ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-
SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.
ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR
ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, IDENTIDADES E ESPACIALIDADES
ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-
SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.
ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR
NATAL, JULHO 2019
ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR
ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-
SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do
grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área
de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa
III, Linguagens, Identidades e Espacialidades, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a
orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Marcia Severina Vasques
NATAL, JULHO 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
Castro Júnior, Elian Jerônimo de.
Espaço funerário em Alexandria: tumba principal de Kom el-
Shoqafa, séculos I e II d.C / Elian Jerônimo de Castro Júnior. - Natal, 2019.
139f.: il. color.
Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2019.
Orientadora: Profa. Dra. Marcia Severina Vasques.
1. Espaço Funerário - Dissertação. 2. Alexandria - Dissertação.
3. Emaranhamento Cultural - Dissertação. I. Vasques, Marcia
Severina. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(32)
ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR
ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-
SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.
Dissertação aprovada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão
formada pelos professores:
_________________________________________
Nome do Orientador
__________________________________________
Nome do Avaliador Externo
________________________________________
Nome do Avaliador Interno
____________________________________________
Nome do Suplente
Natal, _________de__________________de____________
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente ao meu pai, minha mãe e minha irmã pelo apoio, suporte e
estímulo aos estudos. Nos momentos alegres e tristes, fáceis e difíceis, foram eles que mais
estiveram presentes, me ouviram, me confortaram e me incentivaram. Muito obrigado por todo
o amor e compreensão que recebo de vocês.
Agradeço à minha professora orientadora, Dra. Márcia Vasques. Muito obrigado pela
paciência, pela generosidade em compartilhar sua sabedoria (e seus livros!), por acreditar na
minha capacidade. Essa dissertação é reflexo do meu fascínio e interesse pela Antiguidade, que
surgiu nas suas aulas de História Antiga I, em 2012. Sou completamente grato pela sua
orientação desde a minha graduação.
Muito obrigado aos professores Dra. Lyvia Vasconcellos e Dr. Francisco Santiago, pelas
contribuições na minha banca de qualificação.
Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa, auxílio essencial para a confecção deste
trabalho.
Agradeço aos amigos do MAAT – Núcleo de História Antiga da UFRN, por ter
acompanhado minha trajetória ao longo da graduação e do mestrado. Em específico, sou muito
grato à Keidy Matias, pela amizade, suporte e incentivo.
Agradeço aos amigos que me acompanharam de perto nessa jornada:
Jorge, Igor, Gabriel, Nilson e Arthur: nosso time de League of Legends é o melhor,
mesmo que tenhamos mais derrotas do que vitórias. As risadas em meio às partidas são o que
mais vale a pena.
Famara, Malu, Rafael, João Paulo e Lizandro, sou muito grato pelas conversas,
desabafos, e reflexões que tivemos juntos.
Aretuza, Vanessa, Analu e Katy, obrigado pela amizade e pelo carinho. Muitas saudades
dos almoços de sábado, mesmo que fosse o dia mais cansativo do trabalho.
Aos demais amigos, sou grato pelo carinho recebido, pela paciência compartilhada e
pelos bons momentos vividos juntos.
RESUMO
Alexandria, centro político do governo dos Ptolomeus e capital da província do Egito no
período romano, foi marcada pelo aspecto cosmopolita de sua população e cultura. Apesar de
haver uma valorização da cultura grega, a religião egípcia exerceu grande influência nessa
cidade. Aspectos religiosos são os mais notáveis, sobretudo no que diz respeito às crenças
funerárias. Essa pesquisa busca investigar as interações culturais que aconteceram no espaço
funerário, tendo como objeto de estudo uma tumba localizada no sítio arqueológico de Kom el-
Shoqafa, situado em Alexandria, cuja construção data entre os séculos I e II d.C. A partir de
uma análise da arquitetura e da iconografia presentes nessa tumba, defendemos a ideia de que
as culturas egípcia, grega e romana se integraram em um processo de emaranhamento, conceito
criado pelo arqueólogo Phillip Stockhammer (2012). Esse processo é reflexo da diversidade
cultural e social de Alexandria no período romano, resultado do contato com a cultura egípcia
ao longo dos séculos de dominação ptolomaica.
Palavras-chave: Espaço Funerário – Alexandria – Emaranhamento Cultural
ABSTRACT
Alexandria, the political center of the Ptolemies and capital of the province of Egypt during the
Roman period, was marked by the cosmopolitan aspect of its population and culture. Although
there was an overvaluation of Greek culture, the Egyptian tradition had a great influence in this
city. Religious aspects are the most notable, especially regarding to funeral beliefs. This
research seeks to investigate the cultural interactions that took place in the funerary space,
having as object of study a tomb located in the archaeological site of Kom el-Shoqafa, situated
in Alexandria, whose construction dates between the first and second centuries AD. By
analyzing the architecture and the iconography present in this tomb, we defend the idea that the
Egyptian, Greek and Roman cultures were integrated in a process of entanglement, a concept
created by archaeologist Phillip Stockhammer (2012). This process reflects the cultural and
social diversity of Alexandria in the Roman period, deriving from the contact with the Egyptian
culture throughout the centuries of Ptolemaic domination.
Keywords: Funerary Space; Alexandria; Cultural Entanglement
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1. Busto do deus Serápis encontrado no Serapeum, datação do século II d.C. ............ 32
Figura 2. Planta baixa e reprodução do complexo templário de Serápis................................. 33
Figura 3. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período ptolomaico ................ 53
Figura 4. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período romano. ..................... 53
Figura 5. Mapa atual de Alexandria com todos os sítios de necrópole já escavados .............. 54
Figura 6. Alabaster Tomb, visão externa e interna. ................................................................. 59
Figura 7. Planta baixa do hipogeu “A”, sítio de Shabti ........................................................... 60
Figura 8. Planta baixa do hipogeu Moustafa Pasha 1 .............................................................. 60
Figura 9. Fachada sul de Moustafa Pasha 1 ............................................................................ 61
Figura 10. Planta baixa do sítio de Ras el-Tin, Ilha de Faros .................................................. 62
Figura 11. Tumba 8 de Ras el-Tin, sala contendo o nicho com kliné ..................................... 63
Figura 12. Planta baixa do sítio de Anfushy............................................................................ 64
Figura 13. Câmara funerária da tumba de Lefkadia, século IV a.C., Macedônia ................... 65
Figura 14. Sala I da tumba II em Anfushy ............................................................................... 65
Figura 15. Naiskos em loculus da tumba Anfushy V ............................................................... 66
Figura 16. Desenho de vista áerea do Serapeum e Lageion .................................................... 68
Figura 17. Planta baixa de Kom el-Shoqafa. ........................................................................... 69
Figura 18. Plano seccional da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa ...................................... 70
Figura 19. Poço e Rotunda ...................................................................................................... 71
Figura 20. Triclínio .................................................................................................................. 72
Figura 21. Detalhe da concha esculpida na rocha acima da antessala..................................... 73
Figura 22. Kliné da tumba de Isidora, Hermópolis Magna, século II d.C .............................. 74
Figura 23. Pronaos da Tumba Principal .................................................................................. 75
Figura 24. Desenho arqueológico da antessala ....................................................................... 76
Figura 25. Estátua feminina, nicho esquerdo .......................................................................... 77
Figura 26. Estátua masculina, nicho direito ............................................................................ 78
Figura 27. Estátua e amuleto do Período Tardio.. ................................................................... 79
Figura 28. Parede interna da entrada da câmara mortuária. .................................................... 81
Figura 29. Nicho central .......................................................................................................... 82
Figura 30. Detalhe do sarcófago romano do nicho central. ..................................................... 83
Figura 31. Desenho arqueológico do sarcófago do nicho central ........................................... 84
Figura 32. Nichos esquerdo e direito da câmara mortuária. .................................................... 85
Figura 33. Sarcófago do nicho esquerdo ................................................................................. 86
Figura 34. Sarcófago do nicho direito ..................................................................................... 86
Figura 35. As famílias de imagem ........................................................................................... 88
Figura 36. Resumo da teoria imagética de Bruneau e dos conceitos de Bérard .................... 103
Figura 37. Relevo escultórico da serpente Agathos Daimon ................................................ 104
Figura 38. Anúbis soldado anguípede .................................................................................. 107
Figura 39. Anúbis soldado/legionário. .................................................................................. 108
Figura 40.Anúbis anguípede (a) e Anúbis soldado (b).. ........................................................ 109
Figura 41. Cena da mumificação no nicho central. ............................................................... 110
Figura 42. Detalhe do sarcófago com a cena da mumificação, Hawara, 100 d.C. ................ 111
Figura 43. Encantamento 151 do Livro dos Mortos. ............................................................. 112
Figura 44.Desenho arqueológico da cena de mumificação .................................................. 113
Figura 45. Nicho central – Parede direita.. ............................................................................ 116
Figura 46. Hieróglifo Mehyt/moita de papiro e pilar djed. ................................................... 117
Figura 47. Nicho central – Parede esquerda. ......................................................................... 118
Figura 48. Nicho esquerdo – Parede central. ......................................................................... 119
Figura 49. Estela de Ptolomeu II e estela de Diocleciano ..................................................... 121
Figura 50. Nicho esquerdo - Parede direita.. ......................................................................... 122
Figura 51. Nicho esquerdo – Parede esquerda. ..................................................................... 123
Figura 52. Nicho direito – Parede direita .............................................................................. 124
Figura 53. Nicho direito – Parede esquerda .......................................................................... 126
SUMÁRIO
MAPA ....................................................................................................................................... 11
CRONOLOGIA ........................................................................................................................ 12
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 15
CAPÍTULO 1 – EGITO GRECO-ROMANO E ALEXANDRIA ........................................... 22
1.1. UMA PROPOSTA TEÓRICA PARA O HIBRIDISMO CULTURAL: EMARANHAMENTO ......... 38
CAPÍTULO 2 – ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA .............................................. 43
2. 1. ESPAÇO FUNERÁRIO: PREMISSAS, REFLEXÕES E DEFINIÇÕES ................... 43
2.2. TUMBAS ALEXANDRINAS: CARACTERÍSTICAS GERAIS E CLASSIFICAÇÕES ....... 52
2.3. TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA: ANÁLISES E INTERPRETAÇÕES ......... 67
2.3.1 ANTESSALA OU PRONAOS ................................................................................. 72
2.3.2 – CÂMARA MORTUÁRIA .................................................................................... 81
CAPÍTULO 3 – RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA ............... 88
3.1 – QUESTÕES CONCEITUAIS SOBRE IMAGEM ...................................................... 88
3.2 - PROPOSIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: O PARADIGMA SEMIOLÓGICO ..... 96
3.3 – ANÁLISE ICONOGRÁFICA DOS RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL ........... 104
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS .................................................................................. 127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 132
12
CRONOLOGIA
PERÍODO GRECO-ROMANO ATÉ 395 d.C. 2
DINASTIA MACEDÔNICA 332-305 a.C.
Alexandre III O Grande 332-323
Filipe Arrideu 323-316
Alexandre IV 316-305
DINASTIA PTOLOMAICA 305-30 a.C.
Ptolomeu I Sóter 305-282
Ptolomeu II Filadélfo 285-246
Ptolomeu III Evérgeta I 246-221
Ptolomeu IV Filópator 221-205
Ptolomeu V Epifânio 205-180
Ptolomeu VI Filómetor 180-164, 163-145
Ptolomeu VIII Evérgeta II (Fiscão) 170-163, 145-116
Ptolomeu VII Neo Filópator 145
Cleópatra III e Ptolomeu IX Sóter II (Látiro) 116-107
Cleópatra III e Ptolomeu X Alexandre I 107-88
Ptolomeu IX Sóter II 88-81
Cleópatra Berenice 81-80
Ptolomeu XI Alexandre II 80
Ptolomeu XII Neo Dioniso (Auleta) 80-58, 55-51
Berenice IV 58-55
Cleópatra VII Filópator 51-30
Ptolomeu XIII 51-47
Ptolomeu XIV 47-44
Ptolomeu XV Cesário 44-30
DOMÍNIO ROMANO
Júlio César 48-44 a.C.
Dinastia Julio-Claudiana
Caio Otávio César (Otaviano) Augusto 30 a.C. – 14 d.C.
d.C.
Tibério Cláudio Nero César 14-37
2 Cronologia baseada em McKenzie (2007). Recorte temporal proposto por Vasques (2006), em que se
estabeleceu a data 395 d.C. para divisão do Império Romano.
13
Caio Júlio César Calígula 34-41
Tibério Cláudio César Augusto Germânico 41-54
Nero Cláudio César Augusto Germânico 54-68
Galba 68-69
Otão 69
Vitélio 69
Dinastia Flaviana
Tito Flávio Vespasiano 69-79
Tito Flávio Sabino Vespasiano 79-81
Tito Flávio Domiciano 81-96
Marco Coceio Nerva 96-98
Marco Úlpio Trajano 98-117
Públio Élio Adriano 117-138
Dinastia Antonina
Tito Aurélio Antonino Pio 138-161
Marco Aurélio Antonino (com Lúcio Aurélio Vero) 161-180 (161-169 )
Lúcio Aurélio Cômodo 180-192
Públio Hélvio Pertinax 193
Marcos Dídio Severo Juliano 193
Pescênio Níger 193
Dinastia Severa
Lúcio Septímio Severo 193-211
Marco Aurélio Antonino Caracala 211-217
Públio Sétimo Geta 211
Opélio Severo Macrino 217-218
Marco Opélio Diadumeniano 218
Marco Aurélio Antonino Heliogábalo 218-222
Marco Aurélio Severo Alexandre 222-235
Caio Júlio Vero Maximino 235-238
Marco Antônio Giordano Semproniano (Giordano I) 238
Marco Antônio Giordano Semproniano (Giordano II) 238
Marco Clódio Pupieno 238
Décimo Célio Calvino Balbino 238
Marco Antônio Giordano (Giordano III) 238-244
Marco Júlio Felipe, “o Árabe” 244-249
Caio Méssio Quinto Trajano Décio 249-251
14
Caio Víbio Treboniano Galo 251-253
Marco Emílio Emiliano 253
Públio Licínio Valeriano 253-260
Públio Licínio Inácio Galiano 253-268
Marco Aurélio Cláudio II 268-270
Marco Aurélio Quintilo 270
Lúcio Domicio Aureliano 270-275
Marco Cláudio Tácito 275-276
Marco Ânio Floriano 276
Marco Aurélio Probo 276-282
Marco Aurélio Caro 282-283
Marco Aurélio Numeriano 283-284
Marco Aurélio Carino 283-285
Caio Aurélio Valério Diocleciano 284-305
Marco Aurélio Valério Maximiano 286-310
Caio Flávio Valéio Constâncio I 305-306
Galério Valério Maximiano 305-311
Tetrarquia (Diocleciano, Maximiano, Constâncio,
Galério)
293-305
Severo II 306-307
Marco Aurélio Valério Magêncio 306-312
Galério Valério Maximino Daia 310-313
Flávio Constantino 306-337
Caio Valério Liciniano Lincínio 308-324
Dinastia de Constantino
Constantino II 337-340
Constante I 337-350
Constâncio II 337-361
Juliano (“O Apóstata”) 361-363
Joviano 363-364
Dinastia Valentiniana
Valente (Leste) 364-378
Valentiniano I (Oeste) 364-375
Graciano (Oeste) 367-383
Valentiniano II (Oeste) 375-392
Eugênio (Oeste, usurpador) 392-394
Teodósio I 379-395
15
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa versa sobre a diversidade cultural da cidade de Alexandria durante a época
de dominação romana no Egito. Fundada em 331 a.C. com uma forte matriz helênica, a cidade
manteve contato com diversos povos e culturas que transitavam pelo Mar Mediterrâneo, assim
como também interagiu com a tradição milenar egípcia. Nosso principal interesse de
investigação é compreender tais interações que acontecem no espaço funerário, tomando como
objeto análise uma tumba alexandrina do século I e II d.C. A evidência material encontrada
nesse espaço é capaz de indicar a complexidade nas relações culturais e sociais de Alexandria,
cidade que nasceu em um diversificado feixe de culturas.
A invasão de Alexandre no Egito, em 332 a.C. resultou na expulsão dos governantes
persas, provocando mudanças radicais na sociedade egípcia, principalmente no que diz respeito
à política, administração, economia e nas várias esferas culturais. Em 305 a.C., quando o
general Ptolomeu assumiu o posto de rei e fundou a dinastia ptolomaica, já era visível a
legitimidade dada pelo clero egípcio da cidade de Mênfis a esses novos governantes, que se
associaram à figura do faraó e se investiram de símbolos egípcios ligados à realeza. O novo
governo fez uso da tradição religiosa egípcia para se manter no poder, mas introduziu também
uma máquina administrativa e burocrática nova para controlar as riquezas e expandir seus
domínios.
A entrada de imigrantes greco-macedônicos no território egípcio aumentou o contato da
tradição helênica com a cultura milenar do período faraônico. A língua grega foi estabelecida
como oficial; a capital do país, fundada com o status de pólis, Alexandria, dispunha de
instituições gregas que garantiram a disseminação da educação e do estilo de vida helênico. O
território da chôra3, adentrando no Médio e Alto Egito, também contou com o estabelecimento
de população de origem helênica. A partir disso, os indivíduos de origem greco-macedônica
passaram a ter privilégios ligados ao status grego, em detrimento dos nativos, principalmente
na questão da participação política e administrativa, em que os egípcios se encontravam
excluídos das decisões.
Contudo, as instituições religiosas ligadas à tradição egípcia continuaram existindo e
exercendo papel político importante, como é o caso do clero menfita e da sua ação legitimadora
3 Original em grego “χώρα”, o termo pode significar espaço, território, campo ou interior. No caso de
Alexandria, o restante do território egípcio era tido como a zona rural e interiorana.
16
na sucessão real dos Ptolomeus; os deuses egípcios mantiveram-se cultuados nos templos e os
costumes funerários também persistiram conjuntamente aos costumes de origem grega e
macedônica. A diferenciação de status social entre gregos e egípcios coexistiu com momentos
de contato e troca cultural entre esses dois grupos. Atualmente, prefere-se evitar ideias
extremas: não é possível afirmar uma forte separação ou isolamento, mas também não podemos
assumir uma ideia de completa mistura ou fusão de tradições culturais tão distintas e em certos
aspectos excludentes. Tanto a administração ptolomaica quanto a romana distinguiam o status
dos indivíduos por meio de genealogias e categorias identitárias. Essas divisões foram se
tornando permeáveis, devido à miscigenação e à própria temporalidade, acumulando séculos
de trocas culturais.
O contato do Egito Ptolomaico com Roma já datava desde o fim do período republicano.
César já havia criado laços políticos com a rainha Cleópatra VII, sucedido por Marco Antônio
após a morte do general em 44 a.C. A derrota de Cleópatra e Marco Antônio para as tropas de
Otávio significaram o fim da soberania do Egito enquanto região independente. A partir de 30
a.C., o Egito se tornou uma província romana; Alexandrea ad Aegyptum é a denominação
romana que aparece nos documentos escritos da época. O governo da província estava a cargo
de um prefeito nomeado diretamente pelo imperador; a divisão administrativa tomou forma de
acordo com as regras e políticas romanas. O período romano no Egito se estendeu até 395 d.C.,
quando o imperador Teodósio dividiu o território entre Império Romano do Ocidente e Império
Romano do Oriente4. O Egito integrou a porção oriental do império.
O campo religioso se mostra de forma interessante em meio ao contexto de dominação.
Apesar das inovações políticas e administrativas provenientes da hegemonia romana, os
templos tradicionais continuaram suas atividades de culto aos deuses egípcios. Os costumes
funerários do Egito faraônico também sobreviveram e ganharam novos adeptos no período
romano, sobretudo nas póleis do Médio e Baixo Egito que possuíam população grega
miscigenada. Essa dinâmica atesta uma realidade muito mais complexa do que podemos
imaginar. Em Alexandria, a investigação das interações culturais possui grande potencial na
análise dos espaços funerários, tendo em vista o grau de preservação desses locais. Dessa forma,
podemos indagar: como o espaço funerário é capaz de registrar a interação das culturas greco-
romana e egípcia? Em que medida isso é reflexo da diversidade cultural da sociedade
alexandrina do período romano?
4 Marco cronológico proposto por Marcia S. Vasques (2006).
17
A evidência material nos traz diferentes aspectos sobre como as culturas podem interagir
entre si. Por exemplo, os retratos dos reis da dinastia ptolomaica ilustram o aspecto dual entre
a cultura clássica e egípcia, visto a produção de bustos no estilo clássico e de estátuas que
seguem o padrão egípcio. A literatura acadêmica sobre as interações culturais de Alexandria
costuma privilegiar o componente grego, em detrimento das contribuições egípcias e romanas.
Buscamos nessa pesquisa reavaliar essa questão, trazendo à tona a importância da religião
egípcia e as inovações arquitetônicas romanas que são visíveis nas tumbas dessa cidade. Dessa
forma, a dimensão espacial possui grande destaque e protagonismo nesse trabalho.
O espaço funerário, entendido enquanto um artefato, nos evidencia a interação cultural:
a tradição egípcia de deuses e rituais coexiste, interage e eventualmente se mescla com traços e
temas gregos e romanos. Sustentamos a ideia de que as culturas presentes em Alexandria
passaram por processos de trocas, assimilações e interpretações que culminaram na criação de
um espaço funerário distinto, de caráter notavelmente mesclado na sua arquitetura e
iconografia. Nossa hipótese é de que esses processos se iniciam no período ptolomaico, se
intensificam no último século a.C. e é amplamente observado no período romano. Podemos
inferir, a partir disso, que a sociedade alexandrina nos séculos I e II d.C. se aproximava e se
apropriava de forma intensa da cultura egípcia, mantendo ainda o seu substrato cultural clássico
presente. As inovações arquitetônicas de caráter romano diversificam ainda mais o contexto
funerário trabalhado nessa pesquisa.
Nossa pesquisa toma como objeto de investigação o espaço funerário da Tumba
Principal de Kom el-Shoqafa, sítio arqueológico localizado na cidade de Alexandria, datando
da época de dominação romana no Egito. Escavado no início do século XX, o sítio arqueológico
nomeado em árabe por Kom el-Shoqafa abriga o maior sítio de necrópole de Alexandria. A
datação é estimada entre a segunda metade do primeiro século d.C. até a primeira metade do
segundo século, a partir das associações de datas aos motivos arquitetônicos e decorativos
presentes no local. A hipótese de datação mais aceita é que a tumba foi construída por volta de
69-79 d.C, defendida por autores como Susan Venit (2002, 2015) e Anne-Marie Guimier
Sorbets (2017). Em contrapartida, os sarcófagos encontrados na câmara funerária sugerem uma
datação posterior, indo até a segunda metade do século II d.C. A simplicidade desses elementos
em comparação com sarcófagos romanos impede que essa datação seja posta como definitiva.
Daí justifica-se a datação variar entre o final do século I até a primeira metade do século II.
18
O local possui três pisos escavados na rocha. O primeiro nível apresenta corredores e
estruturas arquitetônicas greco-romanas. O segundo nível abriga a Tumba Principal,
denominada Great Tomb/Main Tomb nas produções científicas estrangeiras. Ela consiste em
um grande hipogeu (tumba subterrânea cavada diretamente na rocha), assumindo a forma de
templo funerário subterrâneo. O terceiro nível abriga pequenas tumbas e nichos funerários
adjacentes, que se encontram no nível de um lençol freático. A tumba estudada por nós está no
segundo piso, onde se localizam esculturas, relevos de cenas egípcias e sarcófagos de pedra de
estilo romano.
A arquitetura da Tumba Principal, bem como o seu esquema decorativo, tem chamado
atenção dos arqueólogos e historiadores pela sua singularidade na combinação de temas e
formas das tradições egípcias e greco-romanas. Friedrich Wilhelm von Bissing, egiptólogo
alemão responsável pelas primeiras escavações em Kom el-Shoqafa, utilizou da palavra alemã
mischkunst (“arte misturada” em uma tradução livre) para definir a Tumba Principal (RIGGS,
2005, p. 5). Susan Venit (2002, 2015), autora de ampla produção sobre as tumbas alexandrinas,
considera que houve uma integração singular em torno das tradições egípcias e greco-romanas
que é observada na Tumba Principal, desembocando na ideia de bilinguismo cultural. Anne-
Marie Guimier Sorbets e Mervat Seif el-Din (2017) definem as tradições artísticas vistas na
tumba como justapostas, em que elementos egípcios coexistem com os elementos clássicos. A
partir das nossas escolhas conceituais e teóricas, chamaremos de emaranhamento cultural o
processo de interação cultural presente no espaço já referido. Esse conceito é recente, proposto
pelo arqueólogo Phillip Stockhammer em 2012 e permite análises da cultura material de caráter
híbrido, oriunda de contextos históricos e geográficos de contato entre povos. Ao propormos o
uso desse conceito, o objetivo não é tomá-lo de forma definitiva ou superior, mas sim
diversificar e oferecer uma interpretação diferenciada do que se observa nas produções sobre
esse objeto de pesquisa.
Enquanto categoria de nossa investigação, o espaço funerário será entendido pela sua
materialidade e pelos seus elementos simbólicos; daremos atenção ao visível e ao invisível. A
dimensão material, inerente a qualquer sítio de necrópole, é investida de significados e símbolos
sagrados ligados ao mundo do além. A sacralização do espaço ocorre também a partir da
realização de rituais, em que a ação humana é capaz de estabelecer pontes com o mundo que
não se vê, mas se faz presente a partir da experiência religiosa. Essa experiência acontece em
um espaço específico, consagrado a partir dos rituais e símbolos investidos nele. Uma tumba
pode ser vista tanto quanto a última moradia dos mortos ali depositados, quanto um limiar entre
19
o mundo dos vivos e o mundo do além. Dedicado à morte, o espaço funerário é planejado,
pensado e também praticado em vida.
Uma análise das estruturas arquitetônicas e da iconografia presentes na câmara funerária
será capaz de nos indicar como as tradições culturais tão distintas foram amalgamadas e
resultaram em uma arte diferenciada. A dimensão espacial é, portanto, intrínseca: em sua
materialidade, o espaço físico dessa tumba apresenta as evidências para o nosso problema de
investigação. Os relevos não apenas retratam cenas religiosas e de rituais funerários, como
também evidenciam um processo de apropriação e criação singular. Esse espaço material
reflete, também, uma concepção abstrata, ligada a preceitos religiosos de vida após a morte.
