e se (com) vivêssemos todos juntos? ensaio sobre a história do tempo presente

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Cadernos do Tempo Presente ISSN: 2179-2143 Cadernos do Tempo Presente, n. 16, mai./jul. 2014, p. 3-11 | www.getempo.org E se (com) vivêssemos todos juntos? Ensaio sobre a história do tempo presente _________________________________________________________ Karl Schurster I Resumo: Este ensaio tem por objetivo um estudo teórico sobre o campo disciplinar da história do tempo presente apresentando algumas reflexões sobre a prática de quem se debruça nessa tarefa. Um dos aspectos principais desse texto é fazer uma análise sobre a relação entre as diversas faces das teorias da história tentando compreende-las sob o viés comparativo dos usos e abusos da história. O motivo condutor que percorre esse ensaio é a arte de envelhecer. Procuramos estabelecer relações entre as teorias da história e como as mesmas ‘envelhecem’ no campo historiográfico. Assim, começamos o texto trazendo para o debate as definições de explicação e compreensão através da filosofia da história e em seguida entramos no campo da análise histórica da teoria propriamente dita no intuito de esclarecer tanto os caminhos do tempo presente quanto suas interseções com outras áreas de estudo. Palavras-chave: Tempo Presente. Teoria da História. Filosofia da História. Abstract: This essay is a theoretical study of the discipline of the history of this time presenting some reflections on the practice who focuses on this task. A key aspect of this paper is to analyze the relationship between various aspects of the theories of history trying to understand them in a comparative outlook of the uses and abuses of history. The leitmotif that runs through this essay is the art of aging. Seek to establish relationships between theories of history and how the same 'age' the historiographical field. So we started bringing the text to debate the definitions of explanation and understanding through the philosophy of history, and then entered the field of historical analysis of the theory itself to clarify both ways this time as their intersections with other areas of study. Keywords: Present Time. Theory of History. Philosophy of History. Artigo recebido em 28/06/2014 e aprovado em 02/072014.

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  • Cadernos do Tempo Presente ISSN: 2179-2143

    Cadernos do Tempo Presente, n. 16, mai./jul. 2014, p. 3-11 | www.getempo.org

    E se (com) vivssemos todos juntos? Ensaio sobre a histria do tempo presente

    _________________________________________________________

    Karl SchursterI

    Resumo: Este ensaio tem por objetivo um estudo terico sobre o campo disciplinar da

    histria do tempo presente apresentando algumas reflexes sobre a prtica de quem se

    debrua nessa tarefa. Um dos aspectos principais desse texto fazer uma anlise sobre a

    relao entre as diversas faces das teorias da histria tentando compreende-las sob o

    vis comparativo dos usos e abusos da histria. O motivo condutor que percorre esse

    ensaio a arte de envelhecer. Procuramos estabelecer relaes entre as teorias da

    histria e como as mesmas envelhecem no campo historiogrfico. Assim, comeamos o texto trazendo para o debate as definies de explicao e compreenso atravs da

    filosofia da histria e em seguida entramos no campo da anlise histrica da teoria

    propriamente dita no intuito de esclarecer tanto os caminhos do tempo presente quanto

    suas intersees com outras reas de estudo.

    Palavras-chave: Tempo Presente. Teoria da Histria. Filosofia da Histria.

    Abstract: This essay is a theoretical study of the discipline of the history of this time

    presenting some reflections on the practice who focuses on this task. A key aspect of

    this paper is to analyze the relationship between various aspects of the theories of

    history trying to understand them in a comparative outlook of the uses and abuses of

    history. The leitmotif that runs through this essay is the art of aging. Seek to establish

    relationships between theories of history and how the same 'age' the historiographical

    field. So we started bringing the text to debate the definitions of explanation and

    understanding through the philosophy of history, and then entered the field of historical

    analysis of the theory itself to clarify both ways this time as their intersect ions with

    other areas of study.

