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OS ASSENTAMENTOS RURAIS NA ABORDAGEM DA GEOGRAFIA CULTURAL: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E ATUAIS
Josafá Ribeiro dos Santos
Universidade Estadual do Piauí – UESPI [email protected]
Resumo A geografia cultural se coloca, na atualidade, como um campo cientifico de fundamental importância para compreensão das paisagens produzidas pela sociedade. Desta forma, o objetivo do presente artigo é compreender a importância da Geografia Cultural no estudo dos assentamentos rurais, tendo como estudo de caso o assentamento Quilombo, localizado no município de Altos/José de Freitas/PI. A metodologia utilizada pautou-se a partir das contribuições teórico-metodológicas da Disciplina Geografia Cultural I e II, no Curso de Doutorado em Geografia (UFPE), e da realização de pesquisa de campo (entrevista semiestruturada) junto às famílias do Assentamento Quilombo. Os assentamentos rurais, constituem-se como “novos territórios” no espaço agrário brasileiro, os quais são consequências da luta do campesinato pela reforma agrária, mas, também é consequência da política do Estado Moderno para o campo, sob o modo de produção capitalista.
Palavras-chave: Geografia Cultural . Assentamentos Rurais.
Introdução
Os desdobramentos epistemológicos do século XX, os quais contribuíram para realizar uma profunda reflexão nas ciências, de um modo geral, atingiram, também, a geografia,
contribuindo para o surgimento de um conjunto de vertentes e/ou paradigmas
geográficos. A vertente cultural é remanescente desse processo, como cita Corrêa (2001,
p.30): A década de 1970 viu também o surgimento da geografia humanista que foi, na década seguinte, acompanhado da retomada da geografia cultural. Semelhante à geografia critica, a geografia humanista, calcada nas filosofias do significado, especialmente a fenomenologia e o existencialismo, é uma critica á geografia de cunho lógico-positivista.
Vive-se um mundo repleto de complexidades espaciais. Isto significa uma
heterogeneidade do ponto de vista social, econômica, cultural e territorial. O espaço
rural brasileiro reflete esta complexidade, pois é composto por um conjunto de atores,
os quais apresentam interesses antagônicos. Compreender essas diversas facetas
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espaciais requer um maior rigor cientifico e uma abordagem holística, buscando uma
investigação e explicação na essência das relações sócios espaciais.
A geografia cultural se coloca como um instrumento cientifico a qual vem procurando
proporcionar uma abordagem centrada na subjetividade, na intuição, privilegiando o
singular e não o particular ou o universal. Nesta perspectiva, o estudo da paisagem
torna-se bastante valorizado pelos geógrafos, os quais procuram explicar a paisagem
geográfica como resultado da ação cultural do homem.
O objetivo do presente artigo é compreender a importância da Geografia Cultural no
estudo dos assentamentos rurais, tendo como estudo de caso o assentamento Quilombo,
localizado no município de Altos/José de Freitas/PI. A metodologia utilizada pautou-se
a partir das contribuições teórico-metodológicas da Disciplina Geografia Cultural I e II,
no Curso de Doutorado em Geografia (UFPE), e da realização de pesquisa de campo
(entrevista semiestruturada) junto às famílias do Assentamento Quilombo.
Os paradigmas da Geografia: um breve histórico
O conhecimento geográfico constitui-se entre um dos mais antigos quando comparado
com outros ramos do conhecimento. Mas, enquanto explicação científica do seu objeto
de estudo (espaço) é resultante do século XIX. Para Moraes (2005), a ciência geográfica
enquanto conhecimento sistematizado é remanescente do início do século XIX. Sua
firmação como ciência foi influenciada por fatores de natureza econômica, social,
cultural e filosófica, no entanto recebeu importantes contribuições de outros campos
científicos (economia, sociologia, antropologia, etc.), engendrados nas conjunturas dos
séculos XVIII e XIX. Segundo Maciel (2002), a geografia possui uma vasta herança
como discurso ordenador do mundo a partir da descrição das formas operadas pela
natureza e pelo homem, buscando explicar suas conexões. George (1989, p.10),
ressaltando a importância da geografia, escreve:
O estudo da ciência geográfica é composto de um todo e embasado na explicação das condições de vida humana sobre o espaço terrestre, das formas de existência dos diversos grupos sociais espacialmente distribuídos nos mais diversos lugares. Qualquer que seja a apreensão do objeto de estudo da geografia só tem sentido se lançar luz sobre as condições de vida dos diferentes grupos humanos, em conformidade com o nível de domínio do seu respectivo espaço.
