e o pecado era meu!- nora carrel

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... E O PECADO ERA MEU!

NORACARREL NORA CARREL o pseudnimo literrio de Maria Adozinda Pimentel. A romancista que a EPASA tem a satisfao de apresentar ao pblico brasileiro nasceu em Araraquara, no Estado de So Paulo, mas logo se transferiu para o Rio, onde iniciou os estudos no Colgio Sacr-Coeur de Marie, em Copacabana. Cedo revelou sua vocao literria, tendo colaborado por longo tempo no "Correio da Manh". Tem o curso geral da Escola de Belas-Artes, onde se destacou nos estudos artsticos. Sente-se alis, em seu livvo, uma ntida inclinao por tais assuntos. Versando em seu romance de estria um assunto sobre o qual j tanto se tem escrito a infelicidade no casamento ela o fez de um modo novo, todo especial, emprestando ao livro muito sentimento, muita emoo, de modo que a histria nos parece realmente vivida. Uma edio E P A S A

2

NDICE

PAGS. Captulo I.................................................. Captulo II ............................................... Captulo III.................................................... Captulo IV....................................... ........... Captulo V .................................................... Captulo VI.................................................... Captulo VII .................................................. Captulo VIII ................................................ Captulo IX.................................................... Captulo X ................................................ Captulo XI.................................................... Captulo XII................................................... Captulo XIII................................................. Captulo-XIV ................ ........

7 21 34 54 75 100 111

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196 206223

NORA

C A R R E L - ... E O PECADO ERA MEU! ROMANCE

"Esta, uma histria de fico. Seus personagens, nunca existiram na realidade; mas como nada original, talvez algum

se encontre, ou aos seus transes, nas pginas que se seguem. Isto, porm, ser um simples acaso".

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Eram sete horas de uma manh clara e cheia de sol, quando o Dr. Teodoro Buarque, atravessando o jardim silencioso da casa de Cludio Monteiro, fez soar a campainha. Enquanto esperava que abrissem, lanou um olhar demorado, que foi escorregando cheio de emoo, escada abaixo, pelo caminho de areia branca, pelo gramado todo brilhante ainda das gotinhas de orvalho. Subia de tudo uma serenidade, uma impresso repousante e lnguida, uma como indiferena da natureza pelas paixes que atormentam os homens. Sim, indiferena, pois o sol brilhava alegre, as flores desabrochavam e at dois pssaros saltitantes pousavam agora no galho da accia e quebravam com seu chilreio o silncio recolhido do jardim. Circunvagou o olhar pela varanda de arcadas redondas, de ladrilho encerrado e brilhante, onde um grupo cromado e vermelho punha uma nota estridente de cor... Ali estava a mesma casa que le visitara tantas vezes, como velho amigo da esposa de Cludio, aquela suave Lucila, a quem vira nascer. Lembrava-se to bem dela, quando... O rudo de algum, abrindo a porta, cortou-lhe as recordaes. Endireitou o pince-nez. Era Leonardo, o criado que o recebia solcito. "Bom dia, Dr. Teodoro... Entre, faa o favor de entrar". Tomou-lhe o chapu e s ento percebeu por trs de Leonardo, a velha Teresa, de mos trmulas, olhos vermelhos de chorar, mais curvada ainda, como se lhe pesasse a dor que carregava no corao. "Telefonei muitas vezes, no atenderam" disse o recm-chegado. "Ah! Senhor doutor, o Dr. Cludio mandou abafar os telefones. No quer que se atenda a ningum" explicou Teresa.

Foi bom o senhor ter vindo, acrescentou Leonardo o Dr. Cludio no quer alimentar-se, no sai do escritrio, no quer ver ningum. Estamos aflitos, le capaz de ficar doente." "E onde est agora?" "Ainda no escritrio." "Vou v-lo". V, sim. pediu Teresa le precisa tanto de consolo." Ficaram olhando o velho mdico que se afastava. Havia no olhar dos dois servos a angstia e a esperana. O Dr. Teodoro era ainda forte com seus sessenta anos. Sua cabea, sim, embranquecera completamente, o que lhe dava um aspecto romntico. Magro, alto, ainda elegante, atraente em extremo, era disputado como mdico e como amigo. Seu olhar tinha uma penetrao incomum e sempre pronunciava a palavra esperada. Quem se aproximava dele sentia-se confiante, pois a todos ouvia com natural interesse e simpatia. Ao penetrar no escritrio de Cludio, sentia-se empolado por emoes vrias que o faziam, pela primera vez, vacilar sobre que diria. Bastou-lhe porm um olhar, para que do seu corao subissem ondas de comiserao que se condensaram em palavras amigas. Cludio parecia no o ouvir. Apenas lanou-lhe um olhar dorido e exausto. Seus lbios tremeram, mas no pronunciou nem uma palavra. O Dr. Teodoro puxou uma cadeira e sentou-se diante dele. Consertou o pince-nez lentamente, num gesto muito seu, para refletir ou observar. Oua, eu sei que palavras no amenizaro seu drama. E' terrvel, de fato terrvel. S mesmo o tempo poder ir levando para mais longe, na nossa saudade, esta dor. Nunca6

esqueceremos, porm, nunca. Eu sou seu amigo, Cludio, e vi Lucila nascer." E como Cludio continuasse calado e imvel, pela sua memria passou toda a vida daquela criatura to querida que j no existia, desde o momento em que a tivera pequenina, tremendo de frio, entre as mos. Sorriu a esta viso remota. Depois, os anos passando, e ela crescendo sombra dos seus cuidados, to cara como se tambm fosse um pouco sua filha, sendo filha de Silvrio, seu melhor companheiro de infncia, que estudara com le, e durante trinta anos trabalhara no mesmo hospital. E concluindo em voz alta seus pensamentos, disse: Cercamos sempre Lucila de um carinho extremo... - "Um carinho extremo repetiu Cludio com voz morta. Quem? "Voc no me ouve, natural, eu estava relem? brando uma longa histria." Uma histria longa..." murmurou Cludio. Mas oua, Cludio, no falemos mais sobre o passado... preciso que voc reaja, que volte vida, que lute. por voc mesmo e pelo seu fliho." Meu filho..." Hoje vim aqui busc-lo. Tenho um caso difcil no hospital." Procurava dar voz um tom natural. "Uma mulher que sofreu um acidente... Vamos oper-la e eu preciso que voc v para ampar-la pelo lado clnico, compreende?" S ento, Cludio pareceu acordar. Fitou o Dr. Teodoro intensamente e sua voz soou estranha. No, meu amigo, no me pea que volte ao hospital! No posso!" 0 Dr. Teodoro observou-o em silncio com seu olhar agudo e manso h um tempo. Deixou que serenasse a exaltao que por7

um momento animara aquele rosto abatido, onde procurava reencontrar os traos antigos que o tornavam to pessoal. Onde a luz mordaz, que fazia brilhar aqueles olhos amendoados e verdes, em contraste com a pele queimada pelo sol? Onde aquele desembarao audacioso de atleta ou deus pago, que atraa todos os olhares, logo que entrava em qualquer lugar? Novamente falou incisivo e firme: preciso que me oua, Cludio. Por que no quer voltar ao hospital? Por qu? Ento voc pensa que tem o direito de se recusar quando algum sofre? Voc acha justo deixar sem assistncia um doente que depende de um hospital de indigentes, s porque determinamos ser impossvel retomarmos o ritmo da vida? Sei que voc ficou abalado, mas no podemos paralisar a vida, impedir a marcha do mundo, trancarmo-nos num egosmo sem proveito." Parou ante a expresso de sofrimento de Cludio. "Dr. Teodoro, eu sou um fracassado na medicina, como em tudo mais. intil querer lutar, intil. Ningum compreender o drama que tenho vivido." "No diga isto, meu filho. Todos compreendem. Voc foi durante dez anos perfeitamente feliz com Lucila. Vocs se compreendiam, se estimavam, se completavam. Quem no compreender o que representa uma perda assim, um golpe destes?" "Ningum, nem o senhor, ningum mesmo, compreende." Passou-lhe pelo rosto um sorriso doloroso, enquanto continuava: S eu, s eu mesmo, posso medir a altura do abismo em que me despenhei, ningum mais. Peo-lhe, se o senhor me tem alguma estima, peo-lhe, no insista. Deixe-me ficar sozinho, remoendo meus pensamentos ."8

"Neste caso... mas no se esquea de que pode contar comigo em qualquer contingncia." Levantou-se. Cludio apertou-lhe a mo em silncio, como se o esforo que fizera para falar tivesse acabado de gastar sua energia. Na sala de entrada o mdico encontrou Teresa que esperava por le. Interrogou-o com o olhar ansioso. Nada, Teresa. melhor deix-lo. A reao se dar por si. E o menino, onde est?" Ainda em casa de D. Lida." Ele naturalmente qualquer dia pedir para ver o filho. Isto ser um bom sinal." 'Pousou a mo no ombro de Teresa com simpatia. "Voc tambm precisa coragem. Teresa precisa ajudar..." "Eu tenho feito tudo, seu doutor, mas no posso me acostumar com uma cousa desta. . . " As lgrimas comearam a deslizar pelas faces enrugadas da pobre velha. "Voc no religiosa?" "Graas a Deus, seu doutor." Ento, minha filha, procure resignao junto de Deus." Obrigada..." Ele desceu a escada sem se voltar. Teresa fazia parte de todas as cenas da vida de Lucila. Fora sua ama desde que a menina nascera, e ali estava fiel sua memria, depois da sua morte, pronta a ser junto do pequeno rfo que ela deixara, o que fora para a morta querida. Novamente atravessou o jardim, agora povoado de aves e cheio dos rudos que vinham da rua e atravessando as grades invadiam profanamente aquele recinto e quebravam o silncio recolhido. Seus olhos pousaram no esguicho do repuxo que subia fino e se desfazia em gotas multicores aos raios do sol, ante o olhar 9

parado de um grande sapo de porcelana que parecia no se cansar de admira-lo.. . Deixou o jardim, ganhou a rua, apressando o passo, depois de ter dispensado o chauffeur, como se quisesse fugir dali, caminhar, caminhar a p, espairecer, enquanlo seu corao dolorido lhe segredava ser intil fugir. . . * * * Cludio ficou alguns momentos, como que aniquilado, sem se mover da poltrona em que passara a noite e onde o Dr. Teodoro fora surpreend-lo. Ouviu os passos do amigo, afastando-se na sala vizinha, ouviu, sem distinguir as palavras, as vozes que soavam alm da sua porta e s quando percebeu que sara, ergueu-se e espreitou por trs da cortina. Viu o mdico atravessar devagar o jardim e ento, deixando a janela, deu volta chave, cautelosamente. Esteve um pouco parado, fitando uma tela onde Lucila sorria, procurando encontrar-lhe. o olhar. o que no conseguiu. pois o autor fixara num trao feliz aquela expresso introspectiva e sonhadora que tanto a caracterizava. Baixou depois os olhos, caminhou lento, sentou-se sua secretara e abrindo a gaveta tirou um livro forrado de couro fino e abriu-o lentamente com mos trmulas. Acarciou de leve as folhas largas, cobertas pela letra grande e clara de Lucila e teve a impresso estranha de que ela ali estava presente, para viver diante dos seus olhos amortecidos pelas viglias, aquelas pginas todas. E comeou a ler, pela dcima vez. "O Dr. Teodoro trouxe dois mdicos para me ver. Disse me sorrindo que eram velhos amigos seus e de meu pai e eles procuraram conservar um tom cordial de visita, mascarando o verdadeiro motivo de sua presena. Eu sorria intimamente deliciada com este embuste do Dr. Teodoro. No sei porque10

tentou iludir-me. Talvez para que no fique cismada com duas conferncias, em apenas um ms. Ele incansvel e tem feito desfilar pela minha sala. todas as sumidades, de passagem ou radicadas no Rio. Eles vm, conversam uns, interrogam outros e no voltam. Sei o que isto significa, mas nada digo a Cludio nem ao meu velho amigo, para os no afligir. No sabem o meu mal. No podem saber... Uns falam em estado psquico, outros em traumatismo moral ou nem sei mais qu. . . 0 fato que me sinto resvalar lentamente, lentamente, para o fim de todas as minhas amarguras. A presena do Dr. Teodoro, duas, trs vezes ao dia, enche-me o corao de uma ternura emocionada. Lembro-me dele em todos os momentos mximos da minha vida. Foi le quem assistiu minha me, quando nasci. Acompanhou meu desenvolvimento e com os anos me encheu de manhas, como dizia meu pai. Entretanto, tenho vagas recordaes dos primeiros anos, quando ele chegava com os bolsos cheios de caramelos, e um ar desentendido de caso pensado, que me fazia revist-lo, malgrado as advertncias de minha me. Desse tempo, lembro me bem de um dia em que, trepada num banquinho, meti a mo no seu bolso e, perdendo o equilbrio, descosi-o todo. Fiquei muito desapontada e mamar, chamando Teresa, mandou que me levasse. A primeira recordao ntida que tenho dele, foi quando me tomou ao colo e me levou para espiar minha me, toda coberta de flores, deitada no seu caixo, luz bruxoleante das velas, cujas chamas, ora se espichavam compridas, ora se encolhiam, dando a impresso de movimentos quele rosto inerte. Ela est dormindo?" "Psiu! fez le, apertando-me mais. "Est e no fale alto para no acord-la."11