    Keywords: Present Time. Theory of History. Philosophy of History.

    Artigo recebido em 28/06/2014 e aprovado em 02/072014.

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    E quando eu esquecer meu prprio nome

    Que me chamem de velho gag.

    Arnaldo Antunes.

    H mais de um sculo a historiografia alem vem debatendo sobre a distino

    entre duas expresses muito corriqueiras no ofcio do historiador: erklrung

    (explicao) e verstndins (compreenso). Aparentemente prximas, mas com sentidos

    autnomos e plurais. Explicar, proveniente do latim explicare, tem como significado

    prprio o fazer conhecer, o tornar inteligvel. Neste sentido, uma erklrendetheorie

    (teoria explicativa) teria como principal objetivo dar inteligibilidade aos seus objetos

    tirando-os das zonas de obscuridade, tentando torn-los menos turvos, embaados.

    Explicar , em larga medida, dar sentido, constituir o objeto, fund-lo de forma

    primria, o sopro inicial de constituio do objeto para si. Compreender, do infinitivo

    latino comprehendere, carrega intrinsecamente a ideia de encerrar em si, de

    abrangncia, de incluso de percepes. Assim, uma theoretisches verstndnis

    (compreenso terica) estaria diretamente relacionada a uma tentativa universalizante

    do ato de conhecer. Se a explicao funda o objeto para si, a compreenso tem a funo

    de juntar as mais variadas formas de fundao deste objeto com o intuito de encerr-lo

    tambm para si. Portanto, compreender, para a epistemologia, est longe de significar

    um aprisionamento de sentido, mas, ao contrrio, se dedica em reconhecer a

    adaptabilidade dos tipos ideais (Max Webber), tentando encontrar os desvios

    (abweichungen) que a compreenso oferece quando tentamos apreender algo.

    Um leitor atento estaria se perguntando depois deste pargrafo inicial qual o

    objetivo deste texto? Porque iniciar com uma discusso to etimolgica se o sopro

    inicial de vida deste texto seu ttulo uma pergunta que urge por uma explicao

    mais detalhada sobre sua natureza? A motivao que nos moveu a sentar e transformar

    pensamentos em narrativa foi o impacto causado em ns por uma pelcula dirigida por

    Stphane Robelin, E se vivssemos todos juntos?II (Et si on vivait tous ensemble?).

    H algum tempo nos dedicamos aos estudos de teoria da histria e de

    historiografia com o intuito de melhor compreender as ferramentas que este campo

    oferece para o dia-a-dia do historiador e foi neste aspecto que este filme nos provocou a

    refletir sobre a histria e o tempo presente. Vamos, pari passu, construir historicamente

    a relao entre a pelcula e a teoria para tentarmos encaminhar alguns lampejos sobre o

    ato de envelhecer.

    Um dos motivos centrais da opo de ir ao cinema foi, sem dvidas, rever a atriz

    Jane Fonda (A Barbarella de Roger Vadim, 1968). Lembro perfeitamente que comprei o

    ingresso sem nem saber o leitmotiv (motivo condutor) do filme. O que queria mesmo

    era ver a elegncia e a sutileza de uma atriz que certa vez me foi apresentada como uma

    redundncia de mulher. Enquanto espervamos na fila do cinema, o cartaz do filme me

    chamara a ateno pelo elenco que compunha a pelcula. Nomes como Geraldine

    Chaplin (marcado em nossa memria pela personagem Tonya em Dr Jivago de 1965 e

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    Mrs. Welland em A poca da inocncia, dirigido por Martin Scorsese em 1993), Claude

    Rich (impossvel de esquecer seu brilhante personagem o General Leclerc no

    fundamental filme construtor do mito gaulista Paris est em chamas? de Ren Clment

    - 1966) e o jovem Daniel Brhl, ou para minha gerao apenas Alex, do filme de

    Wolfgang Becker, Adeus, Lnin!

