O Quilombo, a Favela e o Estado: Criminalização das Classes Populares e Políticas
Públicas de Educação
Danielle Tudes Pereira Silva1
O projeto de pesquisa ora apresentado é motivado pelo que considero duas
forças interligadas: coragem e necessidade. Ao longo de minha trajetória como
estudante, docente e administradora na esfera pública na rede de ensino do município de
Angra dos Reis (RJ), sendo oriunda das classes populares e trabalhando com as mesmas
desde sempre, na complexidade de um território caracterizado por grandes
desigualdades, aprendi que as instituições públicas muitas vezes podem contribuir para
a manutenção destas desigualdades, através de políticas que obedecem a uma lógica
colonizadora.
Nesse sentido, foi preciso coragem para falar na primeira pessoa, ora no
singular, ora no plural e edificar uma proposta de pesquisa onde assumo, sem perder o
rigor, que minha experiência existencial dialoga com os coletivos pesquisados, uma vez
que compartilhei/compartilho muitas das opressões a que são submetidos. Além disso,
trata-se aqui de pisar em terreno espinhoso, pois o território pesquisado tem as marcas
dos coletivos, que por motivos diferentes, ocuparam e por vezes morreram pelo direito à
terra: indígenas, quilombolas e migrantes de várias regiões do país.
Mas também é com coragem que assumo a proposição de perspectivas teóricas
que questionam a pretensão de análises universalizantes e se propõem a compreender
como nosso processo de colonização permanece em curso, ressignificado e cristalizando
relações desiguais.
Daí partimos para uma questão cara e que diz respeito à necessidade desta
pesquisa. Como já mencionado, meu percurso de formação e atuação profissional
ocorreu exclusivamente na escola pública popular2 a qual devoto todo o meu respeito e
1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares
da UFRRJ (PPGEDUC), Mestre no Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ (PROPED). Pesquisadora do grupo de pesquisa ALFAVELA - UFF (Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar) e membro do grupo de pesquisa GPMC - UFRRJ (Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas). Possui experiência na área de Educação, com ênfase em Relações Étnico-raciais e Classes Populares, atuando principalmente com as seguintes temáticas: Diáspora Africana; Racismo; Colonialidade; Classes Populares; Escola Pública e Violência. 2 Utilizo aqui o termo aprendido com o companheiro Antônio Eugênio do Nascimento, professor de Artes
aposentado da rede municipal de Angra dos Reis. Esse termo reforça que há escolas que, embora sejam
em torno da qual atuei como estudante, docente, coordenadora, subsecretária de
educação e, atualmente, pedagoga. Tais posições me possibilitaram o reconhecimento e
enfrentamento de inúmeros desafios que não dizem respeito somente à escola, mas que
pertencem à sociedade. Para ilustrar, doravante narro brevemente um acontecimento
ocorrido em 2015 enquanto ocupava o cargo de subsecretária de educação em Angra
dos Reis. Na ocasião, passei dois dias em visita a algumas escolas localizadas em ilhas.
Foi na volta para o continente, em nossa última parada, na Praia de Provetá, que ouvi,
em tom de brincadeira e espanto, ao tomar conhecimento do cargo que ocupava, que eu
“estava disfarçada”.
Não era a primeira vez que visitava aquela escola, já era conhecida e por isso
não houve apresentação nem formalidades. Conversamos durante toda a manhã sobre os
alunos que apresentavam distorção entre a idade e o ano de escolaridade que
frequentavam. Além disso, falamos sobre as dificuldades de implementar a Lei
11.645/08, especialmente porque a população dessa praia é predominantemente
evangélica e qualquer referencial afro-brasileiro tende a ser demonizado. Mais do que
sobre religião, nossa conversa foi sobre racismo. O racismo que encurta os horizontes
de meninas e meninos que são censurados, mediocrizados e subtraídos em seu direito de
aprender. O racismo que transforma o tambor em afronta e o conhecimento em pecado.
Que nos fixa em papéis estereotipados e insiste em nos desenhar nas senzalas, nas
favelas, nos Quartos de Despejo3 do mundo.