Nossas fontes compõem um conjunto de fotografias, desenhos arqueológicos e plantas
arquitetônicas. As fotografias e plantas arquitetônicas foram retiradas das seguintes obras:
Repertorio d'arte dell'Egitto greco-romano (1961), de Achille Adriani, um dos principais
arqueólogos que escavou Alexandria; Alexandria Rediscovered (1998), de Jean-Yves
Empereur; Monumental Tombs in ancient Alexandria: The Theater of the Dead (2002) e
Visualizing the Afterlife in the tombs of Graeco-Roman Egypt (2015), da autora Marjorie Susan
Venit; e Resurrection in Alexandria: The Painted Greco-Roman Tombs of Kom al-Shuqafa de
Anne Marie Guimier-Sorbets, André Pelle, Mervat Seif el-Din (2017). As descrições e análises
das fotografias se deram a partir da contribuição de informações presentes nessas obras.
Infelizmente, não há menção sobre as dimensões do sítio arqueológico e de seus elementos,
como paredes, colunas e corredores.
Os desenhos arqueológicos são dedicados a grande parte dos relevos presentes na tumba.
Essas imagens foram retiradas de um banco de imagens da Universidade de Viena5, responsável
pela digitalização das pranchas da obra Les Bas-reliefs de Kom el Chougafa: La catacombe
nouvellement découverte de Kom el Chougafa, publicada em 1901 pelo arqueólogo alemão
Friedrich Wilhelm von Bissing. A obra conta com o trabalho técnico e artístico de Émile
Gilliéron, desenhista de origem sueca. Ressaltamos que nem todos os relevos possuem
desenhos correspondentes.
A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro deles, Egito Greco-romano e
Alexandria, é composto por um panorama de informações históricas e características gerais do
5 Phaidra. Universität Wien – University of Viena. Disponível em:
<https://phaidra.univie.ac.at/search_object>. Acesso em 26 abr. 2018.
20
período ptolomaico e romano. Dedicamos também essa parte da pesquisa para apresentar as
interpretações mais recorrentes sobre o tema que abordamos. Veremos que não há consenso
sobre a arte e arquitetura alexandrinas, por exemplo; mas há uma tendência relativamente nova,
que enxerga a interação cultural capaz de mesclar elementos egípcios, gregos e romanos na
criação de algo novo. Por fim, o capítulo conta com uma discussão sobre o conceito de
emaranhamento cultural, no qual nos referimos anteriormente. Consideramos pertinente
apresentar essa ideia desde o início, visto que ela perpassará a análise espacial e iconográfica
dos demais capítulos.
O segundo capítulo, Espaço funerário em Alexandria, traz inicialmente uma discussão
teórica sobre espaço, seguindo a premissa já mencionada anteriormente de se pensar na
materialidade e no aspecto simbólico inerente ao contexto funerário. Procuramos articular
ideias de autores das ciências humanas, variando entre obras da Arqueologia, Antropologia,
Arquitetura, Geografia, entre outros. Essa discussão teórica nos fornece conceitos importantes
na análise espacial da tumba a ser estudada aqui. Nossa premissa, em linhas gerais, consiste em
ver o espaço funerário associado à prática dos rituais, possibilitada pelos elementos da sua
arquitetura, planejada para receber os mortos. Analisar os componentes materiais é
indissociável da reflexão sobre a prática que ali se exercia, mas que não deixa, infelizmente,
registros suficientes para avançarmos além de inferências. Uma exposição breve das
características gerais das tumbas alexandrinas do período ptolomaico, constando nesse capítulo,
nos permitirá que se observe, ao longo do tempo, as assimilações de elementos egípcios à
arquitetura greco-macedônica. Por fim, descreveremos e analisaremos a Tumba Principal de
Kom el-Shoqafa, utilizando as fotografias do nosso conjunto de imagens. Faremos a
identificação o processo de emaranhamento junto aos elementos constituintes desse espaço,
aplicando os conceitos discutidos na primeira parte do capítulo.
O terceiro e último capítulo, Relevos da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, consiste
na análise iconográfica dos relevos presentes na antessala e câmara funerária da tumba. Esse
capítulo contém uma seleção das fotografias e desenhos arqueológicos que trazem mais
detalhes das cenas presentes nos relevos. A priori, propomos uma reflexão teórica sobre
Imagem, atentando para a complexa natureza desse elemento e função que ele exerce no espaço.
Fazemos uso das ideias de autores da Antropologia, História da Arte e Arqueologia para
compor um quadro teórico articulado e diversificado. Em seguida, apresentaremos o nosso
referencial metodológico de análise iconográfica, baseado nos preceitos da Arqueologia da
Imagem. Essa análise iconográfica decompõe e recompõe a imagem de forma descritiva e
21
analítica, interpretando os detalhes constituintes das cenas. Conceitos discutidos nos capítulos
anteriores, ligados ao espaço funerário e ao emaranhamento serão retomados de forma conjunta
nessa análise.
22
CAPÍTULO 1 – EGITO GRECO-ROMANO E ALEXANDRIA
Segundo Mendoza (2015, p. 399-400), as sociedades das ilhas Egeias do terceiro
milênio, como Creta e as Cíclades (c. 2600 a.C.) apresentam indícios de comércio indireto com
o Egito, havendo presença de cerâmica e faiança oriundas do Vale do Nilo6. Esse contato a
partir de trocas indiretas se acentuou no último milênio a.C., com a emergência das sociedades
gregas a partir do século IX e VIII a.C., que comercializavam com o Egito durante sua época
Tardia. Colônias gregas foram fundadas no Baixo Egito durante o reinado do faraó Psamético
I, na 26ª Dinastia, por volta do século VII a.C. Náucratis é um bom exemplo de colônia grega
em território egípcio, onde ocupava uma região estratégica para as atividades comerciais do
Egito com o Mediterrâneo. O apoio militar de mercenários contra as investidas assírias no Delta
garantiu uma maior presença de população estrangeira oriunda de Miletos, Cária, Iônia.
As investidas persas do Império Aquemênida, sob o comando de Cambises II, chegaram
ao Egito por volta de 529-22 a.C., derrotando o faraó Psamético III, último da dinastia saíta.
Alexandre, nascido na família real da Macedônia nos meados do século IV a.C., foi responsável
pelo avanço bem-sucedido contra o Império Persa. Para Alan K. Bowman (1997, p. 22)
Alexandre encontrou pouca resistência dos dirigentes persas ao entrar no Egito, e foi aclamado
pelos nativos, que o agraciaram como um faraó legítimo. Ao chegar em Mênfis, o general
macedônico fez sacrifícios aos deuses egípcios, recebendo os títulos de realeza tradicionais.
Antes de partir rumo à Babilônia, Alexandre fundou uma cidade no Delta, próximo ao povoado
nativo de Rhakotis: Alexandria.
A morte de Alexandre em 323 a.C. deixou uma vacância no comando de um vasto
império, que se encontrava dividido em satrapias. No Egito, Cleômenes de Náucratis ficou
responsável pela região até Ptolomeu, general ligado a Alexandre, ter subido ao poder em 305
a.C.. A partir desta data também se iniciava o período de governo da dinastia Ptolomaica7, com
o seu primeiro monarca intitulado Ptolomeu I Sóter (“salvador”). Essa dinastia se manteve no
controle do Egito até 30 a.C., sendo Cleópatra VII Filopátor a última regente descendente dos
Ptolomeus.
6 Em seu artigo de título Egyptian Connections with the Larger World, a autora discorre sobre as mútuas influências
artísticas das culturas egípcia, egeia/grega e romana em diferentes períodos, como no segundo milênio a.C., Época
Tardia no Egito e durante a ascensão do helenismo e do Império Romano. Está presente na coletânea de trabalhos
organizada por Melinda K. Hartwig, A companion to Ancient Egyptian Art, publicado pela editora Blackwell no
ano de 2015. 7 Também conhecida como Dinastia Lágida, nome derivado de Lagos, pai de Ptolomeu I (HÖLBL, 2010, p. 14).
23
Os laços familiares da dinastia ptolomaica eram cada vez mais reforçados por meio dos
casamentos consanguíneos, estratégia adotada com o intuito de preservar a linhagem dinástica.
As conquistas e a expansão territorial na região da Cirenaica, atual Líbia, e à leste, na região
do Levante, são bons exemplos dos sucessos militares de Ptolomeu III. Economicamente, o
período ptolomaico atingiu altos níveis de riqueza, muito derivada do comércio marítimo por
meio do Mediterrâneo. Alexandria tinha posição privilegiada para essa atividade, dispondo de
dois portos, um a leste e outro a oeste. Muito se comercializava com as ilhas gregas e
adjacências; Alexandria assim se tornou uma cidade de alto status econômico e intelectual. O
território do Egito estava dividido entre a capital, Alexandria e a chôra, palavra grega atribuída
à área rural próxima à pólis. No contexto em que estamos nos referindo, tratava-se de todo o
restante do país, incluindo as cidades. No período romano, a denominação da província foi de
Alexandrea ad Aegyptum, “Alexandria próxima ao Egito”. Havia, portanto, uma diferenciação
da pólis com o restante do território. Existiram ainda algumas outras póleis no Egito: Náucratis
e Ptolemais, para o período ptolomaico; e Antinoópolis, fundada pelo imperador romano
Adriano no ano de 130 d.C.
A prosperidade econômica e militar dos Ptolomeus foi abalada em alguns momentos.
Os conflitos com a monarquia selêucida, na região do Levante e da Síria, que aconteceram a
partir da segunda metade do século III a.C., resultaram em grandes perdas territoriais para o
reinado ptolomaico, principalmente no início do século II a.C. Demais mudanças políticas
também ocorreram a partir desses conflitos. Ptolomeu IV batalhou contra Antíoco III utilizando
tropas egípcias em meio ao exército, na batalha de Ráfia, acontecida no ano de 217 a.C.
Bowman (1997, p. 31) argumenta que pouco tempo depois, entre o ano de 207 e 206 a.C., a
região de Tebas testemunhou revoltas nativas, que culminaram na proclamação de dois faraós
nativos, Haronnophris e Chaonnophris, situação que persistiu até por volta de 186 a.C. Vasques
(2006, p. 14) nos informa que no reinado de Ptolomeu IX Sóter II, a região da Tebaída também
atestou novos episódios de revolta, no ano de 88 a.C.; já durante a dominação romana, no
controle do prefeito Cornellus Galius, em 29 d.C., a região apresentou sua última revolta.
Apesar da prosperidade econômica no início do período ptolomaico, houve também momentos
de crise de abastecimento e reivindicações, principalmente pelos nativos.
Antes da metade do século II a.C., a monarquia ptolomaica já mostrava sinais de
turbulência política, processo gradativo ao longo das décadas do século II e I a.C. até o
momento de transição da dominação macedônica para a romana. O casamento com rainhas
estrangeiras foi uma estratégia encontrada pelos monarcas Ptolomeus para garantir alguma
24
estabilidade em meio aos conflitos dinásticos e políticos. Um bom exemplo dessa tática política
foi o casamento de Ptolomeu V Epifânio com Cleópatra I, filha de Antíoco III, monarca
selêucida. Os filhos dos casamentos entre monarquias ficavam responsáveis pelo governo das
regiões conquistadas, reafirmando as alianças políticas e mantendo os laços dinásticos
relativamente próximos. Entretanto, as monarquias helenísticas – na qual se insere o Egito
Ptolomaico – passaram por momentos de crise política e instabilidade, tanto por questões
geopolíticas externas ou por problemas administrativos internos.
Segundo Livia Capponi (2005, p. 5), a diplomacia entre Roma e o Egito data desde o
reinado de Ptolomeu II Filadelfo, que no ano de 273 a.C. estabeleceu acordos diplomáticos com
Roma em Alexandria. Essa relação se acentuou nos fins do século III a.C., nos reinados de
Ptolomeu IV, Ptolomeu VI e Ptolomeu VIII Evérgeta, cujo reinado se viu em uma forte crise
no ano de 155 a.C. A mediação da crise foi encabeçada por Roma, que criava laços diplomáticos
cada vez maiores com o Egito. Ptolomeu XII Neo Dioniso (ou Auletes) também protagonizou
uma crise em seu reinado, cuja resolução se deu através do senado romano, no ano de 67 a.C.
O maior exemplo das estreitas relações entre Roma e a monarquia ptolomaica se deu com
Cleópatra VII, a última regente dessa dinastia. Ela já havia se relacionado com Júlio César, que
a colocou no trono do Egito em 48 a.C., após travar batalhas com Ptolomeu XIII, seu irmão.
Posteriormente à morte de César, as alianças aconteceram entre Cleópatra e Marco Antônio,
que estava na disputa com Otávio sobre o controle das posses romanas.
A expansão dos domínios romanos, encabeçada por Otávio, encontrou seu último
episódio de oposição na aliança entre Cleópatra e Marco Antônio, que foram derrotados na
Batalha de Áccio no ano de 30 a.C. Dali em diante, o Egito foi anexado às posses territoriais
romanas. Estavam sob domínio político e militar romano diversas regiões do Mediterrâneo
oriental e ocidental, se estendendo do norte do continente africano até localidades da Ásia
Menor.
O Egito Ptolomaico foi marcado por um estado burocrático bastante presente. A corte,
situada na capital Alexandria, era responsável pela manutenção da máquina de governo,
composta por oficiais encarregados de regulamentação e fiscalização da produção econômica,
espalhada ao longo do território. A produção de papiro, óleo e trigo, o carro-chefe da economia
egípcia desde os tempos faraônicos, manteve o seu controle e distribuição pelas mãos do
Estado. A terra também era de propriedade estatal, podendo ser concedida (denominada de
clerúquia) aos soldados de origem helênica e macedônica que imigravam para o Egito, se
25
estabelecendo principalmente nas póleis (Alexandria, Náucratis e Ptolemais) e também na
região do Fayum. Outro tipo de concessão existente era a doreai, destinada aos membros da
alta corte ligada ao rei (VASQUES, 2006, p. 12).
Em termos demográficos e populacionais, o período ptolomaico foi responsável pela
introdução massiva de populações oriundas de várias partes do Mediterrâneo, falantes da língua
grega, dentro do Egito. Além da nova elite governante ser estrangeira, contingentes
populacionais provenientes da Grécia continental, Ilhas Egéias, Trácia e colônias gregas da
Ásia Menor adentraram no território egípcio, destinando-se principalmente para Alexandria e
as demais póleis. A partir do século II a.C., judeus também passaram a imigrar para a região,
se concentrando principalmente na capital. Os egípcios nativos ainda eram a maioria e estavam
concentrados no Vale do Nilo, nas aldeias e unidades administrativas denominadas de nomos,
organização oriunda dos tempos faraônicos. Segundo Bowman (1997, p. 141), existiram cerca
de 30 a 40 nomos, havendo maior preservação documental nos nomos de Oxirrinco e
Hermópolis. A língua oficial do governo ptolomaico era o grego, falado e usado na escrita
também nas póleis e demais regiões ocupadas pela população grega. A língua egípcia, mais
especificamente o demótico, também é observada na documentação.
Segundo Livia Capponi (2011, p. 17), existiu ao longo do século XX um amplo debate
sobre as mudanças e impactos da dominação romana no Egito. Joana Clímaco (2007) discutiu
de forma abrangente e clara as ideias acerca das inovações ou manutenções que se sucederam
a partir de Augusto. Atualmente, entende-se que a dominação romana foi habilidosa em utilizar
as estruturas burocráticas existentes dos reinos helenísticos que subjugava, mas que houve
também estratégias únicas e diferenciadas para cada contexto específico de dominação. No caso
do Egito, a vasta documentação em papiro já foi a razão pela qual se acreditou que a província
se diferenciava das demais regiões tomadas por Roma; hoje em dia não existem razões
contundentes para acreditar que o tratamento dado ao Egito foi muito diferenciado das demais
províncias espalhadas ao longo do Mediterrâneo. Na verdade, o estudo da dominação romana
no Egito tem servido de base para entender as formas de administração de outras províncias.
Obviamente, a tomada de poder por Augusto trouxe impactos notáveis na administração
política e econômica no Egito. Ele confiscou as terras de posse de Cleópatra VII e Marco
Antônio, assim como as terras dos templos egípcios tradicionais, instituições de grande poder
político, perpassando o período faraônico e o ptolomaico. Esse confisco se deu em prol da
distribuição que o imperador realizou aos seus mais próximos. Reformas foram feitas no
26
sistema de irrigação derivado das cheias do Nilo, aumentando a produtividade – é preciso
relembrar o papel crucial do Egito como “celeiro” do Império. Augusto também foi responsável
pela regulamentação de atividades e serviços compulsórios: as chamadas liturgias.
A peculiaridade na administração romana no Egito se deu pelo cargo de prefeito,
responsável por todas as questões administrativas, financeiras e de magistraturas da província.
O território egípcio passou por uma nova divisão: Baixo Egito (na região do Delta),
Heptanômia (região do Médio Egito) e a Tebaída (região do Alto Egito). Para ajudar na
administração, havia o cargo de epistratego, oriundo dos tempos ptolomaicos e que possuía
responsabilidades civis e militares, estando restrito à esfera civil no período romano. O cargo
administrativo de estratego também deriva do período ptolomaico, estando concentrado nos
nomos. Os censos foram a principal ferramenta de controle e captação de impostos, sendo
implantados desde o governo de Augusto e estabelecidos em intervalos de 14 anos.
Os critérios de classificação e hierarquização social determinados nos censos vieram a
acirrar as questões identitárias e étnicas, a fim de promover um maior controle sobre a
sociedade. Os cidadãos romanos residentes no Egito (legionários, imigrantes, cúpula
burocrática) e cidadãos alexandrinos estavam isentos dos impostos. Em segundo plano, os
gregos helenizados, que poderiam incluir judeus e egípcios que receberam educação distintiva
grega, geralmente habitantes das póleis e das capitais distritais dos nomos. Eles pagavam taxas
menores ao fisco romano, variando de região para região. Por fim, estavam os egípcios nativos,
o estrato basal dessa pirâmide social: pagavam as maiores taxas de impostos e não possuíam
nenhum tipo de privilégio; estavam impossibilitados de ocupar cargos administrativos.
Destacamos brevemente alguns imperadores que tiveram suas histórias marcadas pelo
Egito. Em 69 d.C., o general Vespasiano, envolvido na guerra da Judeia, buscou apoio político
do então prefeito de Alexandria, Tibério Julio Alexandre. Após visitar o Serapeum e participar
de rituais, ele foi aclamado como imperador pelas tropas que se encontravam em Alexandria.
Veremos mais adiante que a datação da tumba de Kom el-Shoqafa é comumente atribuída ao
período de governo de Vespasiano, ainda que não sejam encontradas inscrições ou nomes8. De
acordo com Susan Venit (2002, p.143), Vespasiano visitou o templo de Serápis e sob as bênçãos
8 A datação da tumba de Kom el-Shoqafa é imprecisa. Por meio da análise estilística dos retratos esculpidos
presentes nesse lugar, autores como Susan Venit (2002) mesclam essas informações com o contexto histórico de
Vespasiano em Alexandria. Todavia, existem outras linhas de datação, baseadas nos sarcófagos da câmara
funerária, que se assemelham aos sarcófagos romanos típicos do período de Adriano, nas primeiras décadas do
século II d.C..
27
do deus realizou milagres de cura em dois homens deficientes. Em contrapartida, Joana
Clímaco (2007, p. 101) citando Dion Cássio (História Romana, 65.8-9), afirmou que os
alexandrinos ficaram decepcionados e revoltados com Vespasiano, após o imperador retomar
impostos e aumentar cobranças. Livia Capponi (2011, p. 30) acrescenta que o imperador havia
bloqueado o suprimento de grãos do Egito para Roma para chantagear o Senado em prol de sua
ratificação como imperador. Isso colocaria em xeque a datação da Tumba Principal de Kom el-
Shoqafa, algo que permanece ainda sem uma precisão cronológica.
Demais revoltas foram observadas em Alexandria9, havendo relativa estabilidade
apenas com as ações do imperador Adriano, a partir de 117 d.C.. O imperador visitou o Egito
e Alexandria nesse mesmo ano, assumindo o papel de benfeitor e estabilizador: restaurou
templos, construiu novos edifícios e fortaleceu os cultos egípcios, gregos e romanos. A
princípio, seus atos foram concentrados em Alexandria. De volta a Roma, o imperador iniciou
as construções de sua vila em Tibur (Tivoli), onde havia imagens de inspiração egípcia. Adriano
retornou ao Egito em 130 d.C., visitando cidades da chôra, como Mênfis. A morte de Antinoo
no rio Nilo, amante atribuído ao imperador, resultou na fundação de uma pólis com o seu nome:
Antinoopolis. As revoltas voltariam a acontecer no território egípcio a partir da segunda metade
do século II d.C., motivadas por problemas de epidemias e pelo assassinato do prefeito Lucius
Munatius Felix, em 153 d.C. (CAPPONI, 2011, p. 32).
Na transição do século II para III d.C., destacamos a ação do imperador Caracala, que
seguindo os passos do seu pai Septímio Severo, estendeu a cidadania romana para toda a
população masculina do império, por meio do edito Constitutio Antoniniana de 212. A visita
do imperador à cidade de Alexandria, no entanto, foi extremamente negativa: houve repressão
e perseguição por parte das forças imperiais à população nativa e aos cristãos que residiam em
Alexandria.10 Para Capponi (2011, p. 35), isso marcou o declínio político e cultural da cidade.
A religiosidade no Egito se demonstrava receptiva desde os tempos faraônicos. Os
Textos das Pirâmides, que datam do Antigo Império, atestam a presença de uma divindade da
Núbia, Dedun. Deuses orientais, provenientes da região da Síria e Palestina como Reshep, Baal
9 Cf. a dissertação de mestrado de Joana Campos Clímaco, Cultura e Poder na Alexandria Romana, defendida na
USP no ano de 2007. Nesse trabalho, a autora analisa um conjunto de papiros encontrados em Alexandria, Acta
Alexandrinorum, em meio ao contexto de reivindicações políticas e conturbações sociais entre judeus e gregos,
nos dois primeiros séculos do Império Romano. 10 Especula-se que uma área adjacente à Tumba Principal de Kom el-Shoqafa serviu de refúgio para os perseguidos
do imperador, que foram encurralados pelas tropas imperiais. Trata-se do “corredor de Caracala” (Hall of
Caracalla).
28
e Astarte possuem evidências de culto durante o reinado de Amenhotep II, na 18ª Dinastia,
durante o Novo Império. Eles eram reconhecidos em seu status divino, chamados de ntjer, que
na língua egípcia significava “deus”. A iconografia e o culto a esses deuses se dava à moda
egípcia. Tallet e Zivie Coche (2012, p. 437) atentam para o fato de que a entrada dessas
divindades não necessariamente indicou o estabelecimento de assentamentos estrangeiros no
Egito, sendo muito mais uma característica da religiosidade politeísta.
A chegada de imigrantes gregos em território egípcio, a partir do século VII a.C.,
permitiu também a entrada de divindades helênicas a receberem cultos, santuários e templos,
como pode ser observado na colônia grega de Náucratis, inserida no Egito. A priori, tais
divindades atendiam às necessidades religiosas dessa população estrangeira. Do século V a.C.,
a obra de Heródoto, Histórias, especificamente o segundo volume, traz importantes
informações sobre a geografia, a população, a história, os costumes e a religião egípcia, sob o
olhar de um homem grego. Para o nosso interesse específico, destacamos a tradução que
Heródoto faz sobre o nome de alguns deuses egípcios, empregando nomes de divindades
gregas11:
Desde então, os egípcios moldam suas estátuas de Zeus com a cabeça de um
carneiro, e os amônios fazem-na graças aos egípcios e aos que são colonos
dos egípcios e etíopes, e que falam uma língua que está entre ambas. Parece-
me que também o nome que os amônios têm vem disso, eles o colocaram
como o seu epônimo; pois os egípcios chamam Zeus de Ámon (HERÓDOTO,
Histórias, v. II, 47).
Ainda os nomes dos deuses, quase todos, vieram do Egito para a Hélade. Por
esse motivo, eles vieram dos bárbaros, assim eu descobri que eram, após ter
sido informado; penso que vieram especialmente do Egito (HERÓDOTO,
Histórias, II, 50).
Mas, antes desses homens, os deuses governavam no Egito e eles habitavam
junto aos homens, também sempre um deles era o mais poderoso. E que o
último deus que reinou no Egito foi Hórus, o filho de Osíris, o qual os helenos
nomearam Apolo; ele pôs fim ao reinado de Tífon e foi o último deus que
reinou sobre o Egito. E Osíris é Dioniso, conforme a língua Hélade
(HERÓDOTO, Histórias, II, 144).
Não é possível compreender se essa tradução helênica dos nomes foi uma maneira de
aproximar seus leitores ao universo religioso egípcio, visto que o autor, às vezes, emprega os
nomes egípcios para tais divindades. Concordamos com o ponto de vista da autora Françoise
11 Gaëlle Tallet e Christiane Zivie-Coche (2012) empregam o termo interpretatio graeca para o processo de
tradução e compreensão da cultura do outro a partir de elementos gregos. Isso também acontece do lado egípcio,
culminando no que seria a interpretatio aegyptiaca.
29
Dunand, ao afirmar que provavelmente as correspondências entre os nomes gregos e egípcios
eram característica comum do tempo de Heródoto (DUNAND, 2004, p. 241). Demais
associações e traduções são observadas ao longo do período helenístico e romano: Afrodite e
Hathor; Hermes e Thot; Tífon e Seth; Hefesto e Ptah; Deméter e Ísis, dentre outros. No século
I d.C., Plutarco produziu uma vasta reflexão filosófica em torno do mito de Ísis e Osíris,
presente em um tratado do sétimo volume da sua obra Moralia. Em Iside et Osiris também
encontramos essas associações de deuses egípcios e gregos por meio da tradução dos nomes.
A evidência literária, seja por Heródoto ou por Plutarco, corroboram as evidências materiais de
coexistência religiosa entre essas sociedades.
Para o período ptolomaico e romano, as circunstâncias políticas mudaram
consideravelmente em comparação com o período faraônico. Os estrangeiros se tornaram
responsáveis pela administração política e econômica do Estado. Do ponto de vista egípcio,
não houve integração dos deuses de origem helênica ao panteão da religião tradicional nativa.