"Mas porque est dormindo na sala e com estas flores? uma festa? Por que tem tanta gente aqui?" E avistando meu pai, gritei: " Papai!" Ele, ao entrar, no ergueu a cabea que tinha entre as mos, para que eu, que s tinha cinco anos ento, no o visse chorando e ficasse procurando a significao das suas lgrimas. Depois desse dia, muitas vezes procurei minha me, pela casa toda, ansiosamente. Teresa encontrava-me chorando, chamando por ela e procurava distrair-me, mostrando-me livros ilustrados ou contando-me histrias. O Dr. Teodoro vinha todos os d as jantar com meu pai. Em geral eu dormia no colo dele. Gostava de fazer tilintar entre os dedos a sua chatelaine de ouro, mas acabava dormindo e quando acordava, pela manh, estava na minha cama. Durante muito tempo fiquei em dvida, se aqueles longos seres, cujas conversas eu no compreendia, eram realidade ou sonho. Assim correu minha vida, sem alternativas, durante trs anos, naquele ambiente calmo, entre os trs amigos de toda a minha vida: meu pai, o Dr. Teodoro e Teresa. Um dia soube que ia para um colgio. A primeira reao foi penosa. Ir interna para um colgio, no sabia bem o que seria, mas intuitivamente compreendi que era o fim da minha liberdade. Tive medo, horror mesmo que se cumprisse a resoluo de meu pai. Talvez, sem que eu mesma compreendesse, fosse o receio de perder aquela paz que me habituara a desfrutar, vivendo sozinha, sem ter experimentado a companhia de outras crianas, contentando-me com a minha imaginao que criava fantasias, povoando a minha solido de sonhos sem fim. . . E como eu adorava estes sonhos! Qualquer cousa, s vezes banal, excitava a minha sensibilidade e daquele ponto de 12

partida, eu alava vo, alto, alto. . . At hoje gosto destes devaneios, no consigo furtar-me a eles. Empolgam-me, tomam meu esprito de assalto. . . Por isto, naquele dia, chorei muito, horas a fio, sentada no meu quarto, entre as minhas bonecas e os meus livros. Foi ainda o Dr. Teodoro quem me esclareceu, fazzendo-me encarar melhor a resoluo de meu pai. Sentou-se numa cadeirinha baixa e fingindo que era um compadre em visita, comeou: Como vai a senhora, D. Lucila?" e fazia uma voz cmica que me fez sorrir. "E a minha afilhada? Vim v-la..." Ele era de fato o padrinho de uma de minhas bonecas. Levanteime e fui busc-la. "Olha a, compadre, ela estava de castigo. . . Fale com seu padrinho, menina. Bom dia, padrinho continuei em tom de falsete." "Ento, voc est de castigo?" perguntou le com voz grossa. Ento no pode ganhar um presente . . . " "Pode, pode!" apressei-me a dizer, pois sabia que os presentes eram sempre para mim. Bem, ento, espere. Teresa!" chamou risonho. Teresa entrou com um embrulho. Ele comeou a desfaz-lo, espiando-me disfaradamente, enquanto dizia: Isto para voc usar no colgio..." Foi como um banho frio. Ento le tambm, que eu contava ter como aliado, estava contra mim? - "Mas eu no quero ir. . . " _ "No quer? Por que, Lucila?" "No sei, no gosto de sair daqui." "Escute, minha filha, voc precisa ir para o colgio. L, voc ter muitas meninas como voc, para brincar. . . "13

"Eu no gosto de brincar com ningum." "Voc no sabe se gosta, meu bem. Voc vive to s. . . Irei visit-la duas vezes por semana, voc vir em casa todos os meses e, pelas frias, passearemos muito." "Mas eu no quero, no quero. . . " As lgrimas comearam a rolar dos meus olhos vermelhos. Ele esperou um pouco para continuar: "Olhe o que comprei para voc." e abriu o estojo forrado de veludo verde, onde brilhava um jogo de talheres, copo e argola para guardanapo, tudo de prata. "Que lindo!" exclamei. "Pois ento?" "Mas posso usar isto em casa..." "No, eu dou para voc ir para o colgio." Eu no concordava com esta condio, mas le tinha um grande poder de persuaso. E quando saiu, se no me deixou ansiosa pelo colgio, pelo menos j no o encarava como uma clausura ou uma cousa ruim. Da a um ms, no nosso carro, guiado pelo Juvenal, entre meu pai e o Dr. Teodoro, com Teresa no banco da frente, transpunha o largo porto do colgio, onde se ia desenrolar o segundo perodo de minha vida. . .

*** Minha adaptao foi mais fcil do que se podia esperar numa criana que desconhecia a rgida disciplina dos pensionatos religiosos. Era bem tratada pelas freiras, porque era dcil, e consegui conquistar entre as colegas algumas amizades. Entretanto senti muito a falta dos mimos que tinha em casa. Era um tanto caprichosa na alimentao e Teresa cultivava este defeito, inventando quitutes e gulodices.14

Os melhores dias para mim eram, naturalmente, os de visita. Ficvamos em classe, com o livro aberto sobre a carteira e o sentido distante, procurando distinguir os passos sutis da irm que deslizava pelo longo corredor e chegando porta, pronunciava o nome daquela que era solicitada ao parlatorio. Quando ela aparecia na moldura alta da porta pesada, todos os olhos fitavam ansiosos o seu rosto que no exprimia cousa alguma, e todos os ouvidos ficavam atentos s suas palavras. Ah! a emoo que senti a primeira vez que fui citada assim Tive um desejo louco de sair correndo, empurrar aquela figura negra, plida, lenta, e entrar saltando no parlatorio envernizado e cair nos braos de meu pai. Em lugar disso, tive que me levantar com correo, fazer uma vnia diante da irm que nos observava da sua alta ctedra, e seguir vagarosamente a outra, pelos corredores que se me afiguraram sem fim. Mas, afinal, cheguei. Meu pai, o Dr. Teodoro e tambm a minha velha Teresa, com um embrulho grande, onde adivinhei as delcias costumadas, estavam minha espera. Beijei-os a todos num transporte. E notei pela primeira vez aquele gesto lento com que o velho amigo conserta o pince-nez para ter tempo de observar ou vencer alguma perturbao. Voc est bem disposta!" disse meu pai satisfeito. .. e alegre" acrescentou o Dr. Teodoro Teresa no dizia nada. Hoje que compreendo o seu gesto mudo de me abraar e me estender o embrulho. Ela estava comovida demais para falar. Fomos para o parque do colgio e eu fiquei surpresa do seu aspecto neste dia. Distitngui algumas colegas com suas visitas, senhoras elegantes, toiletes claras, destacando-se dos sombrios uniformes das alunas. Ouvia risos e conversas em tom alegre. Como ficava bonito, assim, o jardim!15

Meu pai queria saber se eu estava satisfeita, se j tinha amigas, se gostava das freiras. Contei-lhes todas as minhas impresses. Enquanto conversvamos, eu ia chupando os caramelos que o Dr. Teodoro me trouxera. A tarde se passou muito rpida. Quando mal podia pensar, ouvi o sino badalando, badalando, e vi que todos se despediam e senti um baque no corao, ao pensar que teria que viver alguns dias, longe do carinho daqueles trs entes to caros, at a nova visita do domingo. Despedi-me, porm, corajosamente, retendo a custo as lgrimas, porque prometera ao Dr. Teodoro no chorar. Fiquei junto da escada vendo-os afastarem-se, os dois conversando e Teresa de cabea baixa, um pouco mais para trs, como se lhe custasse irse embora. Antes de entrar no carro, voltou-se para mim e acenou-me adeus. Muitas vezes, iria ver este gesto seu e sempre com a mesma tristeza. Passei a contar o tempo da minha vida pelos dias de visitas, pelos domingos de sada, at que chegaram as frias de junho. Nunca poderei esquecer aqueles quinze dias que passaram velozes. Esta tambm foi uma impresso que me ficou por muitos anos, at mesmo hoje, de como se tornam impacientes por passar, os nossos dias de alegria. Assim vivendo, de semana em semana, de ms era ms, de frias para frias, escoaram-se oito anos da minha existncia. Estvamos todas ansiosas pelo dia da nossa formatura. Haveria missa solene, um lanche e, tarde, colao de grau. Aquelas, cujos pais assim o desejassem, poderiam levar suas filhas na mesma tarde. Meu Deus! Quantas e quantas horas, passamos sonhando com aquele momento, conversando sobre os vestidos, projetando visitas, umas s outras! O grande dia chegou, maravilhoso e cheio de sol. Eu cantava no coro e, durante a missa, subitamente cruzou-me o crebro a lembrana de que era aquela a ltima vez que assistia e cantava16

naquele ofcio. Que estranha sensao me cerrou o corao! Sim, saudade daquele silncio, daquela calma, daquela capelinha que muitas vezes ajudara a arrumar e ornamentar. Um receio incipiente e indefinvel, perturbou-me o esprito. Eu estava junto balaustrada do coro e justamente naquele instante meus olhos ansiosos encontraram o olhar calmo de meu pai. Foi o bastante para me sentir segura. Mas, tarde, quando tive que me despedir das colegas, das mestras, no pude mais disfarar e chorei, chorei, todo o caminho para casa, abraada a meu pai e com uma das mos entre as mos do Dr. Teodoro! *** Logo depois da minha volta, Teresa me passou em parte a direo da casa. Tudo que se referia a meu pai, me ficou afeto. Isto constitua tal novidade que eu no tinha tempo de me demorar pensando. Logo pela manh, corria a correspondncia e sentados na ampla varanda de cujas arcadas pendiam grandes samambaias choronas que balouavam suas cabeleiras verdes ao vento fresco, ia-lhe passando as cartas, depois de examinar o sobrescrito. "Esta tem selo francs, papai..." dizia intrigada "Voc tem conhecidos l?" "No, minha filha, todos os mdicos recebem destas cartas. So reclames de produtos, ou alguma revista mdica." "E esta... letra de criana." "Deixe-me ver." Leu-a, espiando-me por trs do papel. Eu, confesso, estava curiosa. Que criana seria aquela? Ele me passou a carta em silncio. Era singela e tocante. Um rapaz a quem amputara o17