    Uma hora e trinta e seis minutos depois de iniciada a sesso fomos

    reflexivamente levados ao motivo condutor da pelcula: Como envelhecer? Esse

    questionamento nos direcionou quase que instantaneamente para a teoria da histria.

    Assim que terminou a exibio uma das primeiras inquietaes que nos veio a mente foi

    como a teoria da histria lidou com o "envelhecer"? Qual o sentido desse

    "envelhecimento"? Sentido no s do vis da interpretao psicolgica, mas tambm na

    carne, no corpo. O ex-tits Arnaldo Antunes tinha razo quando falou que "a coisa mais

    moderna que existe nessa vida envelhecer" e continua "(...) no quero morrer, pois

    quero ver como deve ser envelhecer." Alm desse pensamento ser pertinente a pelcula

    a qual nos referimos, tambm de fundamental importncia para (re) pensarmos as

    teorias da histria e seus postulados. Tal qual no filme e na msica envelhecer est

    intimamente ligada a experincia. O envelhecimento carrega consigo as marcas de um

    mundo vivido, as rugas como marcas indelveis do tempo que expe ao presente a

    impossibilidade de esquecer o passado. Cada ruga uma histria, em cada histria uma

    memria e na memria as marcas do tempo, de um tempo que no para de correr, afinal,

    dentro do tempo h mais tempo (Ceclia Meireles - O romanceiro da inconfidncia - que

    por sinal acabou de ser relanado).

    A histria e os discpulos de Clio, os historiadores, construram seus prprios

    postulados, seus corolrios, suas vises de mundo. Nossa questo aqui no

    propriamente seus axiomas ou teses, mas como as mesmas lidaram com o

    envelhecimento, com uma marca pouco sensvel para quem faz a teoria, quem a fabrica,

    a tece, mas muito sensvel para quem usa e abusa dela. Uma das questes mais centrais

    da teoria da histria logo que os Annales franceses sistematizaram um conhecimento

    histrico categoricamente revolucionrio era de como ler o novo sculo (XX) por

    mtodos que abarcassem as preocupaes do novo sculo e no mais do sculo XIX.

    Acreditamos que a avalanche na historiografia causada por esse grupo de intelectuais

    franceses (sem retirar a influncia do historiador Belga Henri Pirrene) est muito mais

    na metodologia do que na teoria propriamente dita. No foi possvel abandonar o sculo

    XIX teoricamente. Beber na sociologia tanto durkheiminiana quanto webberiana foi

    fundamental. A influncia direta na escrita da histria da obra de Michelet foi inegvel.

    Teoricamente o envelhecimento o processo de experincia pelo qual os postulados vo

    sendo maturados conforme suas aplicaes. A experincia no est ligada ao tempo que

    passa, mas ao tempo que se vive. Neste sentido, a teoria que melhor envelhece a que

    melhor absorve as experincias das marcas dos diversos presentes que a leem. No faz

    muita diferena se falamos do historismo, do positivismo, do marxismo, do

    culturalismo, da histria social, todas, em alguma medida, envelheceram. A diferena

    est em como cada uma envelheceu, em como cada uma lidou com suas prprias

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    experincias e como o tempo presente foi dando a cada uma delas novos formatos,

    novas dinmicas, novas formas de vida, sem, contudo, apagar as rugas deixadas pelo

    desgaste natural do tempo. Ainda parafraseando Arnaldo Antunes, "felizmente ou

    infelizmente sempre o tempo vai correr (...), Eu quero viver para ver qual , e dizer

    venha para o que vai acontecer".