A interação da religião egípcia e helênica se deu muitas vezes de forma contraditória, como
afirmam as autoras Gallet e Zivie-Coche (2012, p. 440): ao mesmo tempo em que a população
grega se restringia aos seus deuses, também houve contato e interação com o universo religioso
egípcio, havendo interpretações e associações entre as divindades. Essas situações aconteceram
em diferentes regiões dentro do território egípcio. Os principais centros de culto da religião
egípcia tradicional no período helenístico e romano são os templos de Dendera, Esna, Edfu,
Kom Ombo e Philae, localizados na chôra. Em Alexandria, centro difusor da cultura helênica
para o restante do Egito e para as áreas adjacentes do Mediterrâneo, os cultos helênicos foram
mais presentes. Contudo, a interação com a religião egípcia foi presente e se deu de forma
paulatina e mais voltada a uma interpretatio graeca. Em nossa perspectiva, essa interação se
mostra intensa no final do período ptolomaico e no período romano, como se atesta nos sítios
de necrópole dessa cidade.
Fundada em 331 a.C. por Alexandre, o Grande, Alexandria se tornou um importante
centro cultural e econômico durante o período helenístico, quando também era a capital do
Egito durante o governo da dinastia ptolomaica. A partir de 30 a.C., quando da dominação
romana, Alexandria ainda ocupou uma posição de destaque no comércio do Mar Mediterrâneo,
permanecendo como um grande centro populacional, econômico, intelectual e uma região
estratégica de articulação do Império Romano com as províncias orientais. A fundação de
Constantinopla, nos meados do século IV d.C., reduziu consideravelmente a importância
política e comercial de Alexandria para o Império Romano da porção oriental.
30
Apesar do esplendor e da grandiosidade alcançados na Antiguidade, a cidade de
Alexandria não preservou a maioria dos seus monumentos, como palácios, a Biblioteca e o
Museu, conhecidos apenas por fontes literárias da época. Os locais de enterramento dos
monarcas da dinastia ptolomaica, bem como a tumba de Alexandre, o Grande, permanecem
desconhecidos. Capponi (2011, p. 53-56) cita o volume 17 da obra Geografia de Estrabão, que
visitou Alexandria por volta de 20 d.C.:
Estrabão descreve o porto e os prédios vizinhos: o teatro; o templo de
Poseidon; o Cesareum, templo construído a mando de Cleópatra VII e
dedicado a Júlio César; a praça de comércio, os armazéns de estocagem de
grãos e o cais. Ele também descreve as duas principais artérias de Alexandria,
avenidas de grande proporção (30m de largura); a Necrópolis ou o cemitério
da população grega; o santuário de Serápis ou Serapeum; o anfiteatro, o
estádio e o complexo do gymnasium que incluía pistas, banhos, pórticos e
jardins. Segundo Estrabão, o palácio real se mostrava como um grande
complexo, cobrindo quase um terço da cidade, visto que cada monarca da
dinastia lágida acrescentava novos prédios ao palácio.
A cidade foi originalmente organizada seguindo os padrões urbanísticos gregos: uma
rede de ruas retilíneas, dividida em cinco quarteirões que seguiam a sequência das cinco
primeiras letras do alfabeto grego (alpha, bêta, gamma, delta e épsilon). A população de
Alexandria era, sobretudo, cosmopolita: havia habitantes nativos do Egito, como também havia
grupos populacionais provenientes da península itálica, Chipre, Trácia, Gália, Líbia, Judeia,
Fenícia, Pérsia, Arábia, Índia e entre outras localidades do Mediterrâneo. A comunidade judaica
era bastante expressiva em Alexandria, desde o início do período ptolomaico.
A cidadania das póleis era estritamente controlada, havendo a princípio a proibição de
casamentos inter-raciais. Essas cidades possuíam as instituições civis conhecidas no mundo
helênico, como os conselhos, assembleias e o ginásio. Dessa forma, é possível perceber uma
busca por elementos da identidade grega que fizesse distinção com o elemento nativo egípcio,
visto que havia privilégios jurídicos (acesso a cortes de justiça diferenciadas) e econômicos
(redução ou isenção de impostos) àqueles que eram reconhecidos pelo Estado como gregos. É
sabido, todavia, que a partir da segunda metade do século II e ao longo do século I a.C., as
identidades se tornam menos restritas, havendo a possibilidade de trocas e fluências entre o
status grego e os elementos egípcios, comumente associados a questões religiosas e funerárias.
A busca pelo status da cultura grega estava associada ao grupo que ocupava o poder,
não somente em relação à dinastia ptolomaica, mas também aos cargos administrativos do
Estado. A língua falada na cidade era o grego, assim como se difundia o pensamento e a filosofia
31
helênica na cidade. Algumas instituições típicas de uma pólis existiram em Alexandria, como
o Conselho de cidadãos (demos), a Assembleia (ecclesia), o Conselho municipal (boule), o
Conselho de magistrados (prytaneis) e o Conselho de anciãos (gerousia). A cidade ainda
contava com uma ágora, fóruns, ginásios, anfiteatros e outras localidades de uma típica pólis
(VENIT, 2002, p. 9). O farol da cidade, localizado na ilha de Faros, foi planejado pelo arquiteto
Sostratos de Cnidos, erguido entre 297 e 283/3 a.C., ligado à cidade por meio de um dique
construído chamado Heptastadeion.12 A construção se tornou símbolo da grandiosidade
alexandrina, sendo motivo iconográfico de moedas encontradas ao longo do Mediterrâneo. O
farol se encontrava em franca deterioração durante a Conquista Árabe; estando grande parte da
ilha de Faros submersa hoje em dia. O Lago Mareótis, localizado ao sul da cidade, integrava
parte do comércio fluvial do Nilo por meio de canais.
Alexandria contava com duas importantes instituições de formação intelectual, traço de
status grego por excelência: o Museu e as duas Bibliotecas. O primeiro foi fundado por
Ptolomeu I Sóter e finalizado por Ptolomeu II Filadélfo, próximo ao templo das Musas. O
Museu se tornou rapidamente um centro notável de produção intelectual em diversas áreas, da
medicina à literatura e astronomia, passando pela matemática e geografia. As bibliotecas, por
sua vez, estavam localizadas dentro do Museu (a mais conhecida pela magnitude de seu acervo)
e do Serapeum, templo dedicado ao deus Serápis. As estimativas sobre a quantidade de livros
vão de 50 a 60 mil exemplares, sendo um reduto importantíssimo para o conhecimento da
Antiguidade. Os episódios de incêndio são relatados durante a época de Júlio César e Cleópatra,
por volta de 48/47 a.C., que resultou na queima de uma pequena parte do acervo da biblioteca
do Museu. Ela foi destruída por volta de 272 d.C., durante a invasão de Alexandria por tropas
da cidade de Palmira (CAPPONI, 2011, p. 60). A biblioteca do Serapeum, que também contava
com um grande acervo de obras, foi destruída pelos cristãos no século IV d.C.
A monarquia ptolomaica carecia, no início, de bases legitimadoras que se alinhassem à
ideologia política e religiosa egípcia. Nesse sentido, teve papel fundamental o culto dinástico
do deus Serápis, comumente atribuído como uma criação do próprio Ptolomeu I Sóter. A
divindade apresentava características físicas de um deus grego (homem de barba,
provavelmente ligado à imagem de Hades, Asclépio e Zeus), mas tinha um nome de inspiração
12 Segundo Capponi (2011, p. 53), a palavra grega significa “sete stadias”, stadion sendo uma medida de
comprimento que correspondia a 175 metros.
32
egípcia, proveniente de Osor-Hapi, deidade adorada em Mênfis e que se tratava da junção de
Ápis a Osíris após a morte.
Figura 1. Busto do deus Serápis encontrado no Serapeum, datação do século II d.C.
Fonte: BIANCHI; SAVVAPOULOS, 2012, p.131
Dunand (2004, p. 215) argumenta que a divindade egípcia muito provavelmente já era
conhecida pelos gregos que residiam no Egito antes do período ptolomaico; a imagem
helenizada e o culto tomado pela dinastia ptolomaica foram estratégias de legitimação do poder
e de criação de templos e locais de adoração da divindade. Sua associação com Ísis, divindade
amplamente conhecida no mundo helenístico e que ganhou versões helenizadas, satisfez os
preceitos religiosos e ideológicos da realeza egípcia. Aspectos ligados à fertilidade e à cura
foram largamente atribuídos a Serápis, sendo considerado também como patrono da cidade de
Alexandria. A figura 1 traz a iconografia mais conhecida: o deus possui cabelos ondulados e
barba encaracolada. Um pequeno cesto, chamado em grego de kalathos, é adornado com um
motivo iconográfico floral, ligado ao sentido de fertilidade.
O principal templo da cidade e dedicado a Serápis, o Serapeum, foi construído entre os
reinados de Ptolomeu I Sóter, Ptolomeu II Filadélfo e Ptolomeu III Evérgeta, passando por
reformas também no período romano. Localizado ao sul da cidade, o complexo templário o
33
contava com um grande pátio cercado por colunas, salas de leitura e uma biblioteca; com o
templo dedicado a Serápis ao centro.
Figura 2. Planta baixa e reprodução do complexo templário de Serápis, o Serapeum, em
Alexandria
Fonte: MCKENZIE, 2007, p. 201; CAPPONI, 2011, p. 57
Escavações nesse sítio arqueológico revelaram a presença de esculturas em estilo
clássico e egípcio, que provavelmente faziam parte dos altares e locais de culto de divindades
que também eram cultuadas nesse lugar. Por volta de 181 d.C., o templo passou por um grande
incêndio, sendo reconstruído em 215/16 d.C. (MCKENZIE, 2007, p. 195). Em 298 d.C., em
comemoração à vitória do imperador Diocleciano sobre o usurpador Domício Domiciano, o
prefeito de Alexandria à época, Públio, ergueu uma coluna com capitel em estilo coríntio,
estrutura visível até os dias atuais. O Serapeum funcionou como importante centro religioso e
intelectual até meados de 391 d.C., quando o imperador Teodósio II decretou o fechamento de
todos os templos pagãos. A Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, construída entre os séculos I
e II d.C., se situa próximo ao sítio arqueológico do Serapeum.
34
Pela sua matriz helênica, a capital apresentava uma variedade de cultos de origem grega,
coexistentes com as divindades egípcias. Destacamos o culto do Agathos Daimon13,
denominado como o gênio protetor da cidade. Sua representação mais comum consistia em
uma serpente barbada e coroada; houve provavelmente conexões com a divindade egípcia Shai,
também uma serpente. Ísis foi a divindade egípcia que passou por maiores transformações: o
aspecto de fortuna foi incorporado à deusa egípcia, na forma de Ísis-Tyche; a associação à deusa
Afrodite, observada em figuras de terracota do segundo século d.C., trouxe o aspecto da
fertilidade junto aos atributos de Ísis; em Alexandria, a deusa egípcia ganhou um aspecto
universalizante. Os primeiros monarcas lágidas endossaram o culto do deus Dioniso, assim
como instituíram o culto dinástico da realeza, como pode ser visto com Ptolomeu I e Berenice
I (DUNAND, 2004, p. 274-273). Infelizmente, não há registro arqueológico de santuários de
divindades helênicas, restando as evidências textuais de Estrabão, Políbio e Suetônio, como
nos informa Susan Venit (2012, p. 88). A partir dessas fontes, sabe-se da presença de culto de
deuses gregos como Zeus, Dioniso, Deméter, havendo um apelo ao aspecto ctônico, quando
possível, atribuído às divindades.
É importante perceber que a maior presença da religiosidade grega está acompanhada
com o contingente populacional que imigrou para o Egito e povoou as póleis, locais onde mais
evidências são vistas ligadas aos cultos helênicos. Nas regiões pouco afetadas pela população
grega, a tradição egípcia preservou sua hegemonia. É sabido também que, diferentemente dos
colonizadores helênicos, a dominação romana não significou um deslocamento populacional
em massa de romanos adentrando no Egito, o que pode explicar a presença menor – em
comparação com a tradição helênica - de divindades romanas associadas aos deuses egípcios.
No caso de Alexandria, a cidade passou por um processo gradual de permeabilidade à cultura
egípcia, como poderemos observar, sobretudo no último século do período ptolomaico.
Observaremos esse fenômeno quando tratarmos das tumbas alexandrinas, no segundo capítulo.
Os costumes funerários são aspectos religiosos de grande importância, pela preservação
documental e pela possibilidade de se perceber as interações culturais. No caso do Egito
Ptolomaico e Romano, mediante as variações locais, os costumes funerários trazem a matriz
egípcia atrelada à mumificação e ao culto de Osíris, principal divindade funerária desde os
tempos faraônicos. Ao tratarmos de Alexandria (e também das demais póleis), as evidências
13 Trataremos sobre o Agathos Daimon na análise iconográfica da tumba pesquisada nessa dissertação (terceiro
capítulo).
35
materiais indicam práticas funerárias comuns aos povos helênicos, sendo a técnica da cremação
e inumação amplamente utilizadas. A mumificação é também documentada, passando por uma
maior adesão nos últimos séculos do período ptolomaico e amplamente difundida no período
romano. Apesar das delimitações identitárias impostas nos censos romanos, em que se buscava
segregar a população da província por meio de status como grego e egípcio, no campo da
religião funerária as identidades são muito mais entremeáveis e fluidas. Essa fluidez no tocante
aos costumes funerários é observada já no período ptolomaico, sendo mais constatada na
documentação do período romano. A simbologia egípcia, ligada ao ciclo da vida e ao culto de
Osíris, passou por acomodações, acréscimos e releituras advindas da tradição helênica.
Autores como Susan Venit (2002, 2015), Françoise Dunand (2004), Christina Riggs
(2005), Kryiakos Savvopoulous (2011, 2013), entre outros, concordam com a ideia de que as
concepções funerárias egípcias eram atrativas, visto que forneciam uma perspectiva positiva e
de continuidade da vida após a morte, o que justificaria a adesão desses costumes em várias
regiões do Egito, incluindo as de colonização estrangeira. Estamos alinhados à essa
interpretação, tendo em vista as evidências da religião funerária egípcia presentes na arquitetura
e iconografia das tumbas alexandrinas. É preciso ressaltar que, pela ausência de prédios ou
templos da antiguidade preservados em Alexandria, o estudo da arte e arquitetura dessa cidade
se dá muitas vezes de forma indireta, por meio dos escritos de autores clássicos, como Estrabão,
assim como também se baseia nos estudos arqueológicos em áreas de necrópole. Essas áreas
foram as mais bem preservadas. Assim, a produção sobre as tumbas alexandrinas aparece mais
comumente ao se falar de arte e arquitetura.
As missões arqueológicas da década de 1990 realizadas em Alexandria foram
responsáveis por trazer à tona debates e reflexões a respeito da arte e arquitetura da cidade. O
estudo da evidência material descoberta na época, combinado com as escavações anteriores,
reacenderam o pensamento sobre a sociedade alexandrina e sua diversidade cultural. Entre
historiadores da arte, temos um amplo debate acerca da existência de um estilo alexandrino. A
obra Alexandria and Alexandrianisms, publicada em 1996, traz uma compilação de artigos que
versam sobre variados temas sobre Alexandria. A seção Arts of Hellenistic Alexandria: Greek
and Egyptian contributions discute sobre o estilo alexandrino, em que não há um consenso ou
ideia fechada sobre o tema. Grande parte dos autores reconhece a influência da tradição egípcia
em meio à tradição clássica presente nas esculturas e arquitetura de Alexandria, havendo a
coexistência dos estilos de forma separada, mas também sendo possível encontrar artefatos que
mesclam elementos de ambas as tradições.
36
Judith McKenzie é uma das principais defensoras da ideia de um estilo propriamente
alexandrino, voltado especificamente à arquitetura. Sua obra, The Architecture of Alexandria
and Egypt, 300 BC- AD 700, publicada em 2010, cobre um vasto recorte cronológico, do Egito
Ptolomaico ao Período Bizantino. McKenzie demonstra nesse trabalho o desenvolvimento do
estilo arquitetônico próprio da cidade alexandrina e da circulação desse estilo por áreas
adjacentes no Mediterrâneo, como na cidade de Petra, na Ásia Menor, e Miletos, na Grécia. A
partir do acervo de fragmentos do Museu Greco-Romano de Alexandria, a autora indica a
variedade de estilos arquitetônicos de capitéis, fachadas e pórticos que mesclaram traços
jônicos, dóricos e egípcios. Todavia, as demais expressões arquitetônicas tidas como puramente
clássica ou egípcia ainda são observadas ao longo do território do Egito durante a dominação
ptolomaica e romana. Para a autora, existiu um estilo arquitetônico propriamente alexandrino,
de base clássica, mas com influências egípcias.
Ainda dentro do debate sobre estilo na arte e arquitetura alexandrina, a ideia de estilo
duplo surgiu com o egiptólogo Laszlo Castiglione durante a década de 1960, para definir e
interpretar os artefatos e a iconografia presentes em tumbas do Egito da época ptolomaica e
romana. Essa ideia inspirou várias interpretações posteriores, como podemos observar na obra
de Jean Yves-Empereur, Alexandria Rediscovered, do ano 1998. Empereur emprega as noções
de estilo duplo e justaposição para tratar da interação cultural observada na Tumba Principal
de Kom el-Shoqafa, identificando os elementos da religião egípcia e greco-romana envolvidos
no programa decorativo da tumba. O estilo duplo também aparece nas interpretações dos
autores Anne-Marie Guimier-Sorbets, André Pelle e Mervat Seif el-Din, responsáveis pela obra
Renaître avec Osiris et Perséphone: Alexandrie, les tombes peintes de Kôm el-Chougafa
(2015), que se debruça majoritariamente sobre tumbas pintadas do sítio arqueológico onde a
Tumba Principal é situada.
Buscando superar a ideia de estilo duplo de Castiglione, assim como se distanciando da
discussão de arte, Marjorie Susan Venit propõe a ideia de mescla para se referir à iconografia e
arquitetura das tumbas alexandrinas. Houve a combinação de sistemas visuais para atender às
tradições egípcia e grega de forma simultânea, ideia apresentada na sua obra Monumental
Tombs of Ancient Alexandria: The Theater of the Dead, publicada em 2002. Em seu último
livro, Visualizing the Afterlife in the Tombs of Graeco-Roman Egypt, publicado em 2015, Susan
Venit buscou direcionar suas análises das tumbas do período romano às negociações e
mediações sobre morte e vida no além, observando esse fenômeno nas tumbas do período.
Nessa obra mais recente, a autora mudou sua interpretação anterior e fez uso das ideias de
37
bilinguismo (ideia já citada por nós anteriormente, pelas autoras Gaelle Tallet e Christiane
Zivie-Coche, 2012) e justaposição para falar do sistema de representação da arte funerária, sem
que haja uma mescla profunda de elementos culturais.
Christina Riggs, autora da obra The Beautiful Burial in Roman Egypt: Art, Identity and
Funerary Religion (2005), traz uma perspectiva diferenciada dos autores citados anteriormente,
ao defender a ideia de criação de uma arte funerária original no Egito Romano. Ela afirma que:
A escolha de empregar convenções e elementos que não estavam
tradicionalmente incluídos no repertório egípcio foi significativa, seja
conscientemente ou não, e a arte criada como resultado dessa escolha é ainda
mais significativa diante disso. Apenas analisando precisamente como as
divergentes tradições pictóricas e simbólicas interagem, e imaginando a arte
funerária egípcia em seu próprio lugar e tempo, poderemos começar a
apreender os significados que ela incorporou. (2006, p. 5-6).
Dessa forma, percebemos que no ponto de vista de Riggs, houve a criação de uma arte
funerária distinta e que mesclou traços da tradição clássica e egípcia. Essa visão corrobora com
a nossa hipótese de pesquisa, em que sustentamos a ideia de emaranhamento cultural no
contexto funerário da Alexandria Romana. Para não nos determos na discussão dos temos arte
e estilo para se tratar do fenômeno visual da tumba estudada, adotamos preferencialmente o
termo iconografia. Discutiremos brevemente sobre essas terminologias no terceiro capítulo.
A variedade de conceitos para definir tal fenômeno permite que a questão fique aberta à
discussão e à proposição de novas ideias. Kyriakos Savvopoulos, autor do artigo The Polyvalent
Nature of the Alexandrian Elite Hypogea: A case study in the Greco-Egyptian Cultural
Interaction in the Hellenistic and Roman Period, (2013) cunhou o termo “alexandrinização”
(alexandrinization) para definir o processo de percepção e combinação das tradições culturais
do Egito que são observadas nas tumbas de Alexandria. Ele assume a premissa de que a
dualidade do fator egípcio e grego passou a se manifestar de forma imbricada a partir do século
II e I a.C, em que se verifica uma intensa miscigenação populacional. Com a dominação
romana, esse processo de integração entre as culturas continuou sendo observado e até se
intensificou: a partir do século I d.C, as tumbas apresentam um esquema decorativo ainda mais
mesclado, como é o caso da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa.
A obra Egyptian Cultural Identity in the Architecture of Roman Egypt (30 BC – AD
325), publicada em 2015 pelo pesquisador egípcio Youssri Ezzat Hussein Abdelwahed, possui
o escopo de investigação mais próximo ao nosso trabalho. O autor discute questões ligadas à
38
etnicidade e identidade a partir da arquitetura, buscando identificar a permeabilidade das
identidades no contexto de dominação romana no Egito. Dessa forma, a questão espacial e
arquitetônica é enfatizada junto à sua investigação. O autor buscou ainda perceber as
continuidades e mudanças no que diz respeito à tradição egípcia frente à cultura greco-romana.
Para isso, Abdelwahed afirma que (2015, p. 7-8) o uso de conceitos como bilinguismo,
biculturalismo e hibridismo são intercambiáveis na análise da cultura material (inscrições,
iconografia e arquitetura, por exemplo).
Como é possível perceber, a arte e arquitetura de Alexandria, estando ligadas ou não
aos espaços funerários, são temas longe de consensos e conclusões definitivas. Afastamo-nos
da discussão teórica mais ligada à arte, havendo preferência pelas interpretações de autores que
se baseiam na arqueologia. Nossa pesquisa irá empregar o referencial teórico do
emaranhamento cultural, conhecido a partir da leitura o artigo Espaços territoriais e redes de
poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade, de autoria de Marcia Severina
Vasques e publicado no ano de 2014. Nesse trabalho, Vasques aborda os conceitos de
imperialismo, centro e periferia e redes de poder para uma análise mais abrangente de Roma e
suas províncias; a autora emprega o conceito de emaranhamento, proposto pelo arqueólogo
Phillip Stockhammer, para a análise de artefatos funerários do Egito Romano. Na seção a
seguir, estaremos discutindo de forma mais detalhada sobre esse conceito.
1.1. UMA PROPOSTA TEÓRICA PARA O HIBRIDISMO CULTURAL:
EMARANHAMENTO
A partir da contextualização histórica e da revisão bibliográfica sobre Alexandria
desenvolvidas anteriormente, foi possível perceber que existe um grande potencial de estudo
acadêmico sobre a interação cultural nessa cidade, em especial nos espaços funerários.
Concordamos com as perspectivas que apontam em direção a uma interação cultural mais
intensa e com traços de mescla e inovação visíveis na arquitetura e iconografia funerária.
Sabemos, em contrapartida, que ainda assim não é possível afirmar a existência de uma religião
híbrida. Nossa proposta de uso do conceito de emaranhamento surge para elucidar questões
ligadas à noção de hibridismo e para nos auxiliar na interpretação das nossas fontes, sem
necessariamente indicar um sistema religioso completamente emaranhado.
A diversidade étnica e cultural da cidade alexandrina deixou marcas visíveis dessa
variedade nos registros materiais. A fim de trabalharmos com o nosso objeto específico de
39
pesquisa, propomos aqui uma abordagem teórica recente, trazendo um conceito pertinente na
análise de cultura material com características híbridas: o emaranhamento, proposto pelo
arqueólogo Phillip Stockhammer. Basear-nos-emos nos artigos publicados nos anos de 2012 e
2013, em livros organizados pelo próprio autor e que conta com a contribuição de
pesquisadores da arqueologia que também trabalham com a questão do hibridismo.
A questão de híbrido versus puro é o tema enfatizado na reflexão preliminar da sua obra
Conceptualizing Cultural Hybridization, organizada em 2012, reunindo diversos artigos que
versam sobre hibridismo na arqueologia. De fato, para podermos utilizar o conceito ou a ideia
de híbrido, se faz necessário também definirmos o que significa ser puro nesse determinado
contexto. Tanto as noções de hibridismo como de pureza são problemáticas dentro dos estudos
culturalistas, em especial na discussão pós-colonial. A ideia de pureza, por exemplo, possui
potencial de ser utilizada em discursos de xenofobia e racismo, práticas que não possuem
nenhum tipo de respaldo científico. Entretanto, a discussão sobre hibridismo precisa avançar
nessa dicotomia entre puro versus híbrido. Nas palavras do autor:
Hibridismo pode apenas existir em oposição à pureza; se falamos sobre
hibridismo, devemos aceitar a existência da ideia de pureza. Todo princípio
de transcender as fronteiras culturais começa com o reconhecimento de que
elas existem, confirmando a existência daquilo que precisa ser superado. Toda
disciplina que discute o hibridismo deve definir como se entende a pureza. Se
nada pode ser definido como puro, tudo se torna híbrido e essa ideia se torna
um termo redundante, talvez sendo utilizável como metáfora para estimular
discussões, mas não como uma ferramenta conceitual. [...] A pureza tem sido
tão frequentemente inventada pelos poderosos como uma estratégia de
supressão que esse termo deve ser tratado com extrema cautela. Portanto, é
importante reconhecer a existência das três dimensões do hibridismo:
primeiro, a construção e percepção de hibridismo - e pureza como seu oposto
- por diferentes indivíduos ou grupos que construíram estruturas e ideologias
sobre essas duas noções para manter ou impor relações de poder assimétricas;
em segundo lugar, o hibridismo como uma metáfora para uma abordagem
científica que visa analisar e desconstruir relações de poder assimétricas que
resultam de suposições de pureza cultural; em terceiro lugar, o hibridismo
como base de uma abordagem metodológica para a análise de encontros
transculturais (2012a, p. 1-2).