brao direito e que depois de aprender a escrever com a mo esquerda, quisera que le fosse o seu primeiro destinatrio. Coitado! Mas por que cortou o brao?" Feriu-se na roa. Quando chegou ao hospital,, estava gangrenado. . . No tnhamos alternativa. . . " Com o passar do tempo, foi-se habituando a me contar alguns casos interessantes da sua enfermaria. Ora um doente que tivera alta e me mandara uma lembrana. Eu gostava de ouvi-lo e perguntava detalhes pueris, como a idade e a cor dos pacientes, as visitas que recebiam. Nossos melhores seres eram aqueles em que o doutor Teodoro estava presente. J no podia sentar no seu colo, nem brincar com sua chatelaine de ouro, mas gostava de ouvi-lo conversar, contar tambm os seus casos ou discutir qualquer ponto com meu pai. Uma noite, estvamos os trs conversando, quando meu pai me pediu que tocasse qualquer cousa. mesmo, o senhor ainda no me ouviu, no Dr. Teodoro?" Por que no me chama padrinho ou tio?" No tenho jeito... estou to acostumada a chamar Dr. Teodoro. . . " "Bem, ento, vejamos, que vai tocar?" "Que que prefere ouvir?" "Qualquer cousa... gosto dos romnticos..." "Chopin, ento?" "Chopin. " Toquei, procurando dar minha interpretao o maior sentimento. Os sons subiam cristalinos no ar parado, desfazendo-se em reticncias subjetivas e melanclicas. Eles ouviam contritos e eu tambm comecei a me sentir dominada pela msica. Quando terminei o Dr. Teodoro me abraou18

efusivo, intimando meu pai a me fazer terminar o curso. Meu pai cedeu satisfeito e nesta noite ficou estabelecido que no ano seguinte eu prestaria exame de admisso Escola de Msica. Assim, naquele sero a trs, como tantos outros, traamos o meu destino, que era uma incgnita para mim e que hoje lamento j ter decifrado. . . 0 Dr. Teodoro se encarregou, como sempre, de todas as providncias a dar. Trouxe programas da escola e chamou um bom professor para me preparar. Era um tipo curioso, muito alto e magro, com mos compridas e espirituais. Creio que era austraco. Falava carregado e era extremamente nervoso. Professor Erich. . . Tive-lhe um pouco de medo, no comeo. Nunca tivera professores, s freiras. le chegava sempre hora exata e no gostava de esperar. Habituei-me a aguardar a sua chegada na sala de msica Muito bem, sonhorrita. Eu gosta aluna na horra certa." Eu tocava ento os exerccios, as escalas, e, por ltimo, as msicas. le corrigia a tcnica, recomendava exerccios de mecanismo, mas elogiava a interpretao. s vezes enquanto emendava um tema de teoria eu o analisava disfaradamente e achava-o feio, muito feio mesmo, com sua pele desbotada, suas sobrancelhas brancas de to louras, seus olhos midos, sua calva vermelha. Como podia, sendo to feio, ter aquelas mos to vvidas, to expressivas? Suas mos tinham vida prpria, tinham alma! Quando tocava para me mostrar uma passagem qualquer, eu ficava fascinada pela cr que emprestava a qualquer acorde. Um dia no me contive. "Continue, professor... Toque, quero ouvi-lo. O senhor toca to bem!" Ficou muito vermelho, hesitou um instante, mas tocou afinal. Naqueles instante desejei ser feia tambm, contanto que Deus me desse aquela centelha divina que o tornava to admirvel!19

Quando terminou, notei-lhe um ar contrafeito e estranho. Muito obrigada, professor Erich. O senhor acha que poderei algum dia tocar assim?" A senhorrita tocar muito melhor!" garantiu na sua voz gutural, carregando nos erres. "Eu sou medocre" Senti, na sua voz, um desnimo, uma expresso Indefinvel de derrota que me tocou. . . Deste dia em diante, quando fazia minhas preces, l estava presente o professor Erich, com sua calva, sua pele desbotada e suas mos longas e espirituais, entre aqueles para os quais eu pedia um pouco de felicidade e alegria. Por tudo isso, quando prestei exame e fui aprovada, tive pena de me despedir dele. Notei-lhe tambm alguma emoo e precisei fazer um grande esforo para no o beijar, como fazia a meu pai e Dr. Teodoro. Era um trao marcante do meu carter, este carinho transbordante, esta ternura espontnea pelos tristes e infelizes. Pedi ao professor Erich que continuasse a nos visitar e como le ficasse um tanto perturbado, estranhando uma delicadeza que talvez nunca tivesse recebido, sorri, insistindo e fazendo-o prometer. Durante o jantar s se falou sobre o concurso, a classificao, as prximas aulas e mais tarde, quando nos reunimos na varanda, onde meu pai e o Dr. Teodoro, fumavam, entremeando a conversa de grandes silncios pensativos, o meu velho amigo, disse rindo: "0 professor Erich, acaba se apaixonando por voc, Lucila. . . " "Oh! No creio. Ele vive ligado a alguma cousa passada. ." "Como est me saindo observadora" gracejou ainda. "Pois acertou."20

"Ah! E o senhor conhece sua histria?" J sei que quer ouvi-la. E' muito curiosa tambm". Conte, conte! Gosto tanto dele!" Ento soube que o pobre professor Erich perdera a nica filha, j mocinha, e por isto viera sozinho para o Brasil, abandonando tudo que lhe recordasse a morta: esposa, amigos, seus bens e os seus contratos. Aqui vivia modestamente, sem estmulo, sem esperana, das poucas lies que alguns amigos arranjavam. Nunca pedia nada, no se lamentava, no tinha ambies. Nesta noite custei a dormir, pensando como os filhos influem na vida dos pais. E torturava a imaginao, procurando adivinhar como seria aquela pobre menina-morta, que l do seu tmulo, a tantas, tantas milhas, muda e imvel, podia dominar o destino daquele homem, apa-gando-lhe o ideal, desbaratando-lhe o futuro, destruindo-lhe o lar, ela que com certeza s queria a felicidade para le... Adormeci cansada e triste e tive sonhos aflitivos e confusos onde ela me aparecia como um fantasma cujas feies eu no conseguia definir. Na manh seguinte, porm, quando Teresa abrindo as janelas deixou que o sol entrasse alegre e claro, esqueci toda aquela histria, erme levantei cheia de disposio, pedindo a Teresa que me acompanhasse s compras, pois queria preparar-me para a nova vida de estudante.

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Os dias na Escola de Msica passavam rpidos, com todos os seus imprevistos e suas novidades para mim. Eu fui classificada no quinto ano e muitos dos meus colegas, a maioria mesmo, j se conhecia dos anos anteriores. Tive que me sujeitar, com bom humor, trotes e pilhrias. s vezes ficava envergonhada e tinha at vontade de no voltar no dia seguinte, mas pensava melhorar e continuava a freqentar, ansiosa por que passassem depressa aqueles primeiros dias. As primeiras vezes que entrei na Escola, achei impossvel que algum pudesse ouvir o que tocava, pois muitos alunos executavam, ao mesmo tempo, nos mais diversos instrumentos, diferentes melodias, em salas contguas . Aquela casa imensa, ressoante de sons, parecia-me uma colmeia fantstica e ruidosa. s vezes tinha mpetos de tapar os ouvidos com as mos, mas tinha medo de me tornar ridcula, pois os outros pareciam nem ouvir o barulho e, ou conversavam, ou solfejavam e ainda alguns sonhavam, de olhos parados, distantes, como se s a matria estivesse presente. Eu ento ficava num canto afastado, observando aquelas criaturas at pouco tempo estranhas para mim, com as quais eu iria conviver agora, competir, sonhar sonhos comuns. Eram motivo de cogitaes interminveis que me distraam o esprito. Por isto foi que um dia, estando toda entregue anlise de uma colega, no ouvi o professor me chamar duas vezes para tocar uma pea. Aps a segunda solicitao, pesou um grande silncio em toda a sala e s ento, vi todos aqueles olhos voltados para mim. Creio que corei muito, pois senti o rosto quente e as tmporas latejando. E como eu no compreendesse a razo do interesse geral, ouvi algum dizer: "O professor chamou a senhora para tocar. . . "

Levantei-me to bruscamente que minhas msicas se espalharam pelo cho. Depois de tudo isto, eu no poderia tocar cousa alguma. 0 professor compreendeu e teve pena da minha confuso, porque sorriu e disse: Deixe estar. No h mais tempo, a senhora ser chamada na prxima aula." Recebi das mos do mesmo aluno que me avisara, as minhas msicas que le juntara, rpido. Agradeci, encarando-o, mas le desviou os olhos, sem dizer nada. Logo que foi possvel, escapuli. No saguo encontrei Teresa. Meti logo o meu brao no dela, satisfeita de encontrar algum a quem estava afeita, que me conhecia, e assim voltei para casa, naquela tarde muito azul e quente! Este incidente me valeu a primeira aproximao maior com minhas colegas, pois no dia seguinte logo pela manh, uma delas, Eugnia, me saudou assim: Bom dia, sonhadora!" Todos riram, mas eu no me zanguei e respondi: "Foi horrvel aquilo de ontem, no foi? Mas estava to longe. . . " "0 que quer dizer que a minha execuo no a interessou" disse Maria Augusta, fingindo-se ofendida. "Oh! No me ponham na berlinda. De outra vez, prometo ouvi-la." Leonor chegou-se mais para mim, baixando a voz. S neste momento notei-lhe o feitio oriental dos olhos rasgados, num rosto moreno e suave. "0 mais extraordinrio foi que Eduardo falou. . . " "Era mudo?" perguntei zombando Mudo, n o . . . mas no fala a ningum. Eu acho que timidez. . . "23

Qual timidez, nada! 0 que , muito presumido... Julga-se um portento" disse Eugnia com azedume. Mas quem afinal esse Eduardo?" "Pois le se dirige a voc, faz uma gentileza, cousa rara nele, e voc nem o nota?" disse Ritinha. "Ah! quem? 0 colega que apanhou minhas msicas?" Ora, quem havia de ser? Sabe? Aqui h duas correntes: uns acham que tmido, outros que convencido... mas eu, acho que le no tem traquejo, no sabe falar com gente. . . " disse Anah. Olhei-a curiosa. Que mentalidade teria ela? Era dessas criaturas que no revelam o que so. Bem diferente de Licia que ouvia a conversa, sem se pronunciar e de quem emanava uma personalidade marcante. Toda ela respirava inteligncia e agudeza. Os olhos profundos que fixam e dissecam, o talho da boca, tudo enfim. Sorri-lhe e ela me retribuiu o sorriso e ambas sentimo-nos afins. Quantas e quantas vezes, depois daquela manh, conversamos horas seguidas sobre os assuntos mais vrios! "Cala a boca, Anah!" disse Leonor. A vem o heri!" Todos se voltaram para le. Notei que se perturbou e para disfarar, baixou os olhos. Passou por ns, sem cumprimentar e foi sentar no fundo da sala, isolado de todos. No sei porque, naquele momento me lembrei do professor Erich. Ambos eram altos e "magros e um pouco curvados c ambos tinham mos expressivas. Era isso, sim, as mos que se assemelhavam! Mos espirituais. Eduardo. . . Como era pessoal todo le ! Modesto, procurando no ser notado, o que era impossvel, porque sua personalidade se impunha tenazmente! No sei se eram os cabelos castanhos e revoltos, se eram os olhos profundos e inteligentes, mas havia um qu de espiritualidade que o destacava entre todos.24

