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Duração razoável do processo no direito europeu
RESUMO O Estado de Direito impõe a garantia do acesso à justiça, de modo a permitir que todo indivíduo possa buscar a devida tutela de seus direitos através de um Poder Judiciário eficiente. No entanto, observa-se um fenômeno mundial de lentidão deste poder, que por motivos diversos se mostra incapaz de atuar com velocidade sufici-ente para atingir sua finalidade. Na luta contra este problema, a Corte Europeia de Direitos Humanos estabeleceu critérios de julgamento capazes de responsabilizar objetivamente os Estados incapazes de garantir aos seus cidadãos o processo em tempo razoável. Sua jurisprudência é digna de estudo pela posição vanguardista do Tribunal.
The Rule of Law imposes the access to justice in order to allow any person to seek appropriate protection of rights through an efficient judiciary. However, it is possible to observe a worldwide phenomenon of judiciary slowness, which for various reasons is unable to act speedly enough to achieve its purpose. In the fight against this prob-lem, the European Court of Human Rights has established judgement standarts in or-der to objectively charge the States unable to guarantee its citizens the process within a reasonable time. Its juriprudence is worthy of study by the avant-garde position of the Court.
Palavras chaves:
Ketwords:
Processo Civil. Duração Razoável. Corte Europeia de Direito Humanos.
Civil Procedure. Speedy Trial. European Court of Human Rights.
ABSTRACT
AnoYear 2011
Nara Benedetti Nicolau
A DURAÇÃO RAZOÁVEL DO
PROCESSO NO DIREITO EUROPEU
Nara Benedetti Nicolau1
1. Introdução. 2. A Corte Européis de Direitos Humanos e o balizamento da “doutrina do
não prazo”. 2.1. Critérios preceptivos. 2.1.1. A complexidade da causa. 2.1.2. A conduta dos
litigantes. 2.1.3. A atuação das autoridades judiciais. 2.2. Critérios facultativos. 2.2.1. A
importância do litígio para os demandantes. 2.2.2. O contexto no qual se desenvolveu o
processo. 3. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A lentidão da justiça é, possivelmente, a causa de maiores reclamações dos
jurisdicionados ao redor do mundo. Trata-se de um problema antigo e que não se limita
às fronteiras de um único país2: diversos são os ordenamentos que sofrem com seus
malefícios.
1 Bacharel em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro
2 A análise dessa morosidade já rendeu escritos em diversos países. Na França Jehanne Collard escreveu
livro entitulado “Victimes – les oubliés de la justice”, no qual denuncia o sistema processual francês da
década de 90. Escreveu ele: “Pode parecer espantoso mas são problemas com a máquina de escrever
que bloqueiam a justiça francesa. No Tribunal de Bordeaux , fevereiro de 1996, 1.126 julgamentos
estavam a espera de datilografia a despeito da contratação de 10 novos funcionários. A asfixia do
sistema é tamanha que mesmo os procedimentos de urgência estão saturados e perdem todo o seu
sentido.” (apud TUCCI, Rogério Cruz e. TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e Processo: uma análise
empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual (civil e penal). São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1997, p 93).
O estudo da duração razoável dos processos não pode deixar de passar por uma
análise das decisões dos tribunais estrangeiros sobre o assunto, mormente as decisões da
Corte Européia de Direitos Humanos, que vem estabelecendo critérios objetivos para
análise das dilações processuais indevidas de modo a punir os países europeus sob sua
jurisdição que atentem contra o direito fundamental de seus cidadãos.
A análise dos julgados dessa corte traz elementos ricos para o desenvolvimento
do controle, no Brasil, da duração dos processos.
A Corte Européia de Direitos Humanos e o balizamento da “doutrina
do não-prazo”
A convenção Européia de Direitos do Homem enquadra-se no movimento que
buscou dotar os países europeus de um documento comum de direitos à liberdade, que
trouxe em seu bojo os valores políticos e culturais presentes nas democracias ocidentais.
Normalmente afirma-se que tais países desejaram criar um sistema supranacional que
impossibilitasse a renovação de regimes ditatoriais e o cometimento das atrocidades
ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial. O documento foi assinado em 04 de
novembro de 1950 e entrou em vigor no dia 03 de setembro 1953, após amplos debates
entre os países membros 3.