Por isso, durante o tempo em que ocupei o cargo era difícil ser reconhecida
como tal, eu estava destinada a ser a subsecretária disfarçada porque apresentava uma
estética incompatível com o poder. Nos eventos oficiais, era difícil relacionar o nome
escrito à pessoa. Provavelmente eu estava disfarçada e, talvez por baixo do disfarce
meus cabelos estivessem alinhados, ou seja, lisos. Quem sabe houvessem também
roupas mais sóbrias, mais caras, mais formais e menos coloridas.
Naquele momento percebi o quanto, imbricada naquilo que somos, sabemos e
podemos, opera de forma eficiente a colonialidade, negando a existência, a humanidade
e os conhecimentos de diversos povos, o que justifica desde a imposição de modos de
públicas e reconhecidas por sua excelência, nem todos podem nelas ingressar por conta da existência de
processos de seleção e outros fatores. 3 Referência ao livro Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus.
ser e estar no mundo até a eliminação física. Consideramos que o fim do colonialismo
cessa a dominação territorial, entretanto para além do território geográfico em termos
estritos, o colonialismo permanece como que reinventado enquanto colonialidade,
amparando-se “na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo
como pedra angular” e operando de forma efetiva “em cada um dos planos, meios e
dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal.”
(QUIJANO, 2010, p. 84)
Esse percurso me possibilitou entender a grandeza do desafio de construir uma
escola pública popular realmente democrática em suas relações e os limites e avanços
das políticas públicas nesse sentido. Desse modo, considero a pesquisa necessária a
partir da convicção de que, especialmente no contexto atual, devemos isso às meninas e
aos meninos que hoje ocupam os bancos escolares que outrora ocupamos.
Por conseguinte, como já apontado, tomamos o município de Angra dos Reis
como contexto da pesquisa e consideramos fundamental a compreensão dos processos
históricos de sua formação, uma vez que a cidade é representativa, em uma escala bem
menor e guardadas as devidas ressalvas, da constituição do Brasil em suas
desigualdades. Concordamos com Muniz Sodré ao afirmar que
A história de uma cidade é a maneira como os habitantes ordenaram as suas
relações com a terra, o céu, a água e os outros homens. A história dá-se num
território, que é o espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade
realiza na direção de uma identidade grupal.” (SODRÉ, 2002, p.23).
Assim sendo, pensamos que cabem aqui alguns breves apontamentos a esse
respeito. Em 06 de janeiro de 1502, o português André Gonçalves, navegando pela
costa do Brasil, aporta na referida região onde Tupiniquins e Tupinambás já habitavam
e onde posteriormente, com a tecnologia e mão de obra de mulheres e homens africanos
escravizados, vai se desenvolver o ciclo da cana-de-açúcar, bem como as dinâmicas
relacionadas ao escoamento do ouro das Minas Gerais. Portanto, desde o século XVI, as
relações sociais na região foram forjadas também sob o signo da classificação racial, ou
seja, a construção da ideia de que cada indivíduo tem um lugar pré estabelecido a ser
ocupado no tecido social de acordo com a mesma. Esse é o processo que denominamos
racismo.
Nesse esforço de entendimento e interpretação, adotamos o pensamento
decolonial como chave de compreensão. João Colares (2016) e Luiz Fernandes (2012,
2016) explicitam conceitos e autores latinos de referência para a compreensão do
pensamento decolonial, estando entre esses, alguns com os quais estabelecemos
diálogos, Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel e Edgardo Lander. Isto
posto, concebemos a decolonialidade como
...o questionamento radical e a busca de superação das mais distintas formas
de opressão perpetradas contra as classes e os grupos subalternos pelo
conjunto de agentes, relações e mecanismos de controle, discriminação e
negação da modernidade/colonialidade. (NETO, 2016, p.17)
Enquanto expressão de ruptura radical com a colonialidade – que, como já
citado, ultrapassa o colonialismo e persiste para além da dominação do território
estritamente físico – para estes autores, a decolonialidade foi historicamente forjada no
interior dos movimentos sociais e nas resistências existentes desde que se inicia, na
América, a luta contra nossa história de dominação e opressão pelos países Ibéricos,
uma vez que “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e esta não pode ser
entendida sem levar em conta os nexos com a herança colonial e as diferenças étnicas
que o poder moderno/colonial produziu”. (OLIVEIRA, 2016, p.37)
Ressaltamos que o referencial teórico adotado possui outros enredamentos, que
ao longo do projeto serão explicitados, coerentes com a perspectiva adotada e mesmo,
em nossa avaliação, diretamente ligados à decolonialidade.