Neste dia eu o ouvi tocar pela primeira vez. Tive a impresso de que suas mos tinham o dom de fazer reviver na velha pgina de Chopin, que interpretava, o sentimento que o inspirara e que ali estava transmudado em sons, o amor, o verdadeiro amor, impondo-se como fatalidade! Eu estava encantada por ouvi-lo e s ento notei que todos estavam suspensos das suas mos que ressuscitavam aquelas harmonias incomparveis! Quando terminou, levantou-se apressado e mais fugiu do que se dirigiu para o seu canto, com ar quase culpado, sem olhar para ningum. . . E eu fiquei com a corrente que o achava um tmido. Mais tarde, muitas vezes, tive ocasio de confirmar esse juzo. Neste dia, depois da aula, Lcia foi comigo, no meu carro, para casa. Era passagem para mim e eu gostei que aparecesse esta ocasio para nos aproximarmos mais. Foi durante todo o curso, seno a nica, a melhor amiga que encontrei. As outras eram cordiais, gentis, mas eu notava nelas, aquela preveno do concorrente e uma rivalidade latente, que umas velavam com elogios irnicos, outras com indiretas. Tudo lhes desculpava, porque com o meu temperamento, passei logo a estim-las, naquela sede que eu tinha de espalhar ternura, sem esperar retribuio. E assim se foram passando os meses daquele primeiro ano, at que chegou o to temido dia do exame Quem no ter passado por estes excitantes momentos que precedem nossa chamada ? Enquanto esperava a minha vez, rezava baixinho: Meu Deus, fazei com que eu passe, nem que seja na pior classificao!" Mas, no dia seguinte, soube cheia de surpresa que tinha sido classificada em segundo lugar. Francamente, at hoje, no sei como interpretei as peas sorteadas Eduardo tinha sido o primeiro. Quando o Dr. Teodoro me telefonou, dizendo o resultado, sorri intimamente, imaginando25

que Eduardo seria capaz de pedir desculpas por tocar to bem. Mas isto s faria se no fosse to tmido. Durante as frias, passei muitas tardes na companhia de Lcia, ora na minha, ora na casa dela. Algumas vezes tivemos Leonor conosco. Aos poucos, ia-me afeioando a ela tambm. Admirava-a porque era bonita e distinta nos mnimos detalhes. Lembro-me de uma tarde, em que chegou, com uma leve vestida cor de rosa e um grande chapu da mesma cor que dava sua pele uma tonalidade suave. Meu pai e o Dr. Teodoro, fizeramlhe muitos cumprimentos e a tarde correu cheia de alegria. Fizemos msica. Teresa serviu refrescos e biscoitos delicados e saborosos, enquanto Lcia no se cansava de admirar a grande bandeja de prata portuguesa, toda lavrada, que ainda presente de casamento de meus pais. " uma maravilha, Dr. Silvrio!" exclamava analisando os motivos. "De fato, linda! Foi o Comendador Fonseca quem nos presenteou com ela. Era um portugus cheio de formalidades, muito amigo de tradies. . . Bom homem!" E sorria, revendo-o na memria. "Lembro-me dele" disse o Dr. Teodoro "Era muito inteligente e viajado". "Sim, tinha a paixo das viagens. Sua casa era um museu de recordaes dos pases que conheceu". "Eu, tambm, se pudesse vivia viajando" disse Leonor "Como deve ser interessante visitar os pases cujos costumes so bem diversos dos nossos!" "Sim, a China, a ndia, enfim o Oriente." concluiu Lcia. "Tambm tinha vontade de viajar". "Quem no gostaria? disse eu. "Detesto os livros de viagens, porque fico louca de inveja!"26

"Depois, que nos importa o que sentiu este ou aquele autor, diante das obras eternas da arte? Nossas reaes podem ser to diferentes!" concluiu Lcia. "Sim, porque cada qual tem sua personalidade..." concordou Leonor. Assim se passou toda a tarde at hora do jantar. Lcia e Leonor recusaram-se a ficar, alegando motivos justos. Mandei Juvenal lev-las e despedimo-nos no porto, prometendo-nos novas visitas. Depois que elas saram comentamos ainda a beleza de Leonor e a inteligncia de Lcia. Era um encanto privar com as duas, to finas eram. Uma tarde, Leonor telefonou convidando-me a visitar uma exposio de um pintor conhecido, no salo do Place Hotel. Lcia j nos esperava na porta e tive ocasio de conhecer o artista e dois irmos de Leonor. Formamos um grupo alegre e depois de apreciarmos as telas expostas, fomos ao salo de ch, onde nos demoramos, conversando sobre os mais variados assuntos. O artista pareceume muito seguro do seu valor e muito cnscio do seu sucesso. Um pouco antes das seis horas, deixamos o hotel e ao atravesarmos a Avenida, cruzamos com Eduardo. Reconheci-o imediatamente. Vestia o mesmo terno azul-marinho com que freqentara a escola, embora o calor fosse intenso. Ele vinha distrado, mas tive certeza de que nos viu. Um momento pensei que ia cumprimentar, mas le desviou os olhos e apressou o passo. . . Alcanamos o carro, despedimo-nos dos rapazes e voltamos para casa. Sempre gostei dessa hora, quando comea a escurecer, mas a cidade est apagada ainda. O carro deslizou pela Avenida Beira Mar. Leonor e Lcia conversavam animadamente, mas eu no 27

lhes prestava ateno. Pelo meu esprito estranhamente perturbado passavam todos os detalhes daquela tarde. Procurava formar uma opinio sobre o artista elegante, cujas concepes modernistas eu no conseguira compreender. Entretanto todo um inundo requintado se comprimia diante das telas, na maioria adquiridas, cheio de exclamaes, e elogios. Os irmos de Leonor me pareceram homens de esprito, com cultura, ambos com o mesmo feitio de olhos rasgados e gestos distintos. No sei porque fiquei com a ntida impresso de que desprezavam o pintor e o elogiavam por esnobismo ou ironia. Houve um momento em que notei que trocaram um rpido olhar, cheio de troa. Leonor, pelo contrrio, parecia julg-lo uma revelao e talvez fosse isso que dissesse com tanta veemncia Lcia. Prestei ateno. "E' um impressionista, meu bem" argumentava Leonor. "No, minha filha! Voc no me convence disto! Ele devia consultar um oculista, com urgncia. Ningum me pode convencer de que le sinta aquela mulher com pernas de elefante e os olhos no outro canto da tela. Ah! isto, nunca!" "Mas se le pintou assim, deve ser sincero. . . " " o meu ponto" disse eu "a arte, no deve ser uma manifestao para uso privado... No sei se me entendem. . . A pessoa pinta, ou esculpe, ou escreve, porque sente vontade, necessidade de concretizar suas emoes. Mas, desde que realize a sua obra, ela passa a pertencer humanidade. E arte, querida, perfeio". "Ento, voc tambm no compreendeu a arte de Vicente?" "No consegui encontr-la. . . perdo, talvez fosse muito sutil ou muito transcendental. " disse rindo. Leonor estava desapontada.28

"Francamente, no entendo vocs". "Escute, meu bem, no se zangue conosco e prometa-nos uma cousa, para o bem do que realmente belo e perfeito, sim? era Lcia quem pedia. "Como posso prometer, se no sei o que vem por a?" respondeu amuada. "Eu sei!" disse eu. "Adivinhou? Ento diga l". desafiou Lcia, contente de pr fim discusso. "Nunca sirva de modelo para tal impressionista! Poderia pint-la com cara de Esfinge e com uma pirmide no lugar de cada brao". "Mas por qu?" "Porque voc tem uns olhos esquisitos, cheios de mistrio, assim, no sei explicar... lembram o Oriente". Rimo-nos, e Juvenal neste momento encostou no porto da casa de Leonor, que nos beijou outra vez alegre, e saltou. Ganhamos a Avenida Atlntica que apresentava um aspecto deslumbrante. Subitamente as luzes se acenderam. "Leonor pode ter ficado triste, Lcia. Creio que fizemos mal". "Qual nada! Leonor incapaz de guardar mgoa de algum". Gosto dela. Acho-a muito atraente". " de fato muito interessante. 0 pai um intelectual, voc gostar dele quando o conhecer". "Achei os irmos com um arzinho superior. Parecem tambm muito interessantes". "De fato, so. Conheo toda a famlia h muitos anos. . . " e mudando de tom: "Voc viu o Eduardo, na cidade? Vi, e tive a impresso que tambm nos viu". 29

Nunca vi ningum de gnio mais esquisito! Sempre finge no ver os colegas. Tambm j o conheo h quatro anos e tanto, e nunca tivemos cinco minutos de conversa". Nada respondi. Afinal, que me importava que Eduardo fosse esquisito ou no, que gostasse ou no de conversar? Mas tive a vaga intuio de que tinha um complexo de inferioridade, talvez por ser pobre. Fiquei com vontade de perguntar a Lcia, mas chegvamos a frente sua casa e nos despedimos. Esse pensamento no me deixou, at chegar a casa. Sim, um complexo. Mas que tolice! Um homem inteligente, um artista, no se devia abater por motivos to materiais. Pobreza no defeito afinal. Mas, sabia l Deus, as privaes que passava!" Quando entrei em casa, passei pelo gabinete de meu pai. Era uma pea muito ampla, com prateleiras, pesadas de livros, forrando as paredes at quase o teto e uma grande secretria de jacarand. Ele l estava debruado sobre um tratado qualquer. Quando abri a porta, olhou-me por cima dos culos e fechou o livro. Ol, fujona!" gracejou. Olhei o relgio de mrmore sobre a mesa. Um quarto para as sete. Mas no estou atrasada ainda. O Dr. Teodoro no vem hoje?" Hoje quinta-feira, dia dedicado s irms". verdade." Sorri divertida, lembrando a descrio que o nosso amigo fazia dessas reunies semanais em casa de duas irms, uma solteira e outra viva, que s saam da chcara da Tijuca, para irem missa aos domingos e, assim mesmo, s seis horas da manh. Qual quer cousa as escandalizava e isto era o maior prazer do Dr. Teodoro.30

Fui tirar o chapu e desci para o jantar, durante o qual relatei a meu pai todas as minhas impresses daquela tarde. Ele gracejou que estava seriamente impressionado pela Leonor, mas que no queria brigar com o Dr. Teodoro que se apaixonara tambm. No creio. Voc mais depressa se impressionaria pela Lcia". Terminada a refeio, toquei algumas msicas e s dez horas, subimos para dormir. Assim passsaram -se aquelas frias. Quando mal pensei j tinha chegado o dia de voltar escola, dia cheio de alegria, bem diverso daqueles anteriores, que significavam separao, saudade, tristeza. Ao fim deste outro ano, mantive minha classificao, assim como nos anos seguintes. amos chegando ao fim do curso. J falvamos nas festas de formatura, mas a preocupao mxima eram os exames prximos. Leonor sara trs anos antes, para casar. Seu marido da reserva diplomtica e tinha sido designado para a Itlia. Durante todos estes anos, temo-nos correspondido. Ela me escreve dos mais longnquos pases e me envia o retratinho dos filhos. Mas, os exames se aproximavam ento. Lcia era um estmulo, sempre sincera e amiga. Eu notava que Eduardo estava abatido e nervoso. Mais de uma vez me dirigi a le. Era solcito, mas lacnico e se retraa sempre que se referia a si. Mesmo assim, consegui conhecer algumas de suas preferncias. Uma vez elogiou a minha interpretao. De outra feita, quando lhe disse da impresso que me fizera a escola com suas salas de aula, onde tocavam ao mesmo tempo tantos instrumentos, sorriu. "Parecia uma sinfonia, no ? J reparou como h msica em tudo?" e como eu ficasse calada: "Sim, em tudo. . . " continuou como se falasse consigo mesmo: "A chuva caindo, um carro passando, uma criana brincando, at uma folha que se desprende"31

Parou confuso. Parece que s ento se lembrou que eu estava ouvindo. "No, Eduardo, a msica est em voc, no seu esprito." Neste momento, Ritinha que conversava num grupo, com Ana, Maria Augusta e Eugnia, riu-se alto. Era seu hbito, rir-se assim, escandalosamente. Eduardo olhou para o lado dela.. No sei se de fato comentariam sobre ns. Sei que ficou mais confuso ainda e, pedindo licena, retirou-se. Quebrara-se o encanto daquela conversa mais pessoal, a nica que durante quatro anos de convivncia diria, conseguira apenas iniciar. E at estranhei o aborrecimento que isto me causou. Achei Ritinha vulgar e guardei muito tempo um indefinvel ressentimento dela. Muitas vezes, durante estes anos todos que tenho vivido, recordo aqueles ltimos dias da Escola de Msica, quando nossos destinos tinham que se definir e teramos que seguir cada qual a sua diretriz. Naquela poca, perdia horas, pensando se ainda os encontraria, se a vida nos afastaria irrevogavelmente. Tinha certeza de que Lcia faria parte da minha vida para sempre e que quando precisasse dela, bastaria cham-la. Mas, as outras? Que me importava, afinal? Entretanto, teimosamente, procurava desvendar o futuro que se aproximava e sentia uma angstia recndita e indefinvel pelo desconhecido. Essas emoes davam trabalho aos meus nervos, muitas vezes custava a dormir, pensando, pensando. . . Foi numa destas noites de insnia e inquietude que, sem querer, achei o verdadeiro motivo da minha agitao interior. Eu me debruara na varanda do meu quarto, sobre o jardim. Talvez fosse o calor que assim me deixava insone. A brisa que fazia farfalhar a folhagem das rvores era quase imperceptvel. Fiquei algum tempo, admirando aquela noite de lua cheia, to espetacularmente romntica que parecia um cenrio alegrico.32