A referida convenção estabeleceu uma estrutura tripartida para a resolução das
questões que lhe fossem submetidas à apreciação: uma Comissão, encarregada de se
pronunciar sobre a admissibilidade das argüições (evitando-se, assim, sobrecarregar o
Tribunal com litígios inviáveis) e buscar a solução dos conflitos através de acordos
amigáveis; um Tribunal, com sede em Estrasburgo, encarregado de proferir uma decisão
definitiva sobre as questões que lhe fossem submetidas; e um Comitê de Ministros, que
3 RAMOS, Carlos Henrique. Processo Civil e o princípio da duração razoável do processo. Curitiba:
Editora Juruá, 2008, p. 84.
tomaria também uma decisão definitiva sobre as questões que, por alguma razão, não
fossem submetidas ao Tribunal4.
A Corte Européia de Direitos Humanos ocupa papel primordial na proteção dos
direitos humanos no continente europeu. Primeiramente, por se tratar de um órgão bem
aparelhado, estruturado e organizado. Além disso, sua jurisprudência, em muitos casos,
serve como parâmetro para diversos ordenamentos internos. E por fim, serve como
mecanismo de controle, pois muitas vezes uma condenação perante a Corte pode
despertar a responsabilidade dos governantes em virtude do constrangimento sofrido em
face da comunidade internacional.
A demora dos processos é o motivo mais comum de reclamação perante a Corte
Européia de Direitos Humanos em virtude da violação da garantia da tutela jurisdicional
efetiva. Relatório divulgado pela Corte, reportando-se ao período entre 1999 e 20065,
revelou que Itália e França lideravam o ranking de violações à celeridade. A situação da
Itália chega a ser dramática, pois, enquanto a média dos maiores violadores encontra-se
em 200 condenações, a daquele país passou das 900 no mesmo período.
A convenção, em linhas gerais, não exige uma justiça instantânea, nem se limita
a sancionar a denegação da justiça. O que ela consagra é o direito à justiça num prazo
razoável, aquele suficiente para que uma decisão justa seja proferida6. Tal razoabilidade
4 Ibidem, p. 85-86.5 Ibidem, p. 87.6
Artigo 6º . 1- Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente,
num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá,
quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de
qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso a
sala de audiências pode ser proibido a imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo.
quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática,
quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou,
na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstancias especiais, a
publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça. Artigo 50.º Se a decisão do Tribunal
declarar que uma decisão tomada ou uma providencia ordenada por uma autoridade judicial ou qualquer
outra autoridade de uma Parte Contratante se encontra integral ou parcialmente, em oposição com
obrigações que derivam da presente Convenção, e se o direito interno da Parte só por forma imperfeita
permitir remediar as conseqüências daquela decisão ou disposição, a decisão do Tribunal concederá a
parte lesada, se for procedente a sua causa, uma reparação razoável.
deve ser aferida através de três critérios objetivos: a complexidade da causa, o
comportamento das partes e o modo como as autoridades dirigiram o processo.
Tais critérios objetivos oferecem um maior balizamento interpretativo para a
“doutrina do não-prazo”, também adotada pela Corte Européia. A importância da
utilização desses standards é patente: por um lado, possibilitam a redução do arbítrio
judicial ao limitar de certa forma a análise meramente casuística vinculando, inclusive, a
motivação das decisões; por outro, tornam factível o enfrentamento da celeuma a partir
da riqueza interpretativa que o tema requer, em virtude da complexidade7.
Deste modo, a abordagem da experiência européia é de fundamental
importância, pois, além de ser a fonte mais rica sobre o tema, suas decisões podem
servir como relevantes parâmetros a serem utilizados no ordenamento jurídico
brasileiro, que também adota a doutrina do não-prazo.
Antes da análise dos critérios, importante apenas ressalvar que o prazo razoável
é encarado pela Corte como uma questão de fato, de modo que o ônus da prova recairá
sobre o Estado requerido, cabendo a ele fornecer os motivos que ocasionarem os atrasos
alegados8.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, via de regra, ao analisar um processo
de alegada violação à duração razoável do processo, o faz através de três passos9: em
primeiro lugar, o tribunal analisa a efetiva duração do processo fixando o período a ser
considerado; após, considera os critérios objetivos para aferição da razoabilidade do
prazo; finalmente, pronuncia-se sobre a violação do direito e sobre o pedido formulado.