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Tendo como objeto de estudo o espaço, outros conceitos permearam o debate no interior
da geografia como forma de firmação do objeto e de sua identidade no âmbito das
demais ciências. Esses debates incluíam os conceitos de paisagem, região, paisagem
cultural, gênero de vida e diferenciação de áreas (CORRÊA, 2001). O estudo desses
elementos dava-se a partir da localização, dos seus aspectos visíveis, da comparação e
da diferenciação dos referidos espaços. Para Maciel (2002), esta dimensão do estudo do
objeto liga-se diretamente à constatação da variada feição do mundo material, qualquer
que seja a interpretação subjetiva ou a sensibilidade histórica em jogo.
Esta foi a trajetória da Geografia Tradicional, calcada no positivismo clássico e na
ordem positiva do mundo burguês – capitalista, norteada pelos avanços e conquistas
científicas durante os séculos XVII, XVIII e XIX (GOMES, 2003). Esta concepção vai
permear os estudos geográficos até meados dos anos de 1950 quando, a crise da
Geografia Tradicional abre perspectivas teórico-metodológicas para outras formas de
entendimento, análise e compreensão do objeto de estudo da ciência geografia.
(SANTOS, 1978).
Uma dessas correntes vai adotar o materialismo histórico e dialético como paradigma
fundamental, objetivando uma interpretação mais complexa do objeto de estudo da
geografia: o espaço. Assim, este é entendido como um instrumento político, um campo
de ação de um indivíduo ou grupo, ligado ao processo de reprodução da força de
trabalho através do consumo. É concebido, também, como lócus, da reprodução das
relações sociais de produção, isto é, reprodução da sociedade (CORRÊA, 2011, p. 25-
26).
Na conjuntura de uma sociedade industrializada e mecanizada: uma sociedade técnico-
científica e globalizada, ocorre continuamente um processo de territorialização,
desterritorialização do capital de comunidades, de culturas etc. O espaço, a região, o
território é inventado e reinventado para dar suporte a sobrevivência desta própria
sociedade. Messias (1988) enfatiza que nesse tipo de sociedade vai ocorrer uma
valorização do espaço. Sábato (1993) a caracteriza da seguinte forma: numa sociedade
dotada pelos sistemas técnicos, o espaço que representa o “lócus” de todo o processo de
reprodução desta sociedade é valorizado minuciosamente. Esta é a nova sociedade,
impulsionada pela produção, pelo dinheiro e pelos meios técnicos.
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Essas interpretações voltaram-se para uma visão economicista do espaço, seja do
agrário ou rural, seja no aspecto do fenômeno urbano. É uma paisagem espacial voltada
para a reprodução das condições materiais e de consumo operacionalizada pela própria
sociedade e para seu próprio consumo. Se nesta perspectiva o espaço e, a paisagem vão
se tornando contraditórios; essas contradições sócioeconômicas são explicadas a partir
de uma visão meramente econômica. Isto que dizer que o aspecto cultural, os valores, a
história do humano, enquanto pessoa, nesse paradigma não é valorizado. Esta façanha
só vai ocorrer a partir dos anos de 1970 com o surgimento da corrente de pensamento da
geografia humanista e, com ela a retomada da geografia cultural (ANDRADE, 1987).
Geografia Humanista e Cultural: a perspectiva de uma abordagem geográfica
diferenciada
A firmação da vertente teórico-metodológica humanista na ciência geográfica por parte
de um processo de evolução do conhecimento científico e remanescente do final do
século XVIII e XIX, mas principalmente oriunda das transformações econômico-
sociais, espaciais e filosóficas que marcaram a primeira metade do século XX.
Gomes (2003, p. 304), analisando a influência do humanismo nas ciências sociais e,
especificamente na Geografia cita:
A influência do humanismo, nesses últimos anos, nas ciências sociais, faz nascer uma enorme diversidade de concepções, que se apresentam, todavia sobre o mesmo nome. Uma grande parte das obras escritas seguindo esta orientação metodológica invoca autores diferentes, tentando obter deles novas vias para o conhecimento geográfico.