L embaixo, no jardim, a gua do lago lembrava um espelho azulado e imvel e um grilo trilava aqui, alm. Foi ento que me lembrei daquelas palavras to rpidas de Eduardo: "H msica em tudo. . . " Senti naquele momento a verdade dessa afirmativa. Ouvi a msica que caa do cu transformada em lua", neste luar que inspirou uma sonata magistral a Beethoven. Msica nas rvores espectrais, no lago dormente, no jardim silencioso, e at no trilar daquele grilo ignoto. E, ento, meu esprito ansiosamente procurou sentir as emoes que Eduardo sentia, que talvez o empolgassem naquela noite. . . E mais que s suas emoes, meu esprito procurava-o, procurava-o. . . Um instante fiquei surpresa ante a revelao tcita dos meus sentimentos e interroguei, perturbada, se seria amor, se aquilo seria amor. Mas de que valia saber que o amava se le nem mesmo pensava em mim? Eu sabia que para Eduardo s uma cousa importava verdadeiramente: sua arte, sua msica! Lembrei-me de uma manh muito fria e chuvosa, em que entrando mais cedo na sala deserta, surpreendera Eduardo tocando. Esgueirei-me sem rudo. Ele executava a "Catedral" de Debussy. Nunca ouvira aquela msica to bem interpretada. Ouvia os sinos badalando ainda submersos e parecia-me sentir o templo imergindo imponente e espectral na noite majestosa! Toda a beleza mstica daquela harmonia fantstica, insinuava-se na minha alma exaltada. Ele tocava para mim, s para mim, ningum mais o ouvia. Nem compreendi porque a idia desse isolamento era to profundamente emocionante. Mas a msica ia morrendo no marulho das guas que se abriam para tragar a igreja imortal e os sinos foram ficando mais e mais distantes at se calarem no mistrio da gua profunda.33

Eduardo deixou cair as mos, e s ento deu pela minha presena. Notei-lhe um gesto de confuso ou aborrecimento que procurou disfarar. Ergueu-se: "Estava esperando a hora da aula" explicou, como se escusando. "Gostei muito de ouvi-lo." "Ora", protestou "voc toca to bem!" "Mas nunca tinha apreciado tanto esta msica." uma das minhas prediletas. Faz-me acreditar em milagres. . . " Sorri. Mas, como sempre acontecia, aquela rpida conversa foi interrompida pela chegada de alguns colegas nossos. Fizeram roda conosco e a conversa generalizou-se. Esta lembrana roou o meu esprito, diante daquela noite que me revelara o meu prprio mistrio e s ento compreendi o sentido da atrao que exercia sobre mim. A madrugada me encontrou no mesmo lugar, sonhando o meu sonho de encantamento. Ento, fui deitar-me cansada e tranqila, com o corao cheio da ine

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fvel certeza de que teramos que nos encontrar um dia. Dormi at tarde, um sono vazio e repousante e quando acordei j Teresa estava junto de mim, com meu roupo nas mos, enquanto o sol banhava, claro e alegre, o meu quarto. . "Que sono" disse Teresa. "Benza-a Deus! Estou aqui h meia hora. Abri a janela, mexi nos armrios e a menina nem nada!" Eu a olhava com as plpebras meio cerradas, nessa sonolncia feliz que nos amolece a vontade e nos faz achar a vida bela e os homens bons. Sorri, pensando no espanto de Teresa se eu lhe dissesse que estava apaixonada! Tive vontade de dizer, mas no disse porque um pequenino instinto feminino me fez sentir que eu nada devia revelar, porque s eu amava, e a minha vaidade calou-me aquela maravilhosa verdade nos lbios. Como ? No quer levantar? O banho est pronto e o doutor espera a menina para verem a correspondncia . " Levantei-me preguiosamente. Teresa comeou a andar de um lado para outro, pondo em ordem o quarto. Meia hora depois fui encontrar meu pai, na varanda. "Bom dia!" disse alegremente, beijando-o. "Boa tarde!" respondeu no mesmo tom alegre. "No, senhor, boa tarde s depois do meio dia e so apenas dez e meia. . . " "Apenas, no ? Pois para castigo, no lhe dou esta carta." e mostrava-me um envelope grande, onde distingui a letra alta e igual de Leonor. D, sim, que voc no mau..." "Vem de Atenas... Leonor afinal parece que realizou o seu sonho: viajar!"

". . . deve ser feliz Gastozinho nasceu em Npoles e Ana Maria em Paris. . . J escrevi, advertindo-a para no nos trazer a Liga das Naes, na volta. . . " "No consigo imaginar Leonor, me de famlia. Era to imaterial. . . " ", mas vamos deixar de rodeios e passe-me a carta!" intimei com a curiosidade aguada. Entregou-a, mas Teresa chegou neste momento, fazendo rodar a mesinha, com todo o arsenal complicado de gelias, torradas e biscoitinhos, com que procurava conquistar o meu interesse. - "Oh! eu quero ler primeiro, Teresa." Mas ela era irredutvel. To boa e cordata em tudo, lua tirania se manifestava quando estava em jogo o que chamava o meu conforto! Porque conforto para ela era alimentao e estava acabado. Mas, Teresa, eu leio num instante. . . " No, no, faz mal ler logo de manh, com o estmago vazio." Bem, ento, eu leio enquanto como, est bem?" Ela saiu resmungando, arreliada, porque a menina j no se importava com o que ela dizia, j no obedecia, que eia acabava indo embora, porque j no precisvamos dela. Olhei para meu pai que me espiava com ar divertido e pisquei garotamente, pois aquela ameaa de Teresa era das cousas cotidianas, a que j nos habituramos. A carta de Leonor vinha, como sempre, cheia de interesse e exclamaes. Tinha o dom de descrever, e seus detalhes eram preciosos. Depois de contar sua chegada a Atenas, onde reviveu toda a antiga grandeza daqueles monumentos eternos, entrava em perguntas pueris, cheias da sua feminilidade encantadora. Eu lia alto para meu pai e sorramos em certas passagens em que 36

ela emprestava tanta cor, tanta personalidade, que tnhamos a impresso de ouvir-lhe a voz de timbre quente e cheio e ver-lhe os olhos largos e escuros, que se animavam, quando se entusiasmava. Ela nem fala em voltar" observou meu pai. "Nem uma palavra! Como deve ser galante o Gastozinho, j querendo falar, numa mistura de italiano e francs! Ana Maria que completou seis meses por estes dias." "Como passa o tempo. . . Quase trs anos que Leonor embarcou. At hoje lembro-me dela, to bonita, acenando, do tombadilho, com um sorriso entre feliz e triste..." "Como est potico! Olhe que acabo acreditando no seu amor platnico!" caoei, abraando-o. Ele riu, acariciando-me o rosto. At hoje, sinto falta da sua convivncia terna e ntima. Eu o amava com arrebatamento, sem estas restries que antigamente separavam os filhos dos pais. ramos amigos, companheiros. Vou telefonar Licia, dando as notcias." Fui ao telefone e conversei uns dez minutos. Ela tambm tinha recebido carta da mesma data e trocamos nossas impresses. "Estou com muita saudade dela" disse-me "mas acho que faz bem em no voltar to cedo... Deve aproveitar, viajar." Notei-lhe na voz um tom quebrantado de cansao ou tristeza, que no pude definir. Naquela poca eu ignorava, ainda, que aquelas amigas que se queriam como irms, tinham tido a infelicidade de amar o mesmo homem. le escolheu Leonor. Talvez nunca tenha suspeitado o sentimento de Lcia e ela preferia-o longe. Aquela tarde passamos juntas, em minha casa, revendo algumas pginas do concurso prximo. Um pouco antes do jantar, subimos ao meu quarto, onde nos de37

moramos examinando figurinos e trocando impresses sobre as festas de formatura e quando mal pensvamos, ouvimos a buzina do carro, com que Juvenal chamava o jardineiro para abrir o porto. Era meu pai que chegava. Retocamos apressadamente os penteados e descemos ao encontro dele e do Dr. Teodoro, que com o seu estoque inesgotvel de casos, encheu a nossa noite de alegria. S assim esquecemos por alguns momentos que no dia seguinte, comeariam os exames finais do nosso curso! Embora o dia do concurso estivesse chuvoso, o salo nobre da Escola de Msica, ficou literalmente cheio. Na platia, viam-se as mais variadas cores, em toiletes elegantes, entremeando com as roupas escuras dos homens. Havia um movimento desusado na rua do Passeio. Os carros chegavam com um chiar peculiar dos pneus no asfalto molhado e deles saltavam os parentes, os amigos dos concorrentes ou pessoas que gostavam de msica. Entre os alunos, o nervosismo era geral. L estava, em cima, bem defronte ao palco, a banca examinadora, que se nos assemelhava a um tribunal de inquisio. Os minutos arrastavam-se morosos, numa preguia mrbida de dia de chuva. E pelo palco desfilamos, um a um. Pouco antes da minha vez, encontrei Anah chorando, enquanto Maria Augusta a animava, cheia de calor. Que foi Anah?" perguntei interessada. "Ela esqueceu a msica" respondeu Maria Augusta, "mas, recomeou e foi at o fim." "Mas de que maneira" soluou Anah inconsolvel. Ora, uma falha de memria, no influi." disse eu. Sim, numa aluna medocre como eu, no ? perguntou rspida.38

Encarei-a surpresa. Durante um lapso de tempo, tive vontade de voltar as costas, sem responder, mas refleti melhor e retruquei: No, Anah. Tambm numa aluna distinta como eu, uma falha de memria perdoada." Picamos caladas um instante. S ento no momento de nos separarmos, entrevi aquela alma cheia de arestas. Entretanto, com o meu temperamento compreensivo, arrependi-me da resposta e continuei, estendendo-lhe a mo: No nos separemos magoadas, Anah! Afinal, quatro anos, no so quatro dias..." Ela hesitou um pouco, mas apertou minha mo. Eu esperava uma palavra de simpatia ou de retratao, mas ela no me disse nada. Fiquei chocada e triste, mas que fazer? Nunca mais vi Ano. No sei que foi feito dela. Aquele aperto de mo foi um adeus para sempre! Chegou a minha vez. Toquei sem falhas, procurando dar o maior sentimento s minhas msicas. Os aplausos que despertei, encheram-me de alegria. Era sinal de que me sara bem. Entretanto, no foram cousa alguma, comparados ao entusiasmo frentico que sacudiu toda a platia quando Eduardo tocou. Chamaram-no duas vezes ao palco, mas foi preciso que o obrigassem a aparecer. L em cima, os professores do jri, trocavam impresses, tomavam notas. De onde eu ficara para ouvi-lo, via a platia e o jri, e meu corao estava cheio de satisfao. Via que comentavam com essa excitao feliz que toda gente sente, quando tem oportunidade de assistir uma manifestao de arte excepcional! Durante algum tempo, ainda bateram palmas que foram esmorecendo, ora avivadas por um momento, at que se extinguiram num silncio de expectativa. Eduardo conquistou o prmio de viagem. Conquistou-o por unanimidade do jri. Recebi medalha de ouro. Parece que por39

fatalidade eu sempre, involuntariamente andava no seu encalo... Quando soube do resultado, corri a cumpriment-lo. "Como estou contente, Eduardo, eu tinha certeza da sua vitria!" le me fitou mais demoradamente, desta vez sem desviar os olhos. Ficamos um instante de mos dadas e em silncio. Pareceu-me que ia dizer qualquer cousa; talvez no encontrasse as palavras para agradecer. Eu tambm fixava os seus olhos castanhos, uns olhos sonhadores, quase meigos, sem saber que fazer. Mas foi um instante, um pequenino instante s. Outros colegas chegaram, cumprimentando-o, abraando-o e eu senti uma impresso estranha de que tinha sido esposada no meu direito de ficar junto dele, todo o tempo. Mais tarde, quando no carro de meu pai deixava a rua do Passeio para ganhar a Beira-Mar, vi Eduardo, caminhando pela calada, com sua me pelo brao. Ela ia enlevada, sem sentir o mau tempo, os cabelos muito brancos, salpicados de gotinhas de chuvisco, enquanto le ia com aquele seu ar ausente e sonhador. Eu conhecia essa expresso do seu rosto. Caminhava, calcando apenas o cho, enquanto seu esprito voava alto, ouvindo a msica sutil e sublime que, para le, existia em tudo! Quase me assustei, quando a voz de meu pai, rompeu o silncio: Voc parece que no ficou contente, Lucila?! Eu?!" exclamei despertando. "Fiquei contentssima! E vocs?" 0 Dr. Teodoro consertou o pince-nez com gesto lento e disse: Eu, no!" Conhecia-lhe aquela seriedade. Por que, senhor Incontentvel?"40