Em função destas questões, reiteramos a necessidade do pensamento decolonial
para a compreensão do campo da pesquisa com o qual o projeto se alinha, visto que
temos a concepção, salvos os devidos anacronismos, que vivemos em um estado
colonial contemporâneo, pois entendemos que as velhas relações coloniais se
perpetuaram assumindo novas roupagens, sendo este um aspecto importante para a
análise que se pretende realizar com a presente pesquisa.
O que queremos dizer é que as relações sociais estabelecidas em Angra dos
Reis, a forma como as pessoas se apropriam e vivenciam a cidade e, especificamente, a
configuração das classes populares no município, são aqui tomadas tendo a herança
colonial como referência. O conceito de classes populares é adotado aqui como
aglutinador de uma grande heterogeneidade, inclusive nas formas de existir e resistir às
opressões. Nele incluímos, por exemplo, os Quilombolas do Quilombo Santa Rita do
Bracuí, os indígenas Guarani MBYA e Pataxó, os Caiçaras, os trabalhadores voláteis do
estaleiro e das usinas instaladas no município e os coletivos migrantes, todos inseridos,
de maneira formal ou informal, em dinâmicas de produção que se relacionam às suas
histórias de ocupação do território. Concordamos com Silva ao nos explicar sobre a
polissemia de definições em relação às classes populares:
Essas definições operam tanto com elementos concretos, tais como condições
econômicas, tipos de moradias, informalidades e/ou ilegalidades da
organização dos espaços de habitação e suas instalações/equipamentos
estatais, quanto com discursos românticos e/ou folclóricos que remetem a
imaginários de poetas, músicos populares, além daqueles estigmatizantes e
preconceituosos, que trazem a ideia de bandidos perigosos, ameaça ao
Estado, famílias desestruturadas, entre outros termos. A nós, fica evidente
que a pluralização do conceito faz-se necessária na medida em que
constatamos uma enorme heterogeneidade oriunda principalmente das
origens regionais, culturais, étnicas dessas classes populares, que se
configuram como resultantes das constantes interações, sejam para a própria
sobrevivência aos processos de opressão, em que historicamente foram
submetidas em nosso país, sejam para a resistência às injustiças sociais que
se perpetuam no Brasil. (SILVA, 2015, p.2)
Neste projeto, nosso olhar se deita sobre o bairro denominado Bracuí, localizado
entre a serra com sua vegetação de mata atlântica e o mar, sendo esse recorte realizado
devido as peculiaridades que ele encerra na complexidade de sua composição. A região
concentra os coletivos indígenas e quilombolas, uma vez que nela está localizada a
Aldeia Guarani Sapukai e o Quilombo de Santa Rita do Bracuí. Ademais, dois
condomínios - lado a lado, o de luxo, Porto Bracuhy e o das classes populares, Morada
do Bracuí, chamado pela população de “as casinhas”, cuja escrita dos nomes já
denuncia as desigualdades e explica a construção de um IML (Instituto Médico Legal)
na entrada do segundo. As escolas localizadas neste bairro são todas de ensino
fundamental, atendendo aos anos iniciais e finais, entretanto não há nenhuma escola de
ensino Médio nesta região, o que pode ser sintomático das perspectivas do Estado em
relação aos jovens.
Nos detemos ao território da pesquisa, visto que precisamos explicitar nosso
entendimento deste conceito, a nosso ver, muito revelador das desigualdades e
contradições. Assim, defendemos, como Milton Santos, que o território em si não
constitui um conceito. “Ele só se torna um conceito utilizável para a análise social
quando o consideramos a partir do seu uso, a partir do momento em que o pensamos
juntamente com aqueles atores que dele se utilizam.” (SANTOS, 2000, p.22) Portanto, o
bairro Bracuí não poder ser compreendido fora das dinâmicas sociais historicamente
estabelecidas e que o constituem como um “território usado”, uma vez que “o
importante é saber que a sociedade exerce permanentemente um diálogo com o
território usado, e que esse diálogo inclui as coisas naturais e artificiais, a herança social
e a sociedade em seu movimento atual.” (SANTOS, 2000, p.26)
Logo, constatamos a persistência de um ethos colonial que mantém a
representação da região como um paraíso natural, remontando às “origens da
humanidade”, estando seus habitantes em um estágio inicial e sendo primitivos no
sentido de atrasados e desprovidos de racionalidade. Insistimos que embora o
colonialismo enquanto dominação territorial tenha findado, autores como Quijano
(2010) afirmam uma persistência mais duradoura dessa dominação nos âmbitos do ser,
do saber e do poder. Nessa perspectiva, os quilombolas são acusados de serem “porcos”
e “atrasados” por serem contra o asfaltamento da estrada de acesso ao Quilombo, além
disso são acusados de “receber muito dinheiro do governo”. No cotidiano da população,
a existência dos Guarani se limita à referência, quando alguém é perguntado onde mora
e responde: “moro na estrada dos índios”. Os caiçaras, bem como o restante da
população que configura as classes populares, são tomados como “indolentes”,
“preguiçosos”, carentes de qualquer iniciativa de empreendimento.