Corrêa e Rosendahl (2010, p. 10) explicam que “a dimensão cultural da sociedade
estava presente na geografia européia do final do século XIX e nas duas primeiras
décadas do século XX”. Isto porque, os estudiosos da época entendiam que a paisagem
cultural era resultado da ação humana alterando a paisagem natural.
Corrêa e Rosendahl (2010, p. 10), citam que, “foi nos Estados Unidos, que a Geografia
Cultural ganhou plena identidade, graças à obras de Carl Sawew e de seus discípulos,
primeiramente em Berkeley e, em breve, dispersos por várias universidades”.
Na geografia, a vertente humanista e cultural é remanescente dos anos 70 do século XX
e foi conseqüência do movimento de renovação da Geografia em meados dos anos 40
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do século XX o qual rompeu com o chamado Paradigma Tradicional ,Geografia
Positivista. (MORAES, 2005).
Claval (1999, p. 60-61), buscando evidenciar o declínio da Geografia Cultural
Tradicional e o nascimento da Geografia Cultural Moderna explica que, “a primeira
entra em declínio no decorrer dos anos 1950, 1960 e 1970”. Este acontecimento foi
impulsionado por conta de três fatores fundamentais: a negligência em relação a
abordagem das culturas sem relacionar com as representações; o desenvolvimento
técnico tende a se homogeneizar negando, desta forma, a diversidade e, o processo de
urbanização mais acelerado, vai provocar a diversificação de atividades, desvalorizando
os estudos voltados para a descrição dos gêneros de vida. (CLAVAL, 1999).
Mesmo com toda essa conjuntura adversa a uma abordagem cultural, esse subcampo da
ciência geográfica não desaparece. Os geógrafos vão buscar outras abordagens que
passe a valorizar a diversidade dos grupos, o qual não pode ficar de fora das análises
geográficas culturais. A busca de outros caminhos teórico-metodológicos, perseguido
pela comunidade geográfica na conjuntura do final dos anos 50 do século XX foram, de
certa forma, fundamentais para a eclosão e renovação da Geografia Cultural. É
fundamental ressaltar que esse importante subcampo da geografia tinha como
influências básicas até o final dos anos 70 a visão da geografia vidalina e da Escola de
Berkeley. (CLAVAL, 1999).
Embora a geografia cultural tenha desempenhado um importante papel para a
compreensão da ação humana o processo de organização do espaço, como também no
enriquecimento do pensamento geográfico, esse campo de estudo vai passar por um
processo de renovação a partir dos anos 80 do século XX.
Esse processo se deu, principalmente, por conta de fatores sócio-econômicos, culturais e
tecnológicos, pois, os anos 80 foi palco de um comportamento de mudanças e
transformações em escala mundial. Mitchell (2000 apud CORRÊA, 2010) abordando
sobre essas transformações destaca: “mudanças na esfera econômica, o fim da
denominação Guerra Fria, a ampliação dos fluxos migratórios de periferia para os países
centrais, o movimento social, ecológico, novas formas de ativismo e a crescente
consciência da necessidade de novos modos de se construir e entender a realidade, até
então calcada no racionalismo moderno, no raciocínio científico e na celebração da
técnica”.
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Assim, os postulados da Escola de Berkeley e a geografia vidalina irão sofrer críticas de
diversos geógrafos do ponto de vista teórico e cultural. A partir dos anos 90 pode-se
constatar uma geografia cultural renovada. Para Corrêa (2010, p. 12), “esse processo foi
impulsionado pela criação dos periódicos Geographic et Cultures, em francês, em 1992
e pelo Ecumene, em inglês, em 1994”.
No Brasil, a ruptura em relação à Geografia Tradicional positivista e a busca por um
novo paradigma só vai ocorrer no final dos anos 70 em uma conjuntura política e social
de grande efervescência: crise do estado ditatorial, violência no campo, crescimento
desordenado do espaço urbano, com acúmulo de pobreza e violência nas cidades,
concentração espacial do capital nacional e internacional, principalmente no centro-sul
etc. Neste cenário firmou-se a vertente da Geografia Crítica ou Marxista e não
humanista ou cultural. Nesse contexto, diversos geógrafos brasileiros à luz do
materialismo histórico e dialético passaram a interpretar e explicar as contrações sócio-
espaciais e territoriais do país. Não havia “espaço” para a valorização da cultura, da
subjetividade humana (CORRÊA, 2010).