Verificando-se uma dilação, ou seja, um evidente e manifesto prolongamento,
passa-se à análise da razoabilidade do prazo de duração. Para esta avaliação, a Corte,
que adota a teoria do não-prazo, vem realizando uma análise a partir de alguns
parâmetros objetivos, de modo a evitar uma avaliação meramente casuística, quais
sejam: a) a complexidade da causa, relacionado com as diversidades procedimentais e
7 RAMOS, Carlos Henrique. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris,
2006, p. 88.8 Ibidem, p. 91.9 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 75-76.
as expectativas das partes; b) O comportamento das partes e de seus procuradores,
questão relacionada ao abuso dos direitos processuais; c) o contexto em que se
desenvolveu o processo; d) a atuação das autoridades judiciais, ligada principalmente ao
regular exercício dos poderes do juiz para dar rápido andamento ao litígio; e e) a
importância do litígio para os demandantes10.
A doutrina classifica tais critérios em preceptivos e facultativos. Os primeiros,
que sempre serão considerados nas decisões, são pacificamente indicados como: a
complexidade da causa, o comportamento das partes e a atuação das autoridades
judiciais. No que concerne aos facultativos são indicados a importância do litígio para
os recorrentes e o contexto no qual se desenvolveu o processo.
Critérios preceptivos
A complexidade da causa
A complexidade da causa, por vezes, poderá justificar certo atraso processual;
não obstante, nem todo atraso se justifica por tal complexidade. Este aspecto é,
reiteradas vezes, o ponto de partida para a análise da duração razoável por parte do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
Com efeito, podemos sistematizar a complexidade da causa em três tipos: a
complexidade dos fatos (complexidade fática); a complexidade do direito
(complexidade jurídica) e a complexidade do processo (complexidade instrumental) 11.
Uma demanda pode apresentar-se na dimensão fática sem qualquer
complexidade, mostrando-se, todavia, profundamente complexa em relação ao direito a
10 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 76.11 Ibidem, p. 78.
ser aplicado ou mesmo em relação aos aspectos processuais e vice-versa. Seja qual for o
aspecto pelo qual a complexidade se manifeste, a causa será sempre considerada
complexa quando ocorrer qualquer destas.
A complexidade jurídica apresenta-se muitas vezes em razão da dificuldade de
interpretação de determinada norma jurídica. Ocasionalmente a questão fática
apresenta-se de maneira simples, todavia reclama aplicação de normas que em razão de
seu recente ingresso, ou por conta da pouca clareza na redação, trazem certa dificuldade
no momento de sua utilização no caso concreto12.
Geralmente, no entanto, o atraso na prestação jurisdicional justifica-se mais pela
complexidade fática e com maior freqüência ainda da complexidade processual.
Adentrando na análise desta, é possível pensar em uma demanda na qual se forma um
litisconsórcio misto, com um grande número de autores e réus, ou um processo no qual
identificam-se em sua órbita inúmeras demandas ou incidentes, como as intervenções de
terceiros, as impugnações à gratuidade, ao valor da causa, incidentes de falsidade,
sanidade e os inúmeros recursos que podem surgir de cada decisão dos autos.
Certamente aqui, na complexidade processual, encontra-se o maior obstáculo ao
atendimento à duração razoável do processo. Nem por isso é possível dizer que esta seja
a maior justificativa para o atraso na prestação jurisdicional. Ao contrário, o legislador
deve criar um sistema processual que possibilite a maior eficiência e garantia sem
perder de vista a idéia de celeridade. Como já dito anteriormente, não é apenas o
Judiciário que deve atenção a este princípio, que vincula também o legislador e o
administrador.
Em resumo, na aferição da complexidade da causa, o juízo deve avaliar estas três
dimensões, quais sejam: complexidade fática, jurídica e processual.
De qualquer forma, com base no exposto, alguma hierarquia entre causas
complexas pode ser vislumbrada, mesmo que sem pretensão de validade universal.
Nesse sentido, pode-se afirmar, na grande maioria dos casos, que o processo de
conhecimento apresenta questões mais complexas que os processos de execução e
12 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 78-79.
cautelar; os processos que dizem respeito unicamente a questões de direito, por não
envolverem atividade de produção de provas, apresentam menor complexidade; causas
que envolvem pluralidade de partes ou de pedidos tendem a exigir um maior tempo até
a prolação da decisão final, assim como aquelas que dependem da resolução de questões
prejudiciais; enfim, mesmo sendo uma árdua tarefa, um razoável elenco pode ser
perquirido13.
Ademais, outros parâmetros mais gerais podem ser empregados como vetores
para a análise da complexidade da causa. No que diz respeito ao procedimento, pode-se
empregar uma análise para determinada situação. Deste modo, os ritos mais curtos que
envolvam uma prática mais reduzida de atos processuais tendem a ser considerados
menos complexos. Normalmente nos ritos abreviados já existem vedações à prática de
certos atos, e até a recorribilidade é limitada14.
