepção dossujeitos em relação a seus corpos.

Fábio, um ecocaminhante que chegou ao gru-po por meio do teatro, narra sua trajetória religiosa:

Quando eu comecei no teatro eu era cético, ateu.Mas aí coisas foram acontecendo [...]. Por exem-plo, tem uma coisa que a gente faz no teatro quevem da yoga, que é a saudação ao sol e, se tuimaginar que está saudando o sol mesmo, pareceque dá um tônus diferente no corpo. Isso dá outradisposição pra gente, aí o cético começa a verque tem coisas que não sabe explicar como acon-tecem e aí tu não sabe se aquilo é psicológico,imaginativo... Aí é melhor tu aceitar assim, se tuaceitar assim o resultado é melhor. (Fábio)

O relato de Fábio atribui ao contato com anatureza, investida da capacidade de emanar “boasenergias”, a aquisição de um “tônus diferente” emseu corpo. A possibilidade dessa aquisição, noentanto, está diretamente relacionada com a cons-tituição de uma forma específica de engajar os sen-tidos na atenção. Isto é, a experienciação de umanatureza revitalizante, capaz de alterar o modopelo qual o corpo do caminhante é percebidopor ele mesmo, é resultado da incorporação dedeterminadas sensibilidades.

Ao lançar mão de uma modalidade de ex-perimentação da natureza – cenestesia – que nãoesteja restrita a um determinado sentido, procura-se dar conta de descrições como a de Fábio, queelabora um relato fenomenológico pautado nomodo pelo qual percebeu, naquela experiência,seu próprio corpo.

Por fim, vale destacar que o esforço em em-preender uma descrição sobre as experiências dascaminhadas entre os ecocaminhantes, a partir dodelineamento de alguns modos somáticos de aten-ção, é uma tentativa de explorar outras possibilida-des da abordagem antropológica. Trata-se de buscarapontar para o corpo não como um texto possível

de ser lido, mas como a própria condição para queos sujeitos se constituam como tal.

(Recebido para publicação em novembro de 2010)(Aceito em janeiro de 2011)

REFERÊNCIAS

AMIROU, Rachid. Imaginaire touristic et sociabilités duvoyage. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.

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Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

ECOLOGY, BODY AND SPIRITUALITY: anethnography of experiences of ecological hikes

in a group of ecotourists

Carlos Alberto SteilRodrigo Toniol

This paper aims to study the experienceof the ecohikers, a group that go on ecologicalhikes, betting on the cultivation of a spiritual,mental and physical well-being, hikes amidstnature. From the ethnography of the experienceof hikers, one aims to investigate the experienceof the trails as places full of restoring forces,energetic fluids for the health of body and soul.Based on the theoretical effort of a proposal thatseeks, above all, to translate the phenomenologyto the anthropological field and thus collapsedichotomies such as mind and body, nature andculture, subject and object, one tries to reflecton the therapeutic character of nature walks,understood by hikers not only as an exercise,but also as a means of access to matters of the soul.

KEYWORDS: ecotourism, new age, embodiment, body,nature walks.

Carlos Alberto Steil - Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou seu Pós-Douto-rado na Universidade da Califórnia, San Diego UCSD. Pesquisador do CNPq. Coordenador do Núcleode Cultura e Turismo (CulTus) e membro do Núcleo de Estudos da Religião (NER). Seu interesse depesquisa se concentra nas áreas da antropologia da religião, da política e do turismo. Seu livro, O sertãodas romarias: um estudo antropológico sobre o Santuário de Bom Jesus da Lapa, BA (1996), recebeu opremio Silvio Romero. É, ainda, autor de diversas coletâneas sobre temas de antropologia da religião eda política e de artigos publicados em periódicos científicos.Rodrigo Toniol - Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em AntropologiaSocial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES-REUNI. Estudante associado dosseguintes grupos de pesquisa (CNPq): Núcleo de Estudos da Religião (UFRGS), Núcleo de Pesquisa emCultura Turismo e Sociedade (UFRGS) e Cultura, Ambiente e Educação (PUC/RS). Colabora no processoeditorial do periódico Debates do NER. Desenvolve pesquisas nas áreas de religião, corpo, ecologia eturismo.

ÉCOLOGIE, CORPS ET SPIRITUALITÉ: uneethnographie des expériences de marcheécologique dans un groupe d’éco-touristes

Carlos Alberto SteilRodrigo Toniol

L’objectif de ce travail est d’étudierl’expérience des ‘éco-marcheurs’, un groupe derandonneurs écologiques qui, en faisant le parid’un bien-être physique, mental et spirituel, faitdes randonnées dans la nature. À partir del’ethnographie de l’expérience des randonneurs,on fait une recherche sur l’expérience vécue surles pistes considérées en tant que lieux remplis deforces régénératrices, de sources d’énergies bonnespour la santé du corps et l’esprit. Fondé sur l’effortthéorique d’une proposition qui vise, avant tout, àtraduire la phénoménologie pour le champanthropologique et permettre ainsi l’effondrementdes dichotomies entre le corps et l’esprit, la natureet la culture, le sujet et l’objet, on essaie de réfléchirà l’aspect thérapeutique des marches, considéréespar les randonneurs non seulement comme unexercice physique mais aussi comme un moyend’accéder aux questions de l’âme.

MOTS-CLÉS: l’écotourisme, ère nouvelle, corporéité,corps, promenades écologiques.