    A histria , por excelncia, um constructo de temporalidades e o historiador um

    arteso do tempo. A filsofa alem Hannah Arendt nos disse que endireitar o tempo

    significa renovar o mundo. Neste sentido, a histria do tempo presente se localiza

    como uma constante renovao do mundo, da percepo que temos, criamos e forjamos

    para o mesmo. Endireitar o tempo dar ordem ao caos, tornar legvel aos olhos do

    povo o que apenas foi legvel para alguns. ampliar os espaos de sociabilidade

    chamando os indivduos para pensarem com a histria e no ela em si. Todo historiador

    deve partir de um mesmo olhar: o humanismo. E, com esta viso que podemos pensar

    a histria do tempo presente, como, acima de tudo, um humanismo. Suas preocupaes

    transcendem o mbito das instituies e das hierarquias. A histria do tempo presente

    endireita no endireitando, ela d forma deformando, d sentido retirando o sentido.

    Seus traos so os mais variveis possveis. No h regra rgida, no h mtodo fixo. H

    sim, uma teoria critica que nos faz estranhar o cotidiano como algo dado e natural. A

    funo do historiador do tempo presente dar inteligibilidade ao tempo, fazendo

    aparecer os mais diversos tempos e com isso ampliando as falas, os olhares, as histrias.

    O filsofo francs Jean Paul Sartre nos fez uma condenao: condenou-nos a ser

    livre. Com Sartre sentimos a liberdade como uma epidemia (As moscas) que contamina

    a si e a todos ao redor. O mesmo Sartre afirmou que no pode haver liberdade em

    abstrato. Para ele a liberdade um transcender, ir alm de uma realidade dada, um

    dizer no, tanto mais forte ela pode brilhar quanto mais escura e insidiosa a opresso

    que ela desafia. (LIUDVIK, 2005, p. X). para este ateli das temporalidades que o

    filme de Robelin nos convida onde as mais variadas vises de mundo vivem e convivem

    aprendendo que o dilogo e conflito so parte integrante de qualquer relao que se

    estabelece, seja no campo dos indivduos ou, no nosso caso, no campo terico. Como

    bem afirmou o historiador ingls Tony Judt necessrio voltarmos a fazer crticas. Elas

    so construtoras de crises e estas nos levam a repensar nossa prpria condio de

    construtores de certezas.

    Annie (Geraldine Chaplin), Jean (Guy Bedos), Claude (Claude Rich), Albert

    (Pierre Richard), Jeanne (Jane Fonda) so amigos h mais de quarenta anos. Os dois

    primeiros e os dois ltimos casais esto juntos desde quando o grupo se conheceu.

    Claude, um solteiro convicto que ama amar as mulheres. Uma figura bastante sadiana,

    galanteadora e apaixonada pelo gozo, pelo sexo como uma autoafirmao da sua

    condio de indivduo na sociedade. Claude, marcusianamente falando, representa a

    relao do eros com a civilizao. O filme retrata a histria destes indivduos que esto

    aprendendo a lidar com o processo natural de envelhecimento, com todas as

    dificuldades psquicas e fsicas que esse estgio da vida nos apresenta. Em meio a uma

    conversa para comemorar o aniversrio, um deles prope a possibilidade de todos

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    morarem juntos. Naturalmente, essa ideia no foi recebida de forma positiva por todos,

    inclusive porque apenas Annie e Jean moravam em casa, o que os levaria a serem os

    anfitries desta proposta que, em larga medida, assustou a quase todos que viram com

    esta proposio a possibilidade de perder uma conquista burguesa do mundo moderno: a

    individualidade. Depois que Claude sofre um acidente e diagnosticado com um

    problema coronariano seu filho decide intern-lo numa casa de repouso com pessoas de

    sua facha etria. Claude possua uma forma muito singular de expurgar suas pulses,

    freudianamente falando: a fotografia. A fotografia representava para Claude o que a

    caneta representou para o Marqus de Sade: uma forma de materializar o desejo de

    transform-lo, como pensou Michel Maffesoli, num instante eterno. Ele quase sempre

    fotografava as prostitutas com quem saia e suas amantes completamente nuas durante

    mais de quarenta anos e fazia ele mesmo questo de revelar sua arte. Quando de uma

    vista de seus amigos a clnica na qual Claude estava morando, os mesmos decidem

    literalmente tir-lo do recinto instituindo enfim a ideia de uma repblica de amigos que

    decidiram envelhecer juntos e cuidar um dos outros.