A conduta dos litigantes
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem procurado considerar o
comportamento dos litigantes preocupando-se, todavia, em demonstrar que a referida
consideração não pode afetar o direito de defesa das partes.
Sua jurisprudência também diferencia este critério em matéria cível e penal. No
primeiro caso exige uma diligência normal das partes, e no segundo dispensa o acusado
de cooperar ativamente para acelerar o processo. Tal distinção resulta na natureza dos
bens envolvidos no processo civil e no princípio dispositivo, não devendo o Poder
Judiciário ir além dos próprios interesses das partes. Não obstante essa constatação, é
constante também a preocupação do Tribunal Europeu de Direitos Humanos com o
13 RAMOS, Carlos Henrique. op.cit. p. 91.14 RAMOS, Carlos Henrique. op.cit. p. 92.
princípio do impulso oficial. como se percebe ao analisar a atuação das autoridades
judiciais 15.
A questão básica deste critério é a definição de quem contribuiu para o
prolongamento excessivo do processo. Nesta seara, aponta-se que o comportamento do
requerente constitui um elemento objetivo, não imputável ao Estado, havendo, portanto,
rompimento do nexo causal, somente considerado para determinar se houve ou não
violação ao prazo tido como razoável. Daí que eventual prejuízo sofrido há de ser
suportado pela parte, já que o comportamento reprovável partiu dela própria16. A Corte
só garante o direito à indenização dos prejuízos sofridos pela lentidão em virtude do
mau funcionamento da Justiça.
O fato é que as partes poderão utilizar legitimamente todos os meios que o
ordenamento processual põe à disposição. Tratando-se de matéria cível, o que se deve
verificar e combater é o abuso do direito com intuito protelatório. Em regra, o Tribunal
Europeu de Direitos Humanos só tem em conta a conduta dos demandantes para
justificar o atraso quando as autoridades judiciais não tenham de nenhuma forma
contribuído para o retardo. O que se sanciona é o comportamento deliberadamente
abusivo das partes. Na jurisprudência daquele tribunal encontram-se inúmeras
referências ao uso procrastinatório dos recursos, nomeadamente os que alegam sem
fundamento a parcialidade do julgador, impugnam a composição do tribunal e
manipulam uma quantidade tal de recursos que inundam os órgãos jurisdicionais
causando significativo atraso17.
15 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 80.16 RAMOS, Carlos Henrique. op.cit. p. 93-94.17 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 80-81.
A questão acerca do comportamento das partes põe em relevo a discussão em
torno da teoria do abuso do direito18, na qual a cláusula geral da boa-fé é transplantada
para o processo.
A teoria objeto das presentes considerações foi alvo de severas críticas, tendo em
vista que poderia ser considerada como verdadeiro perigo ao exercício de liberdades
individuais, pois os direitos subjetivos seriam um meio de defesa contra o abuso de
poder.
Alguns doutrinadores19 afirmam que até se pode reconhecer como justificada a
finalidade exclusivamente dirigida ao atraso do procedimento, o que se revelaria
ilegítimo seria amparar-se na dilação produzida para denunciar violação ao direito
fundamental à duração razoável do processo, vez que a dilação na hipótese foi
conseqüência exclusiva do próprio ato.
Em contraposição a tais críticas, foi firmado o entendimento de que
precisamente o contrário se verifica, pois a teoria do abuso do direito atende,
exatamente, ao princípio da liberdade humana, posto que o que se objetiva é conter, nos
limites do justo e razoável, o desvio do direito, protegendo, em conseqüência, o direito
individual daquele contra o qual o abuso foi cometido20.
Neste aspecto podemos registrar os exemplos da reiteração de adiamentos de
audiências requeridos pela parte, ora em razão da alegação de saúde quando o problema
não impede o comparecimento, outra em razão de freqüentes trocas de advogados.