Tendo em vista o papel exercido pelo pesquisador cientista, reconhecendo também sua
ação de forma política, Stockhammer assinala um duplo interesse pela ideia de hibridismo: ela
é percebida e adotada enquanto metáfora para delimitar o objeto de pesquisa; assim como é
também adotada de forma metodológica na operacionalização de um conceito que permite a
análise de um corpo específico de fontes a ser trabalhado pela arqueologia (2012a, p.2). O
artigo de título Conceptualizing Cultural Hybridization in Archaeology, contido nessa obra já
40
referenciada anteriormente, reúne as reflexões teóricas em torno do conceito de hibridismo e
que resultaram na criação do conceito emaranhamento. O autor reitera seus objetivos
metodológicos ao afirmar que
Mesmo que o mundo pareça ser completamente emaranhado, considero que
seja possível desenvolver a metáfora em um conceito epistemologicamente
utilizável, ao restringirmos o uso do termo “emaranhamento” ligado aos
termos “espaços liminares” ou “transições” para a análise de processos
distintos de apropriação (2012a, p. 48).
Dessa forma, as noções de híbrido ou emaranhado se tornam ferramentas úteis para a
análise das fontes oriundas de contexto em que houve trocas culturais, em especial no tocante
à análise de cultura material. O termo emaranhamento (entanglement, no inglês, geflecht;
verflechtung no alemão) sintetiza a ideia de mescla nas características morfológicas e/ou nos
significados e funções que os artefatos arqueológicos apresentam em seu contexto. Para
Stockhammer (2012a, p.47), emaranhamento compreende as noções de agência,
processualidade e criação de algo novo que vai além de uma simples justaposição de suas
origens.
Procurando retirar as dificuldades epistemológicas e terminológicas das ideias sobre
hibridização, que derivam principalmente do pensamento de Homi Bhabha e da sua obra O
local da cultura (1994), Stockhammer se utiliza das ideias de Bhabha sobre espaços liminares
das identidades culturais, que constituem espaços de encontro e de potencial de hibridização.
Na proposta de Stockhammer (2012b, p. 90), os espaços liminares são os espaços ou situações
de encontro das entidades culturais - esquemas mentais úteis do ponto de vista ético ao
pesquisador, que reúnem características comuns a uma cultura, encontrados em um contexto
determinado. A noção de que um artefato é grego, romano ou fenício é um exemplo da
aplicação de entidades culturais a partir das características morfológicas visíveis, combinadas
com as informações contextuais de achado.
No encontro de duas ou mais entidades culturais nos espaços liminares, existe o
potencial de desencadear o processo de apropriação, no qual Stockhammer se baseia nas ideias
de Hans P. Hahn (2004a, 64–67; 2004b, 218–220; 2005, 102–104; 2007, 209–210 apud
STOCKHAMMER, 2012, p. 48). Esse processo é composto por quatro fases: apropriação,
incorporação, objetificação e transformação, que ocorrem de forma simultânea e entrelaçada.
Ao pensar no registro material, Stockhammer argumenta que
41
Enquanto apropriação e incorporação podem ser facilmente identificados em
um contexto de achado bem preservado, a objetificação e transformação são
mais difíceis de serem reconstruídos, visto que eles se referem à percepção
dos artefatos e, portanto, exigem uma perspectiva êmica. No entanto, o
contexto de achado de um objeto pode nos indicar alguma pista para a
objetificação e transformação: cálices ou copos estrangeiros encontrados
juntos aos copos “locais” ou “nativos” indicam um sistema de classificação;
cálices estrangeiros encontrados em contextos funerários locais supõem a
atribuição de um novo significado (2012a, p.49).
Esse processo, que pode ocorrer em diferentes intensidades, resulta em dois tipos de
emaranhamento. O relacional pode ser definido quando se trata de uma apropriação de objetos
estrangeiros e que recebem um uso social diferente daquele de origem. A utilização de vasos
gregos de armazenamento de bebidas em contextos funerários em outras sociedades é um
exemplo dessa possibilidade de emaranhamento. Não houve alteração na materialidade dos
vasos, isto é, suas características morfológicas continuam intactas; a função e o uso social é
que foram alterados e emaranhados.
O segundo modo de emaranhamento, denominado material, envolve um processo que
vai além da modificação dos usos sociais de um artefato; a própria materialidade dos objetos
em questão registra em si a amálgama das entidades culturais - modelos mentais que reúnem
as características de determinada cultura - envolvidas nos processos de assimilação e criação.
É também possível considerar o objeto emaranhado como formador de uma terceira entidade,
devido às suas características inovadoras (2012a, p. 51).
A adoção desse novo conceito não apenas elucida questões pouco trabalhadas dentro da
concepção de hibridismo, como também permite que pensemos sobre o grau de dinâmica e
processualidade presente nos contextos de apropriação e interação cultural. Stockhammer
argumenta que
Enquanto muitos estudiosos focalizam na distinção entre o híbrido e outros
fenômenos, defendo que temos que estudar a maneira pela qual o fenômeno
emaranhado conecta, de forma criativa, as entidades anteriormente separadas;
como esses envolvimentos podem ter desempenhado um papel ativo nas
práticas cotidianas e – por fim, nas visões de mundo. Nós temos que estudar
as práticas associadas com o objeto emaranhado, a fim de compreender o seu
significado (s) e função (s) em vez de terminar com a declaração do seu estado
de emaranhamento (2013, p. 17).
Contextualizando com o nosso objeto e tema de pesquisa, o conceito de emaranhamento
será utilizado para compreendermos de forma mais clara a interação cultural presente no espaço
funerário, por meio da análise dos relevos encontrados na Tumba Principal de Kom el-Shoqafa.
42
Faremos menção às ideias de Stockhammer também na análise da arquitetura desse sítio
arqueológico, complementando assim a análise espacial a ser elaborada nos capítulos seguintes.
Ao analisarmos tanto a arquitetura como a iconografia a partir do conceito de emaranhamento,
poderemos levantar hipóteses de interpretação relacionadas à presença da religião e rituais
egípcios na elite de Alexandria durante a época romana, assim como perceberemos o papel do
espaço em possibilitar e registrar a interação das culturas no contexto funerário.
43
CAPÍTULO 2 – ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA
Desde a década de 1980, as ciências humanas têm colocado atenção especial nos estudos
sobre o espaço. Notadamente a geografia humanística, os estudos teóricos da arquitetura e a
arqueologia marcam posição de importância na integração do espaço aos fenômenos históricos
em seus aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos.
A investigação histórica no contexto funerário possui grande potencial de evidenciar a
interação cultural de uma sociedade antiga, uma vez que corresponde, na maioria dos casos, aos
registros arqueológicos disponíveis em maior quantidade e qualidade de conservação. Em
cidades como Alexandria, que contava com uma confluência de variadas tradições, é possível
visualizar como a cultura greco-romana interagiu com os elementos egípcios a partir de uma
análise das estruturas arquitetônicas dos sítios arqueológicos de necrópole. A princípio, faremos
uma discussão teórica acerca do espaço funerário, buscando compreendê-lo de forma completa,
atentando para seus aspectos materiais e simbólicos. Em seguida, abordaremos as
características arquitetônicas gerais das tumbas alexandrinas que datam do período ptolomaico
e romano, finalizando com um enfoque no sítio arqueológico de Kom el-Shoqafa.
2. 1. ESPAÇO FUNERÁRIO: PREMISSAS, REFLEXÕES E DEFINIÇÕES
Planejado em vida, destinado à morte. Praticado por vivos e mortos. A experiência
humana diante da morte, fenômeno implacável para todos os seres vivos, imprime marcas
visíveis no espaço. As sociedades, desde os seus primórdios, buscaram diferenciar o espaço
escolhido como última morada daqueles que partiram. Essa diferenciação se deu, obviamente,
de formas específicas quanto às culturas e ao tempo.
Falar do espaço funerário requer compreender sua dimensão sagrada para os indivíduos
e para a sociedade, visto que a morte traz à tona as crenças, cultos e rituais ligados ao fim da
vida. Ao pensarmos na questão do sagrado no espaço, as ideias de Mircea Eliade oriundas de
sua obra Sagrado e Profano (1957) serão nosso ponto de partida, com as devidas ressalvas e
críticas ao autor. Consideramos suas ideias pertinentes por mostrarem a relação entre sagrado
e espaço por um viés fenomenológico, todavia, algumas de suas ideias foram superadas ou
complementadas com os estudos da geografia, antropologia e arqueologia, por exemplo. Ao
perceber a relação entre experiência religiosa e espaço, Mircea Eliade influenciou os estudos
44
que vieram a se desenvolver ao longo da segunda metade do século XX e que ainda estão em
amplo debate nos dias atuais.
A manifestação do divino, ou no termo proposto por Eliade, a hierofania, consagra o espaço
em que se realiza. A partir disso, o espaço ganha um ponto fixo, ou centro, e tem sua fundação
ontológica. Ao pensarmos no contexto funerário, a hierofania está relacionada com os rituais
que buscam trazer o sagrado diante do fenômeno da morte. A ideia de experiência religiosa
como marcador de diferença entre espaços é pertinente; pois ao pensarmos no espaço funerário,
a experiência religiosa dos ritos de passagem produz marcações profundas no espaço, muitas
vezes visíveis por meio da cultura material.
A experiência com o sagrado e sua manifestação no espaço também ocorre no meio
funerário, envolvendo deidades funerárias e deixando marcas de profunda diferenciação no
ambiente destinado aos mortos. Eliade pontua que “[...] todos os símbolos e rituais concernentes
aos templos, às cidades e às casas derivam, em última instância, da experiência primária do
espaço sagrado.” (1992, p. 34). Percebemos, portanto, uma relação estreita entre símbolos e
ritualizações para consagrar um espaço: a partir de tais elementos, o sagrado se manifesta aos
homens e diferencia o ambiente ao seu redor.
Um ponto de crítica pertinente às ideias de Eliade está no universalismo almejado na
obra citada, havendo uma busca recorrente do autor em constatar padrões de repetição de
comportamentos e ideias religiosas em diferentes lugares e cronologias. Gil Filho traz críticas
pertinentes em relação a essa postura, que se sustentava na noção de arquétipo, sob influência
de Carl Jung:
Para Eliade, [...] os simbolismos de centro do mundo e os simbolismos celestes
de fertilidade assentam-se em um padrão arquetípico que fundamenta o
conceito de repetição. [...] Ao atribuir uma base uniforme de edificação dos
atos simbólicos, Eliade apresenta a possibilidade de uma essência uníssona do
fenômeno religioso. [...] A nossa crítica ao uso do conceito de arquétipo na
análise da religião refere-se ao fato de estarmos creditando ao mito a
configuração única de uma reminiscência da psique, e não de atos tecidos e
exercidos na trama histórica. [...] Nas sociedades complexas, a religião seria
uma variável pertinente na estruturação das relações sociais. Então, o ponto
de convergência e a comparação do estudo de diferentes tradições religiosas
estariam muito mais atinentes ao seu caráter histórico contextualizado do que
propriamente a uma essência arquetípica (2008, p. 18-19).
Logo, é preciso abandonar as perspectivas universalizantes ao se estudar a dimensão do
sagrado, colocando-a em um contexto histórico e atentando sobre as influências da sociedade
em sua temporalidade.
45
Dentro de uma perspectiva fenomenológica, o geógrafo Yi-Fu Tuan reúne ideias
interessantes acerca do espaço, retomando, de certa forma, as ideias de Eliade no que diz
respeito à experiência do homem no espaço, mas abandonando as ideias arquetípicas. Pensando
no nosso objeto de estudo, os locais destinados às práticas funerárias costumam apresentar uma
organização e uma disposição dada pela ação humana; e mais ainda; esses locais são dotados
de uma carga de experiências que envolvem as emoções, os sentimentos e a sensorialidade dos
indivíduos. Podemos refletir sobre esses espaços a partir dos conceitos de espaço e lugar.
Segundo Tuan,
O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida
que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. [...] As ideias de “espaço” e
“lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir da segurança e
estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça
do espaço, e vice-versa. Além disso, se pensamos no espaço como algo que
permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna
possível que localização se transforme em lugar (2013, p.14).
Tais conceitos são inter-relacionados e ligados à noção de experiência. O autor define
essa categoria de forma abrangente, compreendendo as diferentes maneiras pelas quais os
indivíduos constroem e conhecem a realidade. Essa experiência pode ser simples e direta,
envolvendo os sentidos sensoriais como a visão, o olfato, o tato, mas também pode acontecer
de forma indireta e conceitual, mediada pelos símbolos (2013, p. 14-17). As dimensões da
temporalidade, cultura e da sociedade são essenciais para se compreender o peso da experiência
nos espaços e nos indivíduos.
Trazendo essas reflexões para o nosso recorte temático do espaço funerário,
encontramos alguns pontos de convergência com o pensamento de Tuan, que se mostram
interessantes à nossa proposta de estudo. O espaço funerário traz consigo as noções de
experiência e afetividade; além disso, ele marca um ponto fixo no espaço de uma comunidade
ou grupo social, bem como representa um ponto fixo para aqueles entes mais próximos o morto.
Dessa forma, o espaço funerário pode ser visto como um lugar. Ele possui um caráter de
estabilidade e é composto pelas relações afetivas e de memória dos vivos para os mortos.
É preciso destacar o papel do espaço físico e da materialidade ao pensarmos sobre a
relação entre homem e espaço. A experiência humana no espaço acontece, inevitavelmente, por
meio da materialidade, dimensão que deve ser levada em consideração ao nos debruçarmos
sobre o contexto funerário: seja pela sua própria corporalidade, seja pela ação direta no espaço.
A espécie humana tem manipulado e modificado os ambientes em que se estabelece. No âmbito
46
funerário, as sociedades antigas apresentaram atenção especial quanto à diferenciação do local
que abriga os falecidos, havendo muitas vezes elaboradas construções dedicadas aos mortos.
O ato de construir, ligado à manipulação do meio físico, é permeado pelo conhecimento
e é dotado de uma dimensão simbólica e reflexiva. Os ambientes construídos trazem
intrinsecamente os valores, ideias e visões de mundo de uma sociedade em seu tempo: a
arquitetura é um produto sociocultural e histórico por excelência. Os vestígios materiais das
construções, deixados pelas sociedades pretéritas, podem ser importantes fontes históricas; os
indivíduos enquanto agentes históricos estão sempre ligados à uma dimensão espacial e
temporal. Como já ressaltamos previamente, a arqueologia e os estudos teóricos da arquitetura
contribuem de forma crucial no estudo dos ambientes construídos do passado. Aldrovandi
(2009, p. 13) afirma que
[...] A arqueologia do espaço construído busca justamente analisar e
interpretar esses componentes que permaneceram no registro material. Os
remanescentes físicos dos usos e costumes das sociedades passadas, que
ficaram impressos na forma de edificações, se pensarmos num contexto
delimitado, ou de assentamentos inteiros e, é claro, nas cidades – objetos e
pontos focais das principais abordagens sobre espaço construído
desenvolvidas nas últimas décadas. Assim, a análise espacial em Arqueologia
abrange desde as relações entre os cômodos de uma habitação, o uso dos
espaços domésticos e, em uma perspectiva mais ampla, os espaços funcionais
das cidades, sejam estes cívicos ou sagrados [...]
Portanto, a apropriação desse tipo de registro para o estudo do passado permite que se
compreendam as intenções e motivações do homem ao organizar o espaço habitado, construído
e praticado. Não somente palco das ações dos homens, o espaço é produtor e mediador das
relações sociais que nele acontecem. Mais ainda, o espaço construído retém memórias, propaga
ideologias e demarca diferenças sociais; não havendo, portanto, neutralidade nesse campo. Os
arqueólogos Parker-Pearson e Richards (1994, p. 3-4) consideram que “os ambientes
construídos existem em termos de ações e significados, um espaço existencial que não é tanto
objeto externo nem uma experiência interna”. Para esses estudiosos, o espaço pode ser definido
como uma concretização do espaço existencial, ele torna visível e conserva essa visibilidade
social. A partir de um espaço indiferenciado, ele é categorizado e nomeado, transformado em
local delimitado e marcado. O espaço deve ser entendido sempre pela ação vinculada a ele,
como podemos perceber nas palavras dos autores:
[...] Espaço é prática das ações cotidianas; ele também é símbolo, e nós
podemos conceituar a arquitetura como uma tecnologia simbólica. Os
significados que são dados aos lugares e à ordem do espaço não são fixos ou
47
invariáveis, mas devem ser invocados no contexto da prática e do uso
recorrente. Os significados somente são aderidos ao espaço por meio da
atividade humana. [...] A relação entre a forma do espaço e a agência humana
é mediada por significados. Pessoas dão significados ao ambiente físico de
forma ativa, e então agem de acordo com esses significados (1994, p. 3-4).
Ao tomarmos a arquitetura como tecnologia simbólica, reconhecemos o caráter
simbólico e funcional que as construções apresentam de forma simultânea, que podem ser
observadas nas residências, templos, santuários e tumbas. O significado do espaço construído
está intimamente ligado à prática e ao uso recorrente, estando a sacralidade do espaço
relacionada aos rituais que nele são praticados. As formas arquitetônicas dão acesso à dimensão
simbólica intencionada pelos indivíduos, que constroem e praticam as mais variadas ações
nesse ambiente.
Pensando no contexto funerário, os rituais garantem a função e significado do espaço
destinado aos mortos, sendo elementos constituintes da prática e da experiência vinculadas a
esse espaço. Nesse sentido, os rituais possuem uma forte conexão com as formas arquitetônicas,
visto que elas funcionam como a tecnologia necessária para se atingir o objetivo do ritual –
entendido por nós como pertencente a uma dimensão simbólica. Jas Elsner (2012, p. 3) auxilia
nossa linha de raciocínio, ao afirmar que
A questão da arquitetura é um caso especial do tema do ritual e da arte, pois
se trata da orquestração do espaço (performativo) – os quadros dentro dos
quais as pessoas eram construídas como sujeitos rituais – em oposição aos
artefatos específicos usados no ritual. Em geral, enquanto os artefatos
ritualísticos são frequentemente manipulados por corpos, o caso específico da
arquitetura – juntamente com as topografias sagradas de grande escala –
relaciona-se com o cercamento de corpos dentro de um espaço pelo menos
potencialmente e ocasionalmente reservado para ação ritual. Além disso, na
medida em que a arquitetura é um convite e um anúncio do espaço sagrado,
ela serve uma função material análoga a algumas qualidades do ritual em si.
Notavelmente, na medida em que o ritual é sobre a liminaridade e a articulação
das fronteiras entre o sagrado e o profano, a arquitetura é potencialmente uma
das suas supremas formulações materiais.
Logo, fica visível a forte relação entre arquitetura e ritual para se pensar na sacralidade
do espaço. Para obtermos claridade nesse quesito, é necessário que entendamos o ritual
enquanto um conceito ou categoria aplicável em nossa investigação. Desde a década de 1990,
antropólogos, historiadores, cientistas da religião e arqueólogos têm debatido acerca da questão
ritualística, havendo vários pontos de vista teóricos e abordagens.
48
Não existe consenso ou visão hegemônica nos estudos sobre ritual, como constatou
Catherine Bell (1992, 1997). Essa autora afirma que o ritual se trata de “uma construção
histórica e cultural que tem sido ostensivamente utilizada para diferenciar vários estilos e graus
de religiosidade, racionalidade e determinismo cultural” (1997, p. XI). Bell entende o ritual
como um meio sociocultural complexo e construído a partir de tradições, exigências e auto-
expressão; ele é entendido para encenar vários papéis e comunicar uma rica densidade de
mensagens e atitudes pré-determinadas. O ritual, portanto, evocaria as relações entre indivíduos
e as forças produtoras de poder, autoridade e valor (1997, p. XII). Assim, o ritual pode tanto
estar ligado à esfera religiosa ou sagrada, como também pode estar envolvido na trama social e
política de uma sociedade.
A autora ainda pontua que existem características inerentes aos rituais, que se
apresentam quase sempre de forma contínua: formalismo, tradicionalismo, invariância,
governança de regras, simbolismo sacro e performance. Os rituais tendem a acontecer sob um
decoro; buscam retomar tradições transmitidas pelo passado; apresentam ações marcadas pela
repetição e controle precisos e estão regidos por um conjunto de regras compartilhadas pelo
grupo social inserido no ritual. Símbolos sagrados – variando entre objetos, alimentos,
indumentária e até mesmo espaços, que evocam e expressam valores e ideias transcendentes –
são sacralizados na ação ritual, ao mesmo tempo que constituem partes geradoras dessa prática.
Por fim, o caráter performático da ação ritual está no apelo à experiência sensorial e cognitiva
dos participantes (1997, p. 139-161). Essas características são úteis para identificação e
classificação da atividade ritualística, sobretudo quando estamos lidando com fontes materiais.
Dentro das disciplinas que lidam com a cultura material, escolhemos seguir alguns
autores da arqueologia que se basearam em diversos estudos sobre ritual e que procuraram fazer
a conexão entre esse tipo de atividade e as fontes arqueológicas. Evangelos Kyriakidis (2007)
argumenta que apesar de ser difícil reconstruir a ação por meio de vestígios arqueológicos, o
pesquisador pode inferir a prática ritual a partir da dimensão cognitiva, que pode deixar marcas
físicas e, portanto, materiais.
Kyriakidis define ritual enquanto uma categoria ética: o ritual se refere a um conjunto
de atividades compostas de ações intencionadas de caráter especial, que são específicas a um
determinado grupo de indivíduos (2007, p. 294). Esse autor entende que as práticas religiosas
podem ser tidas como práticas ritualísticas, de forma geral, e enxerga uma relação estreita entre
a identidade de um grupo e as práticas rituais. Ao compartilharem da mesma experiência
49
ritualística, o grupo envolvido nessa prática demarcaria algum tipo de identidade, visto que a
prática ritual é capaz de criar laços identitários (2007, p.295). Esse autor argumenta que os
rituais são compostos de ações cristalizadas, seguindo os preceitos de Bell (1997) trabalhados
anteriormente por nós. Mais ainda, Kyriakidis enxerga uma relação íntima entre ritual,
paisagem e sistema de signos, quando afirma que:
Os rituais são sistemas de signos. De fato, os rituais - especialmente os
comunitários - criam um espaço cultural, um topos, muito parecido com
monumentos. Eles podem não afetar a paisagem visualmente, mas
certamente afetam cognitivamente. Rituais, literalmente, possuem um lugar;
eles são realizados em um local específico e estão inscritos nas memórias
dos participantes. Esses rituais que se repetem renovam esse espaço
cognitivo na memória. A mudança cognitiva da paisagem tem uma
infinidade de efeitos: sentimental, perceptivo, associativo, territorial,
histórico e assim por diante. [...]. O ritual define o espaço cognitivo em
grande escala, mas também define o espaço em pequena escala (por
exemplo, dentro de um edifício). Se o ritual é uma prática que muitas vezes
é constituída de uma série repetida de ações, então cada uma dessas ações
geralmente ocorre em uma localização específica em microescala (como o
púlpito de uma igreja ou uma mesa sacrificial). O ritual dá sentido, ou
melhor, enriquece o significado das várias características do local onde
ocorre (2007, p. 299).
Dessa forma, percebemos que existe uma dimensão espacial dentro da prática
ritualística, inerente tanto aos espaços físicos –sejam naturais ou construídos – quanto aos
espaços cognitivos, ligados ao pensamento e à memória. Elsner (2012, p.4-5) traz o pensamento
similar ao de Kyriakidis, quando aponta que nas disciplinas que lidam com documentação
material, em contraponto com a antropologia, o ritual não pode ser empiricamente observável,
sendo assim muito mais uma inferência a partir das evidências encontradas e que podem ser
mescladas para sustentar a ideia de ritual. Para esse autor, as disciplinas como arqueologia e
história adotam ritual como uma categoria cognitiva, na medida em que se busca esboçar a
dimensão do modo de pensar a partir das inferências sobre os vestígios materiais.
Colin Renfrew (1994, 2012) definiu como escopo da arqueologia cognitiva a
possibilidade de se chegar às formas de pensamento dos indivíduos do passado, a partir dos
registros materiais, tendo como base a capacidade humana de criar e usar símbolos. Estes são
entendidos como os meios pelos quais os homens comunicam e transmitem significados,
apreendendo assim a realidade em que estão inseridos. Ao entender como os seres humanos
criaram e organizaram os símbolos, o arqueólogo pode fazer inferência sobre os processos
cognitivos que levaram as sociedades a desenvolver seus traços culturais.
50
Os símbolos são empregados em contextos e sob intenções diversas, estando a dimensão
sagrada ou sobrenatural intimamente relacionada com símbolos. Segundo Renfrew e Bahn,
(2012, p. 390), eles são mediadores da esfera humana com o sobrenatural e transcendente. Ao
utilizar símbolos que estão associados à dimensão sagrada e transcendental, os indivíduos
demarcam a prática religiosa; isto é, os rituais sagrados; das demais que não estão
necessariamente vinculadas a um aspecto religioso ou sagrado.
Para que aconteçam, os rituais demandam uma diferenciação no espaço, sendo a
arquitetura um componente de grande importância; precisam demarcar os limites entre o mundo
dos homens e o Outro mundo; exigem a presença das deidades, que é alcançada através dos
símbolos materializado nas imagens, que podem ser simples ou tridimensionais; por fim,
demandam a participação e oferendas dos participantes às deidades, acontecendo por meio de
performances, banquetes e sacrifícios (BAHN; RENFREW, 2012, p. 404). Os marcadores do
ritual que podem ser identificados espaço estão ligados à ideia de repetição de símbolos, ou
redundância, havendo também o uso de imagens das deidades envolvidas no ritual. Assim,
verificamos a importância crucial da arquitetura e da iconografia, dotados de dimensão
simbólica, para que o ambiente se torne adequado para ser palco do ritual e permitir o contato
dos homens com o sagrado.
Para que possamos inferir sobre as práticas ligadas ao espaço a partir de sua arquitetura,
devemos atentar para o potencial comunicativo que os ambientes construídos possuíram para
os seus usuários, e que ainda pode ser apreendido pelos pesquisadores. Em outras palavras, os
marcadores do ritual identificados e dispostos no espaço são capazes de comunicar os
significados e intenções, assim como podem denotar as atividades exercidas nesse ambiente. A
obra do arquiteto Amos Rapoport, The meaning of the Built Environment: A non verbal
communication approach, publicada em 1990, traz a abordagem da comunicação não-verbal
para o estudo da arquitetura e dos ambientes construídos, nos auxiliando com conceitos
pertinentes na análise do espaço investigado nessa pesquisa.