O Bracuí foi estruturado, ao longo do tempo, a partir de acontecimentos que
uniram coletivos diversos. Cortado pela Rodovia Rio Santos, o bairro originalmente era
a Fazenda Santa Rita do Bracuí, que pertencia à família Breves, considerada uma das
maiores proprietárias e traficantes de escravizados do país. Mesmo após a proibição do
tráfico, a fazenda continuou a receber durante muito tempo, homens e mulheres
apresados em terras africanas, que atravessaram o Atlântico de forma ilegal. A riqueza
da família, que incluía mais de vinte fazendas em terras fluminenses, foi edificada com
o trabalho escravo.
Joaquim de Souza Breves, que ficou conhecido como o “Rei do Café”, legou
em testamento a maior parte de seus bens aos pobres, à Igreja e a seus próprios
escravizados. Aberto em 1879, após sua morte, o testamento transformou os ex-
escravizados em proprietários de terras e o General Honório Lima foi nomeado como
procurador dos agregados e escravizados da fazenda, para lidar com a questão da
distribuição da terra. Inicialmente, Honório Lima cumpriu suas obrigações com os
agricultores no sentido da concretização do testamento, contudo a partir de
aproximadamente 1905, agiu desonestamente, fazendo com que todos os quilombolas
assinassem, junto ao juiz local, documento atestando que os agricultores, quase todos
analfabetos, lhes venderam as terras. Os moradores foram ludibriados e levados a
acreditar que o documento em questão tinha como objetivo legalizar suas posses
quando, na verdade, o procurador oficial iniciava um processo jurídico para se apossar
das terras.
Dessa maneira, se inaugura um longo período de lutas dos quilombolas que,
diga-se de passagem, dura até os dias atuais, para garantir a permanência na terra que
lhe foi legada. Nesse ínterim, no período do Golpe Militar, a partir de 1964, a situação
se complica porque a associação fundada para fortalecer suas reivindicações é
dissolvida com a conversão do município em área de segurança nacional, o que
significou, dentre outras coisas, a suspensão das eleições municipais e dos direitos
políticos de forma geral. Lembramos que os direitos civis também estavam suspensos
no país, a partir do Ato Institucional número 5 de 1968.
Nesse contexto, a especulação imobiliária se fortaleceu e a Empresa Bracuhy,
com o propósito de construir um condomínio de luxo com marina, utilizou todos os
meios possíveis, mesmo o emprego constante de violência e intimidação, até conseguir
uma sentença favorável na justiça local.
A Fazenda Santa Rita foi dividida ao meio pela construção da BR101 (a
Rodovia Rio Santos). A parte “de baixo”, à beira mar, foi inicialmente cobiçada para a
construção do Condomínio, Marina e Pólo Turístico. Os moradores foram expulsos e
seus bananais destruídos, iniciando uma configuração do território onde muitos
agricultores e suas famílias, compulsoriamente, foram ocupar a outra margem da Rio
Santos. Nesta, se estabeleceram também os indígenas Guarani Mbya, que migraram do
sul do país e, em 1996, tiveram o processo de demarcação concluído e seu território, a
aldeia Sapukai, homologado pelo Governo Federal.