É somente nos anos 90 que a Geografia Cultural no Brasil ganhou maior solidez a partir
de publicações de trabalhos científicos nesta área e, alguns fatos foram decisivos para
avanço desta vertente do conhecimento. Cita-se a criação em 1993 do Núcleo de
Estudos e Pesquisas Sobre Espaço Cultural (NUPEC), no âmbito do Departamento de
Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como também a criação em 1995
do Periódico Espaço e Cultura, o qual passou a ser o instrumento de publicação dos
diversos trabalhos desta corrente teórico-metodológica da Geografia Cultural
(CORRÊA, 2010).
Pode-se destacar, também, dois importantes eventos científicos da geografia cultural no
Brasil: a realização do Primeiro Simpósio Nacional sobre Espaço e Cultura no Rio de
Janeiro, em 1998 e do 2° Simpósio nos dias 25, 26 e 27 de outubro de 2000 realizado na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro e, neste último foram definidos como palavras-
chave a identidade, cidadania, paisagem, festas, religião, imaginário e significado.
Assim, esse subcampo de estudo da ciência geográfica ocupa cada vez mais espaços nas
Academias Brasileiras proporcionando a explicação do espaço geográfico a partir da
valorização da cultura, do sentimento, da identidade. (ROSENDAHL e CORRÊA,
2001).
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Como a Geografia Cultural tem ocupado, efetivamente, seu espaço como subcampo da
Geografia? Essa, de fato, é uma boa pergunta. A geografia é uma ciência que faz
reflexão sobre o espaço dos homens. Seus objetivos só são atingidos a partir da relação
dos seus estudos e análise, em relação a localização, a distância, fronteiras, áreas e
lugares. Assim, só tem sentido esse estudo se relacionado com os grupos humanos que
habitam e que organizam o espaço. Claval (1999, p. 79), assim explica:
...Porém, quando nos limitamos a esses dados puramente materiais, o jogo de interações e o conjunto de transferência de informação que modelam, em um mesmo movimento, os homens e as sociedades que elas formam, nos escapam completamente: a explicação fica enfraquecida e, mais ainda, fica enfraquecido o conjunto das experiências que contribuem para forjar os caracteres, para provocar questionamentos ou para criar solidariedades ou ligações simbólicas.
Para Wagner e Mikesell (2010, p. 50), tecendo qualidades científicas a esta vertente
cita: “a Geografia Cultural é, em primeiro lugar e sempre, geográfica”. Trata
essencialmente da superfície terrestre, empregando métodos usados por todos os
geógrafos.
Desta forma essa corrente teórico-metodológica da ciência geográfica está assentada na
subjetividade, na intuição, em sentimentos, na experiência, no simbolismo e na
contingência, privilegiando o singular e não o particular ou o universal e, ao invés da
explicação, tem na compreensão a base de inteligibilidade do mundo real. (CORRÊA,
2001).
Nessa Perspectiva, a paisagem constitui-se como conceito revalorizado e o lugar torna-
se o conceito-chave mais importante na vertente cultural, embora esta firmação
conceitual tenha passado por inúmeras transformações. Mas, o salto epistemológico em
relação ao conceito de paisagem geográfica, na perspectiva cultural, só vai ocorre em
1925, a partir das contribuições de Carl Sauer, o qual vai definir paisagem geográfica
como resultado da ação da cultura ao longo do tempo, sobre a paisagem natural.
Esta visão de paisagem compreende o conjunto de formas naturais e culturais associadas
em área. A paisagem é resultado da cultura, que significa o sujeito, em ação ao longo do
tempo, sobre no meio natural, (MACIEL, 2002). Assim, os geógrafos humanistas
passam a considerar o homem como o produtor da cultura. Esta é considerada como um
elemento chave na variação local sobre as temáticas e as explicações universais. As
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sociedades criam códigos culturais e as culturas dão a diversidade do mundo
(ALMEIDA E RATTS, 2003).
Reforçando esta relação, Maciel (2002) escreve que: “A natureza sempre esteve
presente no imaginário social da humanidade, o que significa disser que há de fato um
imaginário geográfico concorrendo para a elaboração das diversas visões de mundo,
incluindo aquelas propriamente paisagísticas”. Isto significa afirmar que a paisagem tem
uma dimensão temporal, o qual é decorrente de suas diversas interpretações ao longo da
historia da humanidade.