18 RAMOS, Carlos Henrique. op.cit. p. 94-95: Desde os primórdios do direito, mesmo que de forma
diferenciada em relação aos dias atuais, buscou-se estabelecer normas assecuratórias da vida em
sociedade, de modo a administrar os diversos interesses egoísticos para que as finalidades jurídica e
social que embasam a instituição daquelas normas pudessem prevalecer. A partir da organização da
vida em sociedade e da retirada dos indivíduos da faculdade de fazer justiça com as próprias mãos
(autotutela), estabeleceu-se a ordem jurídica, manifestada por um direito positivo. No bojo de tal
ordem jurídica, foi assegurado ao indivíduo o direito ou a faculdade de exigir de outrem, em certas
situações, um comportamento típico, assim disposto pelo ordenamento. Sem embargo, tal faculdade
não é absoluta, e nem poderia ser. Encontra-se limitada pela consciência coletiva, fonte constitutiva do
direito, no sentido da imposição de limites tendentes a coibir excesso no exercício daquela faculdade.
Nesse mister, deu-se o pontapé inicial para o desenvolvimento da teoria do abuso do direito,
amplamente considerada. 19 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 81.20 RAMOS, Carlos Henrique. op.cit. p. 95.
Não obstante, a preocupação e o respeito à ampla defesa é uma constante na
jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao afirmar que o exercício de
qualquer tipo de iniciativa no curso do procedimento não constitui fator de reprovação
ao se valorar a atitude do interessado quando estas ações resultarem congruentes com a
finalidade processual das mesmas, vale dizer: não se pode recusar aos acusados a
utilização de todos os meios e recursos oferecidos pelo ordenamento interno para
assegurar a sua defesa21.
Na realidade, o que se depreende na jurisprudência do Tribunal Europeu de
Direitos Humanos e do Tribunal Constitucional da Espanha é que o comportamento dos
litigantes é um critério de menor importância face ao dever das autoridades de darem
regular andamento ao processo. Sua utilidade revela-se maior quando se percebe a
colaboração das partes, pois uma vez detectada a contribuição dos demandantes para o
bom andamento do feito a violação ao direito à duração razoável do processo se torna
evidente.
Quanto ao processo, após o desenvolvimento de inúmeras novas técnicas
tendentes a propiciar uma tutela jurisdicional diferenciada, seja através de técnicas de
aceleração do curso dos feitos, seja através da tutela específica, a aproximar o direito
material do processo, chegou-se à conclusão de que a promessa constitucional do acesso
efetivo à justiça somente restaria cumprida após o transcurso de etapa posterior e
imperiosa: a correta utilização de tais técnicas.
É exatamente nesse contexto que ganham relevo expressões como ética, lealdade
e probidade processuais. O processo que, ao contar com uma verdadeira tutela
constitucional nos diversos ordenamentos, deve servir de instrumento para a realização
do direito material, e não como mecanismo de embaraço e de frustração do consumidor
da tutela jurisdicional. Daí a importância da disciplina do abuso do direito no processo,
diretamente relacionado com o critério do comportamento das partes22. Sob este enfoque
o tema do comportamento ético dos personagens do processo coloca-se em posição de
21 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 81-82.22 RAMOS, Carlos Henrique. op.cit. p. 95-96.
destaque. Isto porque, se o processo é composto de pessoas, não só aqueles que formam
a relação jurídica, mas também de tantas outras que contribuem para o seu
desenvolvimento, o modo como elas atuam será absolutamente fundamental23. A
questão da responsabilidade das partes no desenvolvimento adequado do processo será
tratada mais adiante.
Voltando-se ao critério, não basta a mera afirmação de que a parte terá de
suportar as conseqüências de seu comportamento indesejado. Há que se estabelecer
outros parâmetros de avaliação para tais condutas. Neste sentido, três correntes
principais podem ser destacadas:
Para os subjetivistas, uma eficiente determinação do abuso do direito dependeria
de uma análise exclusiva da intenção do agente. Segundo essa teoria, o exercício de um
direito seria abusivo e, conseqüentemente, ilícito, caso aquele que o exerça apenas tenha
em vista prejudicar terceiros, sem nenhum ou insignificante proveito para si.
Já para os objetivistas, poderia haver abuso de direito mesmo sem a intenção de
prejudicar. O ato seria lícito ou ilícito de acordo com a finalidade do instituto jurídico.
Segundo esta corrente, o exercício abusivo do direito, sem proveito próprio ou com a
intenção de lesar terceiros, seria a forma mais comum de abuso. Em virtude da
dificuldade de se apurar a real intenção do agente, uma análise objetiva, de acordo com
a finalidade social do direito, seria mais adequada. A teoria objetiva nada mais faz do
que transplantar a noção de boa-fé objetiva para o processo, realçando o dever de
colaboração das partes24.