Como já citado, no Bracuí se reproduziram as mesmas relações
socioeconômicas que determinaram a ocupação territorial no restante do município: as
melhores praias e ilhas passam a ser domínio exclusivo das elites com o beneplácito do
poder público, que permite a construção de condomínios de luxo e outros
empreendimentos nas mesmas, enquanto as classes populares vão sendo empurradas,
obrigadas a ocupar os morros e as periferias, ou seja, regiões menos valorizadas, de
difícil acesso e degradadas. Infelizmente, mais uma vez a história nos mostra que, por
vezes, o poder público contribui para que a especulação imobiliária garanta seus
interesses em detrimento do bem-estar coletivo. De acordo com Milton Santos,
...há um uso privilegiado do território em função das forças hegemônicas.
Estas, por meio de suas ordens, comandam verticalmente o território e a vida
social, relegando o Estado a uma posição de coadjuvante ou de testemunha,
sempre que ele se retira, como no caso brasileiro, do processo de ordenação
do uso do território. (SANTOS, 2000, p.23)
Outros fenômenos também concorreram para a composição atual do bairro. Em
dezembro de 2002, após uma chuva intensa, ocorreram deslizamentos de terra que
deixaram mortos e desabrigados, principalmente na grande Japuíba, no bairro Areal.
Foram construídas casas populares para essas famílias em alguns bairros, entre eles o
Bracuí. Deste modo, ao lado do Condomínio Porto Bracuhy, que abriga casas de luxo,
surgiu a Morada do Bracuí, em terreno de posse da Prefeitura, para abrigar aqueles que
perderam suas referências materiais e mesmo amigos e familiares. É significativo que
catástrofes naturais dessa ordem não sejam raras na região e que os mais atingidos
sejam os pertencentes às classes populares, uma vez que, há mais de quinhentos anos, as
elites que detém o poder político/econômico, através de suas oligarquias, vêm
trabalhando de forma eficiente para a manutenção de seus privilégios e de sua
segurança.
Podemos deduzir que a trajetória rapidamente exposta aponta para a construção
de uma dominação permanente do território — como já citado, em certa medida,
correspondente ao que de forma geral ocorreu na história do Brasil — baseada em uma
lógica predatória e excludente, dado que, ao mesmo tempo em que se divulgam imagens
de praias paradisíacas para a fruição daqueles que desembarcam dos helicópteros em
suas ilhas particulares, a especulação imobiliária, a invasão de terras quilombolas,
construções irregulares e outros fatores vão diminuindo a qualidade de vida da
população. Dessa forma, a economia regula todos os aspectos, inclusive a administração
da cidade e a construção e manutenção de políticas públicas. Sobre o primado da
economia, nas palavras de Muniz Sodré
A visão positivista do futuro, que tem alimentado a ideia ocidental de
progresso, costuma ser antiterritorial ou antiecológica, por deixar-se reger
inteiramente pela lógica da quantidade, aquela implícita na rentabilidade das
economias de escala. Num país como o Brasil, isso tem graves
consequências, quando se examinam as relações do Estado e das grandes
empresas com os territórios e suas comunidades. Os planos de
desenvolvimento ou de industrialização revelam-se incapazes de apreender a
realidade histórico-cultural das populações (das tribos indígenas às pequenas
comunidades pobres) no que diz respeito às relações com o meio ambiente, a
terra e os recursos naturais. (SODRÉ, 2002, p.168-169)
À vista disso, como o passar do tempo, o Condomínio Morada do Bracuí passou
a ser conhecido como “as casinhas” e a sofrer intensa influência do tráfico de drogas.
Embora a maioria de seus moradores não esteja envolvida com atividades ilegais, é
inegável que o tráfico afeta o cotidiano da comunidade e atrai jovens e adolescentes
como uma possibilidade de ganho rápido. Em alguns períodos se tem a sensação de
estar em “guerra civil”, não sendo possível exercer o direito de ir e vir, inclusive para
estudar. Por isso, o Condomínio Morada do Bracuí se tornou extremamente
estigmatizado por todos no entorno e seus moradores são discriminados e rotulados
como bandidos, o condomínio, personificado, foi tomado como um corpo estranho ao
território e como responsável pelo aumento e capilarização da criminalidade em todo o
bairro Bracuí.
Dessa forma, a reação do Estado tem sido uma ofensiva policial violenta que
atinge também aos moradores e que se assemelha ao modus operandi adotado na cidade
do Rio de Janeiro nas favelas, conceito que inclusive temos adotado por compreender as
similitudes entre algumas regiões periféricas do município, onde residem
predominantemente as classes populares e as desigualdades no acesso aos serviços
públicos, na distribuição de riquezas e nos tipos de violências urbanas.