Assim, o conhecimento social tem tendência lógica para representar o mundo vivido, de
forma cotidiana pelos diversos grupos humanos espacializados pela superfície da terra.
Neste nível de compreensão Claval, (1999:53) apud Maciel, (2002, p.110) assim
escreve: É daqui que a compreensão geográfica deve insistir “sobre o sentido dos
lugares sobre a importância do vivido, sobre o peso das representações religiosas”,
tornando indispensável das realidades culturais.
Assim, as paisagens urbanas, periurbanas, as zonas rurais, o campo, o interior, a
comunidades de fundo de pasto, as comunidades quilombolas, os assentamentos rurais,
as pequenas e médias propriedades os latifúndios produtivos e improdutivos, ou seja, os
lugares de modo geral, representam o mundo vivido e, nele estão inseridos os valores
culturais, a religião, a arte, e as diversas formas do imaginário. Esse conjunto dar
significação ao mundo.
Assentamento Quilombo em Altos/ José de Freitas-Pi: a Sustentabilidade via
Políticas Públicas: uma interpretação à luz de uma abordagem cultural
É fato que a Ciência Positiva marcou profundamente nossa forma de pensar e de
interpretar o mundo vivido: o mundo concreto, visível e real constitui- se a base da
produção cientifica. As Instituições públicas e privadas, as Academias Universitárias
foram instituídas, tendo como arcabouço teórico e metodológico essa concepção de
ciência, herança do Positivismo Clássico. A crítica radical a esse modelo cientifico
instituído a partir da segunda metade do século XX, (no Brasil consolida-se no final da
década de 1970), Corrêa e Rosendahl (2010, p.9) sintetizam que essa critica foi “calcada
em um materialismo histórico mal assimilado”.
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Nesta perspectiva, a cultura foi negligenciada, não se constituindo aspecto fundamental
para a explicação da origem, formação e evolução das paisagens geográficas. Imperou
uma visão voltada para uma explicação locacional, econômica e de suas formas
concretas. A formação do espaço brasileiro foi interpretada e compreendida de forma
majoritária, ao longo da sua historia nesta visão de mundo.
O entendimento da formação do espaço rural brasileiro, por grande parte da comunidade
científica, seguiu um caminho teórico-metodológico extremamente voltado para uma
abordagem economicista e de um espaço considerado atrasado: trabalhadores rurais,
grupos de camponeses, famílias assentadas e diversas comunidades rurais fazem parte
de um Brasil não moderno. Seus valores culturais, suas religiões e suas artes são
considerados entraves à modernidade. Faz-se necessário intervir e impor uma nova
ordem que atenda aos interesses desta nova estrutura econômica, social e política. Esta
foi, e continua sendo a visão do Estado Moderno e de suas Instituições junto a estas
comunidades.
Esse processo de intervenção positiva tem inicio já no final da primeira metade do
século XX. O Estado procurava esboçar políticas denominadas de atuação local, através
do associativismo. A função dessa política era meramente assistencialista e, sobretudo,
para enfraquecer as lutas camponesas lideradas pelos trabalhadores rurais (Buarque,
1999).
Nesta perspectiva, eram desprezados, os hábitos e o próprio conhecimento que essas
populações rurais e camponesas adquiriram ao longo da vivencia com a natureza.
Assim. Buarque (1999,p.235), escreve:
Essa perspectiva no micro-organismo comunitário significou internalizar um estilo centralista de gestação para implantar no seio das comunidades pobres os elementos próprios à modernidade ocidental. Essa intervenção ficou evidente nos esquemas implementados pela extensão rural baseados no paradigma da revolução verde.
Seguindo este raciocínio, Jara (1998,p.147), caracterizando a política do Estado
Moderno, escreve: A estratégia convencional do desenvolvimento comunitário fragmenta a sociedade rural, a desorienta a respeito dos objetivos comuns, abandona suas questões estruturais consolidadas um senso e uma consciência de subalternidade.
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Fonte: INCRA, 2004.
