e a gente lembra

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    E a gente lembra, e de repente já não dói mais...

    (Relembrando Caio Fernando Abreu)

    *Livre adaptação e Direção: Lynno Fernandes

    Elenco: Felipe Gonçalves

    Thyna Silva

    FELIPE:  Porque a vida segue. Mas o que foi bonito fica com toda a força.Mesmo que a gente tente apagar com outras coisas bonitas ou leves, certosmomentos nem o tempo apaga.

    FELIPE e THYNA: E a gente lembra. E já não dói mais.

    THYNA: Mas dá saudade. Uma saudade que faz os olhos brilharem por algunssegundos e um sorriso escapar volta e meia, quando a cabeça insiste emtrazer a tona, o que o coração vive tentando deixar pra trás.

    FELIPE: Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindomuito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até umpouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muitotriste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos decatástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? oque vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vaiacontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deusdará.

    THYNA: Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naqueledia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas,vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas demonóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquantolembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: "Não digas 'Eu sofro'.Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/ que era sofrer ?" Masnão conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doíasintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família,quem sabe nem moradia - coração achando feio o não-ter. Abandono de fera

    ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big

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    Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos delentes claras pelos negros ray-ban - filme.

    FELIPE: Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim detarde do dia Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisavatanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi entãoque a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega - aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visívelnela. Cabelo mal pintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo.Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar,encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, naesquerda um copo de cerveja.

    THYNA: E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, aprostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da caraescorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez emquando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava achorar - exposta, imoral, escandalosa - sem se importar que a vissem sofrendo.Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dorque estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado,grades. Ninguém parou.

    FELIPE:  Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dorreluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinhacomo lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola dosapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitandoaquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezasde cada dia - uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos.

    THYNA: Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dorde brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando mais leve. Mas só quando

    cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando,além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado,pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio dedívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do botecovagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta?

    FELIPE: Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvezsinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casahumilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele.Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu

    me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moçavadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero).

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    THYNA: E quando ele perguntou "porquê?", compreendi ainda mais. Falei:"Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo,sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas perguntoinseguro, assustado: a que será que se destina?

    FELIPE: (...)Por isso eu acho que a gente se engana, às vezes. Aparece umapessoa qualquer e então tu vai e inventa uma coisa que na realidade não é. Etu vai vivendo aquilo, porque não agüenta o fato de estar sozinho. Eu queronós. Mais nós. Grudados. Enrolados. Amarrados. Jogados no tapete da sala.THYNA E FELIPE: Nós que não atam nem desatam.

    THYNA: Eu quero pouco e quero mais. Quero você. Quero eu. Querodomingos de manhã. Quero cama desarrumada, lençol, café etravesseiro. Quero seu beijo. Quero seu cheiro. Quero aquele olhar que nãocansa.

    FELIPE: Às vezes, sobretudo agora, verão e lua quase cheia, me surpreendomelancólico pelas noites a suspirar na sacada espanhola, com vontade dechorar. Choro quando consigo. Ou ouço Caetano cantando Contigo en ladistancia, e choro mais. Não tenho pena de mim, mas por vezes sinto falta deamor. Fico sempre muito só. Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceitetanto meus sonhos demorados quanto minhas insônias insuportáveis.

    THYNA: Ela? Tem 6 letras no primeiro nome, gosta de Legião, lê Caio

    Fernando Abreu, geminiana, mal educada, fala palavrão, é mandona, ébirrenta, marrenta, fria, insensível, imprevisível, muitas vezes indelicada, ésarcástica, ciumenta, orgulhosa, a dona da verdade e não merece, nemmesmo, um poema meu. É também muito linda, tem uma voz deliciosamenteagradável, um jeitinho que instiga e ao mesmo tempo acalma. É tudo muitolouco o que ela me causa e como causa. Sabe dominar como ninguém meuspensamentos, prende minha atenção sem o mínimo esforço e aí não existemundo, se não o mundo que ela me leva. Me faz nascer todos os dias só paraamá-la e nunca precisou pedir o meu amor, chegou e tomou o que já era seu.

    Mulher que me faz dela e nunca dá certeza de que é mesmo minha, tenhoassim a eterna necessidade de conquistá-la.

    FELIPE: Me provoca ira com seus palavrões, me magoa, contraria, subestima,maltrata, desconfia e pisa forte quando quer. Enquanto faço o bobo, compondocanções, escrevendo para ela, como agora, se diverte na noite com Deus sabequem. Deveria deixa-la, não? E quem disse que eu já não pensei? Mas antesque eu consiga tentar me afastar, sou impedido por um sentimento que dominacada partícula de mim, um tal de Amor por Ela. Pois é, caros amigos, é ela queeu amo, com todos os seus defeitos tortos. E como amo, amo muito mesmo.

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    THYNA: Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o quefoi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo.E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que maisme deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda damorte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dóiinteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perdealguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há entãouma morte anormal.

    FELIPE: O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediávelquanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque sepoderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim doamor é: NEVER.

    THYNA: Neste século ninguém se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, ébabaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão eloucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possatornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer ooutro possa pintar como saída de nossa solidão fatal.