Podemos compreender o emprego da violência, a partir da adoção da lógica de
menos política e mais polícia, adotada pelo Estado, considerando que a
Modernidade/Colonialidade nos legaram um modo de produzir conhecimentos calcado
na racionalidade e até hoje admitido como o único válido. Mas para que essa operação
fosse possível, Grosfoguel nos explica que foi necessário antes, operar o extermínio de
povos ao longo do século XVI para sustentar a estrutura epistêmica do mundo moderno,
incluindo o genocídio/epistemicídio dos povos indígenas do Continente Americano e
das populações Africanas, ou seja, “o Ego Extermino é a condição sócio-histórica-
estrutural que faz possível a conexão entre o Ego Conquiro e o Ego Cogito”.
(GROSFOGUEL, 2016, p. 31) Desse modo, toda violência é justificada até os nossos
dias porque esse território, classificado a partir do padrão eurocentrado, concentra as
raças não brancas, para as quais valem os velhos padrões coloniais de sociabilidade, ou
seja, remoção, exploração e extermínio.
De acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro4,
no ano de 2016, em Angra dos Reis foram registradas 94 ocorrências (85 homicídios
dolosos, 7 homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, 1 latrocínio e 1
lesão corporal seguida de morte), sendo que 91,5% das vítimas eram do gênero
masculino. De acordo com as informações preenchidas pelos policiais na hora do
registro, 50% das vítimas eram pardas e 9,6% eram negras e a faixa etária predominante
entre 18 e 29 anos. Operando na lógica do Movimento Negro, que aglutina as categorias
de cor parda e preta empregando a denominação negra e, inferindo que as vítimas
classificadas pelos policiais como negras eram pretas, podemos afirmar que 59,6% das
vítimas eram negras, entre 31,9% brancas e 8,5% não informadas. Ou seja, o município
confirma o extermínio de homens jovens negros já amplamente registrado em dados
nacionais.
Demonstrativo do afirmado acima, o fato de não ser incomum, pelo menos em
duas escolas angrenses onde trabalhei, encontrar fotos de estudantes e ex-estudantes em
um periódico local chamado A Cidade, tablóide policial com forte apelo popular e
grande circulação pelos bairros. Também constatamos através de pesquisas5 neste
periódico a vulnerabilidade dos jovens negros através de imagens de violências
chocantes e que expressam a naturalização das ocorrências envolvendo os corpos de
pobres negros, confirmando que “o negro não atravessará a fronteira que separa
4 Dados coletados no site do ISP – Instituto de Segurança Pública, disponíveis em
<http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/Letalidade.html>, último acesso em 22/09/2017.
5 Pesquisa de longo prazo em andamento, realizada desde 2011, pelo Grupo de Pesquisa
ALFAVELA (Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar) do Instituto de Educação de Angra
dos Reis/UFF na qual destacamos as violências cotidianas e os processos de integração das classes
populares.
natureza e cultura, ficando, em consequência, com a imagem de um ser culturalmente
desterritorializado e, portanto, sem força humana de ser.” (SODRÉ, 2002, p.178)
Tão certo quanto a ostensiva violência que incide sobre a juventude negra é o
fato de que, em algum momento, esses jovens acessaram políticas públicas e, de forma
mais direta, passaram pela rede de saúde e, com certeza pela rede de ensino, que nos
interessa mais diretamente, além de outras. Entretanto as políticas não se configuram de
modo a basearem-se em reparação, considerando a história de aniquilação das classes
populares a partir do racismo, fenômeno estrutural e estruturante da sociedade
brasileira. Em segundo lugar, o Estado Brasileiro, que na Constituição de 1988 garantiu
a igualdade de todos perante a lei, a descumpre ostensivamente. O Estado Brasileiro,
que se baseou no modelo português e em como o mesmo servia aos interesses privados,
se constituiu sendo ocupado, há 500 anos, pelas mesmas elites brancas que se
perpetuam no poder através das oligarquias e de variados tipos de violência.