Porque perguntei duas vezes se jantamos na cidade e a senhora continuou olhando para dentro, sem me dar ateno." Achei graa no "olhando para dentro" e ri gostosamente. "Ficaria mais potico o senhor dizer: continuou com o seu encantador olhar introspectivo e.no respondeu . . . " "Olha, Silvrio, algum j andou tecendo frases Lucila..." "O que natural." concordou meu pai, com vaidade. "Est bem bonita". "Quantos cumprimentos! Deixe-me ver se verdade." Abri a bolsa, olhei-me no espelho e retruquei, brincando: "No, Dr. Silvrio, nada encontro de particular . Olhos escuros como os da maioria dos brasileiros, cabelos cor de bronze, pele clara, dentes certos. . . " "Voc esqueceu-se de citar o "it". . . interrompeu o Dr. Teodoro. "No, fiquei arrependida de no elogiar os cabelos . " "Tm de fato uma cor muito original. . . Mas, com isto, estamos no Flamengo e queramos jantar na cidade." O Juvenal fez a volta. Aquela noite foi comemorada com champanhe, pois o Dr. Teodoro e meu pai, eram liberais e estavam muito contentes. O carinho dos dois por mim, era comovente. Nenhum detalhe foi esquecido, por isso, quando chegamos ao Place Hotel, j nos aguardava um grupo de amigos queridos, entre os quais, Lcia, naturalmente. A mesa fora ornamentada com lindas flores e no meu guardanapo encontrei um estojo com uma pulseira toda cravejada de brilhantes, muito delicada, formada de pequenos elos, presente dos dois, tambm. Meu pai co locou-a no meu brao e eu beijei os dois alegremente. Talvez tenha sido o mais alegre jantar da minha vida. Tinha terminado o meu curso e de41

agora- para diante, achava que tudo devia ser perfeito e alegre, como aquela noite. Na volta para casa, encostei a cabea na almofada do carro e ali, entre os dois amigos, fui sonhando, sonhando . . . Eu estava cansada e por isto dormi muito bem. Acordei s sete horas, com o tilintar do telefone. Era Lcia. Lucila, que vai fazer do seu dia?! S ento pensei que nada tinha a fazer. Acabara aquela excitao que precede os exames. No sei, Lcia, ainda no estou bem acordada." "Eu vou a Petrpolis. Que tal, almoarmos l, em casa de Vov?" "Coitada de D . Maroquinha, Lcia, aturar duas entediadas. " Deixaremos o tdio na barreira, quer?" Estou quase aceitando, mas primeiro vou saber o programa de papai. Telefono mais tarde, sim?" Desligamos e eu me deixei ficar deitada, olhando o sol atravs das cortinas das janelas, aquele bom e generoso sol, que dissipara as nuvens escuras da vspera, e ali estava brincando de se espreguiar pelo "cho, numa rstia comprida. . . Que faria Eduardo nesta manh? Talvez j estivesse providenciando a viagem. . . a viagem. . . S ento esta realidade me feriu. Eduardo ia viajar, ia para longe, muito longe. Empenhada em desejar apenas vitrias para le, no tinha pensado que esta vitria significava separao e talvez separao irremedivel! Meu pai tinha que almoar no Jockey, com alguns mdicos paulistas, de passagem aqui no Rio; ficava assim com meu dia livre. Aceitei a ida a Petrpolis. Lcia organizara propositalmente esta sada para nos distrairmos. Vesti uma42

toilete clara levei, por intimao de Teresa, um casaquinho para a serra e, s dez horas, sa, com o protesto da minha velha ama, que no achava prprio duas moas sozinhas, "guiando automvel, por estas estradas. . . " "Pois venha conosco." convidei. "Deus me defenda Tenho horror quela subida." "Ento, no temos outro remdio, seno irmos sozinhas... At logo. " Ela me acompanhou at o porto. Atravessei calada, o jardim que tinha um aspecto alegre, com seus ramos, ainda molhados da chuva da vspera, brilhando ao sol. O cu estava muito azul, mas um azul claro, lavado, suave... Alguns pssaros cantavam nos galhos da accia, que parecia rir pelos seus pendes de flores douradas. Olhei a rua atravs das grades de ferro trabalhado. Teresa abriu o porto. "No voltaremos tarde. Venho jantar e no fique com esta cara zangada, que voc fica feia. . . " "Eu sou feia mesmo". "No, voc sempre foi um amor, Teresa! S no , quando briga." Ela riu, vencida. Atirei-lhe um beijo, j da calada, e fiz sinal a um txi que passava. J sentada acenei-lhe adeus e vi-a entrar com seu passo um tanto cansado, balanando a cabea com ar apreensivo, e imaginei que dizia consigo mesma: Estas meninas de hoje... " Encontrei Lcia na calada, com a mala do carro aberta, observando a empregada que acomodava alguns volumes. Ela estava encantadora, com um costume de linho ingls, bege. Prendera os cabelos num turbante de seda estampada. Recebeume efusivamente.43

"Vou entrar para cumprimentar seus pais" disse, beijando-a. "Vai, esto no terrao. Mame cuida do seu viveiro, papai l os jornais... No se demore. " Cinco minutos, s." Eram dez e meia, quando arrancamos, Lcia na direo, eu a seu lado, observando-a, admirando a sua serenidade, a elegncia com que pousava as mos caladas em grossas luvas de couro, no volante. Ela percebeu que a olhava e perguntou, sorrindo: "Est me achando feia ou bonita?" "Por qu?" "Estava me olhando embevecida." "Ento, bonita!" "Por condescendncia?" "No, sinceramente." E como eu me calasse, deixando o olhar vagar pelas casas enfileiradas: "Estamos lacnicas hoje, hein?" "Ainda no chegamos a barreira." "E que tem isto?"

"Foi l que voc me convidou a deixar o tdio, no foi?" "Ah!" riu, e como fssemos entrar no tnel: "Deixe deste lado do tnel, depressa! No h tdio que resista ao sol de Copacabana!" Atravessamos a cidade, os subrbios e a baixada, enquanto nossa palestra saltava daqui para ali, caprichosamente. Lcia tem um modo especial de conversar. Prende, porque sua observao encontra detalhes invisveis para outras pessoas. E suas expresses so to pessoais que no podemos repeti-las, sem associ-las Lcia. Por isso, conseguiu dissipar em mim aquela 44

estranha impresso de vazio, de desinteresse. Quando comeamos a subir a serra, meu esprito tinha outra disposio e admirando aquelas paisagens sempre novas, disse-lhe: "Sabe o que me lembra esta subida?" "No. "O Bolero de Ravel." "O Bolero de Ravel? Como?" "Por isso: os elementos de beleza so sempre os mesmos. 0 verde do mato, as pedras caprichosas, a paisagem que vai ficando mais para baixo, mais para baixo, como no Bolero que sempre uma mesma melodia, num crescendo contnuo." "Est bonito isto. . . " disse ela entre risonha e interessada. "E depois?" "Atingimos o alto da serra, dominando tudo e o Bolero atinge o seu apogeu musical, num grito sonoro e lindo do seu motivo." "Quem era mesmo de nossos colegas que tinha a mania de procurar motivos musicais nas cousas mais banais?" Fiquei um pouco perturbada e respondi, desviando os olhos: No sei... " Ela tambm no falou durante alguns momentos, como se sua memria se esforasse por lembrar. Depois

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como desistindo de identificar o autor da "mania", continuou, mudando de tom: Vamos encontrar neblina na serra." O que encontramos foi uma inesperada chuva que nos fez levantar apressadamente os vidros do carro. Esta chuva no demora." garantiu Lcia. De fato, quando paramos na barreira, cessara aquele aguaceiro e um grande arco-ris estendia-se no cu como um arco de triunfo para nos receber. Quando eu era pequena, queria passar embaixo do arco-ris para virar homem." disse Lcia sorrindo evocativamente. Que bom que no conseguiu." respondi. Ela ia dizer qualquer cousa, quando um inspetor aproximou-se, dizendo enquanto tocava a pala do bon: "A senhora est multada!" "U, por qu?" "Porque no conhece mais os pobres." S ento ela atentou na fisionomia do rapaz. Ah! o Josias!" disse alegremente. "Que foi feito de voc?" "Como v, aqui, para servi-la, D . Lcia." "Continua estudando?" "Continuo, sim senhora." Esqueci de apresentar. Lucila, este Josias, nosso companheiro de travessuras, quando crianas; passvamos as frias em Petrpolis, na chcara da Vov. Quantas fizemos, hein? Lembra-se do susto que pregamos no Seu Modesto? E daquele dia. . . " S ento percebemos que uma quantidade razovel de carros estacionara atrs do nosso, esperando para encostar e mostrar documentos. Buzinavam impacientes, num concerto dos mais

variados sons, cortando aquele fio suave de recordaes. Sorrimos para Josias que fez um gesto engraado de quem se desculpa, por nada poder contra a eterna pressa dos homens. . . Lcia pisou o carro e disse: Aparea l em casa, Josias, o papai gostar de v-lo, mas v mesmo." le tocou com os dedos a pala do bon, curvando se um pouco. Admirei-lhe a compleio atltica e o rosto vivo. Era por fora um homem inteligente e lutador. Quem este Josias?" perguntei. Lcia parece que continuara sozinha a rememorar aquelas diabruras dos dias passados, pois sorria aos seus pensamentos. E este sorriso era to garoto e to puro a um tempo, que senti ter tambm, com a eterna curiosidade dos mortais, cortado seu devaneio. "0 Josias? le foi criado pela minha tia. Nunca se soube quem eram seus pais. Sempre foi muito inteligente, demais mesmo. Quando fazamos alguma, era apoiados na sua astcia. Meu tio ficava danado com as nossas brincadeiras, e um dia internou Josias num colgio. le aproveitou. Apareceu anos depois, j rapaz, e contou que ia estudar direito. J no o via h mais de trs anos. . . " "Interessante" disse eu pensativamente, "tem muita fora de vontade, no ?" "Uma fora de vontade de ferro! A Vov vai ficar contente quando souber que o v i . " Aproximvamo-nos da cidade. Deixei Lcia pensar em paz, enquanto eu, fitando aquele cu, to colorido, to ntido, procurava imaginar Lcia, pequena, com duas trancinhas esvoaantes, como vira num retrato, j com aqueles olhos perfurantes e iluminados, fugindo vigilncia dos maiores e47

correndo. . . correndo. . . pela chcara de Petrpolis, para passar embaixo do arco-ris. . . A nossa chegada foi saudada pelo ladrar de dois grandes ces policiais, que vieram correndo atrs do carro, desde que transpusemos o porto que o Malaquias abrira, sorrindo o seu grande sorriso de dentes muito brancos no rosto muito preto. 0 carro subiu a rampa de cascalho e parou diante da escada, de apenas oito degraus de pedra, no cimo da qual D. Maroquinha aguardava a nossa vinda com o seu mais acolhedor sorriso. Subimos e abraamos a boa velha. Os cachorros embaraavamse nas nossas pernas, balouando as caudas, muito cordiais. Lcia curvou-se, alisando-lhes simultaneamente as grandes cabeas de olhos ternos e inteligentes e dizendo em seguida: Pronto, agora vo-se embora." E voltando-se para a av: Estamos com uma fome devoradora! Vov est preparada para mat-la?" "E com arma de luxo!" retrucou D . Maroquinha . Deixe ver se adivinho. " continuou Lcia, pas-sando-lhe o brao pelos ombros e cheirando o ar, na direo do corredor: "Galinha?" - Suba!" respondeu alegre. "Sei de que sutilezas capaz a sua arte culinria, vov, e por isto, no posso adivinhar!" disse num afetamento proposital. No foi preciso adivinhar. Entramos na sala de jantar, clara, alegre, muito grande, mobilada com antigos mveis de jacarand, pesados e enormes. Trs largas janelas abriam para o pomar, e meus olhos se extasiaram ante os pessegueiros com suas decorativas flores cor-de-rosa, agarradas aos galhos escuros.48