O Assentamento Quilombo, localizado nos municípios de Altos/ José de Freitas-PI
(fig.1), cuja luta pelo processo de conquista das terras teve início em 1992, formou-se
nesta lógica instituída pelo Estado capitalista. Ao longo de vinte anos de existência, as
famílias assentadas já vivenciaram inúmeras transformações no espaço, transformações
essas processadas pelo movimento dessas famílias e das políticas públicas viabilizadas
pelo Estado Moderno para o campo..
Figura 1 – Projetos de Assentamentos
No início da formação do assentamento as famílias praticavam a agricultura e a pecuária
de subsistência como forma de sobrevivência da população local. Esta prática de
produção junto a terra se constituía em uma herança das famílias mais antigas as quais
eram posseiras na área.
Mas, por orientação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
e da Associação Comunitária de Desenvolvimento de Pequenos Agricultores Rurais no
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Quilombo (ACOMDEPERUQ), as famílias passaram a discutir outras formas de
aproveitamento do espaço de produção do assentamento. Com isto, a partir de 1997, o
Quilombo teve acesso aos créditos: Fomento, Habitação Emergencial e Alimentação
(CEPAC/INCRA, 2001).
A partir do ano 2000, o Assentamento Quilombo passou a desenvolver vários projetos
de produção agropecuária: campos com plantios de caju, feijão, melancia, abobora e
mandioca; e, criações de suíno, caprino e galinha caipira. O manejo no desenvolvimento
dessas atividades, em grande parte, envolve os membros da família. Mas, existe o
complemento de trabalho com pagamento de diárias. Os produtos são comercializados
nas feiras livres das cidades de José de Freitas e Altos. Nesse processo, a prática da roça
tradicional praticamente inexiste.
As famílias que não participam dos campos de produção estão inseridas em outras
atividades para garantir renda, tais como, agricultura de subsistência (plantio de arroz,
feijão, milho e mandioca) e pecuária de subsistência (criação de suínos, caprinos,
bovinos e galinha caipira). Um outro grupo das famílias assentadas sobrevive com renda
obtida através de benefícios concedidos pelo Governo Federal (Bolsa Família e
Aposentadorias).
Outro aspecto demonstrado pela pesquisa junto às famílias do assentamento é que
existem cinco itens considerados problemas: desunião entre famílias (em relação à
sustentabilidade do assentamento); deficiência nas informações por parte do INCRA e
da ACOMDEPERUQ sobre os projetos de financiamento do Governo Federal; pouca
frequência de reuniões coordenada pela ACOMDEPERUQ e falta de manutenção nas
estradas vicinais destinadas a comunicação e ligação (fluxos) entre o assentamento e as
cidades mais próximas (Teresina, José de Freitas, Altos e Campo Maior).
Outro ponto que ficou constatado no assentamento é em relação à identidade das
famílias com o lugar: há um sentimento de cuidado e preservação em relação a área
destinada a reserva ambiental. A criação de animais de forma extensiva é bastante
controlada objetivando um menor impacto em relação ao ambiente e como forma de
evitar conflitos entre as famílias. Mas, a emergência dos projetos de campos agrícolas e
criação de animais passaram a mudar a percepção de famílias assentadas em relação ao
uso do espaço no assentamento. Hoefle,(1990, p.47-72), apud Maciel (2006, p.11),
escreve que:
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O meio ambiente sertanejo é visto pelos seus habitantes através de um prisma majoritariamente unitário, seja para fins produtivos ou sociais. Contudo, diante das transformações econômicas e sociais porque passa o sertão, as visões de natureza podem se modificar, dai a importância das ações educativas como catalizadoras de novos comportamentos e atitudes.
Desta forma, pensar em um desenvolvimento local sustentável para os assentamentos
rurais, no estudo de caso do Quilombo, significa fazer uma reflexão mais criteriosa em
relação ao desenvolvimento rural que considera o desenvolvimento como um simples
resultado do progresso da ação projetista, economicista e burocrática, oriundo do Estado
Moderno.
Zamberlam e Froncheti (1997), analisando experiências vivenciadas por assentamentos
no Rio Grande do Sul, explicam que as atividades econômicas foram afetadas pelo
denominado padrão “tecnológico e organizacional” da chamada “modernização da
agricultura”, imposta pelo mercado e dinamizada pelo Estado. Romper com este padrão
e buscar o sucesso para os assentamentos, nas mais diversas regiões do país, depende,
basicamente, de três fatores básicos: primeiramente, cita-se a importância do
planejamento, pois esse busca dar uma nova dimensão para os assentamentos, negando
a visão econômica. Em segundo lugar, aponta-se a execução em que as famílias
assentadas buscam a socialização dos meios de produção. Finalmente, a distribuição a
qual permite ver os consumidores como parceiros trabalhadores que fazem parte de uma
mesma classe, e não como simples “freguês” (comprador, consumidor).