Segundo Rapoport (1990, p. 19) a compreensão do ambiente construído se dá em dois
níveis: o perceptual e o associativo. A descrição perceptual identifica os itens físicos e os
elementos perceptíveis aos usuários, enquanto a descrição associativa está relacionada às
diferentes associações feitas pelos usuários com os elementos físicos. O comportamento social
de um ambiente construído é resultado da relação entre a percepção dos usuários e as
associações atribuídas a essa percepção; o ambiente construído fornece estímulos, que geram
51
as ações dos indivíduos que utilizam esse espaço. Essa perspectiva é bastante interessante ao
pensarmos na prática exercida no espaço funerário, isto é, os rituais, que operam na ação, no
pensamento e no comportamento dos indivíduos.
A comunicação não-verbal do espaço pode ser apreendida a partir da identificação e
interpretação dos elementos dispostos no espaço. Rapoport (1990, p. 86-97) estipulou três
grupos ou categorias desses elementos:
1. Elementos fixos, que consistem na constituição básica da arquitetura, como paredes,
pisos, tetos; são considerados como fixos por não apresentarem mudança ou
mudarem de forma muito rara e lenta. A maneira pela qual esses elementos são
organizados espacialmente, bem como o tamanho, sequência, localização e arranjo
indicam e comunicam significado, que influencia no comportamento do usuário
inserido nesse espaço. Os esquemas culturais são chave na compreensão da
organização desses elementos, que geralmente são conjugados a outros tipos de
elemento na significação do espaço.
2. Elementos semifixos, que consistem no aparato de mobiliária, como móveis, vasos,
plantas, quadros e outros tipos de mobília. Eles apresentam um grau de mudança
maior que os elementos fixos, assim como podem exibir um grau maior de
personalização. A partir desses elementos é possível diferenciar ambientes
construídos que apresentam estrutura arquitetônica em comum. Rapoport traz o
exemplo da cidade antiga de Çatal Hüyük (sítio arqueológico encontrado nas
proximidades da atual Turquia), onde a distinção entre moradias e locais de culto se
deu a partir da disposição de elementos semifixos (1990, p. 90).
3. Elementos não-fixos, se referem aos indivíduos que ocupam o ambiente construído,
assim como os seus comportamentos, posições, posturas, expressões faciais e
relações espaciais desenvolvidas nesse espaço.
Algumas outras características também estão envolvidas na comunicação verbal, como
altura, cor e redundância. Algumas dessas categorias serão utilizadas na nossa análise do espaço
funerário, visto que permitem a identificação e intepretação dos elementos arquitetônicos que
possuem diferentes naturezas e funções. Mais ainda, podemos tomar tais elementos como
constituintes ou vestígios das atividades rituais desempenhadas no ambiente construído,
articulando assim a ideia de comunicação não-verbal com a diferenciação do espaço a partir do
52
ritual. Retomaremos mais sobre o assunto ao analisarmos diretamente as nossas fontes, ao final
deste capítulo e no próximo.
Nessa breve discussão teórica, buscamos apontar a existência de uma circularidade entre
ritual e o espaço construído: o primeiro exige que haja uma diferenciação no espaço para que
ele aconteça, na medida em que o segundo gera estímulos ligados à atividade ritual, dando
suporte, significado e completude. Podemos pensar que o ritual e o espaço construído para esse
tipo de atividade – o espaço funerário por excelência – funcionam em um esquema de causa e
consequência. A abordagem da comunicação não-verbal permitirá que façamos a inferência da
atividade ritual no espaço funerário, entendendo que esse espaço integrava a prática ritualística
e comunicava os valores e ideias religiosas do grupo que o utilizava.
Para analisarmos o nosso objeto de pesquisa, a Tumba Principal de Kom el-Shoqafa,
será necessário conhecermos também de forma geral as características comuns e as diferenças
das tumbas alexandrinas, com as devidas especificações temporais quanto ao período
ptolomaico. A partir de fotografias, faremos comparações a fim de entender as possíveis
influências das tradições helênicas e egípcias presentes nos sítios de necrópole de Alexandria.
2.2. TUMBAS ALEXANDRINAS: CARACTERÍSTICAS GERAIS E
CLASSIFICAÇÕES
As tumbas encontradas em Alexandria não apresentam hegemonia da arquitetura e da
iconografia funerária grega, visto que a influência da religião egípcia – principalmente nas
crenças relacionadas à vida após a morte – é possível de ser observada nos achados
arqueológicos. Essa associação de elementos egípcios a uma base helênica é observada,
sobretudo, nos dois últimos séculos do período ptolomaico e se intensifica no período romano,
tanto em Alexandria como na chôra, o restante do território do Egito.
Segundo Susan Venit (2002, p. 2), as tumbas alexandrinas que chegaram até o presente
pertenceram majoritariamente a pessoas que buscavam uma identidade grega,
independentemente de suas origens ancestrais apresentarem geografias distintas. Esses sítios
arqueológicos apresentam um grande nível de preservação, sendo fontes inestimáveis para o
conhecimento da cidade no que diz respeito a sua população e as culturas que ali passaram.
53
Figura 3. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período ptolomaico
Fonte: MCKENZIE, Judith. 2007, p. 26
Figura 4. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período romano
Marcação no sítio de Kom el-Shoqafa feita por nós. Fonte: MCKENZIE, Judith. 2007, p. 26
54
Figura 5. Mapa atual de Alexandria com todos os sítios de necrópole já escavados
Marcação no sítio de Kom el-Shoqafa feita por nós. Fonte: VENIT, Susan. 2002, p. 2.
Nos mapas acima, que retratam diferentes épocas (período ptolomaico e romano),
podemos perceber que Alexandria contava com duas grandes áreas ou regiões dedicadas à
construção de tumbas, que consistiam nas margens oriental e ocidental. O sítio onde a tumba
que pesquisamos está localizada, em Kom el-Shoqafa, ocupa uma região próxima da necrópole
ocidental. Trataremos com mais detalhes desse sítio na terceira parte deste capítulo, ao abordar
mais especificamente sobre tumba desse estudo.
Alexandria apresentava diferentes práticas funerárias relacionadas ao corpo: a
mumificação, costume milenar do Egito, pode ser constatado a partir das evidências
arqueológicas dos sítios de necrópole dos últimos dois séculos do período ptolomaico, seja na
necrópole oriental em Hadra (sítio de Ezbet el-Makhlouf); ou na parte ocidental da cidade; no
sítio de Gabbari, na Ilha de Faros (sítio de Ras el-Tin e Anfushy) e ao sul no sítio de Kom el-
Shoqafa (VENIT, 2002, p. 11). Cremação e inumação, costumes funerários provenientes da
Macedônia, Grécia e Roma, são observados em todos os sítios de necrópole de Alexandria e
tanto na época ptolomaica quanto romana. Essa diversidade de práticas funerárias também
reflete a diversidade arquitetônica das tumbas alexandrinas, que apresentam aspectos comuns e
características singulares entre si.
55
A fim de entender os rituais funerários de forma mais geral, Susan Venit (2002, p. 11)
baseia seu pensamento na obra de Arnold Van Gennep, Os ritos de passagem, de 1908, que
determinou uma estrutura de três etapas para os ritos de transição. A primeira etapa consiste na
separação e preparação do corpo; o morto é separado do seu grupo social. A segunda trata do
percurso até a tumba, em um processo de transição, uma liminaridade. O terceiro e último
estágio consiste na deposição do corpo na tumba, havendo assim uma integração do morto a
sua realidade no além. Essa estrutura tripartite pode ser observada na cosmovisão egípcia e
helênica; havendo uma importância crucial nos locais onde o morto deveria ser destinado pela
última vez.
Susan Venit (2002, p. 14) postulou que as tumbas alexandrinas, sendo concebidas com
bases culturais tanto helênica quanto egípcia, configuravam áreas liminares que permitiam o
contato dos vivos com os seus mortos, provendo suporte para a vida no além: em ambas as
culturas as tumbas provêm recursos para o morto garantir sua existência, além da função
primária de guardar e preservar o corpo ou restos mortais dos falecidos. Pensando no contexto
do Império Romano, as tumbas estavam relacionadas a dois fatores principais: a sobrevivência
da memória dos entes falecidos nos grupos familiares e a assistência dada ao morto por meio
de oferendas, banquetes e cerimônias funerárias, que tinham como objetivo renovar a existência
dos espíritos no além (TOYNBEE, 1996, p. 62). Assim como no mundo helênico, o costume
funerário de banquetes e refeições no ambiente funerário também pode ser visto no contexto
imperial romano em diversas províncias, como é no caso de Alexandria.
De forma geral, as tumbas alexandrinas estavam ligadas à função de abrigo dos mortos
e lugar de veneração e memória dos falecidos para os vivos. Isso traz à tona aspectos comuns
da cultura egípcia, greco-macedônica e romana, ao mesmo tempo que diverge de tumbas
egípcias do período faraônico e de tumbas gregas e romanas de cronologias anteriores e
geografias distintas. Assim, existe uma confluência e circularidade de inspirações, inovações e
peculiaridades na arquitetura e decoração das tumbas de Alexandria.
Apesar de tratar especificamente das tumbas do período faraônico, Assmann (2004)
teceu ideias sobre o espaço funerário dos hipogeus egípcios que podem ser observados ou
contrapostos com as tumbas alexandrinas. Ainda que estivessem assentadas em bases da
arquitetura e religião greco-macedônica, as tumbas alexandrinas também apresentam influência
de ideias e características egípcias. Para este autor (2004, p. 47-49), a tumba egípcia estava
associada à memória e representação biográfica do morto, visto que a tumba deveria ser visitada
56
na posterioridade. Nesse sentido, tempos um ponto em comum com a tradição greco-romana,
que também dedicava a tumba às funções memorialísticas. Nas tumbas egípcias, havia noções
de secretismo, inacessibilidade, isolamento e ocultamento, fontes de sacralidade para esse
espaço. O paradoxo entre essas características e a necessidade de visita nas tumbas foi sendo
resolvido, ao longo da história egípcia, através da arquitetura: as capelas funerárias, a partir do
Novo Império, trouxeram ao alcance dos vivos as estátuas de oferenda e de culto, provendo
mais uma função às tumbas como lugar de culto aos deuses e aos mortos.
Nas tumbas alexandrinas também podemos observar essas noções de sacralidade ligadas
às ideias acima: as câmaras funerárias dos hipogeus tendem a ser o local mais interno ou
afastado, juntamente aos loculi14, colocados geralmente no lado mais oposto à entrada.
Contudo, não se observam as mesmas estruturas das tumbas egípcias empregadas na
manutenção da ordem do espaço funerário, ao pensarmos comparativamente com os hipogeus
alexandrinos. Um bom exemplo está no uso de fórmulas mágicas e encantamentos, escritos nas
paredes e presente também em alguns objetos de dentro das tumbas egípcias, que possuíam
função de selar ou proteger aquele espaço; não foram encontradas configurações semelhantes
nas tumbas de Alexandria. É exatamente na questão arquitetônica que observaremos as
diferenças mais visíveis entre o período faraônico e as tumbas alexandrinas, que irão apresentar
diferentes configurações espaciais.
Janos Fedak (1990, p. 130) argumenta que, provavelmente no início do período
ptolomaico, os macedônicos que habitaram Alexandria enterraram seus mortos seguindo o
costume de sua herança cultural, mas também havendo contato e interação entre as tradições
grega e egípcia na arquitetura funerária da cidade. Segundo o autor, as influências na
arquitetura das tumbas alexandrinas são provenientes da Macedônia, de cidades de colonização
grega da costa do Mediterrâneo na região da Ásia Menor; ao leste, e da cidade de Cirene, a
oeste; em ambas as localidades são encontradas tumbas cavadas diretamente na rocha, contendo
câmaras ou salas dispostas em volta de uma corte ou pátio, chamado também de peristilo
(VENIT, 2002, p. 14).
Pela sua monumentalidade arquitetônica, as tumbas privadas de Alexandria foram
destinadas ao enterramento de gerações de famílias, e que a partir do meio do século III a.C..,
também serviram para sepultamentos comunais e coletivos de membros de guildas
14 Susan Venit (2002, p. 16) define os loculi como nichos cavados na rocha, longos e estreitos, onde os mortos
eram depositados. Essas estruturas são observadas nos sítios de necrópole mais antigos de Alexandria, assim como
são observados em demais regiões do Mediterrâneo em tempos posteriores, como no período romano.
57
profissionais, associações religiosas ou outros tipos de grupos ou seitas (VENIT, 2002, p. 21).
Susan Venit (2002, p. 15) afirma que existe uma clara inspiração nos modelos arquitetônicos
do período ptolomaico nas tumbas do período romano; entretanto, é necessário pontuar e
destacar as diferenças entre ambos os períodos. De forma comum, os hipogeus de ambos os
períodos são acessados por escadas cavadas na rocha e possuem uma abertura para o céu, onde
provavelmente haveria alguma construção de capela ao nível do solo. A abertura deveria
fornecer luz e ventilação ao interior da tumba, assim como permitia a fumaça dos rituais que
envolvia o uso de fogo; como também era o acesso às oferendas fornecidas nos serviços
funerários e rituais ligados à memória dos mortos. No período romano, o uso de cisternas ou
poços junto ao complexo funerário tornou mais eficiente a provisão de água, elemento
comumente associado aos rituais.
As câmaras funerárias das tumbas do período ptolomaico apresentam influência e traços
das tumbas macedônicas, como o uso de tronos e de kliné, elemento mobiliário tipicamente
grego. Tanto no período ptolomaico como no período romano, verifica-se o uso de nichos
funerários estreitos conhecidos como loculi. No período romano, o kliné é substituído pelos
sarcófagos cavados em pedra acoplados aos nichos arqueados, denominados arcosolium. As
tumbas subterrâneas contam com articulação das salas e instalações funerárias por meio de
colunas e corredores e cavados na rocha, que costumam ser adornados e decorados seguindo a
tradição helênica, mas também conta com elementos iconográficos egípcios. É exatamente o
uso e a apropriação de diferentes tradições culturais no programa decorativo das tumbas
alexandrinas que as torna tão peculiares.
A origem dos loculi é ainda incerta, havendo hipóteses ligadas à Fenícia e a Israel, por
exemplo. Na visão de Venit (2002, p. 16-17) os loculi alexandrinos são produtos da influência
egípcia, em que é possível atestar o uso de anexos funerários em formato de nicho cavados na
rocha, a partir do Período Tardio, na necrópole de Saqqara, onde outrora se localizava a cidade
de Mênfis. Gregos e macedônicos já conheciam e ocupavam Mênfis antes do período
ptolomaico; os sítios de necrópole para animais sagrados - como o touro associado a Ápis,
babuínos e íbis associados a Toth – contam com estruturas muito semelhantes aos loculi
observados em Alexandria. Concordamos com a autora na premissa de que Mênfis foi, muito
provavelmente, uma influência mais forte e presente para Alexandria do que demais regiões ao
longo do Mediterrâneo. Dessa forma, tomamos aqui o uso de loculi nas tumbas alexandrinas
como um traço indicativo da influência egípcia presente nos costumes funerários observados
nessa cidade.
58
Por sua vez, as câmaras funerárias das tumbas alexandrinas trazem características muito
semelhantes às tumbas macedônicas, principalmente no uso de leitos funerários, conhecidos no
mundo grego como kliné. Nas tumbas macedônicas, os klinai costumavam ser produzidos a
partir de material rochoso, e seu uso no meio funerário provém da tradição grega, datando
provavelmente do século VI a.C. O uso de klinai, posicionados ao longo das paredes, formando
um retângulo aberto, compõem o triclínio, largamente utilizado em contextos de banquetes
domésticos e funerários no mundo romano (KURTZ; BOARDMAN, 1971, p. 271).
Susan Venit (2015) denomina esse uso simultâneo das tradições helênica-macedônica e
egípcias nas tumbas alexandrinas de bilinguismo, em que diferentes culturas sobrevivem de
forma simultânea sem haver necessariamente processos de hibridização. Para a autora,
O intercâmbio de material visual que ocorre nos túmulos neste volume é
altamente reflexivo e proposital, e não meramente um produto do casamento
ou do acaso, e a interseção das ideias gregas e romanas é aquela em que a
herança de cada grupo pode ser facilmente diferenciada, em vez da fusão que
o hibridismo implica (2015, p. 3).
No nosso ponto de vista, as tumbas alexandrinas apresentam diferentes níveis de
articulação das tradições culturais, ao longo do período ptolomaico e romano. Em alguns sítios
arqueológicos, a integração das tradições egípcia e helênica-macedônica se apresenta de forma
muito mais intensa, indo além da ideia de bilinguismo. É possível observar tal fenômeno
durante no período romano. Nessa época, percebemos que as tradições não apenas aparecem de
forma simultânea ou separada, mas apresentam considerado grau de mescla, combinação e
criação de algo novo. Denominamos esse processo de integração das tradições de
emaranhamento, conforme foi explicado no capítulo anterior. Na breve exposição de algumas
tumbas alexandrinas que vem a seguir, atentamos à visualização do emaranhamento em torno
do ambiente funerário, utilizando para isso fotografias das estruturas arquitetônicas, desenhos
arqueológicos e plantas baixas dos sítios escavados.
Os sítios mais antigos de necrópole em Alexandria são os de Shabti e Moustafa Pasha,
localizados na porção oriental da cidade. No sítio de Shabti encontra-se o único vestígio
material arquitetônico que diverge do padrão observado nas tumbas de Alexandria, denominado
de Alabaster Tomb, ou Tumba de Alabastro em uma tradução livre. Consiste em uma câmara
retangular, construída ao nível do chão e que provavelmente fazia parte de um complexo
funerário palaciano, onde possivelmente estiveram sepultados os membros da realeza
ptolomaica do século III a.C. A configuração arquitetônica desse espaço é mais próxima da
59
tradição macedônica de tumbas construídas na superfície, traço que diverge do restante das
tumbas encontradas em Alexandria ainda no período ptolomaico e posteriormente no período
romano, que se apresentam como grandes hipogeus: complexos funerários construídos
subterraneamente.
Figura 6. Alabaster Tomb, visão externa e interna
Fonte: FEDAK, 1990, p. 388.
O sítio arqueológico de Shabti conta também com um hipogeu de proporções
significativas e que possui a datação mais antiga do período ptolomaico, estimada por volta de
280 a.C. (VENIT, 2015, p. 51). É o hipogeu mais antigo encontrado em Alexandria e que
compartilha as características arquitetônicas gerais das tumbas posteriores; ele apresenta
colunas em estilo dórico e jônico, trazendo assim uma tradição grega mais clássica. As câmaras
funerárias contam com a presença de loculi e sarcófagos em formato de kliné, indicando o uso
dessas estruturas arquitetônicas desde cedo na cidade de Alexandria.
Na planta baixa a seguir, percebemos a complexidade do sítio arqueológico, composto
de diversas salas conectadas por corredores e apresentando diferentes funções: o vestíbulo (b),
corte (f) e antessala (d) foram espaços de circulação e uso dos vivos nos rituais ligados aos
mortos, que ocuparam os espaços da câmara funerária (g) e as salas com loculi (e, c). Uma sala
anexa (h), próxima à corte, traz também loculi.
60
Figura 7. Planta baixa do hipogeu “A”, sítio de Shabti, necrópole oriental de Alexandria
Fonte: VENIT, 2015, p. 52.
Figura 8. Planta baixa do hipogeu Moustafa Pasha 1, necrópole oriental de Alexandria
Fonte: VENIT, 2015, p. 54
O sítio de Moustafa Pasha, localizado também na porção oriental da cidade, traz um
complexo de hipogeus com um alto nível de conservação, tendo sua datação por volta da metade
do século III a.C. e sua escavação/restauração datam da primeira metade do século XX (VENIT,
2015, p. 53). O hipogeu de maiores proporções e melhor estado de conservação é denominado
de Moustafa Pasha 1, trazendo estruturas e características similares ao hipogeu A do sítio de
Shabti, como o uso de colunas e pilares em estilo dórico, assim como decoração de frisos e vãos
de porta seguindo a tradição helênica. A planta baixa desse hipogeu (fig. 8) indica um total de
61
dez salas dispostas em volta de um grande pátio, que contava com uma escada de acesso e um
altar posicionado ao centro.
Figura 9. Fachada sul de Moustafa Pasha 1
Fonte: VENIT, 2015, p. 55
Na fachada sul da corte, adornada com frisos, métopas, colunas e vãos de entrada
seguindo o estilo dórico, seis pequenos pedestais são posicionados à frente das portas, havendo
resquícios de quatro esfinges esculpidas em pedra no topo dos pedestais. As esfinges, criaturas
mitológicas presentes tanto na tradição helênica quanto na egípcia, apresentam aqui
características tipicamente egípcias: a cabeça, erguida diante do corpo deitado, possui formato
do toucado real nemés15; elas não apresentam asas como as esfinges gregas. Susan Venit (2002,
p. 56; 2015, p. 55) postula que o uso dessa figura egípcia poderia estar associado à função de
proteção da tumba, assim como traz um aspecto de realeza e poder a uma tumba particular. A
mesma autora interpreta que Moustafa Pasha 1 iniciou o bilinguismo nas tumbas alexandrinas,
ao trazer um elemento egípcio – a esfinge, que existe também no universo helênico, mas com
diferenças – em meio ao conjunto arquitetônico grego do hipogeu. Para esse sítio arqueológico,
visto que a apropriação de símbolos egípcios aparece de forma muito modesta, concordamos
com a interpretação da autora. O processo de integração de elementos egípcios a uma base
religiosa helênica aconteceu de forma paulatina, ainda mais ao tratarmos da religião funerária,
15 Toucado listrado com abas que recaem sobre o peito, usado pelo faraó.
62
aspecto que costuma ser conservador em seus costumes. Por mais que os habitantes de
Alexandria clamassem para si uma identidade grega, a influência egípcia foi permeando as
concepções religiosas concernentes à morte.
A integração de elementos egípcios nas tumbas alexandrinas passou a ser mais intensa
e visível a partir do século I a.C., conforme mostram as evidências dos sítios de necrópole da
Ilha de Faros. Em Ras el-Tin e Anfushy, foram escavados hipogeus contendo decoração
inspirada em motivos egípcios e helênicos, ambas se apresentando de forma mais integrada e
coesa - incluindo a figura de deuses de ambos os panteões - algo até então inédito para a época.
Susan Venit (2002, p. 68) indicou que houve uma tendência no século I, em Alexandria e nas
demais cidades do mundo helenístico, a se voltarem às religiões que ofereciam ideias e visões
mais positivas e afortunadas sobre a vida após a morte. Isso pode justificar a adesão aos
elementos egípcios na arquitetura das tumbas que veremos a seguir.
Figura 10. Planta baixa do sítio de Ras el-Tin, Ilha de Faros, Alexandria
Fonte: VENIT, 2002, p. 69
As escavações em Ras el-Tin aconteceram no início do século XX, em uma primeira
etapa em 1913 e sendo complementada em 1939 e 1940. Devido à erosão e ao desgaste do sítio
arqueológico, muito das estruturas antigas foram comprometidas. A publicação do arqueólogo
Achille Adriani, da década de 1950, trouxe os detalhes desse sítio que nos permitem visualizar
o processo de integração e combinação das tradições culturais no âmbito funerário, acontecendo
no último século antes da era comum. Os hipogeus possuem uma configuração mais linear e
axial do que os outros sítios já mencionados; contando com pátios, loculi e salas pequenas com
63
nichos em formato de kliné. Segundo Susan Venit (2002, p. 69), as tumbas numeradas de 1, 3
e 8 (fig. 10) contêm decoração inspirada tanto na tradição helênica quanto na tradição egípcia.
A decoração dessas tumbas se deu pela técnica de pintura, havendo imagens de deidades
gregas como Héracles e Afrodite, contando também com a representação do touro Ápis coroado
com o disco solar (VENIT, 2002, p. 70-71). Em Ras el-Tin, nota-se o mais antigo uso de nichos
arqueados, os arcosolium, cavados na rocha e geralmente acompanhados de uma estrutura em
forma de kliné, no período ptolomaico; ou de sarcófago, como é observado no período romano.
O desenho abaixo mostra uma estrutura de nicho com kliné, contando com a decoração
quadriculada, que buscava emular faiança egípcia, utilizada como cobertura em algumas
paredes de templos. Nas demais tumbas adjacentes, observa-se o uso desse padrão decorativo.
Figura 11. Tumba 8 de Ras el-Tin, sala contendo o nicho com kliné
Fonte: VENIT, 2015, p. 57
O sítio arqueológico de Anfushy, localizado na porção mais à leste da Ilha de Faros,
também foi escavado na primeira metade do século XX, contando com o trabalho de
arqueólogos italianos responsáveis pelas escavações em outros sítios de Alexandria, como
Evaristo Breccia, Giuseppe Botti e Achille Adriani. O sítio conta com cinco hipogeus
escavados, seguindo o plano linear axial semelhante ao observado em Ras el-Tin, tendo sua
datação na mesma época citada anteriormente, no século I a.C. A figura 10 traz a planta baixa
dos hipogeus encontrados nesse sítio:
64
Figura 12. Planta baixa do sítio de Anfushy, Ilha de Faros, Alexandria
Fonte: VENIT, 2002, p. 74
De forma geral, as tumbas também apresentam decoração pintada, mas aqui avançam
na temática egípcia, trazendo cenas que buscam reproduzir o padrão de arte do período
faraônico. Também apresentam elementos da arquitetura egípcia nos vãos de porta, decoração
das paredes e em naiskos, estruturas esculpidas na rocha que simulam pequenos templos ou
altares, dispostos aqui como portas ou entradas para alguns loculi. A maior singularidade das
tumbas desse sítio arqueológico está no uso de tetos abobadados, traço arquitetônico presente
nas tumbas macedônicas construídas parcialmente abaixo do solo e cobertas com terra.16 Sítios
arqueológicos na região da Macedônia, como os que abrigam a tumba de Vergina e Lefkadia
(fig. 13, página seguinte) , apresentam essa estrutura abobadada de forma mais acentuada
(MILLER, 1982, p. 153).
16 Apesar de haver estruturas abobadadas em tumbas egípcias e em construções mesopotâmicas, a técnica de
construção de abóboda macedônica apresenta estruturas singulares, semelhantes às de Alexandria. Para maiores
informações, cf. TOMLINSON, 1987.
65
Figura 13. Câmara funerária da tumba de Lefkadia, século IV a.C., Macedônia.