"Que beleza, D. Maroquinha!" exclamei, chegando-me janela. "E o laranjal, minha filha?" Voc nem pode imaginar, quando est florido! 0 cho fica branquinho das flores cadas e um perfume que chega a incomodar!" "Deve ser uma maravilha!" disse eu, continuando a admirar aquela vegetao alegre e dadivosa. "Mas vo, vo se arranjar para o almoo. Se precisarem chamem a Maria. J mandei colocar toalhas no banheiro. Vou dar uma "olhada" na cozinha." E l se foi ligeira, com seu passinho mido e silencioso, seu vestido preto, sua bonita cabeleira branca como algodo. Piquei na porta do corredor acompanhando-a com os olhos, imaginando a sua vida to singela, sempre ali, nas mesmas salas, da chcara. Imaginei-a recm-casada, passeando sob os laranjais floridos, pisando aquele cho branquinho de flores cadas, aspirando o perfume sutil e penetrante a um tempo e volvendo os lmpidos olhos azuis para o marido, dizer sorrindo: "Vamos entrar, este perfume at incomoda." Imaginei tambm o sorriso largo do marido (conheo-o do retrato solene da sala de visitas), um sorriso de dentes brilhantes sob os bigodes tratados e castanhos, e um lampejo de orgulho atravessando-lhe o olhar, enquanto respondia, com uma pontinha de ironia: No culpe os laranjais, querida, quando florescerem outra vez, voc suportar o perfume e vir com o beb, repousar sombra das laranjeiras." Estremeci com a voz de Lcia: "Ande depressa, Lucila, eu j disse que estou morrendo de fome!" 49

"Vov, estou com fome!" gritou uma voz estridente, do alpendre. "Que isto?" perguntei. o louro." e chegando at porta: "Bom dia, louro, e deixe de me arremedar." E veio correndo ao meu encontro, com uma alegria transbordante, levando-me pelo corredor para o banheiro, apressando-me, tagarela e risonha. "No se pinte, Lucila, descanse sua pele." Ouvimos a voz de D. Maroquinha: "Venham meninas, est tudo na mesa." Entramos na sala, agora cheia do cheiro suculento dos quitutes e tivemos exclamaes barulhentas de alegria. Pato recheado!" gritou Lcia, excitada. E arroz de forno." conclu. "Estou at com gua na boca." D. Maroquinha na cabeceira da mesa, olhava sorrindo. Seu sorriso era dessas cousas surpreendentes e irresistveis. Mas comam, meninas, no fiquem s admirando... Este pato especialidade da Alzira, recheado com ameixas. " "Meu Deus, como Vov est extravagante!" gracejou Lcia. "Assim no desceremos mais." disse eu. "E por que no ficam mesmo uns dias?" "Para mim difcil me ausentar. Papai ficaria muito s." " verdade," confirmou Lcia "Dr. Silvrio no faz nada sem combinar com Lucila." Pois venham os dois!" resolveu a boa velhinha. Era assim o seu feitio. Gostava de ter a casa cheia, para se agitar, obsequiando, conversando, dando um giro pela cozinha, 50

embora a Alzira fosse to antiga no servio, como os alicerces da casa. "A senhora acredita que o papai nunca tirou frias?" disse eu. "Os antigos so assim mesmo, minha filha, no gostam de descanso." "Mas le precisa. s vezes noto que est cansadssimo. J fiz tudo. Sabe o que diz? Que doente no tem feriado e que portanto le tambm no, e h de morrer no seu posto, como os militares." "Ora vejam!" exclamou D. Maroquinha. "Devia poupar a sade para poder viver muitos anos, fazendo sempre o bem." Neste momento entrava na sala a Clarice, mulatinha adolescente, cria da casa, trazendo uma travessa, onde se ostentavam suculentos bifes. "Deus nos livre, Vov, que banquente!" exclamou Lcia. "Eu no posso comer mais nada." "Nada mesmo?" perguntou com sorriso malicioso a velhinha. Bem, mais nada de sal. . . " Que esperta! Mandei fazer a sua sobremesa predileta." E comemos os deliciosos doces preparados por Dona Maroquinha e a Alzira, que recebeu depois os nossos cumprimentos pela sua percia sem igual. 0 caf foi servido sob a latada da parreira, onde nos sentamos em cmodas espreguiadeiras, numa preguia feliz, conversando molemente. Grandes cachos de uvas, ainda verdes, pendiam sobre nossas cabeas e abelhas zumbiam monotonamente. D . Maroquinha, que no suportava a inati-vidade, tricotava e o barulhinho regular das suas agulhas chocando-se, era mais um elemento51

naquela cano de ninar que nos dominava e vencia. . . Cano de ninar. . . as abelhas zumbido... as agulhas, tc-tc. . . aquele plio verde, estendido sobre ns. . . Cano de ninar.. . msica. . . msica das abelhas, das agulhas, da cr. . . msica. . . Eduardo era assim, encontrava msica em tudo. Com certeza por isso que naquela tarde tormentosa e fria, le preferira a companhia da chuva, com sua msica, em vez de vir no meu carro, comigo e Lcia. . . O Rex ladrou forte. . . que mesmo que estava pensando? Ah! Sim. Aquela tarde. . . Chovia, uma chuva constante, ininterrupta e forte. Tivemos at que correr da porta da escola para dentro do carro. Ramos muito, estvamos alegres, nem sei mais porque. O Juvenal esperou uma ordem. Vamos para casa, Juvenal. Mas no pare em casa de D. Lcia." "Isto sabotagem, Lucila?" "Mais ou menos. . . mais um seqestro. . . " "Por que tanta violncia?" "Hoje teremos o professor Erich, para jantar. Voc vai gostar dele, uma criatura muito curiosa mesmo." "Voc j me falou nele." E mudando de tom: "Olhe quem vai por ali, todo molhado."

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Quem ?" perguntei, debruando-me sobre ela, para olhar tambm. o Eduardo." Pare, pare Juvenal!" E para ela, um pouco contrafeita: "Vou convid-lo." , chame-o, coitado." Eduardo!" chamei, quando Juvenal parou o carro. le se voltou para trs, procurando. Aqui, Eduardo!" orientou Lcia. Veio para ns, um tanto vexado, com a aba do chapu pesada de gua e o rosto salpicado. Ia tirar o chapu. No se descubra neste mau tempo. " gracejou Lcia. "Venha conosco, voc no mora em Botafogo?" "Muito obrigado, mas no posso aceitar. . . " "Ora, por qu?" perguntei decepcionada. " que. . . no vou agora para casa." "Vai ficar sonhando sob a chuva?" perguntou Lcia. "No, no isso, ainda tenho que fazer, aqui na cidade." "s seis e pouco e com esta chuva?" Deixe os afazeres para amanh." insisti. "Muito obrigado, mas tenho um encontro, isto, sim, tenho um encontro s seis e meia." Apegava-se quela idia. Neste caso, felicidades!" disse Lcia, com um pouquinho de malcia. Eu estava desapontada, sem achar palavras. Ficamos um instante calados e foi Lcia quem deu fim ao constrangimento. "Ento, v, que j est quase atrasado." Com licena," disse apressadamente "e muito obrigado."

Levantou o chapu e eu vi os seus cabelos ondulados e brilhantes, aqueles cabelos que lhe ficavam to bem! Vi-o afastar-se rpido e enquanto o carro se movimentava, olhei Lcia, que tambm me olhou, como quem diz: Que esquisito!" No adianta querer humaniz-lo. " disse Lcia, levantando ligeiramente os ombros. to tmido, no ?" comentei. " muito esquisito. Eu esperava que le no aceitasse. Soube que muito pobre. Com certeza ficou acanhado de vermos sua casa." "Que tolice! Que valem afinal estas cousas materiais?" "Para voc e para mim, nadai! Mas, tudo, para muitos outros." "Seria mesmo por isto? Disse que tinha um encontro . . . " "E voc no percebeu que foi um pretexto? Garanto que est no poste, esperando o bonde. Disseram-me que mora numa vila muito modesta, muito pobre mesmo. " "Coitado! Como poder estudar?" "No sei. Quem me contou estas cousas, disse-as com tanto desprezo. . . " " mesmo?! Inveja, com certeza." Lcia demorou um pouco o olhar no meu rosto, e eu procurei evitar o seu "golpe de vista psicolgico", como chamava essa assimilao instantnea das cousas, que era um dom nela. "Mas afinal," continuei com naturalidade "somos colegas, le no precisava fazer esta cerimnia..." " o feitio dele, Lucila, que fazer?" Eu queria saber mais alguma cousa, tive, porm, medo de me trair nesse interesse e esperei que ela falasse por si. Ela esteve um pouco calada e disse em seguida:55

um temperamento interessante. A maior parte dos colegas no o compreende. Tomam o seu retraimento por presuno, mas uma injustia. Quando o Renato quis abandonar o curso, soube que Eduardo levou-o para casa uma noite, conversou at tarde, fez com que o Renato se abrisse com le, aconselhou-o, e at deu umas aulas, sem a menor remunerao. Se o Renato conseguiu chegar ao fim do curso, deve a Eduardo." Mas no se do, no ?" perguntei. O Renato arranjou um pretexto para no falar mais com le. . . disseram-me, porm, que Eduardo nem percebe esta ingratido." Este fato mais o valorizava os meus olhos. Seu esprito pairava muito acima da mesquinhez humana. Dava quanto podia, sem esperar recompensa nem gratido. Ignorava os que lhe faziam o mal e estava pronto, quando precisavam dele. Era assim, Eduardo. . . Mas porque o Rex ladrou naquele momento? Quebrou a magia do sonho que eu sonhava semi-acordada. Levantei a cabea e olhei. Vi Lcia caminhando pela alameda de areia, com o brao passado pelos ombros de D. Maroquinha. Vi os dois vultos caminhando irmanados, to harmoniosos, o passado e o presente, a mocidade e a decrepitude. . . Sobre a cadeira de D. Maroquinha, o seu tric com as agulhas espetadas, repousando, e no cho, um dos novelos, que um gato cinzento e travesso, ia desenrolando, desenrolando. . . Espantei o gato e ergui o novelo. Av e neta, fizeram a volta no fim da alameda e vinham agora ao meu encontro, ambas sorrindo alegremente. "Que dorminhoca!" disse Lcia. "Ah! estava to bom! Que paz, que sossego!"56