Nesta perspectiva, os assentamentos podem proporcionar uma melhor condição de vida
para todas as famílias, permitindo educação, saúde, saneamento básico, moradia,
valorização da cultura local e formação para o desenvolvimento das atividades
produtivas sustentáveis, respeitando o conhecimento adquirido pelas famílias ao longo
de sua vivência com o lugar.
Conclusão
Esta breve análise sobre as questões epistemológicas da ciência geográfica constitui-se
de fundamental importância, pois permite conhecer as diversas temáticas deste campo
de conhecimento e apreender seu objeto de estudo que é o espaço, o qual foi e continua
sendo interpretado e explicado sob diversas nuanças.
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Mas o que se coloca na atualidade no campo epistemológico da geografia é a vertente
cultural. Esta tem procurado compreender as transformações que ocorrem no espaço a
partir da cultura. Passa a expressar na sua produção cientifica o entendimento do espaço
a partir de outros aspectos nunca valorizados pela comunidade geográfica, tais como:
identidade, cidadania, paisagem, religião, imaginário, significado etc, aspectos estes
voltados para questão da cultura.
Corrêa (2001) compreende que a geografia cultural se coloca de forma contraditória às
duas vertentes majoritárias da ciência geográfica instituídas entre os anos cinquenta e
oitenta do século XX: a Geografia Teorética-Quantitativa e a Geografia Critica.
Enquanto a primeira vai privilegiar o espaço a partir de uma abordagem matemática e
estatística, a segunda busca compreender este espaço à luz das contradições
operacionalizadas, de forma histórica, pelos modos de produção, especialmente, pelo
capitalismo. No entanto, a geografia humanista busca a compreensão das
transformações espaciais e da paisagem na subjetividade, na experiência, no sentimento
etc.
Um dos campos de estudos da geografia cultural que tem alcançado relevância
cientifica, pelo nível de abordagem, pela evidencia de fenômenos sóciosespaciais refere-
se ao espaço rural, pois procura estudar a paisagem rural (incluindo as comunidades), a
partir de seus valores, da experiência de vida, da identidade do lugar, o imaginário etc.
Todos esses valores associados à vivencia no espaço.
Os assentamentos rurais entendidos como um processo de reinvenção da luta
camponesa no campo e como um movimento de reterritorialização de famílias sem-
terra, sempre foram estudados e investigados à luz de uma compreensão economicista,
em que essas unidades produtivas deveriam aderir a lógica de mercado planejada pelo o
Estado Moderno.
No estudo de caso do assentamento Quilombo, objeto da pesquisa, as famílias
assentadas já praticavam a agropecuária de subsistência (plantio de arroz, feijão, milho e
mandioca e, criação de gado bovino, suíno e caprinos). Mas aderiram à agricultura
comercial com o desenvolvimento dos campos agrícolas, produzindo melancia, caju,
caprino e mandioca, deixando de desenvolver as atividades de subsistência, herdada
pelas famílias mais antigas do lugar.
A adesão a esses novos modelos de produção nos assentamentos proporcionam a
sustentabilidade desses espaços e comunidades? A invenção e a prática dos projetos de
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produção dos campos agrícolas nos assentamentos rurais, sem levar em consideração a
cultura local, a identidade das famílias com o lugar, seu imaginário em relação ao
espaço vivido, garante a sustentabilidade?
A sustentabilidade das comunidades rurais passa pela valorização de um conjunto de
valores e de atividades criadas e recriadas pelas comunidades locais, como também
pelas famílias assentadas. Jara (1998, p.146), procurando compreender o
desenvolvimento sustentável para essas comunidades, escreve: “o futuro da sociedade
local passa a ser entendido como um tanto sadio que se cultiva pela participação,
envolvimento, solidariedade, informação e ações do setores sociais”. Nessas condições
os problemas locais poderão ser evidenciados, entendidos, discutidos e encaminhados a
partir de uma política sustentável e permanente.
Referências
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