    na instituio desta comunidade que as idiossincrasias se tornam mais evidente

    e que no s as personalidades se tornam mais fortes e presentes, mas tambm o

    passado reinventado e as certezas comeam a se transformar em dvidas. Este

    caminho trilhado pela narrativa filmogrfica nos mostra o quanto temos mais certezas

    sobre o futuro do que sobre o passado e o quanto o passado trs medo e desconfiana

    por estar sempre em transformao. Essa relao trazida pelo filme deveras

    importante. O inesperado futuro no surpreende, justamente, porque dele se espera o

    novo, o desconhecido. O problema reside em quando o passado, que sempre foi o

    mundo de certezas, se transforma numa gaiola de pssaros selvagens com a porta aberta.

    So essas certezas que a (com)vivncia vai quebrar. Neste ponto a relao entre estes

    amigos de algumas dcadas, muito se assemelha com a relao entre as teorias da

    histria. Por que a (com)vivncia umas com as outras, teoricamente falando, sempre

    trouxe mais conflito do que aproximao? A resposta parece ser a mesma que explica os

    problemas enfrentados na convivncia destes amigos: toda certeza que eles tinham

    sobre suas relaes, suas impresses uns dos outros comeam a ser abaladas pelo dia-a-

    dia. Foi como se o real virasse o abstrato, como se ceci n'tait pas une pipe (isto no

    fosse um cachimbo - Magritte). O desenrolar da histria vai nos mostrando passo a

    passo que a coletividade no pode e nem consegue apagar a individualidade. Ensina que

    a vivncia e a convivncia apontam nossas fragilidades, nossas vacncias, nossas

    angstias e acaba se transformando em nossa melhor sesso de terapia. Isso acontece

    diretamente com as teorias da histria e suas variadas possibilidades numa mesma

    temporalidade. A convivncia entre elas fundamental inclusive para que as mesmas

    continuem existindo e que suas divergncias e trilhas distintas so, em verdade, sua

    maior riqueza. Onde muitos acreditam ser sua fraqueza onde reside sua fora.

    Albert (Pierre Richard) a personagem que trs para a discusso a relao dura e

    sofrida entre a memria e o esquecimento. Acometido de Alzheimer e percebendo as

    constantes falhas de sua memria, Albert transforma seu crebro num espao seletivo

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    onde tenta delimitar o que lembrar e o que esquecer. Devido seus lapsos estarem se

    tornando cada vez mais constantes, decide anotar num pequeno caderno todas as

    informaes que no pode ou no quer esquecer. Talvez, em realidade, com o passar e o

    aprofundamento do quadro clnico, Albert nem mais se lembrasse de que possua um

    caderno. Albert coloca-o sempre num ambiente visvel mesmo na sua no lembrana.

    L, ele faz anotaes de bons momentos, bons vinhos que tomou com os amigos e

    tambm da dura notcia trazida pelo mdico de Jeanne de que seu estado de sade

    grave e que a mesma decidiu pelo no tratamento. Jeanne mentiu. Ela est muito

    doente. O mdico me disse que ela se recusa a se operar. Ela tem esse direito. Essa

    anotao de Albert nos aponta para uma direo existencialista, sartriana do conceito de

    experincia. De uma forma geral a filosofia definiu a experincia como um

    conhecimento espontneo ou vivido, adquirido pelo indivduo ao longo da vidaIII

    , Sartre

    completou tal anlise ao trat-la como algo intransfervel, como algo pessoal onde

    apenas o indivduo seria capaz de senti-la, de experiment-la. Sendo assim, seria

    impossvel sentir dor, alegria, tristeza, ou amor por algum. Todos estes sentimentos

    estariam a cargo do indivduo que os sente, que os fabrica no jogo das relaes e que os

    transforma em experincia vivida. Da surge a ideia de que a liberdade no uma

    simples abstrao terica, mas, acima de tudo, uma experincia que se funda na prtica.