"Samos devagar para voc no acordar." disse D. Maroquinha. " . . . mas o Rex no tem estas consideraes, teve vontade latir e acabou-se!" "Foi bom, Lucila. Temos muito que ver e aprender com a Vov. Esta chcara um pequeno mundo!" " o meu mundo. " disse a velhinha de olhos cismadores. Lcia piscou- para mim e disse sria: "Voc no acha que a Vov devia ir morar conosco? Agora, viver sozinha aqui..." "No, Lcia, no acho. A senhora diz bem, D. Maroquinha, isto o seu mundo!" "Quero morrer na minha chcara, entre as minhas relquias e as minhas roseiras." "Estou brincando, Vov." e beijou-a. Assim conversando, ganhamos o jardim, onde admirei a mais variada coleo de roseiras. Era uma paixo da boa velha. Por isto no porto de entrada, eu vira uma placa com a palavra "Roseiral". Gastei todo o meu repertrio de exclamaes e ainda sobraram rosas esplndidas. s cinco horas, tomamos um lanche de salgados deliciosos, bebemos leite da chcara, com bolo, e s seis, transpnhamos o largo porto, deixando aquela manso de paz, onde habitava a serena velhinha de olhos cheios de saudade e sorriso surpreendente e irresistvel. Durante a viagem de volta, estivemos longos minutos caladas. A tarde estava esplndida e o meu pensamento pulava inquieto de um a outro ponto. Pensava naquela espcie de sonho que tivera tarde, pensava em Eduardo. Mas, por que aquela obsesso? le com certeza nem pensava em mim, atarefado nas mil preocupaes de quem vai para longe e por um largo tempo. Quando 57

iria? Talvez nem tivesse marcado ainda. Ou estaria ansioso por seguir, buscando um ambiente mais amplo, maiores possibilidades? E o carro rodava, rodava, serra abaixo. . . Escureceu inteiramente. As primeiras estrelas piscavam muito alto, num cu longnquo e impassvel. "Voc disse a D. Maroquinha que viu o Josias?'' perguntei para dizer alguma cousa. "Disse. Ela me deixou contar tudo, perguntou como o achara e acabou dizendo que le ontem jantou na chcara. " "Sua av uma das senhoras mais encantadoras que tenho conhecido. " "De fato, . E como, mesmo sem deixar o seu cantinho, foi evoluindo com o tempo, tem uma cultura imensa. L muito. Alis um dos seus passatempos." "E dirige tudo, ela mesma?" "Dirige. muito metdica, de maneira que seu tempo chega para tudo. At faz tric para a crianada pobre dos arredores." "Tal como uma castel." Novamente meus pensamentos se engolfaram por caminhos fantsticos. E pensei como seria maravilhoso se Eduardo tambm me amasse. Poderamos viver na nossa arte, com os mesmos ideais. E sonhei com um recanto como o Roseiral.. . Quando a lua subisse no cu, muito plida de tantas viglias, ns, na nossa sala recolhida, de janelas abertas sobre o jardim, ouvamos msica. le tocaria s para mim. As melodias acordadas pelas suas mos. prodigiosas, iriam despertar as flores que dormiam nos canteiros perfumados. Ento, haveria em todo o nosso universo um xtase, um deslumbramento! As estrelas ficariam debruadas sobre ns, sorvendo tanta beleza que da58

terra subisse para elas, de envolta com os perfumes que se evolariam do nosso jardim! O carro agora rodava pela baixada, em grandes retas montonas. De quando em quando, uma luz varava o escuro da noite. Eram as casas que de intervalo em intervalo, se erguem beira da estrada. Estamos perto," observou Lcia "mas ainda vem o pior." Como estava escuro, ela no viu que a sua voa, sempre to cara, cortara-me como um gume, as asas do sonho

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e eu estremeci quando toquei a terra. Pude responder porm, com voz natural: ... os subrbios." Atravessamos os subrbios com seu aspecto caracterstico, sempre festivo. Povo pelas ruas, passeando, ou em grupos. Circos, parques de diverses, cinemas. Entramos na cidade. "Voc est cansada, Lcia?" "Eu? No. Gosto de dirigir." s oito horas saltamos em casa. Quando dobramos a esquina, vi Teresa, no porto, esquadrinhando a rua, procurando ver se j vnhamos. Boa velha, sempre to preocupada comigo! . "Ol, Teresa." disse, saltando. "J estava aflita; oito horas!" Voc j estava aflita antes -de sairmos, Teresa. . . Vamos subir um momento, lavar o rosto, pentear o cabelo... Papai est em casa E o Dr. Teodoro tambm." Quando descemos eram oito e meia. O jantar foi alegre. Contamos todos os episdios da nossa subida, o dia timo, o convite de D. Maroquinha para um descanso no Roseiral. pena no poder tirar frias agora" suspirou meu pai. Lcia e eu trocamos um olhar intencional. "Eu fui logo dizendo a D. Maroquinha, que voc no iria." e voltando-me para o Dr. Teodoro: "O senhor no arranja um jeito de demitirem o papai?" "Seria arrancar a alma do hospital. . . " disse le, fitando meu pai com um olhar onde transparecia amizade e admirao. , Lcia, no temos aliados, mesmo. . . " s dez horas e meia, quando subimos para Lcia se preparar para sair, Teresa entrou no quarto e disse:

"Esqueci de dizer que D. Maria Augusta telefonou . " "Maria Augusta? Qual delas?" perguntei. "Conheo duas. Deixou recado?" "Disse que era para a senhora telefonar para ela. Explicou uma cousa complicada de embarque, no sei bem o que ." "Ser tarde para cham-la?" perguntei a Lcia. No sei, Lucila" respondeu, apanhando sua grande bolsa de viagem e dispondo-se a descer: "Deixe para amanh. Qualquer cousa que seja, no nos interessa mais hoje. . . " Fiquei ansiosa. Seria sobre o embarque de Eduardo? Descemos. Lcia ofereceu conduo ao Dr. Teodoro que dispensara o seu carro, contando com o Juvenal. "Posso ter confiana?" perguntou-me o velho amigo, brincando. "Na motorista, pode! Agora, no sei se Lcia no ter a inteno de rapt-lo." "Ora, Lucila, por que voc foi estragar o meu plano?! Agora, com le prevenido, bem mais difcil..." disse ela alegremente, tomando a direo. L se foram rua afora, enquanto eu, enfiando o meu, no brao de papai, disse, enquanto atravessvamos o jardim: "Ento, Dr. Silvrio, sentiu falta da sua filha?" "Eu? No. . . " "Sei que sentiu, sim. . . " Ento, por que pergunta? Sabe que feio ser t o . . . vaidosa?" le gostava de brincar assim comigo. "Voc j vai dormir, papai?" "No, tenho que ler sobre um caso." "Ora, voc est to abatido!" "So os vestgios da saudade que sofri." "No brinque. Vamos dormir." 61

V voc, filha, eu no me demorarei muito, no se preocupe." Beijamo-nos. Vi-o entrar no gabinete. Fiquei olhando-o, da porta. le inspecionou as estantes, destacando dois volumes, que folheou, lentamente. Colocou-os sobre a mesa. Ento, at amanh." disse-lhe, atirando-lhe um beijo nos dedos. Sorriu-me antes de colocar os culos. Subi pensando nele, que perdia suas preciosas horas de sono e repouso, pesquisando, buscando nos livros de cincia alvio para a humanidade que no cessa de sofrer. Custei um pouco a dormir, e quando despertei, corri ao telefone e falei com Maria Augusta. Ela me avisou de que Eduardo seguiria para a Europa, dia vinte e um, e que os colegas iriam ao cais. Queria saber se Lcia e eu, quereramos ir tambm. Disselhe que sim. Respondi por mim e por Lcia. Desliguei o telefone e antes de voltar para a cama, afastei a cortina e olhei para fora. Ento constatei que o sol desertara do cu e uma chuvinha fina, peneirava, peneirava, envolvendo tudo, num vu frio de tristeza. E achei que s podia ser assim, porque assim tambm estava o meu esprito; triste, de uma tristeza sem fim, como aquele dia cinzento. . . Esta chuva se estendeu pelos dias seguintes, tornando-os compridos e midos, encharcando tudo. Lcia adoeceu com gripe e passei muitas tardes com ela. Lamos ou conversvamos. Algumas vezes sua me tambm se demorava conosco, numa palestra viva e interessante. Eu voltava para casa, umas vezes tarde, outras noite e me sentia desanimada e triste. Nas vsperas do embarque de Eduardo, Lcia pde enfim se levantar. O tempo estava ainda incerto, com rpidas aparies de um sol morno e fosco. Logo em seguida, novamente a chuva despencava teimosa.62

Deus permita que esta chuva acabasse" dizia eu irritada, olhando atravs da vidraa, para o jardim molhado e silencioso. Dois dias antes da partida, o tempo se firmou bom e Lcia esteve um pouco na varanda, onde almoamos em companhia de Csar, um dos irmos de Leonor. Nem mesmo o relato que le fazia de sua recente viagem ao Norte, com seu pitoresco, conseguiu desanuviar-me o esprito. tarde despedi-me, pretextando um compromisso, e fui para casa. Fechei-me no meu quarto, at hora o jantar. No podia vencer o tdio que me dominava. . . Dois dias depois, l estvamos as duas, logo manhzinha, no cais. Eu esperava que no momento extremo, se Eduardo de fato sentisse qualquer coisa por mim, eu esperava, que le o demonstrasse de qualquer modo. Muito no meu ntimo, eu sabia que isto era absurdo, mas esperava ainda assim. O movimento era intenso. Homens hercleos, troncos nus, braos musculosos, carregando grandes fardos, num vaivm estonteante. E o guindaste com seu ranger de ferros, indo e vindo, transpondo para bordo grandes volumes. Um grito dum estivador fz-nos afastar e pastou um carro carregado, pelo trilho onde estvamos. O sol comeava a esquentar e o mar tinha cintilaes de prata. Parece que somos as primeiras" disse Lcia. Ah! se Eduardo j estivesse ali, sozinho, se eu pudesse falar com le! Mas, que poderia dizer? Eu no poderia tomar a iniciativa, isto nunca! Caminhvamos em silncio, Lcia atenta, procurando-o, eu entregue aos meus pensamentos. Olha! L esto Maria Augusta e Eugnia". disse Lcia apressando o passo. Olhei e vi, com desgosto, que Ritinha tambm estava presente. "Ol!" saudaram elas com estardalhao.63

"E Anah?" perguntou Lcia. "Anah est fora." Seria uma evasiva? Devamos esquecer parti-pris e prevenes; era um colega que vencia. E pensando assim, meus olhos encontraram o olhar de Renato. Fiquei contente por Eduardo e por isso sorri, estendendo-lhe a mo, com simpatia. "Eu esperava que todos viessem mesmo" disse-lhe. "O Ernesto no veio, porque est com a filhinha doente" informou. Ernesto era o mais velho de todos ns, com famlia constituda, mas todos o estimavam porque era simples e delicado. Os nicos ausentes so Ernesto e Anah" comentou Eugnia. Apesar disso Eduardo ficou tocado com tanta gentileza. Apresentou-nos sua me, que seguia com le. Ela sorria emocionada, fitando-nos com a mesma expresso envolvente que caracterizava o olhar de Eduardo. Notei-lhe a distino inata no trajar sbrio e no falar natural. Disse-nos que j conhecia a Europa. 0 marido fora da carreira consular. Conheci h vinte anos. . . devia ser muito diferente, embora j fosse deslumbrante" disse-nos. "Passei um ano em Hamburgo".

Renato pediu a Eduardo que mandasse notcias e o tempo se passava por entre essa conversa generalizada e interrompida, dos momentos extremos, quando h muita gente. Chegou a hora das despedidas. Eduardo abraou-nos a todos com igual carinho, agradecido e emocionado. Senti seu rosto prximo ao meu. Tive medo de levantar os olhos. le segurou ainda um momento minha mo. Tive a impresso de que ia dizer qualquer cousa. Meu corao batia sufocadoramente. . . Mas foi apenas uma64

escusa por no me ter cumprimentado pelo meu prmio. Sorri, porque a voz me faltava para falar. E le tambm no sentiu a amargurada decepo que transparecia no meu sorriso. Estava apressado . Todos subiram para bordo, levantaram a prancha. Vi-o debruado l em cima ao lado de sua me. Percebi que falava a nosso respeito. Algumas pessoas ainda gritavam frases amigas para os que iam partir. Eu apenas olhava, calada, querendo que le pudesse ler nos meus olhos, todas as emoes que me enchiam a alma, que le pudesse compreender que eram todos os meus sonhos, os mais caros, que iam com le mar afora, at nunca mais, talvez. . . 0 grande navio comeou a se afastar lentamente, com aquelas manobras sem pressa, como que poupando as foras para a grande travessia. Fz a volta e depois l se foi, cada vez mais longe, com seu penacho de fumaa, desenhando cousas incompreensveis contra um cu muito azul. O movimento esmorecia no cais. As pessoas que ali tinham ido para uma despedi