Fonte: MILLER, 1982, p. 155
Na foto abaixo, é possível visualizar o vão da porta com os detalhes egipcianizados:
pequenos altares flanqueiam a abertura, semelhantes aos altares com esfinge do complexo de
Moustafa Pasha 1; colunas com padrão quadriculados são dispostas ao lado com capitéis
papiriformes e sustentando um frontão arqueado, apoiado em frisos denticulados. As paredes
trazem o quadriculado egípcio e o teto é pintado com ornamentações também egípcias.
Empereur (2003, p. 44) confirma a ideia de Susan Venit sobre esse quadriculado, que buscava
simular a faiança egípcia.
Figura 14. Sala I da tumba II em Anfushy, Ilha de Faros, Alexandria.
Fonte: VENIT, 2015, p. 58
66
Como observamos a seguir, o pequeno altar naiskos traz também influências
egipcianizadas. Na fotografia a seguir, percebemos o mesmo arranjo de templo egípcio, com
frontão arqueado, frisos denticulados e colunas papiriformes, compondo a fachada deste
pequeno altar que tem como função de ser a porta de um dos loculus encontrados na quinta
tumba do sítio de Anfushy.
Figura 15. Naiskos em loculus da tumba Anfushy V, Ilha de Faros, Alexandria.
Fonte: SAVVOPOULOS, 2011, p. 87
Nos sítios de Anfushy e Ras el Tin, a integração de elementos egípcios na arquitetura
macedônica atingiram um patamar maior do que o observado em Moustafa Pasha, por exemplo,
sendo possível falarmos de um processo de emaranhamento nesses locais. Existem outras
tumbas que demonstram a penetração gradual da tradição egípcia em meio ao programa
arquitetônico e decorativo de bases gregas que compõem as tumbas alexandrinas: a tumba
Ghirghis, a tumba encontrada no Forte de Saleh, ambas localizadas no sítio de Gabbari, assim
como as tumbas da necrópole de Wardian, localizadas próximas aos sítios mencionados
anteriormente e pertencentes ao lado ocidental da cidade de Alexandria. Por não dispormos de
fotografias e outras fontes suficientes desses sítios, limitamo-nos a trazer suas características
comuns descritas por Susan Venit (2002, p. 92-103). Ghirghis e a tumba do Forte Saleh trazem
os elementos comuns nas tumbas de Anfushy, como os naiskos egipcianizados, nichos em
formato de kliné e iconografia com temas egípcios. Na necrópole de Wardian, os hipogeus
apresentam uma configuração diferente do plano axial linear (como observado na Ilha de Faros)
67
ou em forma de peristilo (observado nos hipogeus da necrópole oriental, como em Moustafa
Pasha). A tumba denominada como Saqiya Tomb, conta com murais pintados relativamente
bem conservados, trazendo temas gregos e egípcios em uma complexidade de integração e
interpretação considerável. A datação desse sítio arqueológico é imprecisa: autores divergem
entre o final do século II a.C., últimas décadas do século I a.C. e também há a hipótese de ser
do período cristão, entre os séculos III e IV d.C.
Ao longo dessa breve exposição sobre as tumbas alexandrinas, buscamos identificar
características gerais e peculiaridades observadas nos sítios de necrópole de Alexandria, tendo
foco no recorte cronológico do período ptolomaico. Percebemos que os elementos egípcios
foram gradualmente sendo incorporados no programa decorativo e arquitetônico, seguindo uma
tendência ligada à narrativa egípcia sobre a vida após a morte, de caráter mais positivo em
comparação com à tradição grega. No período romano, as tumbas alexandrinas apresentam uma
integração ainda maior nos programas decorativos e arquitetônicos, o que pode ser entendido
como uma tendência ou tentativa maior de sincretismo religioso no que diz respeito ao contexto
funerário, desembocando no que chamamos de emaranhamento.
Veremos a seguir a descrição, análise e interpretação do espaço funerário da Tumba
Principal de Kom el-Shoqafa, possuindo datação estimada entre o primeiro e o segundo século
da era cristã. Esse local apresenta um claro exemplo de emaranhamento de elementos helênicos,
romanos e egípcios em sua arquitetura e decoração. Estaremos retomando os conceitos teóricos
sobre ritual e comunicação do espaço, trabalhados na primeira parte deste capítulo, a fim de
identificar características importantes sobre o nosso objeto de pesquisa. A análise iconográfica
e interpretação das cenas dos relevos serão abordadas de forma mais minuciosa no capítulo
seguinte.
2.3. TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA: ANÁLISES E
INTERPRETAÇÕES
Descoberto no ano de 1900, o sítio arqueológico de Kom el-Shoqafa abriga o maior
complexo de necrópole de Alexandria, localizado no lado oeste da cidade. A tradução mais
próxima do nome árabe significa “monte de cacos” (mound of shards), devido à grande
quantidade de cerâmica e material de construção presente no local. Apesar de as lendas locais
retratarem um episódio de um asno ter caído em um fosso que dava acesso às câmaras
subterrâneas, atribui-se a descoberta ao alexandrino Es-Sayed Aly Gibarah. No dia 28 de
68
setembro de 1900, ele descobriu o fosso que dava acesso ao sítio subterrâneo e entrou em
contato com as autoridades locais do museu da cidade (VENIT, 2002, p. 125). Giuseppe Botti,
diretor do Museu Greco-Romano de Alexandria à época, foi o responsável pelas primeiras
escavações e pesquisas sobre o local, seguido por Allan Rowe, na década de 1940, e Achille
Adriani, na década de 1950 e 1960. O local voltou a ser pesquisado in loco durante a primeira
metade da década de 1990, por Jean-Yves Empereur nas missões arqueológicas do Centro de
Estudos Alexandrinos. O sítio arqueológico se localiza à sudoeste da cidade, próximo onde
estava localizado o Serapeum e um hipódromo identificado como Lageion, que data desde o
período ptolomaico.
Figura 16. Desenho de vista aérea do Serapeum (canto direito superior) Lageion (ao centro)
Sítio de Kom el-Shoqafa, circulado por nós. Fonte: MCKENZIE, 2007, p. 195
O complexo abriga três grandes pisos escavados em rocha. Acredita-se que houve uma
estrutura de capela no nível do solo, premissa possível ao se comparar o sítio de Marina el-
Alamein, distante 60km de Kom el-Shoqafa e que apresenta estruturas de capela assim como
um hipogeu cavado embaixo. Todavia, o sítio que estudamos atualmente não apresenta indícios
dessa construção acima do solo. Jean-Yves Empereur (1997, p. 155) informa que a
profundidade do sítio arqueológico é de cerca de 20m. O plano da tumba se assemelha aos
hipogeus do período ptolomaico, mas traz um esquema mais desenvolvido de forma
verticalizada do que horizontal, conforme indicam as figuras da página seguinte. Algumas
69
estruturas são próprias do período romano, derivadas da arquitetura da época imperial, como a
presença de vestíbulo, rotunda17, triclínio e êxedra18. O uso de loculi continua sendo observado
no sítio de Kom el-Shoqafa, sobretudo nos corredores adjacentes à Tumba Principal e no
terceiro piso, que hoje se encontra inundado por um lençol freático.
Figura 17. Planta baixa de Kom el-Shoqafa
Fonte: VENIT, 2015, p.126.
A datação da Tumba Principal é estimada para o período Flaviano, mais
especificamente de 69 a 79 d.C.; a partir da análise estilística dos retratos encontrados na
antessala. Outra hipótese, baseando-se nos sarcófagos entalhados em rocha da câmara
mortuária, coloca a datação da tumba para a primeira metade do século II d.C., com estimativas
para o período de Adriano. Conforme já mencionamos anteriormente, a datação absoluta desse
sítio arqueológico não é possível de ser obtida, havendo, portanto, preferência na cronologia
aproximada, situada entre o final do século I e a primeira metade do século II d.C.
17 Estrutura circular ou em forma cilíndrica. 18 Estrutura semicircular que ladeia um átrio, como pode ser visto na figura 17 (no plural, exedrae)
70
Figura 18. Plano seccional da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa
Fonte: VENIT, 2002, p. 125
O poço dava o acesso ao interior do hipogeu, além de prover entrada de ar e luz ao
interior do ambiente. Uma estrutura circular, denominada como rotunda, dá acesso a uma
escada e aos corredores do primeiro piso, conforme demonstram as fotografias da figura 15 na
página anterior. Uma estrutura retangular aberta, localizada à esquerda da rotunda, foi
identificada como um triclínio nas escavações de Allan Rowe em 1942. O triclínio é composto
por quatro colunas quadradas e de capitéis simples, contendo três blocos de pedra rentes ao
chão, que formam um retângulo aberto. O local provavelmente serviu para realização de
banquetes funerários e outras cerimônias ligadas ao culto dos mortos. Fragmentos de cerâmica
de pratos, vasilhas e vasos indicaram a realização dessas cerimônias (EMPEREUR, 1997, p.
169).
71
Figura 19. Poço e Rotunda
Fonte: EMPEREUR, 1997, p. 153-154
A presença de uma sala com triclínio (fig. 20) é um traço característico do período
romano; a câmara mortuária da Tumba Principal também assume o formato dessa estrutura.
Algumas tumbas encontradas na cidade de Petra, localizada entre as províncias orientais do
Império, também apresentam estruturas de triclínio para o uso ritualístico, datando dos
primeiros séculos da era comum (TOYNBEE, 1996, p. 192-193).
Podemos pensar nessas estruturas como elementos fixos desse espaço construído,
possuindo funções ligadas ao uso e a prática desempenhados ali. O poço e a rotunda estão
ligados à orientação e iluminação, enquanto o triclínio indica o uso ritualístico desse espaço nas
cerimônias e comemorações funerárias. Apesar de ser um item de mobília, o triclínio aqui se
apresenta de forma fixa, sendo escavado na própria rocha do hipogeu. Essa característica se
repete também nos relevos esculpidos nas paredes da câmara mortuária: apesar de comporem a
decoração, função associada aos elementos semifixos, por questões morfológicas, eles são parte
indissociável dos elementos fixos que compõem esse espaço.
72
Figura 20. Triclínio
Fonte: EMPEREUR (1997. p. 125-169).
2.3.1 ANTESSALA OU PRONAOS
Ao entrar no segundo piso, uma concha cavada na rocha acima da fachada é o elemento
decorativo grego que se destaca em meio à decoração da antessala, que se apresenta de forma
majoritariamente egípcia. Esse mesmo tipo de relevo é encontrado no pátio do primeiro piso,
onde se encontram as exedras. Jean-Yves Empereur (1997, p. 156) identificou esse relevo como
uma concha de vieira (Pecten maximus), enquanto Susan Venit (2015, p. 68) denomina-o como
uma concha de tridacna (Tridacna ss.). Ambas as identificações fazem referência a espécies
diferentes de moluscos bivalves, cujas conchas inspiraram tal motivo iconográfico. O uso de
conchas como motivo iconográfico é comum a diversas áreas do Mar Mediterrâneo, como se
observa na tradição etrusca, grega, romana, e no lado mais oriental, como na Mesopotâmia. As
conchas eram apreciadas pelo seu valor comercial e uso ritualístico.
73
Figura 21. Detalhe da concha esculpida na rocha acima da antessala
Fonte: EMPEREUR, 1997, p. 156
Podemos inferir algumas interpretações sobre o uso da concha no meio funerário. Na
tradição greco-romana, a concha de vieira estava associada ao nascimento da deusa Afrodite,
ligada ao nascimento e fertilidade, se desdobrando também para as concepções de ciclo da vida,
sendo um motivo iconográfico encontrado largamente no mundo imperial romano
(BOGDANOVIĆ, 2017, p. 279). Essa linha de raciocínio se torna mais forte ao pensarmos na
associação que Afrodite teve com Ísis durante o período helenístico e romano, havendo um
forte culto dessa divindade em Alexandria. No caso da concha de tridacna, na tradição etrusca,
o motivo iconográfico estava relacionado também à feminilidade, à riqueza e comércio, visto
que tais conchas são encontradas no Mar Vermelho e no Oceano Índico (HARRISON, 2013, p.
1098). De modo geral, a concha pode ter sido empregada para expressar as ideias de ciclo da
vida e fertilidade, indicando também o status ligado à riqueza do comércio portuário da cidade.
Na chôra, mais precisamente no sítio arqueológico de Tuna el-Gebel, a concha como
motivo iconográfico também aparece numa tumba, associada desta vez exclusivamente a uma
mulher chamada Isidora, datando por volta do segundo século da Era Cristã. Nas inscrições
epigráficas presentes nesse local, ninfas das águas do Nilo aparecem como responsáveis pela
construção do aparato funerário de Isidora, havendo menção inclusive ao desenho da concha
feito por uma das ninfas filhas do Nilo (LARSON, 2001, p. 191). Acreditamos que é possível
74
que em Kom el-Shoqafa haja essa mesma associação de ninfas e a concha, trazendo à tona o
aspecto funerário desses elementos. Assim, reiteramos a ideia sobre esse motivo iconográfico
estar associado ao ciclo da vida, nascimento, fertilidade, morte e renascimento.
Figura 22. Kliné da tumba de Isidora, sítio de Tuna el-Gebel, Hermópolis Magna, século II
d.C
Fonte: VENIT, 2015, p. 92
O segundo piso em Kom el-Shoqafa é dividido em dois grandes espaços, como já
mencionamos anteriormente. O programa decorativo desses dois locais chama atenção pelos
seus acabamentos e sua mescla de motivos iconográficos. A organização do espaço da câmara
funerária segue o modelo de triclínio, com três nichos dispostos formando um retângulo aberto.
Susan Venit (2002, p. 125) considera que a Tumba Principal assume o plano de um templo
grego, enquanto para Savvopoulos (2011, p. 284), os elementos arquitetônicos da antessala e
da câmara mortuária configuram o espaço como um templo egípcio.
As duas colunas que sustentam o frontão arqueado apresentam elementos egípcios na
base e nos capitéis, identificados por McKenzie (2007, p. 117) como capitéis alexandrinos do
tipo III. Na parte superior, observa-se uma fachada arqueada, com uma circunferência ao centro.
Logo abaixo, uma faixa de quadrados esculpidos alternadamente em baixo e alto-relevo,
seguido abaixo com um relevo de Hórus-Behdety, disco solar alado envolto de duas serpentes.
Dois falcões ladeiam o disco solar, fazendo referência ao deus Hórus em sua forma de ave.
75
Figura 23. Pronaos da Tumba Principal
Fonte: VENIT, 2015, p. 67
A parede ao fundo é a fachada da câmara mortuária, que possui um formato retangular
e apresenta uma decoração similar à entrada da antessala, na parte superior. O friso da porta de
entrada é adornado novamente com Hórus-Behdety e volutas acima. Em cada um dos lados,
encontram-se serpentes Agathos Daimon. Acima, encontram-se escudos adornados com a face
de medusas, completando o significado de proteção associado à serpente Agathos Daimon. A
porta funciona como uma moldura para a cena da mumificação de Osíris, localizada
centralmente e ao fundo da câmara mortuária: provavelmente trata-se de um recurso visual
trabalhado intencionalmente para quem entrasse na antessala visualizasse tal cena. A análise
iconográfica presente no capítulo seguinte trará mais detalhes sobre esses relevos.
76
Figura 24. Desenho arqueológico da antessala.
Fonte: Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena19
Por meio do desenho arqueológico da antessala, podemos visualizar melhor a disposição
do espaço, ainda que não compreenda a totalidade do local. Uma escada dá acesso ao local, que
está em um nível um pouco acima do chão. As colunas apresentam decoração de lótus em sua
base, apoiadas em uma base rochosa octogonal. O lado esquerdo traz um nicho de formato
retangular, que abriga uma estátua feminina em pose hierática. Ao lado direito, um nicho
também abriga uma estátua, dessa vez masculina, em pose hierática. O espelhamento é uma
característica recorrente na antessala, como podemos observar nos relevos do deus Hórus em
forma de falcão e nos relevos de Agathos Daimon. Essa característica de espelhamento, comum
na arte egípcia, pode ser pensada de acordo com a ideia de redundância, compartilhada por
Rappoport e Renfrew, conforme nossa exposição sobre comunicação não-verbal do espaço e
19 Disponível em: <https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263234>. Acesso em: 28 abr. 2018.
77
indicadores do ritual. Existe, assim, a ideia de reforço do simbolismo no espaço a partir da
repetição de símbolos e iconografias.
As esculturas, que a princípio constituiriam parte da mobília funerária da antessala,
podem ser interpretadas tanto como elementos fixos – por permanecerem em sua localização
de forma estática, visto que foram colocadas em nichos – como podem ser entendidas também
como elementos semifixos, visto que foram esculpidas em um bloco de pedra e posicionadas
onde estão atualmente. Sua função no espaço pode ser compreendida de diferentes formas: elas
estão posicionadas olhando para o centro da antessala, dando boas-vindas aos indivíduos que
adentravam naquele espaço; indicam os possíveis proprietários do hipogeu e assumem o papel
de imagem de culto e memória dos falecidos, como discutiremos mais a seguir.
Figura 25. Estátua feminina, nicho esquerdo
Fonte: EMPEREUR, 1998. p. 158; VENIT, 2002, p. 134.
Localizada no nicho esquerdo (cavado na rocha e de formato retangular), a estátua
feminina provavelmente representa a proprietária da tumba. A cabeça da estátua possui cabelos
ondulados e partidos ao meio, com uma fileira encaracolada à raíz se dispondo nos dois lados.
78
O rosto possui traços femininos, com detalhes nos olhos, nariz e lábios finos. A expressão facial
é serena e se assemelha a um retrato romano, a partir da comparação estilística dos traços faciais
e do penteado. O corpo é apresentado com um vestido, aparentemente de tecido fino e sem
mangas, que se estende até a altura dos tornozelos. Ele se assemelha aos vestidos observados
em esculturas do Antigo Império, em que o tecido se mostra colado ao corpo e sem marcação
ou presença de mangas.
Os seios e o umbigo são visíveis e bem marcados, assim como a área púbica. Para Riggs
(2005, p. 34) o destaque em volume para as regiões dos seios, barriga e região púbica faz alusão
às características de fertilidade, valor que buscava ser transmitido ao mundo dos mortos. Os
braços são dispostos ao lado do corpo, com as mãos encostadas nas coxas; notamos que os
espaços entre os braços e o corpo não foram cavados na escultura, havendo ainda sinais do
bloco de rocha que dá sustenção à peça. As pernas estão entreabertas, com a perna direita à
frente, simulando a posição de marcha das estátuas egípcias. Os pés estão descalços e
apresentam diferenciação entre os dedos.
Figura 26. Estátua masculina, nicho direito
Fonte: EMPEREUR, 1998. p. 159; VENIT, 2002, p.133.
79
Assim como na estátua feminina, presume-se que esta seja uma estátua retrato do
proprietário da tumba. A estátua masculina apresenta uma maior deterioração na sua estrutura,
como observamos na ausência dos membros inferiores, mas apresenta maior detalhe de traços
no rosto. A cabeça da estátua possui cabelos encaracolados; o rosto apresenta marcas de
expressão na testa e nas dobras nasolabiais. Os olhos, em conjunto com os lábios, passam uma
expressão séria. O nariz é longo e possui narinas pequenas. O maxilar é largo e fortemente
marcado. O corpo não dispõe de vestimenta no tronco e a peça veste apenas um saiote egípcio
que cobre o quadril logo abaixo do umbigo. Ele é composto por três dobras de tecido, com uma
parte maior ao centro. As pernas são grossas, sem detalhes nos joelhos e estão entreabertas,
com a perna esquerda à frente, apresentando a posição de marcha típica das estátuas egípcias.
Os pés possuem diferenciação entre os dedos.
Figura 27. Estátua e amuleto do Período Tardio
À esquerda: estátua ka de Tjayasetimu, XXVI Dinastia. À direita: Amuleto da deusa Ísis. Ambas as figuras
apresentam-se vestidas à moda do Antigo Império. In: Acervo Online do Museu Britânico20.
20 À esquerda, disponível em:
<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.a
spx?assetId=337768001&objectId=111559&partId=1>. Acesso em 20 jul. 2018.
80
Segundo Susan Venit (2002, p. 129), as características dos traços faciais e penteado/tipo
de cabelo das peças indicariam a época do governo do imperador Vespasiano, datando de 69 a
79 d.C. Podemos inferir que tais peças são emaranhadas por trazer na cabeça esculpidas
seguindo o padrão greco-romano, enquanto a vestimenta e a posição do corpo emulam
características egípcias. Kyriakos Savvopoulos (2013, p. 116) conjecturou que, diante do
contexto que está colocada e da posição que assumem - bastante frontalizada e hierática - as
esculturas poderiam servir como estátuas ka21, ligadas à rituais de culto ao morto. O autor
reforça essa conjectura ao indicar a similaridade da posição de marcha vista nas figuras e o uso
de roupas tipicamente egípcias, similares às que são observadas em esculturas do Período
Tardio e que retornam ao padrão do Antigo Império, como podemos observar na fotografias da
figura 27. Consideramos válida a premissa do autor, principalmente se levarmos em conta a
possibilidade de a antessala ser um espaço dedicado à realização de rituais e culto aos mortos
enterrados ali. Assumindo essa assertiva, a ideia de emaranhamento é ainda mais reforçada.
Ao pensarmos nessas estátuas como retratos romanos, principalmente pelos traços
físicos observados nos rostos, questões ligadas à memória, identidade social e desejo de
imortalizar-se vêm a tona, conforme argumentou Jane Fejfer (2008, p.105):
[...] Os recentes estudos veem o simbolismo funerário como uma mistura de
preocupações e anseios sobre status social e crenças sobre a vida a após a
morte, bem como o considera como parte da expressão de luto e de outras
emoções. Status social, financeiro, afiliações culturais, preferências pessoais,
pesar e emoções, gostos, tradições familiares e locais e crenças sobre o pós-
vida podem ser elementos que contribuem no modo de representação
escolhido nos túmulos dos indivíduos.
Sabendo disso, podemos fazer algumas inferências a respeito dessas esculturas, a partir
do potencial de comunicação de significado que elas possuem. A princípio, elas indicam culto
ou atividades de comemoração aos mortos, além de reforçarem o aspecto de memória presente
nesse contexto. A antessala foi provavelmente um espaço mais voltado a essas atividades,
contando com uma maior circulação e uso por parte dos indivíduos. Essas esculturas também
À direita, disponível em:
<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.a
spx?assetId=329170001&objectId=154731&partId=1>. Acesso em 20 jul. 2018. 21 O ka consiste em um dos componentes que constituem o indivíduo, comumente acompanhado do elemento ba.
Não há consenso nas definições para o ka, como ressaltou Assmann (2005, p. 96). Esse autor afirma que enquanto
o ba está ligado à ideia de movimento e à esfera física do morto, o ka está relacionado à esfera social, ao status
social, à honra e à dignidade. O ka pode ser entendido como uma energia vital, espírito protetor e duplo
(doppelgänger) do indivíduo. Na parte mais externa das tumbas, as oferendas e cultos eram atribuídos a uma
estátua que resguardava o ka do morto.
81
são exemplificam o emaranhamento presente em todo o programa decorativo da tumba. As
características faciais da tradição clássica são combinadas com as vestimentas e a posição
corporal tipicamente egípcias. Pela escolha dos traços greco-romanos na cabeça, podemos
pensar também em uma identidade social ligada ao status alexandrino/grego, visto os benefícios
dessa condição em Alexandria. As roupas e posição do corpo, por sua vez, nos indicam uma
crença funerária alinhada aos preceitos egípcios, ao tomarmos essas esculturas como estátuas
ka. Como não há epígrafe ou qualquer tipo de informação escrita sobre nome, profissão ou
posto social, essas interpretações são baseadas principalmente pelas características observáveis
das esculturas.
2.3.2 – CÂMARA MORTUÁRIA
A câmara mortuária possui formato retangular e segue o padrão de triclínio, sendo
composta por três nichos do tipo arcosolium conjugados ou articulados, posicionados
transversalmente na forma de um retângulo aberto para a porta de entrada. Na parede interna
da entrada, dois relevos do deus Anúbis são localizados em cada lado, flanqueando a porta e
retomando a função de guardas da tumba. Assim como na antessala, os relevos são esculpidos
diretamente na rocha das paredes, articulando assim elementos fixos e semifixos no mesmo
material de composição da sala. A análise iconográfica desses relevos constará no capítulo
seguinte, em que mais questões sobre a função e o significado serão apresentadas.
Figura 28. Parede interna da entrada da câmara mortuária
Fonte: SAVVOPOULOS, 2011, p. 87
82
O modelo de nicho arcosolium tornou-se popular no Império Romano, sendo observado,
por exemplo, nas catacumbas romanas dos primeiros dois séculos da era cristã (GUIMIER-
SORBETS; PELLE; SEIF EL-DIN, 2017, p. 49). Os nichos apresentam o mesmo padrão
decorativo, havendo colunas decoradas com motivos egípcios na base e no capitel. Cada nicho
possui um bloco entalhado na parte inferior, possuindo formato de um sarcófago romano. A
tampa não abre, tendo sido entalhada diretamente na rocha junto ao restante do sarcófago, que
apresenta decoração em alto-relevo.
Os relevos encontrados na câmara mortuária possuem enorme potencial comunicativo
e indicam as atividades rituais relacionadas aos tratos funerários desenvolvidos nesse espaço.
Contando com cenas de ações rituais que envolvem deuses, sacerdotes e os possíveis
proprietários da tumba, os nichos articulam um alto nível de simbolismo e sacralidade em sua
decoração. Os sarcófagos provavelmente serviram de leito funerário, onde as múmias seriam
colocadas.
Figura 29. Nicho central
Partes das pilastras dos demais nichos são visíveis na fotografia. Fonte: VENIT (2002, Pr. VIII).
83
Os relevos trazem cenas ligadas ao ritual da mumificação e o renascimento de Osíris,
que serão analisados de forma mais minuciosa no capítulo seguinte, assim como os demais
relevos da tumba. Por enquanto, podemos tomá-los como elementos fixos e indicadores do
ritual, sendo, portanto, elementos-chave na sacralização e diferenciação desse espaço. As
paredes centrais e internas dos nichos também trazem relevos; no caso dos nichos esquerdo e
direito, as paredes centrais são espelhadas, havendo diferença nas paredes laterais. Novamente,
a redudância é um recurso optado pelos artesãos e proprietários na tumba, no que diz respeito
a comunicação de ideias e valores presente nesse espaço.