    Jeanne (Jane Fonda), uma aposentada professora de filosofia, migrada dos

    Estados Unidos e esposa de Albert, uma mulher de forte personalidade que carrega

    consigo um alto grau de culpa e frustrao. Culpa por ter trado Albert com seu melhor

    amigo, Claude, e frustrao, por no ter tido coragem para viver sua grande paixo.

    Jeanne apresenta um grande mal-estar (no sentido psicanaltico) e depois que

    diagnosticada com uma grave doena, tendo pouco tempo de vida, o tratamento apenas

    lhe daria uma sobrevida, essa hincia aumenta levando-a a uma grande reflexo sobre

    sua vida e como pessoas na sua condio so representadas socialmente. Em vrios

    aspectos, Jeanne nos mostrou estar em sintonia com a obra de Susan Sontag, A doena

    como metfora, ali, a questo central nunca foi a doena, mas sim como ela era tratada

    socialmente. A preocupao com o aspecto social da doena a fez esconder o mximo

    possvel seu diagnstico de amigos e parentes, principalmente de Albert. Sabendo do

    progressivo esquecimento de Albert devido o Alzheimer ela quis poup-lo de qualquer

    sofrimento maior. Jeanne viveu a filosofia de forma prtica. Fez escolhas, tentou ao

    mximo aproveitar o sopro de vida que lhe restara, reconfortando-se de que depois de

    sua partida a comunidade instituda por seus amigos cuidaria de seu marido.

    Um dos pontos centrais de sua participao no filme so seus dilogos com o

    jovem Dirk, personagem de Daniel Brhl. Dirk, aluno de ps-graduao em Paris,

    estava em plena pesquisa de sua tese de doutorado quando se candidata para ser

    responsvel por passear com o cachorro de Albert diariamente e conhece Jeanne. Num

    dos passeios de fim de tarde com o cachorro, Dirk e Jeanne dialogam sobre o tema de

    sua tese e ele explica que trabalha com velhinhos aborgenes da Austrlia e que

    necessitaria passar um tempo a fazer pesquisa e coleta de dados in locu. Ela pergunta a

    Dirk, porque no estudar os velhinhos na Frana e com isso ficar perto de sua

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    namorada. Logo ela oferece a comunidade instituda por eles como laboratrio para sua

    tese. Prontamente ele comea a filmar tudo que eles faziam durante o dia e sempre nos

    fins de tarde sai com Jeanne e o cachorro para passear e conversar sobre a imagem que

    eles tm de si mesmo ao chegar nesta etapa da vida. Um contnuo exame de

    autorreflexo. Nessa discusso eles comeam a conversar sobre relaes sexuais entre

    pessoas na idade dela. muito significativo o constrangimento de Dirk, por tratar de tal

    assunto. Essa atitude dele reafirma a tese de que h um preconceito constitudo, a priori,

    quando se fala em sexo na gerao que chega a idade de Jeanne. Aqui temos alguns

    elementos importantes. A pluralidade que constitui a relao entre esses amigos que

    decidem conviver no mesmo espao vai, pouco a pouco, mostrando suas vontades,

    desejos e acima de tudo suas frustraes. Essa convivncia no mostra apenas o que se

    tornaram, mas como, quais as condies que os levaram a trilhar tais caminhos. Se

    voltarmos ao nosso objeto inicial, a relao entre essa pelcula e a teoria da histria,

    veremos uma interessante semelhana.