Por isso o Estado, através de suas instituições e, particularmente, da escola, não
pode admitir qualquer diferença colonial, na verdade ela é reforçada na universalidade
aparente das ações, quando se operam as hierarquizações transformando diferenças em
valores. Assim, os coletivos são classificados de acordo com a raça/etnia, gênero,
classe, território e outros critérios. (MIGNOLO, 2003)
Desse modo, racista em sua gênese colonial, o Estado promove o racismo
institucional, o racismo de estado, o racismo perpetrado no lugar da proteção, sendo
nesse contexto, promotor do que chamaremos aqui mal estar social. Mais do que um
projeto, as ações que consequentemente promovem o mal estar social estão
profundamente arraigadas na colonialidade e portanto, muitas vezes naturalizadas ou
revestidas da intenção de promover igualdade pela universalidade.
Assim, podemos entender o racismo institucional como a existência de um
sistema de discriminação operado e mantido pelas estruturas sociais de poder,
que se sobrepõe às ações de discriminação racial individuais. Ou ainda, como
a gerência do poder do Estado na manutenção do racismo ou inação deste
para o enfrentamento do racismo nas estruturas institucionais da sociedade.
(CUNHA, 2017, p.42)
Em vista disso, a pesquisa será realizada tendo as políticas públicas em
educação, mais especificamente, a construção curricular, como foco e sua repercussão
nas relações de pertencimento e manutenção dos jovens no território do Bracuí, bem
como a construção de perspectivas futuras. Nesse sentido, realizaremos um recorte
temporal de modo a abranger de 1989 até 2012, período em que o município foi
governado durante doze anos por um poder executivo denominado de esquerda (Partido
dos Trabalhadores - PT) e depois outros doze anos por um poder executivo de direita
(Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB). Para tal, trabalharemos com
documentos curriculares oficiais produzidos no referido contexto e com estudos de
caso/histórias de vida de ex-alunos das escolas municipais do Bracuí. Apontamos a
Escola Municipal Áurea Pires da Gama que atende do 5º ao 9º ano de escolaridade e
recebe os estudantes das escolas de anos iniciais do território. Dessa forma, se constitui
a questão norteadora da pesquisa: as políticas públicas em Educação, considerando
as escolas como espaçostempos6 importantes de aprendizagens, podem contribuir
para que os jovens negros não sejam vítimas da criminalidade ou a adotem como
perspectiva de vida?
OBJETIVOS
Estudar a complexidade das relações estabelecidas no território a partir da
perspectiva decolonial.
Mapear os documentos curriculares, produzidos e adotados pelo município
no período abordado.
Analisar a relação entre políticas públicas e racismo institucional.
Investigar, através das trajetórias de vida dos pesquisados, a repercussão das
experiências vividas na escola.
Compreender os limites e as possibilidades das políticas públicas na
construção do pertencimento e manutenção dos jovens no território.
Pata tal, propomos que a pesquisa seja realizada através de práticas fundadas
em uma abordagem qualitativa, tendo como metodologia a realização de análise
6 A junção dos termos e seu emprego tem Alves (2008) como referência. A autora opta por esse
modo a partir da compreensão de que o mesmo questiona a dicotomia e hierarquização criadas pela
ciência moderna.
documental, selecionando os documentos curriculares oficiais produzidos entre 1989 até
2012 e procedendo através da análise de conteúdo para evidenciar as condições de sua
produção e as posteriores repercussões nas trajetórias particulares. A outra fonte
documental são os periódicos a partir dos quais selecionaremos os estudos de caso.
Dando prosseguimento, adotaremos também como opção metodológica a realização de
três estudos de caso de ex-estudantes da Escola Municipal Áurea Pires da Gama, no
Bracuí, considerados representativos de casos análogos.
Como técnica de pesquisa recorreremos às entrevistas semiestruturadas, de
forma a garantir um certo grau de diretividade e, ao mesmo tempo, garantir liberdade
aos entrevistados, inclusive para a inclusão de documentos ilustrativos e auxiliares das
memórias, como fotografias e outros. Nessa acepção, apontamos também a história de
vida como procedimento relevante para a reconstrução das trajetórias singulares e, ao
mesmo tempo, plurais.
Ressaltamos ainda que a pesquisa supõe diálogos e movimentos, portanto é
possível que, em seu percurso, seja necessário o emprego de outros procedimentos mais
indicados para o seu cumprimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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cotidianos das escolas: sobre redes de saberes. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2008.
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
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