O nicho central possui um sarcófago entalhado na rocha, que segue o padrão romano
com relevos de guirlanda e máscaras associadas ao deus Dioniso e Medusa. Devido ao modelo
do sarcófago, supõe-se que a tumba pode datar da primeira metade do século II d.C., época em
que esse tipo de sarcófago passou a ser amplamente utilizado em Roma e nas províncias da
Ásia Menor (GUIMIER-SORBETS; PELLE; SEIF EL-DIN, 2017, p. 153). A datação se torna
imprecisa, contudo, pela simplicidade desses sarcófagos em comparação com os que são
observados em Roma nessa mesma época.
Figura 30. Detalhe do sarcófago romano do nicho central
Fonte: ADRIANI (1961. Pr III)
Os relevos entalhados trazem personagens e elementos gregos, característica dos
sarcófagos romanos do século II d.C... O sarcófago possui decoração de entalhe na parte frontal,
com uma guirlanda ondulada com frutos e vegetais; máscaras de Medusa e um sátiro, associado
ao deus Dioniso. O sátiro é careca e possui barba encaracolada, com o cenho franzido. A
referência a símbolos de Dioniso, como as máscaras de Medusa e sátiro e a guirlanda,
provavelmente é oriunda da dimensão funerária dessa divindade, associada a Osíris. Segundo
Susan G. Cole (2007, p. 339) um dos aspectos do deus Dioniso é o papel de ponte entre a vida
e a morte, visto que essa divindade está relacionada aos momentos de transe e às transições. A
84
associação de Dioniso a Osíris também se deu pela similaridade do mito de renascimento do
deus egípcio, que fora desmembrado, mumificado e ressuscitado, com uma narrativa comum
aos cultos de mistério em que Dioniso é morto, desmembrado e ressucitado. Heródoto é um dos
autores clássicos a fazer esse paralelo entre o deus grego e o deus egípcio (BURKERT, 1993,
p. 566-567). Outros símbolos dionisíacos aparecem no programa decorativo, como veremos de
forma mais detalhada no capítulo seguinte.
Pelo formato da boca de ambas as faces, é deduzido que se tratam de máscaras de teatro.
A máscara de Medusa apresenta cabelos ondulados, em referência as serpentes de sua cabeça.
Suas sobrancelhas estão franzidas em uma expressão de dor. Junto às medusas dos escudos que
estão posicionados acima dos relevos de Agathos Daimon, associa-se o poder apotropaico da
figura. Ao centro está uma figura feminina repousando em uma kliné, assento tipicamente
grego. Um manto cobre grande parte do corpo, que se apresenta de forma bastante curvilínea.
De acordo com Susan Venit (2002, p. 135), esse relevo poderia indicar a proprietária da tumba
como a principal benificiária desse espaço.
Figura 31. Desenho arqueológico do sarcófago do nicho central
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena.22
As fachadas dos nichos esquerdo e direito seguem o padrão já observado na tumba, com
frontão arqueado e um disco solar envolto pelo uraeus23. Uma faixa de baixo-relevo com
22 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263389>. Acesso em 26 jan. 2018.
23 Serpente protetora, símbolo da realeza e do poder divino. Segundo Brancaglion (2003, p.136), a palavra
uraeus é a variação latina da palavra grega que deriva do egípcio, que significa “aquela que se ergue”. A
serpente era filha de Rê e atacava os inimigos do rei e dos deuses.
85
círculos encadeados decora a parte externa e interna do nicho. As pilastras, cavadas na rocha,
seguem o padrão decorativo das colunas da antessala, com capitéis compostos e base decorada
com desenhos geométricos de lótus.
Figura 32. Nichos esquerdo e direito da câmara mortuária
Fonte: EMPEREUR, 1998, p. 162-165.
Nas paredes centrais do nicho esquerdo e direito um homem coroado – possivelmente o
imperador romano investido de símbolos da realeza faraônica – faz oferendas ao touro Ápis,
enquanto Ísis-Maat abençoa o ato. Esses relevos nos trazem à tona, sobretudo em Alexandria,
a importância do culto isíaco e de Serápis. A divindade, criada e oficializada como culto
dinástico já no reinado de Ptolomeu I, possuía associações a divindades egípcias como Osíris,
Ptah, Ápis, e Amun, junto aos deuses gregos Zeus, Hades, Dioniso e Asclépio. Pelo contexto
dos relevos, o touro Ápis que aparece na câmara mortuária retoma os valores de Osíris. De
acordo com Richard Wilkinson (2003, p. 170), quando encontrado no contexto funerário, o
touro Ápis é denominado de ba de Osíris. Novamente, por estarmos inseridos no contexto de
Alexandria, a figura de Ápis possui ligação direta com a divindade protetora da cidade, Serápis.
86
Novamente, os elementos de mobiliária que restaram na tumba são componentes da
própria estrutura do ambiente; os sarcófagos de pedra são mais um exemplo dessa fusão de
elementos fixos e semifixos. Eles trazem a tradição romana para o programa decorativo da
tumba, que segue um plano majoritariamente egípcio. Os sarcófagos dos nichos esquerdo e
direito trazem o aspecto do espelhamento na sua decoração, apresentando características
morfológicas iguais. Eles contam com decoração de guirlanda, máscaras de Medusa e um
bucrânio ao centro. A guirlanda e os cachos de uva fazem referência ao culto dionisíaco em
relação ao âmbito funerário, já mencionados anteriormente, enquanto as máscaras de Medusa
buscam trazer seu aspecto apotropaico. O bucrânio, por sua vez, é um motivo iconográfico
bastante difundido no mundo greco-romano, ligado à ideia de sacrifício animal. Pode ter
relação, portanto, aos rituais funerários ligados ao deus Dioniso.
Figura 33. Sarcófago do nicho esquerdo
Fonte: ADRIANI (1961, Pr. III)
Figura 34. Sarcófago do nicho direito
Fonte: ADRIANI (1961, Pr. III)
A análise iconográfica que iremos desenvolver no capítulo seguinte será capaz de nos
indicar, de forma mais precisa, o potencial ritualístico das cenas que ali foram representadas,
87
complementando assim a nossa interpretação sobre esse espaço. Nossa divisão de análise entre
capítulos se deu meramente por questões metodológicas necessárias ao tratamento das fontes,
mas devemos atentar à indissociabilidade das imagens no espaço, visto que elas próprias
constituem os valores e significados observados nesse ambiente. Até aqui, podemos perceber
que os artesãos responsáveis pelo programa decorativo, bem como os proprietários desse
hipogeu, apresentavam alto nível de conhecimento sobre a religião egípcia. Ao analisarmos o
significado das cenas, no capítulo a seguir, procuraremos entender quais as possíveis
motivações no uso da iconografia funerária egípcia em meio aos elementos greco-romanos
empregados na decoração da Tumba Principal, articulando as ideias que desenvolvemos sobre
espaço funerário junto à análise iconográfica das cenas.
88
CAPÍTULO 3 – RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA
A discussão teórica sobre espaço funerário, junto à contextualização histórica dos sítios
de necrópole de Alexandria auxiliaram-nos a compreender as características gerais do espaço
destinado aos mortos, com foco na cidade alexandrina na época ptolomaica e no início do
período romano. Percebemos que na Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, os elementos fixos
e semifixos estão presentes de forma unificada, e que as imagens entalhadas na rocha possuem
papel crucial na diferenciação desse espaço. Neste capítulo, discutiremos algumas noções sobre
imagem, que serão pertinentes para entendermos a presença desse material no espaço funerário.
Também neste capítulo abordaremos a metodologia de análise iconográfica, que
permitirá a interpretação das cenas dos relevos. Apesar de já termos mostrados algumas
fotografias desses relevos no capítulo anterior, a análise que será feita neste capítulo possui
mais detalhes e trará mais interpretações.
3.1 – QUESTÕES CONCEITUAIS SOBRE IMAGEM
Pensar em um conceito unificado e definitivo para “imagem” é uma tarefa muito
complicada, assim como também se torna simplista e redutora frente à multiplicidade,
polissemia e dinamismo do termo. É possível, entretanto, usar de algumas ideias para guiar o
nosso pensamento diante do problema da imagem: entender não apenas sua definição ou
natureza, mas como elas acontecem, funcionam e se propagam, por exemplo.
Figura 35. As famílias de imagem
Fonte: MITCHELL (1986, p. 10).
89
É conhecido que as imagens estão ligadas ao campo da visualidade e da linguagem, mas
não apenas a isso. A polissemia da palavra imagem tampouco indica que os seus múltiplos
significados sejam sinônimos ou palavras facilmente intercambiáveis. Assim, imagem pode ser
entendida como um fenômeno amplo, ligado a diferentes formas de expressão e representação.
O campo da visualidade – o qual estamos interessados aqui, visto a natureza das nossas fontes
- faz parte desse fenômeno junto ao campo das operações mentais, da percepção, da linguagem,
e da ótica. Mitchell (1986, p. 9-10) define esse fato a partir da ideia de família de imagens,
como pode ser observado na figura 35 da página anterior.
A divisão proposta pelo autor teve como finalidade ordenar as diversas possibilidades
nas quais empregamos o termo imagem, auxiliando assim a se pensar de forma diversificada e
multilateral. Entretanto, a complexidade da imagem reside no fato de que os campos conceituais
atuantes nesse fenômeno não estão deslocados ou desconectados um dos outros. Por exemplo,
o cinema evidencia a ação conjunta desses campos: as imagens de caráter visual se encontram
majoritariamente no campo gráfico e ótico, mas também necessitam e promovem a ação do
campo da percepção, da mente e da linguagem verbal. A partir dessa ideia, as diferentes
imagens conhecidas podem empreender diversas combinações da ação dos campos conceituais
para que aconteçam: esculturas, pinturas, sonhos, memórias, hologramas, descrições verbais
estão longe de serem entidades fixas, elas acontecem a partir da mediação dos campos
conceituais.
Contextualizando essa ideia às nossas fontes, que consistem em imagens de relevos
produzidos na Antiguidade e encontrados em um contexto funerário, o campo gráfico
(correspondente à materialidade) atua em conjunto ao campo da percepção, ao campo mental e
ao campo verbal, tendo em vista o que representam: questões ligadas à religião e rituais
destinados à vida após a morte. Parte desses relevos traz também um aspecto narrativo, por
fazerem referência às cenas de textos funerários, como o Livro dos Mortos da cultura egípcia.
Por representarem um tema complexo, tais imagens empreendem uma ação conjunta complexa
desses campos conceituais.
Quando entendidas como um fenômeno dinâmico, as imagens assumem a necessidade
de um veículo ou um meio para que aconteçam. Hans Belting (2006; 2011) nos fornece o
conceito de meio e traz o corpo para a discussão de sua teoria imagética. A partir de uma
abordagem antropológica para a arte, Belting (2011, p. 2-10) sugere que a pergunta “o que é
uma imagem? ” seja respondida de forma dupla: deve-se atentar para as imagens não apenas
90
enquanto produtos de determinada mídia – como fotografias, pinturas ou vídeo –, mas também
deve-se entender as imagens como produtos de nós mesmos, tendo em vista a possibilidade de
produzirmos imagens mentais a partir das imagens visíveis e vice-versa.
É possível perceber a influência do pensamento de Jean-Pierre Vernant (1996) sobre as
imagens gregas antigas na teoria de Belting. O helenista francês criou a base de sua
argumentação sobre as imagens gregas do Período Arcaico a partir da ideia de figuração do
invisível: as imagens marcam, paradoxalmente, a ausência daquilo que representam, ao mesmo
tempo que lhes dão uma presença. A presentificação do invisível está relacionada com os mitos
e com os deuses, fazendo parte da experiência religiosa em si:
[...] Ao lado do mito em que se contam histórias, em que se narram relatos, ao
lado do ritual em que se cumpre sequências organizadas de atos, todo sistema
religioso comporta um terceiro aspecto: os fatos de figuração. Entretanto, a
figura religiosa não visa apenas evocar na mente do espectador que a observa
a potência sagrada à qual remete, que “representa” em certos casos, como no
caso da estátua antropomórfica, ou que evoca na forma simbólica, em outros.
Sua ambição, mais ampla, é diferente. Ela pretende estabelecer com a potência
sagrada, por meio daquilo que a figura de uma forma ou de outra, uma
verdadeira comunicação, um contato autêntico; sua ambição é tornar presente
esta potência “aqui e agora”, para colocá-la à disposição dos homens, nas
formas ritualmente necessárias. [...] Estabelecer com o além um contato real,
atualizá-lo, presentificá-lo e, assim, participar intimamente do divino – mas,
no mesmo movimento, sublinhar o que o divino comporta de inacessível, de
misterioso, de fundamentalmente outro e estrangeiro -, esta é a tensão
necessária que, nos quadros do pensamento religioso, toda forma de figuração
deve instaurar (VERNANT, 1996, p. 297-298).
A natureza intrínseca das imagens reside no paradoxo da presença da ausência: elas
buscam trazer a presença, mesmo que simbólica, de algo que está ausente, ao mesmo tempo
que evidenciam essa ausência pela sua própria existência. Mais do que produtos da percepção,
as imagens são também resultado do conhecimento individual ou coletivo, marcadas por
intenções. Dentre elas, destacamos a intenção de estabelecer o contato com os deuses, em
especial, no espaço funerário, como é o caso das imagens que estudamos nesta pesquisa.
Segundo Belting (2011, p. 3), “[...] Imagens se apoiam em dois atos simbólicos, ambos
envolvendo o corpo: o ato de fabricação e o ato de percepção, sendo um o propósito do outro”.
A percepção das imagens é um ato simbólico guiado por padrões culturais e por tecnologias
imagéticas. O lugar da percepção é o corpo; enquanto as técnicas imagéticas estão relacionadas
aos meios. Em suma, o corpo produz imagens a partir dos meios. Nas palavras de Hans Belting:
91
Proponho falar de imagem e mídias como dois lados da mesma moeda, ainda
que eles se separem no nosso olhar e signifiquem coisas diferentes. A pintura
é a imagem com uma mídia. O último termo, entendido dessa forma, abarca
tanto “forma” quanto “conteúdo”, conceitos discretos que aparecem ao
falarmos de obras de arte e objetos de valor estético. [...] O conceito de mídia,
de fato, complementa as ideias de imagem e corpo. Ele fornece, por assim
dizer, o “elo perdido”, pois as mídias nos permitem perceber as imagens de
maneira que não as confundamos nem com os corpos reais nem com as coisas
simples. A distinção entre imagem e meio surge da nossa própria experiência
corporal. As imagens da recordação e da fantasia surgem no nosso corpo como
se ele fosse uma mídia viva, pela qual as imagens são experienciadas (2011,
p.10-11).
A teoria imagética de Hans Belting nos permite enxergar as imagens de forma mais
complexa e dinâmica, atentando para questões importantes como a produção, percepção e
circulação das imagens. Sua ideia de meio/mídias para as imagens traz à tona a questão material
e a coloca em lugar de importância para que as imagens aconteçam. O corpo como lugar da
percepção também adquire o status de meio, pois é parte essencial do caminho pelo qual as
imagens percorrem. Lembramos que o corpo também é agente de produção das imagens, desde
o nível mental ao nível gráfico e material.
Visto que as imagens possuem relação íntima com a experiência corporal, percebemos
que a tríade dos conceitos Imagem – Mídia – Corpo operam de forma conjunta diante do
fenômeno da morte. A questão funerária, contexto principal no qual trabalhamos nesta pesquisa,
assume um papel central na produção das imagens: a inevitável ausência criada pela morte é a
força geradora das imagens, que buscam dar presença ao morto que está ausente em sua
condição corpórea. As imagens reestabelecem a ordem diante da vacância originada pela morte,
sendo elas parte significativa da experiência funerária. O domínio das relações sociais é
expandido e abarca os mortos a partir da produção e do uso das imagens, podendo envolver o
aspecto mágico-religioso (alcançado por meio dos ritos fúnebres) e a questão da memória social
e coletiva sobre o morto (BELTING, 2011, p.85-87).
A imagem funerária necessita de ações rituais para que o significado e a função
atribuídos a ela sejam plenamente alcançados. As imagens ganham voz e ação dentro dos
rituais; fora deles, elas são reduzidas ao papel de mídia para a lembrança (BELTING, 2011, p.
89). Vernant novamente parece ser uma forte influência no pensamento de Hans Belting,
quando afirma que
A figura plástica, no nível do xoánon [ídolo de madeira do Período Arcaico],
não pode em momento algum separar-se inteiramente da ação ritual: o ídolo é
92
feito para ser mostrado e escondido, passeado e preso, vestido e despido,
lavado. A figura necessita do rito para representar a potência e ação divinas (1996, p. 299).
Dessa forma, as imagens são complementadas pela ação ritual diante da experiência da
morte; a produção e o culto que envolvem as imagens são permeados pelos rituais e crenças
religiosas. Logo, a agência das imagens é alcançada por meio dessas ações. Carlo Severi (2009)
aliou o conceito de agência das imagens à ação ritual, ligada a uma atribuição ou empréstimo
de palavras aos objetos. A partir da teoria de Alfred Gell, Art and Agency (1998), Severi afirma
que a agência dos objetos inanimados é atribuída pela antropomorfização que realizamos sobre
os artefatos; dentro do contexto ritual, esse processo ocorre de forma mais duradoura e eficiente.
Nas palavras do autor:
É certamente no bojo da ação ritual, em que se constrói progressivamente um
universo de verdade distinto da vida cotidiana, que o exercício do pensamento
antropomórfico pode cristalizar e produzir crenças duradouras. Então os
objetos assumem, de modo infinitamente mais estável, um certo número de
funções próprias aos seres vivos. A depender do caso considerado, podem
perceber, pensar, agir ou tomar a palavra. Passamos da palavra dirigida à
palavra atribuída/emprestada aos artefatos. [...] No espaço do ritual, sob a
forma de estatuetas, imagens pintadas ou fetiches, os objetos são naturalmente
tidos como representação de seres (espíritos, divindades, ancestrais)
construídos à imagem de locutores humanos (2009, p. 460).
É possível, portanto, relacionar a dimensão espacial, a linguagem verbal e as imagens
como partes essenciais dentro ação ritualística. A distinção que fazemos entre esses três
aspectos aconteceu na antiguidade de forma muito mais imbricada e inter-relacionada. Sob
influência de Vernant (1965), Severi entende as imagens funerárias gregas do Período Arcaico
como representações da ausência-presença do morto, sendo parte atuante e essencial nos ritos
(2009, p. 483). Essas imagens, os kolossos, são compreendidas como dispositivos de ações
rituais, em que se destinam a elas oferendas e libações; a palavra na forma da inscrição presente
na estátua, que deve ser lida e enunciada e traz o nome do morto representado ali; e o olhar
dirigido à imagem que é diferenciado diante da representação. Os agentes do ritual assumem o
papel de locutores para o morto, pois realizam a enunciação a partir da inscrição presente na
imagem, atribuindo ou emprestando a palavra à imagem para que ela exerça sua função de
evocar a ausência-presença do morto. Percebe-se assim que o ritual funerário mobiliza tanto a
voz quanto a imagem; a comunicação verbal e visual são aspectos fundamentais e inseparáveis
do costume funerário grego arcaico. Como conclui Severi:
93
O ato verbal atribuído à estátua implica e realiza uma série de relações
complexas que constituem sua presença. A palavra emprestada realiza assim
uma série de identificações rituais, simultâneas e múltiplas, que ligam
celebrante e defunto, realizando dois tipos distintos de contato, pela imagem
e pela palavra pronunciada. A estátua funerária, que fixa na imagem a
identidade ritual do defunto, não é portanto apenas representação de um ideal
social: presente na cena do rito, é o foco de um conjunto de relações (2009, p.
498).
O costume funerário de associar a fala às imagens também é possível de ser visto em
outras culturas antigas, como é o caso do Egito Antigo. Os textos funerários do período
faraônico, como Os textos das pirâmides, Os textos dos sarcófagos e O Livro dos Mortos, por
exemplo, possuem uma longa tradição ritualística, composta por fórmulas mágico-religiosas
para a sobrevivência do morto no Além. Mark Smith (2009, p. 17) afirma que grande parte da
tradição faraônica nos textos ritualísticos permanece sendo atestada nos papiros do período
greco-romano, contando também com a criação de novos textos, como O livro das respirações
e O livro da travessia da eternidade. Esses textos possuíam papel singular dentro da ação
ritualística funerária; o ritual de Abertura de Boca, por exemplo, continuou sendo atestado por
evidência papirológica entre os séculos I e II d.C. Esse ritual empreendia um conjunto de
fórmulas mágicas, encantamentos e ações realizadas diante do sarcófago que continha a múmia;
a partir disso se restaurariam os cinco sentidos do morto para que o falecido tivesse sua
plenitude no mundo dos mortos.
Podemos compreender o ritual de Abertura de Boca tanto a partir das ideias de Carlo
Severi quanto das ideias de Hans Belting: a imagem do morto, isto é, a múmia, marca a
ausência-presença do indivíduo falecido, sendo uma mídia elaborada a partir do próprio corpo;
ela adquire seu status de agência e poder a partir da atribuição da palavra e das ações realizadas
no ritual. Acreditamos ser possível estender tais concepções não apenas para a múmia ou para
as estátuas funerárias, mas para todo o espaço da tumba, tendo em vista que ele também
mobiliza uma comunicação visual a partir das imagens ali presentes, mediando as ações que ali
serão encenadas.
Apesar de não contarmos com as evidências textuais precisas dos rituais funerários
atribuídos às nossas fontes de estudo – não foram encontrados papiros ou outros documentos
textuais sobre a Tumba Principal de Kom el-Shoqafa em específico – os relevos de temas
sagrados denotam o caráter ritualístico presente nesse espaço. Como será possível ver na análise
das fontes, os relevos trazem cenas de rituais como a mumificação e a adoração do touro sagrado
Ápis, por exemplo.
94
Como já discutimos anteriormente, as imagens possuem funções e representam
intenções dentro da sociedade que elas foram produzidas. O material imagético possui
inevitavelmente uma complexidade singular, uma vez que, distante dos padrões culturais de
quando elas foram produzidas, as imagens se tornam difíceis de serem entendidas. Contudo,
por serem produtos de um tempo, de um espaço e de uma cultura, a inteligibilidade se torna
possível a partir da sua contextualização. Os estudiosos que trabalham com esse tipo de material
se deparam, assim, com fragmentos que “capturam” porções pequenas do tempo e espaço de
onde foram originadas. Brian Leigh Molyneaux chama tal característica de inércia da imagem
quando postula que:
O reforço de ideias em algumas imagens é muito poderoso. Representações
históricas ou religiosas que retratam pessoas, tempos e eventos extraordinários
fornecem uma abreviação muito intensa, densa e envolvente para eras inteiras
e situações altamente complexas. Cada imagem captura literalmente ou
figurativamente um momento congelado no tempo, mas pode eventualmente
representar uma eternidade. [...] Este é um conceito estranho, a compressão de
tempo e espaço em uma única imagem. É um conceito arqueológico não
menos fantástico do que o de uma pessoa religiosa que afirma que os
ancestrais ainda estão conosco. No entanto, estamos fadados a imaginar,
sabendo que, embora cada imagem possa ser marcada por uma legenda,
protegida por um texto dentro de um livro, ela ainda terá vida própria. O
problema é que a imagem supera o tempo e a erudição, capturando a essência
imaginada de um evento de forma facilmente lembrada, replicada e
transportada. Se é um evento humano, é ainda mais resistente a mudanças. [...]
Imagens e outras representações visuais, portanto, têm uma tremenda inércia,
ou poder de permanência, que pode persistir por muito tempo depois que as
idéias por trás das imagens saíram de moda. Tal persistência, ou
frequentemente, anacronismo, pode ser observado na arte ao longo da História (1997, p.6).
É devido a essa inércia que nós, indivíduos do presente, conseguimos extrair informação
histórica das imagens. Molyneaux sugere alguns aspectos interessantes para a análise de
iconografias da Antiguidade, para se entender o significado desse material: questões ligadas à
altura dos personagens, posição e orientação fazem parte da composição da cena, que é
carregada de intenção comunicativa. Nossas fontes passarão por um processo de descrição
atento às essas características intrínsecas da imagem.
A diferença entre a natureza das nossas fontes – fotografias e desenhos arqueológicos -
provoca reflexões necessárias, ligadas às especificidades de produção desses materiais sobre o
registro arqueológico. O uso de fotografias na arqueologia pode ser observado desde os
primórdios da disciplina, visto a utilidade da fotografia em registrar artefatos, ajudar na
identificação de características impossíveis de serem vistas a olho nu (o caso de luz infra-
95
vermelho, por exemplo) e fornecer visões panorâmicas sobre a paisagem em que os sítios
arqueológicos estão inseridos. Portanto, as fotografias muitas vezes são tidas como
instrumentos objetivos dentro da ciência arqueológica, sem haver grandes reflexões sobre a
natureza e a intencionalidade desse material. Michael Shanks (1997) produziu algumas
reflexões sobre a objetividade e a verdade na Arqueologia, evidenciando a dimensão retórica e
discursiva por trás desses registros. Nas palavras do autor,
A heterogeneidade do trabalho fotográfico é marcada pela multiplicidade de
conexões possíveis. [...] Meu argumento é de que fotografias são poderosos
instrumentos retóricos para estabelecer objetividade: elas funcionam como
imagens e como produtos da técnica, que aparentemente captura
objetivamente o seu correspondente. Isso me levou a introduzir o discurso
como um conceito vital para entender a produção histórica e social do
conhecimento. [...] O discurso sempre esteve ligado aos textos e à palavra; nós
devemos também olhar para as imagens e seu caráter discursivo em particular
(1997, p. 82-82).
Assim, para as imagens fazerem sentido – seja no contexto histórico e social em que
foram produzidas, ou no contexto em que o estudioso da História e Arqueologia as analisa –, é
necessário estabelecer conexões dentro e fora das imagens, para que se chegue até as
informações da sociedade que as produziu. É notável que o nosso conjunto de fotografias,
derivadas de trabalhos de arqueólogos, possuem a intencionalidade de destacar e trazer
informações, assim como evidenciar o aspecto material do sítio arqueológico em questão.
Sabemos que as fotografias que dispomos não trazem a totalidade desse espaço, mas funcionam
aqui objetivamente ao serem contextualizadas e interrogadas a partir dos referenciais teóricos
apresentados até então.