Pode-se, ainda, aludir à chamada teoria mista, segundo a qual há de se perquirir
objetivamente a intenção da parte, o que seria possível através de uma análise do
procedimento normal do médio dos homens. Quando a conduta contrariasse a
normalidade do procedimento mediano seria possível perquirir a obrigação de ressarcir
o dano processual.
23 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. A ética e os personagens do processo. Revista Forense, n. 358,
nov./ dez. 2001. p. 349-350.24 RAMOS, Carlos Henrique. op.cit. p. 97.
A Corte Européia não se manifestou especificamente sobre o modo de avaliar a
conduta das partes, mas já deu a entender que estas só seriam consideradas reprováveis
no caso de manifesta má-fé das partes (teoria subjetiva)25. Tal postura, cautelosa,
permite uma análise mais completa do comportamento das partes, e possibilita, ainda
que situações onde o direito de ação tenha sido legitimamente exercido não sejam
confundidas com abuso do direito de demandar ou de defesa.
À parte corresponde o dever de realizar com diligência os atos processuais que
lhe dizem respeito, abster-se de atuações dilatórias e aproveitar as oportunidades que o
direito interno lhe ofereça para abreviar o procedimento. Trata-se, em síntese, dos
deveres processuais constantes do art. 14 do Código de Processo Civil brasileiro.
A atuação das autoridades judiciais
A Corte entende que o Estado nacional signatário da Convenção tem o dever de
assegurar a prestação jurisdicional efetiva, sendo esta uma verdadeira obrigação de
resultado, sempre com o respeito às garantias fundamentais do processo. Daí a
importância do comportamento das autoridades judiciárias, já que a Justiça é composta
por pessoas. Por autoridade judiciária, em sentido amplo, deve-se entender a figura dos
juízes e dos auxiliares da justiça, além é claro, do Estado como um todo, que deve
buscar sempre cumprir a garantia26.
A aferição da atuação das autoridades judiciais tem sido preponderante para
concluir pela existência ou não de violação de direito à duração razoável do processo
por parte do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. A responsabilidade do Estado
25 Loc. Cit.26 Ibidem,p. 98-99.
decorre exatamente deste ponto, e a referida Corte tem sido inclemente quando
identifica nexo entre a dilação e a atuação da autoridade.
O fato de o processo estar sujeito ao princípio dispositivo, competindo às partes
o poder de iniciativa, não quer dizer que posturas burocráticas dos agentes Judiciários
possam ser toleradas, uma vez que o processo se desenvolve por impulso oficial. Em
paralelo com o direito brasileiro, o art. 125, II, do nosso Código de Processo Civil
define que cabe ao juiz dirigir o processo e velar pela rápida solução do litígio. Aos
auxiliares da justiça também cabe cumprir seu ofício no prazo estipulado pela lei.
Os atrasos imputados ao Estado podem ser classificados em dilações
organizativas e dilações funcionais. As primeiras decorrem de fatores estruturais, da
sobrecarga de trabalho ou mesmo conjunturais. As segundas estão ligadas à deficiente
condução do processo por parte dos juízes e tribunais.
André Luiz Nicolitt27 divide as dilações funcionais em duas: as paralisações
procedimentais injustificadas e a hiperatividade inútil. Segundo ele, os atrasos não são
apenas fruto da paralisação do processo em razão da inatividade da autoridade, mas
também (e não raro) decorrem da excessiva concentração da atividade em aspectos
secundários da causa.
Algumas questões organizacionais do aparelho Judiciário, como o baixo número
de juízes ou a irracional alocação de órgãos, por exemplo, também podem influir na
análise para que, na aferição da lentidão, haja uma punição mais severa ao Estado
denunciado, em virtude de falhas estruturais, não ocasionais.
Carlos Henrique Ramosa28, a partir de um esforço compilativo, enumerou os
critérios desenvolvidos pela Corte Européia de Direitos Humanos, que podem ser
sintetizados a partir de algumas assertivas fundamentais. Nesse sentido, a garantia do
prazo razoável restará violada caso:
27 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 85: “Diante de eventual atraso, detectando-se como causa a
atuação da autoridade judicial, seja no aspecto judicial, seja no aspecto organizacional, ou no aspecto
funcional, há que se ter uma forte justificativa para não taxar de indevida a dilação e, por conseguinte,
afastar a responsabilidade e os efeitos da violação do direito à duração razoável do processo”.28 RAMOS, Carlos Henrique. Op. cit., p. 100-101.
a) Em uma causa considerada não-complexa, a controvérsia não seja
solucionada tempestivamente ou, em se tratando de um feito que verse sobre
questões complexas, os juízes não empreendam esforços para o seu
adequado enfrentamento;
b) Os postulados éticos de demandar e ser demandado, além dos deveres típicos
de colaboração, não sejam obedecidos;
c) Os deveres dos juízes e dos auxiliares da justiça, mais precisamente aqueles
relacionados com a correta condução do processo e com o cumprimento dos
prazos, não sejam corretamente obedecidos; e
d) O Estado, como um todo, não adote providências estruturais para melhor
aparelhar o sistema Judiciário.