    FELIPE: Mentira: compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho doútero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e queembarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ouquem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de

    maya, ilusão, passatempo. E exigimos o terno do perecível, loucos.

    THYNA:  Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto etão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicidocom heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pelaminha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosadesempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensamiséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou

    três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.

    FELIPE: Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muitomais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "oamor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudoeu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.

    THYNA: Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, masqueria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontadede não querer parar também. Tá me entendendo? Eu sei que sim. Eu entro

    nesse barco, é só me pedir. Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou. Faztempo que quero ingressar nessa viagem, mas pra isso preciso saber se você

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    vai também. Porque sozinha, não vou. Não tem como remar sozinha, eu ficariagirando em torno de mim mesma. Mas olha, eu só entro nesse barco se vocêprometer remar também! Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes. Mudoo visual, deixo o cabelo crescer, começo a comer direito, vou todo dia praacademia. Mas você tem que prometer que vai remar também, com vontade!

    FELIPE: Eu começo a ler sobre política, futebol, ficção científica. Aprendo apescar, se precisar. Mas você tem que remar também. Eu desisto fácil, vocêsabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas euentro nesse barco, é só me pedir. Perco o medo de dirigir só pra atravessar omundo pra te ver todo dia. Mas você tem que me prometer que vai remar juntocomigo. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir. Mas agente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Eu teensino a nadar, juro! Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se

    esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças! Você temque me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena. Que porvocê vale a pena.

    THYNA E FELIPE: Que por nós vale a pena. Remar. Re-amar. Amar.

    FELIPE: Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio dasminhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça quedepois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você estámolhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu

    só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto deestar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompidaque eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitavamas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele atéa minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas umsujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaquebarato apertada contra o peito.

    THYNA: Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fiodesde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele

    abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura mesubia para o rosto, como se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minharoupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entreas suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pelefria, começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, maiscedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga commuitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, paraproteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e alémda água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava

    encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então,tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do

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    dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que elechamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só paramim que ele abriria a sua porta.

    THYNA: Exatamente assim. Pesada, sufocada. Ando com uma vontade tão

    grande de receber todos os afetos, todos os carinhos, todas as atenções.

    FELIPE: Quero colo, quero beijo, quero cafuné, abraço apertado, mensagemna madrugada, quero flores, quero doces, quero música, vento, cheiros ...queroparar de me doar e começar a receber. Sabe, eu acho que não sei fecharciclos, colocar pontos finais. Comigo são sempre virgulas, aspas, reticências...eu vou gostando... eu vou cuidando, eu vou desculpando, eu vou superando,eu vou compreendendo, eu vou relevando, eu vou... e continuo indo, assim,desse jeito, sem virar páginas, sem colocar pontos... e vou... dando muito de

    mim, e aceitando o pouquinho que os outros tem para me dar.THYNA: Alguém me ensina a pensar menos nele? Alguém me ensina a nãorepetir centenas de vezes à mesma cena na cabeça? E não fazer dessaslembranças o meu maior martírio? Porque dói, dói muito pensar que há poucotempo eu estive inteira com ele e o deixei partir, assim, sem insistir, sem nemum “fica mais um pouco?”. É possível não sentir esses arrepios ao lembrar -medo toque, do cheiro, do beijo dele? Ah, eu daria tanta coisa para que aqueleanjo estivesse aqui comigo agora, hoje, amanhã, sempre. Eu daria tudo pra vê-lo sorrir mais uma vez pra mim, mas quando estou com ele fico tão pequena,

    entrego-lhe o que ainda me resta, ele vai embora e eu fico aqui, me sentindoincompleta, me sentindo um nada, sobrevivendo apenas de migalhas da minhamemória.

    FELIPE E THYNA: Eu daria tanta coisa para que aquele anjo estivesse aquicomigo agora.

    FELIPE: Preciso de um pouco mais de vitalidade. Tenho tido uma sensação develhice, de desânimo e, principalmente, de desamor... Ao mesmo tempo

    alguma coisa em mim não consegue desistir, mesmo depois de todos osfracassos. Acho que fiz tudo do jeito melhor, meio torto, talvez, mas tenhotentado da maneira mais bonita que sei.

    THYNA: Você não existe.

    FELIPE: Eu não existo. Mas estou tão poderoso na minha sede que inventeivocê para matar a minha sede imensa. Você está tão forte na sua fragilidadeque inventou a mim para matar a sua sede exata. Nós nos inventamos um aooutro porque éramos tudo o que precisávamos para continuar vivendo. E

    porque nos inventamos, eu te confiro poder sobre o meu destino e você meconfere poder sobre o teu destino. Você me dá seu futuro, eu te ofereço meu

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    FELIPE: Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisariasaber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei afugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de seremcompreendidas — se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direidelas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nemressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amore ternura que eu tinha — e tenho — pra você.

    THYNA: Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém,como você existe em mim.

    FELIPE E THYNA: E a gente lembra, e de repente já não dói mais!

    (BLACK OUT)