    Mesmo em campos distintos, ou em mesmos campos, as teorias sempre foram

    reas de conflito, zonas de incertezas e de luta por afirmao. Quando uma delas aponta

    claramente seu campo de atuao e suas chaves conceituais est no afirmando seu

    lugar de fala, mas est, tambm, se distanciando das demais, deixando claro aos

    discpulos de clio, quais os caminhos que levaram e possibilitaram sua construo como

    campo terico. Quando a histria do tempo presente se consolidou, nos anos 1980,

    como um campo disciplinar, foi gradativamente definindo seu campo de atuao e

    desenhando teoricamente e metodologicamente seu afastamento do campo da histria

    contempornea, j consolidado na Frana e Alemanha. Nesse sentido, uma no apagou a

    outra, mas quando ambas se consolidam no mesmo espao acadmico acabam tornando

    claro suas distines no campo de atuao historiogrfico. Portanto, mais do que

    evidenciar uma identidade, a convivncia entre distintas, mas prximas das reas do

    conhecimento apontam suas diferenas, suas peculiaridades. Est ligado ao que Adorno

    chamou na dialtica negativa de no idntico, o no eu.

    Annie (Geraldine Chaplin) e Jean (Guy Bedos) so casados a muitos anos e

    moram numa bela casa, num subrbio rico, cercada por um grande terreno que inclui

    uma grande e farta horta. Jean um militante por excelncia. Um defensor da poltica.

    Porm, de uma defesa poltica bem atemporal. Sua juventude foi, seguramente, durante

    a Guerra Fria onde os debates de enfrentamento ideolgico foram bastante acirrados e

    polarizados. Nesse sentido, ele se apresenta como defensor de um comunismo que

    aparenta no filme estar fora de rbita, mesmo que parte do seu passado ainda seja

    presente. Quando o filme comea ele est protestando contra a polcia que chega a

    retirar moradores de um prdio invadido. Sua esposa Annie uma pacata senhora que

    deseja enormemente reaproximar a famlia e ter mais convvio com seus netos que

    pouco a visitam. Ela tambm guarda um amor de juventude: Claude. O mesmo que

    Jeanne. Como sua amiga, no pode viver nem declarar seu amor por Claude,

    transformando sua paixo num lugar de interdio. Esse casal representa o

    contraditrio, a fuso da ideologia de um homem cujo passado no passa e, nesse

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    sentido, sua militncia se estende ad eternum, e uma mulher cujo cotidiano e vida

    aparentam ser previsveis, sem drsticas alteraes. No vou me adaptar. Essa seria a

    expresso que melhor definiria Jean no seu tempo presente. Sua vida poltica foi to

    ativa durante a juventude que ele apresentava grande dificuldade em se adaptar ao novo

    presente que se impunha. J Annie, que optou pela segurana do casamento j

    estabelecido, em detrimento das suas pulses, desejos, acabou trazendo para si o

    conforto das zonas de certeza. Mesmo que essa zona de conforto tenha se construdo

    com mentiras sinceras, mas, como disse certa vez o poeta, mentiras sinceras me

    interessam.

    Aqui, tambm temos uma excelente associao com a teoria da histria. Jean

    alude para ns a dificuldade de teorias se adaptarem ao presente que se impe. As

    transformaes da sociedade implicam que as teorias devem acompanh-las em suas

    revolues moleculares. O grande problema que para isso a certeza apresentada por

    seus postulados devem ser questionados, plasticamente dobrados at seu ponto de

    fissura. Nesse caso, as rachaduras apresentadas na teoria, depois de ter sido dobrada at

    a exausto, entendida como parte integrante do ofcio do historiador que ao invs de se

    dobrar a teoria, modifica-a construindo novas possibilidades, olhares e caminhos. Toda

    teoria fruto de um tempo histrico, que por mais que no a determine, demonstra quais

    as possibilidades de sua existncia. Entender que as teorias s existem a luz do tempo e

    do espao dar a elas uma identidade, que no necessariamente fixa, mas completa

    de historicidades.

    A todo o momento o filme coloca para ns a dificuldade do ato de conviver e os

    problemas sociais e individuais do ato de envelhecer. Teoricamente esta questo

    tratada pela historiografia com certo desprezo. Todas as teorias querem se apresentar

    jovens, como se o tempo s fosse duro e cruel com as outras e no consigo mesmo.