Contudo, a responsabilidade do Estado é limitada às hipóteses em que a dilação
possa ser a ele imputada, o que, por si só, já afasta a possibilidade de aquele indenizar a
parte quando ela própria tenha dado causa à lentidão ou quando a complexidade da
causa exigir um maior tempo para a solução da controvérsia, pois há, nesses casos,
rompimento do nexo causal. No primeiro caso, a dilação é indevida, mas não imputável
ao Estado, ao passo que na segunda hipótese estará configurada a denominada
morosidade necessária, conforme o critério de Boaventura de Souza Santos já abordado.
Ressalte-se ainda, que a utilização dos critérios do comportamento das partes e
das autoridades pode fazer com que haja importante reforço na disciplina da ética e dos
deveres processuais, relevante ponto de estrangulamento no que se refere às mazelas
estruturais do sistema.
Por fim, importante ressaltar a rígida postura do Tribunal de Estrasburgo. Muito
mais que um mero caráter punitivo, suas deliberações objetivam despertar nos
governantes e nos administradores da Justiça uma responsabilidade que estes já
deveriam, de fato, ter assumido ao aderir à Convenção. Ademais, estimulam que
soluções estruturais sejam buscadas internamente. Em outras palavras, a Corte tem
demonstrado forte compromisso na construção da real aplicabilidade imediata da
garantia. Uma postura inconformista e enérgica, como a da Corte Européia, é
fundamental para que resultados qualitativos sejam alcançados.
Critérios facultativos
A importância do litígio para os demandantes
A expectativa das partes (autor e réu) também pode ser levada em conta para a
análise da complexidade da causa. Ao contrário do que se poderia supor, a expectativa
da parte para uma rápida solução do litígio pode, em alguns casos, ser considerada
relevante, como no caso dos idosos, dos enfermos, do preso, e nas inúmeras outras
situações em que haja direitos fundamentais conexos à celeridade. A natureza do direito
envolvido poderá, assim, importar em avaliação mais rigorosa da duração do processo
por parte da Corte29.
A importância do litígio pode ser aferida em um plano abstrato, em razão da matéria
envolvida no litígio, e no plano concreto, ou seja, considerando as específicas
circunstâncias do demandante no caso concreto.
No plano abstrato, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem formulado uma
escala de prioridades segundo o conteúdo material do processo, organizando as matérias
na seguinte ordem30: 1º) processos penais; 2º) processos sobre o estado e a capacidade
das pessoas; 3º) processos trabalhistas e de seguridade social e 4º) os tipos residuais.
29 Ibidem,p. 93.30 NICOLITT, André Luiz. Op. Cit, p. 85.
Com efeito, os tribunais não podem deixar de considerar a matéria que está
sendo discutida em um processo. A controvérsia sobre leasing de uma lancha de passeio
inegavelmente tem menor importância ante uma controvérsia sobre a capacidade ou a
liberdade de uma pessoa. Por outro lado, não se pode olvidar das circunstâncias
concretas do indivíduo diante de um processo, razão pela qual, por exemplo, há que
distinguir entre os processos com réus presos e os com réus soltos; feitos que envolvem
pessoas idosas ou enfermas, etc.
A doutrina espanhola, com base na jurisprudência do Tribunal Europeu de
Direitos Humanos e do Tribunal Constitucional, formulou um rol de temas que
suscitam prioridades, quais sejam31: os processo com réus presos; as discussões sobre
capacidade da pessoa; as controvérsias relativas a direitos sociais; as indenizações por
acidentes com conseqüências graves; feitos que envolvem um grande número de
pessoas ou um grande volume de capital, medidas cautelares; risco de vida, entre outros.
Em resumo, não há como negar que a importância concreta do processo para os
demandantes é um fator que deve, sem dúvida, ser considerado pelo Judiciário na
aferição de violação do direito à duração razoável do processo.
