É possivel?

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Este é um dos meus mais recentes contos. Nele conto o breve momento do começo do fim (ou do fim do começo) da vida de Daniel, e como Aurélio (cachorrinho de Dan) o ajudou neste momento.

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É possível?

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Os aplausos podiam ser ouvidos freneticamente: ele iria iniciar mais uma palestra

sobre seu fantástico livro “Imagine: é possível!”. Com um sorriso largo e seguro de si, ele

levantou-se da cadeira e foi para o meio do palco. Quando começava a falar, nada o

parava. Era considerado, por muitos, um semeador de novas ideias, o combustível para

que a nova geração começasse a pensar, a possuir autonomia e liberdade. Ele, mais do

que ninguém, desejava ver um mundo livre, onde todos conhecessem seus limites, mas

que mesmo assim pudessem possuir uma liberdade infinita. Chegara o ápice de sua

palestra, a sua parte favorita: “Senhoras e senhores, estamos voando!”. Mas ao invés de

ser contagiado pela adrenalina de prosseguir com seu texto planejado, ele sentira seu

coração palpitar, seu rosto ferver, sua cabeça girar, uma dor lhe invadir, uma fraqueza lhe

derrubar, um zumbido lhe atingir, um medo de não poder mais falar com aqueles que o

esperavam, um desespero o mover para a direita, algumas perguntas a lhe confundir, um

silêncio a se formar, um frio a lhe envolver, o fim de tudo. Talvez, aquele não fosse o fim,

mas o início.

De fato, ele não havia esquecido as últimas palavras por ele lidas. Aurélio adorava

as manhãs em que ele acariciava sua cabeça, apanhava o jornal de sua boca e

começava a ler aquelas palavras que, para Aurélio, não faziam sentido (não em sua forma

denotativa), mas o conjunto de sons e sorrisos eram como uma peça, onde o maestro

estava sempre pedindo mais entusiasmo, força e emoção. Saber que ele não iria ler o

jornal pela manhã, enquanto ouvia Thomas Newman, acariciava sua grande cabeça (que

chegava a ser desproporcional ao corpo) e tomava café, tirava o sentido de pular ou latir,

como o fazia todos os dias.

“Dan, pare de ler esse jornal para um cachorro, que sequer o entende! Você vai se

atrasar para a palestra: já são 11horas! Vá se arrumar!”. E lá vinha a dona Flávia nervosa,

como sempre. E como não se estressar com um marido tão calmo, ainda de pijama,

deitado na cama, lendo jornal? “Meu bem, eu ainda tenho 15 minutos para me vestir! Vá

tomar um chá para se acalmar, já estou descendo.”. Na verdade, ele demorou mais de 20

minutos para se arrumar. Estava tranquilo. Daniel só não sabia que aquele dia seria

recheado de surpresas.

Aurélio não entendia, exatamente, o que se passava, mas para ele, toda vez que

olhavam-no e começavam a chorar, parecia que tinha feito algo muito errado. A única

coisa que, naquele momento, fazia sentido para ele eram os sons e o mover do sol. O sol

já estava quase se pondo e, de todos os carros e pedestres que passavam, nenhum deles

trazia Dan.

“O espaço sideral é como uma orquestra sinfônica que apenas aqueles que estão

livres de toda poluição sonora podem perceber. A sensibilidade que nos foi dada no início

de nossas vidas nos é tirada aos poucos e nem nos importamos com isso. Nossa

humanização nos transforma em pessoas bitoladas ao comum. É preciso querer saber,

buscar o impossível e respondê-lo”. Era a parte final da palestra, onde todos já haviam

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feito uma enorme viagem por algumas das páginas e passagens do livro de Dan. “Vocês

devem ser exatamente como as crianças: aprendam com naturalidade e a descoberta

será contínua.”. No entanto, Dan não conseguira chegar nessa parte de sua palestra.

A noite dera espaço para a bonança, mas não para a segurança de que tudo

voltaria ao normal. Aurélio se espreguiçou e foi até a porta: lá estava o jornal. Encarava

aquele maço de papel escrito, mas sem aquele belo sentido de alegria que há pouco

tinha. O jornal não iria falar com ele. Foi então que ele decidiu pegar o jornal e sair de

casa. Andou muito até chegar ao túmulo de Rafael, o pai de Dan. O túmulo não ficava

muito longe de casa, pois uma dos pedidos de Rafael era ser enterrado no jardim de sua

casa, no entanto, para Aurélio (que já estava um tanto quanto velho), aquela caminhada

era uma maratona individual. Sobre túmulo, haviam vários jornais: toda vez que acontecia

algum problema com Dan, Aurélio levava um jornal para Rafael, na esperança de que ele

pudesse intervir de algum modo. Não havia mais nada a ser feito, exceto esperar. Ele foi

para casa. Aquele entra e sai de tantas pessoas inquietas o deixava, claramente, ansioso.

“Chamem uma ambulância: ele está tendo um ataque cardíaco!”. Foi o que disse

um dos jornalistas. O socorro chegou rapidamente e a família inteira fora informada do

infeliz acontecimento. Alguns dos primos vieram rapidamente para a capital, a fim de dar

apoio e ajudar no que fosse possível, para que Flávia pudesse ficar mais calma. Outros,

apenas rezavam de longe. O fato era que todos participavam de algum modo.

Aurélio, mesmo cansado, ainda acompanhava os sons e o sol. Eles lhe davam a

rotina e a segurança de que, ao menos, alguma coisa iria permanecer junto a ele. Mas

nada poderia acalmá-lo verdadeiramente, exceto a presença de Daniel.

“Ele sempre fora um motivador de ideias e um ótimo escritor. Com tanta gente o

apoiando, da maneira que se pode, ele com certeza ficará bem.”. Apesar de a repórter

não ter dado tanta emoção ao texto, quanto se esperava, a notícia fora dada. “Daniel, o

autor de „Imagine: é possível‟ tem apenas 53 anos e já havia vendido cerca de 1,5 milhão

de exemplares, além de já ter dado mais de 30 palestras só neste ano. Esperem! Acabo

de receber uma notícia: ao que tudo indica, a cirurgia foi um sucesso! Os médicos

estimam que, dentro de 1 ou 2 semanas ele já receba alta.”. Aurélio, de súbito,

despertara: todos na casa estavam esbanjando felicidade com gritos e sorridos, muitos

abraços entre eles e todos lhe acariciavam o pelo sem parar. Isso só podia significar uma

coisa: Dan estava bem e iria voltar para casa! “Daniel, todos nós desejamos uma ótima

recuperação e muita saúde para você! Agora, vamos falar...”.

Sim, ele estava bem e o equilíbrio, naquela casa, ia, aos poucos, se

restabelecendo. “Obrigado, Rafael! Você nos salvou, novamente!”. Era tudo o que Aurélio

conseguia fazer naquele momento (além de pular e latir). Mal podia esperar: dentro em

breve o jornal poderia ser entregue a Dan e, ele, poderia ouvi-lo contar as palavras a ele!

E nunca mais, Aurélio, iria permitir que Dan partisse para arriscar-se daquela maneira:

suas leituras de jornal eram mais importantes que qualquer palestra!

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