    Neste sentido, uma teoria sempre permanece com a juventude de Dorian Gray enquanto

    as outras guardam para si o envelhecimento que o quadro da imagem dele carrega. Em

    uma entrevista, das muitas j proferidas, Zygmunt Baumann foi perguntado sobre

    envelhecer e prontamente respondeu: "sabemos o que nos espera". Essa assertiva do

    socilogo polons por mais que esteja diretamente ligada a certeza que os indivduos

    possuem das aes do ato de envelhecer tambm alude para nossas questes tericas. As

    teorias sofrem os mesmos desgastes naturais do tempo que ns sofremos. Voltar a

    questo central deste ensaio seria fundamental para refletir no aonde chegamos, mas

    para onde vamos. O ato de envelhecer.

    Talvez, a primeira necessidade seja de autorreflexo. Envelhecer nos obriga a ter

    uma conscincia de si que muitas vezes no acompanha a relao crebro-corpo. Em

    alguns momentos somos surpreendidos por no possuir mais a elasticidade corporal de

    antes, a mesma memria, a mesma disposio de antes. quando nos damos conta que

    envelhecer no um ato terico, mas sim, um ato prtico que se sente no dia a dia.

    Acreditamos que com as teorias acontece algo muito semelhante. Com o passar do

    tempo e o desenrolar da histria, pouco a pouco, ela vai perdendo sua plasticidade, seu

    poder de apropriao dos diversos e constructos reais. Isso no necessariamente uma

  • E SE (COM) VIVSSEMOS TODOS JUNTOS? ENSAIO SOBRE A HISTRIA DO TEMPO

    PRESENTE

    KARL SCHURSTER

    Cadernos do Tempo Presente, n. 16, mai./jul. 2014, p. 3-11 | www.getempo.org

    crtica. Outros aspectos vo sendo destacados com seu amadurecimento. Cada vez que a

    teoria vai sendo utilizada ela ganha as marcas do tempo e vai com isso ampliando seu

    poder de adaptabilidade, sua capacidade camalenica de mudar de cor, de forma, para se

    adequar ao novo ambiente, como uma maneira de sobreviver aos constantes mundos em

    que se insere e est inserida.

    Ainda cometemos os constantes equvocos de colocar as teorias num espao de

    luta, onde conviver no seria possvel. O embate no se d num, hoje famoso, octgono

    onde apenas um lutador sai vencedor, mas a lgica a mesma. Sempre uma teoria acaba

    prevalecendo sobre outras e anunciando prematuramente sua morte. Michel de Certeau

    tinha razo quando afirmou que os historiadores anunciam mais a morte que a vida.

    Quando damos sentido a um objeto e construmos uma teoria acabamos, mesmo que

    desapercebidamente, matando o sentido de vrias outras. Nossa difcil tarefa, no tempo

    presente, aprender como conviver com tantas possibilidades tericas sem,

    necessariamente, neg-las, e, como envelhecer sem apagar as marcas da experincia e

    ao mesmo tempo seguir se transformando para novos tempos presentes. O professor

    Franois Hartog nos deu uma dica quando mostrou a imperatividade do regime de

    historicidade, cabe a ns transform-lo em prtica.

    Notas I Doutor em Sociologia (UF Ps Doutor em Histria, doutor em Histria Comparada pela UFRJ.

    Professor de Teoria e Metodologia da Histria da Universidade de Pernambuco e Bolsista do Yad

    Vashem/Jerusalm. Esse ensaio parte integrante do projeto conjunto com o Grupo de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal de Sergipe e conta com o apoio da bolsa APV FACEPE em pareceria com o prof. Dr. Dilton Maynard. II ROBELIN, Stphane. E se vivssemos todos juntos. Imovison: Frana/Alemanha, 2012. III JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio Bsico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar, 2010.

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