O contexto no qual se desenvolveu o processo
Em regra, uma situação desfavorável não justifica a dilação anormal do
procedimento Judiciário. No entanto, não se pode olvidar que, em certas hipóteses, o
contexto no qual se desenvolve o processo leva a um retardamento inevitável, contra o
qual nada pode fazer o poder público.
O tribunal vem admitindo, de modo excepcional, que uma crise eventual na
justiça que gere momentâneo acúmulo de trabalho possa ser invocada para justificar
uma duração mais alongada, desde que o Estado demonstre prontamente que está
31 Ibidem, p. 86.
adotando providências para solucionar tais problemas eventuais. Caso o Tribunal
identifique que o problema é estrutural, como ocorre na grande maioria dos casos, o
Estado será condenado.32
É o caso, por exemplo, de uma enchente que destrua parte dos processos de um
tribunal. Contra os poderes da natureza nada pode o Estado, que, numa situação
excepcional, não tem como garantir a duração razoável do processo diante de fatores
externos invencíveis.
Importante observar, no entanto, que um contexto no qual se observe baixo
número de funcionários disponíveis, tecnologia ou instalações insuficientes ou mera
ineficiência do Poder Público não justificam, em hipótese alguma, o atraso no
andamento dos processos – tal dilação nada tem de razoável, pois se encontra dentro dos
limites do poder de atuação do Estado. Neste caso, se o Judiciário se insere em um
contexto de ineficiência, ou mesmo de excesso de processos, é sua obrigação encontrar
meios para o andamento mais célere dos feitos.
Desta forma, entende-se que, em certa medida, o contexto deve ser levado em
conta, muito embora tais influências serão, na maioria das vezes, de menor importância.
Não obstante, poderão ser úteis quando na análise de um caso concreto se concluir que a
conduta da autoridade judiciária foi incensurável.33
Conclusão:
Em termos de responsabilização pela demora injusta do processo, Corte
Européia de Direitos Humanos possui uma jurisprudência já bastante consolidada no
balizamento da doutrina do não-prazo, tendo estabelecido critérios mais objetivos na
análise de eventual responsabilidade do Estado a violação ao direito.
A Corte Européia de Direitos Humanos ocupa papel primordial na proteção dos
direitos humanos no continente europeu. Trata-se de um órgão bem aparelhado,
32 RAMOS, Carlos Henrique. Op. cit., p. 100.33 NICOLITT, André Luiz. Op. cit. p. 88.
estruturado e organizado, e sua jurisprudência, em muitos casos, serve de parâmetro
para diversos ordenamentos internos. Além disso, serve como mecanismo de controle,
pois muitas vezes uma condenação perante a Corte pode despertar a responsabilidade
dos governantes em virtude do constrangimento sofrido em face da comunidade
internacional.
A demora dos processos é o motivo mais comum de reclamação perante o Corte,
o que a levou a constituir uma jurisprudência considerável em relação ao assunto.
Assim, a razoabilidade da duração do processo envolve a análise de alguns critérios
relativamente objetivos.
Ao analisar um processo de alegada violação à duração razoável, o tribunal, em
regra, segue três passos: em primeiro lugar, analisa a efetiva duração do processo,
fixando o período a ser considerado; após, considera os critérios objetivos para a
aferição da razoabilidade do prazo, quais sejam, a complexidade da causa, o
comportamento das partes, a atuação das autoridades judiciais (critérios preceptivos), a
importância do litígio para as partes e o contexto no qual se desenvolveu o processo
(critérios facultativos); por fim, pronuncia-se sobre a violação do direito.
Daí se observa a importância dada ao comportamento do fator humano
envolvido no processo, sejam as autoridades judiciais ou mesmo as partes da lide.
É preciso cautela ao se defender a importação estruturas ou parâmetros
estrangeiros para o ordenamento nacional. Casa sistema deve ser construído com
atenção à realidade que o cerca, sob pena de, no anseio de se aperfeiçoar a ordem
nacional com base em modelos externos, criar-se um verdadeiro monstro Frankstein,
com membros que não harmonizam entre si.
No entanto, a observação das condutas estrangeiras podem servir de grande
inspiração para que seja feita, de forma consciente e cuidadosa, as melhorias necessárias
no sistema pátrio, e é sob esta ótica que deve ser encarado o estudo do modelo da Corte
Européia no tutela da processo em tempo adequado, para, quem sabe, se consiga
construir no Brasil uma Justiça mais eficiente, que atenda aos anseios de celeridade que
permeiam esta sociedade.