Como já afirmamos anteriormente, os desenhos arqueológicos que dispomos foram
elaborados para uma obra publicada no ano de 1901, em meio às primeiras escavações
realizadas no local. Apesar de não termos os relatos de produção desses desenhos, consideramos
pertinente fazer algumas inferências sobre esse material a partir de reflexões mais recentes
sobre o trabalho de reconstrução visual na arqueologia. Simon James (1997, p.22) argumenta
que apesar do termo reconstrução ter se estabelecido dentro da arqueologia, seria mais
adequado chamar os desenhos de simulação, tendo em vista a temporalidade que separa o
desenhista técnico e os sítios arqueológicos, assim como a fragmentação das informações dos
sítios em questão. O autor chama atenção para o fato de que os valores estéticos são secundários,
ainda que também façam parte do trabalho de desenhistas profissionais. O propósito dos
desenhos arqueológicos será sempre o de transmitir informações e características daqueles
96
objetos “reconstruídos”. O desenhista técnico segue regras básicas, como a de não contradizer
as evidências visíveis dos artefatos e respeitar as suas propriedades físicas e morfológicas. É
necessário que o desenhista técnico trabalhe junto ao arqueólogo, quando não compartilham a
mesma formação. Nas palavras de James,
Antes de começar, os ilustradores precisam ter em mente qual o propósito do
trabalho de reconstrução. [...] No geral, uma reconstrução busca fornecer ao
expectador uma percepção da aparência sobre algo, alguém e/ou algum lugar
do passado, com o impacto máximo efetivo e o mínimo de conteúdo enganoso
ou especulativo. A reconstrução pode ser inapropriada, quando as evidências
arqueológicas são extremamente fragmentárias, impedindo a produção de
desenhos de cenas complexas. [...] Quando o desenho é apropriado,
precisamos saber o quão detalhado ele precisa ser. Diagramas simples podem
ser mais eficazes que traços mais elaborados. [...] Os desenhos de reconstrução
devem ser parte integral do trabalho de escavação arqueológica, de preferência
quando acontecem concomitantemente a esse processo. Um bom
conhecimento dos aspectos funcionais sobre a vida na Antiguidade, assim
como conhecimento em Arqueologia de forma geral levam a um bom trabalho
de reconstrução (1997, p. 26-27).
Assim como já afirmamos em relação às fotografias e a partir das inferências de Simon
James, temos ciência de que os nossos desenhos não trazem a totalidade material dos relevos,
mas simulam suas características com um número maior de detalhes. Pelo ano de produção da
obra de Von Bissing coincidir com o período de escavação do sítio de Kom el-Shoqafa, os
desenhos apresentam um grande nível de detalhes, tendo em vista que houve deterioração
desses relevos desde então. Esses detalhes serão levados em conta em nossa análise
iconográfica, como já demonstramos anteriormente na exposição da nossa metodologia.
3.2 - PROPOSIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: O PARADIGMA
SEMIOLÓGICO
Explicitaremos aqui os caminhos metodológicos para a análise da arte funerária,
complementando nossa interpretação com os referenciais teóricos da Antropologia, História,
História da Arte e Arqueologia. Nossa metodologia se baseia majoritariamente nas
contribuições da Arqueologia da Imagem da escola francesa, dos anos 1980. Os helenistas
franceses contaram com forte influência da semiologia para a elaboração dos procedimentos de
análise de imagem.
A forte presença da visualidade no cotidiano do homem contemporâneo fez com que
os variados campos de atuação da ciência se apropriassem das imagens visuais como objeto de
97
estudo. A variedade dos veículos de imagem que surgiu na contemporaneidade tem provocado
novas indagações, proposições e métodos para análise e interpretação do fenômeno da
visualidade. Sabemos que é impossível unificar conceitos e abordagens em torno das imagens
visuais. Buscaremos explicitar, portanto, os caminhos metodológicos e teóricos que juntos
compõem o nosso suporte de análise de um material tão complexo como são as imagens e o
fenômeno visual em si.
O uso de categorias e conceitos para o fenômeno visual tem fomentado o pensamento
de pensadores de diversas áreas das ciências humanas. Christopher Pinney (2006, p. 131) afirma
que o teor antropológico de cultura visual direcionou a atenção de objeto de arte às questões de
percepção cultural, assim como passou a considerar práticas culturais cotidianas, valorizando-
se assim a questão cultural em relação às intenções artísticas e valores estéticos. Os conceitos
de arte, iconografia e imagem, que muitas vezes passam como sinônimos, são abarcados pelo
termo cultura visual, mas que também serão contemplados por nós, ao longo deste capítulo, em
sua particularidade de significado. Traremos conceitos, definições e abordagens que dialogam
entre si, fornecendo meios de inteligibilidade ao fenômeno visual.
A abordagem iconográfica ganhou popularidade entre os historiadores, principalmente
durante o século XX. O uso de imagens enquanto evidências do passado foi sustentado, durante
várias décadas, pelo método iconográfico e pela iconologia, que possuem raízes nos estudos
dos historiadores da arte da Áustria e Alemanha, durante as décadas de 1920 e 1930. Dentre
esses intelectuais, destacam-se Aby Warburg (1866-1929) e Erwin Panofsky (1892-1968).
Esses pensadores corroboraram com a perspectiva das imagens enquanto suporte aos signos, e
que elas transmitiriam vestígios do pensamento compartilhado do passado para a
posterioridade. Assim, a partir da leitura das imagens, o estudioso poderia chegar ao
pensamento de uma época, remontando contextos históricos e sociais mais vastos e abrangentes.
O termo iconografia, em seu sentido etimológico, está ligado à descrição e classificação
de imagens a partir dos seus elementos intrínsecos. Iconologia se refere a uma interpretação
mais abrangente, que busca inserir as imagens em contextos históricos e sócio-culturais
maiores, tomando a imagem enquanto um “sintoma” do pensamento da época em que foi criada.
Panofsky, estudioso da arte renascentista, elaborou o método iconográfico e definiu os estudos
da iconografia e iconologia como “ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das
obras de arte em contraposição à sua forma.” (1979. p. 47). Fazemos referência aqui na
metodologia proposta pelo autor na obra Significado das Artes Visuais (1955), em que o autor
98
propõe três etapas analíticas: a descrição pré-iconográfica; análise iconográfica e a
interpretação iconológica. Apesar de não ser mais o método mais adequado para o trabalho
histórico com imagens, consideramos pertinente alguns de seus pressupostos, principalmente
na sua dimensão descritiva.
O primeiro deles, tema primário ou natural, está associado à identificação de formas
puras, que representam objetos naturais como o homem, animais e a natureza em si, estando
essa percepção ligada à nossa experiência prática. Nas próprias palavras do autor: “O mundo
das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais
pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos
constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte” (1979, p. 50).
O segundo nível corresponde ao tema secundário ou convencional, sendo o nível em
que se associa os motivos artísticos ou formas puras com assuntos, alegorias e conceitos. Isso
desemboca no processo conhecido como análise iconográfica. É necessário se familiarizar a
temas específicos e conceitos, muitas vezes transmitidos a partir de escritos e pela tradição oral.
A iconografia ocupa na história da arte o papel de descrever e classificar imagens, sendo
necessário ir além para que se tenha um estudo integral de um objeto artístico.
O terceiro nível advém diretamente dessa necessidade de ir além da descrição,
identificação e classificação dos símbolos, alegorias. O nível do significado intrínseco ou
conteúdo consiste na interpretação da análise iconográfica em meio a um contexto histórico e
social, revelando assim traços de uma nação, sociedade e religião que foram condensados em
um objeto da expressão artística. A interpretação iconológica pressupõe um nível de
elucidação das imagens enquanto sintomas de uma época, trazendo em si um vestígio vivo do
momento em que foi produzida. Nota-se a influência da filosofia de Ernst Cassirer (1874-1945)
e das formas simbólicas no pensamento de Panofsky: as imagens contém os símbolos culturais
e sociais que remetem uma realidade maior; a imagem está para além de sua simples aparência
e pode ser assim entendida como indício de um inconsciente coletivo.
É necessário ter atenção às críticas que se faz ao método panofskyano, tendo em vista
que não podemos cobrar, anacronicamente, as demandas mais atuais relacionadas à imagem –
como agência e a dimensão artefatual e social das imagens, por exemplo. As críticas residem
principalmente no reducionismo metodológico, do preciosismo por grandes obras de arte às
quais o método se destinou a princípio, e do papel generalizante da fase de Interpretação
Iconológica.
99
As etapas delimitadas pelo autor contam com uma dimensão subjetiva e intuitiva, ainda
que pareçam demonstrar ou buscar por uma objetividade plena. O ato de descrever, por si só,
já conta com uma dimensão interpretativa. Acreditamos que ambas as etapas são partes
indissociáveis de um mesmo processo. Isso não significa dizer que a descrição é inválida; mas
se torna necessário reconhecer a dimensão subjetiva do ato descritivo. Observamos que tanto
a descrição pré-iconográfica como a análise iconográfica auxiliam na classificação das imagens
e na identificação de símbolos, figuras e personagens, tarefa necessária para o uso sistemático
desse tipo de fonte. O ato descritivo e a identificação de símbolos continuam sendo
procedimentos pertinentes para o estudo de imagens da Antiguidade, como será observado nas
proposições da Arqueologia da Imagem, discutidas mais à frente neste capítulo.
De fato, o historiador que se debruça com as fontes imagéticas precisa ir além das obras
de arte, sobretudo no recorte cronológico da Antiguidade: não existem objetos de arte, assim
como não existiam artistas, na concepção moderna do termo que pressupõe individualidade e
apreço estético proeminente. A ideia de uma cultura homogênea e compartilhada - alvo da
interpretação iconológica - é demasiadamente idealizada, como demarcou Meneses (2012, p.
247). Nas palavras de Peter Burke (2008, p. 52): “[...] pode-se dizer que os historiadores
precisam da iconografia, porém, devem ir além dela”.
A partir da década de 1980 surgiram novas propostas de análise de cultura visual,
sobretudo entre historiadores e arqueólogos franceses especializados em iconografia de vasos
gregos. Afastando-se da matriz da Filologia Arqueológica, que ligava a tradição textual clássica
às imagens como simples formas de ilustração, as propostas da Arqueologia da Imagem tiveram
como base os estudos da Semiologia, da Linguística e do Estruturalismo, empregando conceitos
e abordagens dessas disciplinas para o tratamento das fontes iconográficas (REDE, 1993;
SARIAN, 1999).
Nossa proposta para a análise das fontes será guiada, majoritariamente, pelos preceitos
metodológicos da Arqueologia da Imagem da escola francesa, nos apoiando sobretudo nas
ideias de Claude Bérard (1983). Acrescentaremos aqui as considerações de Cibele Aldrovandi
(2006; 2009) e sobre a Arqueologia da Imagem e a teoria imagética de Phillipe Bruneau (1985),
tendo em vista a pertinência dos conceitos de imagem e referente - tema e esquema elaborados
por este autor e que irão auxiliar nosso trabalho de análise iconográfica.
Antes de explanarmos a metodologia de Bérard, acreditamos que seja pertinente definir
o sentido do termo iconografia para os estudos da Arqueologia, que se diferencia do sentido
100
cunhado por Erwin Panofsky para o estudo de obras de arte. Entende-se por iconografia o
conjunto de símbolos e repertório imagético de determinada sociedade, encontrado na cultura
material em diversos tipos de suporte. Ainda que existam valores estéticos ligados à
iconografia, prevalece o sentido da função e comunicação que essas imagens possuem e
representam. Nas palavras de Cassiane Bars:
A análise iconográfica em arqueologia é de extrema importância para a
compreensão de diversos aspectos que envolvem a sociedade como um todo.
Segundo Flannery e Marcus [1998], “quando arqueólogos, de maneira geral,
utilizam o termo ‘iconografia’, eles se referem a uma análise do modo como
os povos antigos representavam conceitos ligados à religião, à política, à
cosmologia ou a ideologias vigentes, através de sua arte”[...] Para a
Arqueologia, é também de suma importância que a leitura destas imagens
leve a uma compreensão do papel dos símbolos, ou dos sistemas simbólicos,
em seu contexto social, e como seus mecanismos de funcionamento
proporcionam a manutenção e a construção de padrões sociais e ideologias
(2010, p. 23-26).
Dessa forma, os estudos de iconografia são parte essencial da disciplina da Arqueologia,
campo fértil das pesquisas sobre Antiguidade. A semiologia e a linguística trouxeram
importantes contribuições para que procedimentos metodológicos fossem sistematizados dentro
da disciplina.
Foi dentro do paradigma linguístico e da semiologia que Claude Bérard formulou seus
conceitos para analisar o repertório iconográfico de vasos gregos do século VI ao IV a.C. Para
o autor, a imagem na Antiguidade possui natureza artesanal, de produção coletiva e anônima;
são de cunho popular, tendo em vista a produção, circulação e consumo se dá em objetos – os
vasos – que possuíam um propósito ligado ao transporte e difusão. As imagens possuem um
potencial narrativo, havendo a necessidade de compilá-las em um corpus para que sejam
entendidos os princípios de organização lógica (1983, p. 5-6). Para Bérard, uma imagem só
pode ser compreendida dentro de um grupo de imagens. Nosso conjunto de fontes seguiu
preceitos de organização de um corpus, como poderá ser constatado no capítulo seguinte.
A elaboração do corpus permite que o repertório comum de elementos estáveis e
constantes seja observado dentre as imagens catalogadas, denominados de unidades formais
mínimas. Tais unidades, quando combinadas entre si, produzem relações de significado a partir
de uma relação de referência. Nas palavras de Bérard:
De uma perspectiva semiótica, esse repertório de unidades icônicas pode ser
caracterizado como sistemático-intrínseco-direto. De fato, o processo é
sistemático, uma vez que as imagens podem ser decompostas em sinais
101
estáveis e constantes, mesmo ao longo de vários séculos. Também é claro que
existe uma relação intrínseca entre o senso de unidade e sua forma, assim
como esta relação é direta, como a fala, já que nada fica entre a forma de
unidade e o significado atribuído a ela [...]. Diante de seu repertório de
unidades formais mínimas, o artesão esforça-se por representar uma cena
precisa cujo significado será o menos ambíguo possível e facilmente
compreensível para sua clientela. As combinações que ele desenvolve estão,
portanto, longe de serem livres, e a composição será enriquecida até que a
transição da relação de referência para a relação de significação seja
assegurada. Não se trata simplesmente de acumular unidades de maneira
paratática, mas de produzir um sistema coerente cujos elementos são
solidários (1983, p. 8-10).
Assim, para compreender a composição elaborada pelo artesão, realiza-se uma
decomposição da imagem em seus sintagmas, que são conjugações das unidades formais
mínimas. O processo de decomposição consiste, portanto, na descrição da imagem em que a
maior quantidade de detalhes deve ser destacada, para que as unidades formais mínimas e os
sintagmas sejam identificados, classificados e montem um repertório compartilhado. Bérard
aponta:
[...] admitir-se-á que a maneira pela qual as unidades formais mínimas são
combinadas é fundamental para a compreensão da imagem. Combinações
transformam unidades em signos e esquemas em temas; eles devem atender a
certos requisitos lógicos não apenas na organização da imagem em si, mas
também por causa das relações associativas que cada imagem mantém, se não
com todas as imagens, pelo menos com um corpus (1983, p. 12).
Após decompor, realiza-se a operação inversa: a recomposição da imagem, quando
ocorre a busca pelos mecanismos de articulação do repertório de unidades formais mínimas e
sintagmas. Tamanho, repetição, duplicação, posição e sentido, presença e ausência são alguns
exemplos de como as unidades formais mínimas e os sintagmas podem ser combinados para
compor uma imagem. Marcelo Rede sintetiza tal processo:
Para o historiador que trabalha com imagens, trata-se, conseqüentemente, de
explicitar e compreender os diversos meios de arranjo das partes na formação
de um todo, e, nos casos mais otimistas, desvendar as leis que regulam os
procedimentos de formação da imagem neste momento crucial da articulação
das unidades icônicas mínimas. Metodologicamente falando, está-se
percorrendo um caminho inverso daquele trilhado no momento inicial da
análise: lá, o estudioso decompunha a imagem no intuito de discernir os
elementos formais mínimos e, isto feito, construir um repertório, proceder a
uma taxonomia, ordenar e classificar o material; já aqui, procura-se ver os
mecanismos que nortearam a combinação das unidades para a formação da
cena. Lá, houve um desmonte ideal; aqui, uma recomposição, também ideal,
da imagem (1993, p. 270).
102
Para complementar nossa metodologia, consideramos pertinente a interpretação de
Cibele Aldrovani (2006; 2009) sobre a teoria imagética do arqueólogo Philippe Bruneau.
Oriundo da mesma época de efervescência dos estudos franceses de iconografia grega, assim
como Bérard, Philippe Bruneau expôs sua teoria sobre imagem em seu artigo De l’image,
publicado no ano de 1986, contando com fortes influências do paradigma linguístico.
Bruneau afirma que a imagem deriva de uma categoria mais abrangente, denominada
produtos da técnica, “que resulta de uma conduta por meio da qual os meios necessários são
fornecidos para sua produção” (ALDROVANDI, 2009, p. 40). Bruneau ressaltou a dimensão
técnica que existe nas imagens e que deve ser levada em consideração na análise dos
arqueólogos. A imagem se faz análoga a um referente, termo da linguística que o autor
empregou para designar aquilo que a imagem materializa através da técnica. Nas palavras do
autor:
Definida, a grosso modo, como imitante, a imagem é, por sua vez, necessária
à coisa imitada. É preciso um termo para designar genericamente aquilo que,
na imagem, a técnica usa como trajeto, o que ela tem por fim mostrar o
aspecto. A palavra modelo tornou-se uma concepção muito particularizada das
ciências humanas e, sobretudo, supõe que a imagem deva representar, sempre,
uma realidade previamente sensível, o que não é o caso. Acho mais cômodo o
termo referente, mas se fiz aqui esse empréstimo da linguística, não é devido
à atual mania de encontrar em tudo a semântica, nem por confusão induzida
da arte e da linguagem. É porque, precisamente nesse ponto, a imagem, que
serve para mostrar o universo das coisas, está para ele não numa relação
idêntica, mas análoga àquela da palavra, que serve ao dizer (BRUNEAU,
1986, p.256-257 apud ALDROVANDI, 2009, p. 41).
Ao postular a diferenciação entre imagem e referente, Bruneau também indicou a
existência de um tema e um esquema, que são categorias de análise do arqueólogo; os artesãos
da Antiguidade não diferenciaram nem distinguiram seu trabalho a partir dessa dicotomia.
Entende-se por tema o aspecto abstrato e ideal ligado ao referente, enquanto o esquema está
associado à ordenação material e à organização estrutural de linhas, traços e formas. Essa
distinção permite que a análise iconográfica leve em conta tanto a questão abstrata e subjetiva
da imagem – o significado das cenas em seu conjunto, o seu potencial narrativo – como também
as questões ligadas à materialidade e estilo, compreendendo o papel constitutivo que os suportes
possuem na materialização da imagem. No esquema a seguir, sintetizamos as ideias de Bruneau
e Bérard sobre imagem e análise iconográfica:
103
Figura 36. Resumo da teoria imagética de Bruneau e dos conceitos de Bérard
Baseado em Aldrovandi (2006; 2009) e Gregori (2013).
Esse conjunto de conceitos, juntos aos procedimentos de elaboração de um corpus,
assim como a descrição e recomposição das imagens, irão nos guiar na análise imagética,
articulando nossa interpretação de forma sistematizada. As unidades formais mínimas e os
sintagmas, compostos a partir delas, são os elementos constitutivos dos esquemas, meios pelos
quais a imagem faz analogia ao seu referente, ou seja, seu tema. O aspecto material é o suporte
dos aspectos abstratos ou mentais das imagens, que possuem um caráter sagrado devido ao
contexto em que se encontram e ao conteúdo que fazem referência. Esses relevos fizeram parte
de uma situação prática muito complexa, incapaz de ser reconstituída em sua plenitude pela
inevitável distância temporal em que nos encontramos deles: os rituais funerários, atividades
chave para a definição desse espaço. Nesse complexo contexto, elas certamente adquiriam
agência por presentificar os deuses e reencenarem os ritos de fúnebres associados ao morto.
Nossa hipótese é sustentada pela ideia de mescla de traços culturais, que são visíveis
tanto na questão material – na arquitetura e nos relevos religiosos – quanto na temática das
imagens. Elas envolvem majoritariamente elementos da religião egípcia, interagindo também
com elementos da cultura grega e romana. Ao investigarmos os indícios de emaranhamento
cultural por meio das formas arquitetônicas e dos relevos de cenas religiosas encontrados na
câmara principal de Kom el-Shoqafa, os aspectos simbólicos e físicos presentes nesse espaço
serão possíveis de serem identificados, classificados e interpretados a partir dos referenciais
teóricos e metodológicos propostos acima.
104
3.3 – ANÁLISE ICONOGRÁFICA DOS RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL DE
KOM EL-SHOQAFA
Ao fundo da antessala, como se observa na figura 23 (p. 74), relevos foram entalhados
no lado externo da parede de entrada da câmara mortuária. Em oposição/espelhamento, eles
trazem a figura de uma serpente entronizada, portando uma coroa dupla ou pschent24 e uma
barba postiça, além de um escudo com uma máscara de Medusa que paira na região superior da
parede. Associa-se essa serpente à figura mitológica do Agathos Daimon, personagem da
mitologia grega associada à Alexandria em seu mito de fundação.
Figura 37. Relevo escultórico da serpente Agathos Daimon
Lado direito da fachada externa da câmara mortuária. Fonte: GUIMIER-SORBETS, Anne-Marie; PELLE,
André; EL-DIN, Seif Mervat (2017, p. 141).
Daniel Ogden (2015) afirma que o mito está presente na obra Romance de Alexandre,
de autoria desconhecida e que data do início do período helenístico, apesar da cópia existente
datar de 300 d.C.. Nesse mito, Alexandre teve de ordernar a morte do monstro-serpente que
24 Coroa dupla, simbolizando a união do Baixo e Alto Egito.
105
impedia os construtores de trabalhar no que seria a futura cidade de Alexandria. Seguindo uma
tradição mitológica grega, a morte da criatura significava também a proteção ligada ao lugar
em que residia (OGDEN, 2015, p. 133). No contexto da tumba, o Agathos Daimon fornece
proteção ao espaço, afastando os maus agouros possíveis.
O culto à figura do Agathos Daimon foi incentivado já no reinado de Ptolomeu I,
indicando a possível data de escrita do mito citado acima. No mundo helênico, associava-se
Agathos Daimon à concepção de destino e boa sorte, ligado também à deusa grega Tyche, que
apresenta esses mesmos aspectos. No Egito, mais precisamente, em Alexandria, essas criaturas
divinas foram associadas à serpente Shai, deus que correspondia à ideia de destino. A partir daí,
na iconografia egípcia, o Agathos Daimon e Tyche vão ser apresentados também como
serpentes, estando a última muito associada à deusa Ísis na versão Ísis Agathé-Tyche
(GASPARRO, 2005, p. 70).
Esquematicamente, o relevo apresenta bastante volume e certa noção de movimento, se
aproximando mais das técnicas clássicas do que egípcias. O tema, por sua vez, é completamente
emaranhado. A serpente está coroada com a coroa pschent ou dupla, a qual identificamos como
um sintagma que traz às figuras um mais um toque da tradição egípcia, associando-o com a
ideia de realeza. Atrás da serpente encontram-se dois bastões adornados, identificados como
um tirso e caduceu, símbolos associados respectivamente ao deus Dioniso e Hermes. O escudo,
formado por um círculo maior plano e um menor convexo, traz a cabeça de Medusa ao centro,
num fundo de plumas disposto em quatro partes. Junto ao Agathos Daimon, esse escudo traz a
função apotropaica de espantar os maus espíritos e fornecer proteção ao local.
Pelo contexto onde se encontram, Venit (2015, p. 69) afirma que a presença do tirso
(dardo envolvido de um ramo de videira) indica o aspecto ctônico de Dioniso, associado aos
cultos de mistério. Por sua vez, o caduceu (bastão envolvido por duas serpentes) revela o
aspecto ctônico de Hermes, deus responsável por realizar a travessia dos mortos ao Hades.
Ressaltamos também a associação que foi feita do deus grego Dioniso com Osíris, havendo
mais referências disso na câmara mortuária, como veremos mais à frente. Jean Claude Grenier
(1977) observou, a partir de fontes textuais, iconográficas e esculturas, a associação de Hermes
com o deus egípcio Anúbis no início do período Ptolomaico. A associação se deu pelo aspecto
de guia que os deuses poderiam assumir para os mortos no além.
Esse relevo evidencia o processo de apropriação de diferentes tradições que resultaram
na criação de algo novo; o emaranhamento presente nessa iconografia é notável e único pela
106
mescla de elementos egípcios e clássicos. Tomando-os como sintagmas ligados ao mundo
funerário, o tirso e o caduceu retomam a tradição greco-romana que complementam a função e
o significado da figura que se apresenta de forma egipcianizada.
A fachada interna da parede de entrada da câmara mortuária abriga duas figuras do deus
egípcio Anúbis (fig. 28, p. 81), em versões bastante peculiares e originais, que reforçam nossa
assertiva sobre a interação cultural chegando aos níveis de emaranhamento. Associado ao
contexto funerário egípcio por excelência, o deus Anúbis estava ligado ao processo de
mumificação, protegia a tumba e guiava o morto ao tribunal de Osíris. Assim, sua figura foi
constantemente representada nas tumbas, sarcófagos e outros adereços funerários. Ao serem
posicionados na parede interna da entrada da tumba, os relevos de Anúbis assumem a função
de proteção desse espaço. Veremos que com o emprego de vestimentas de legionário romano,
esse aspecto de “guarda” ou protetor é ainda mais intensificado.
O relevo do lado esquerdo da parede de entrada (fig. 38, página seguinte) traz Anúbis
em uma forma completamente emaranhada: com cabeça de chacal, tronco e membros
superiores antropomórficos e membros inferiores em forma de serpente. O esquema do relevo
é majoritariamente frontal, junto ao outro Anúbis presente no lado direito. A cabeça é
representada de forma lateralizada, voltada para a porta de entrada da câmara. O braço direito
do deus é erguido enquanto segura uma lança; o braço esquerdo é representado frontalmente
segurando o tecido do manto que recobre seu peito. O tronco apresenta uma couraça, com
detalhes do umbigo e de musculatura. Um saiote curto dá lugar a uma longa cauda de serpente.
O tema é majoritariamente egípcio, por trazer a figura de Anúbis em sua posição de guarda da
tumba; o emaranhamento é notável na sua vestimenta de soldado e na sua metade anguípede,
provavelmente associada ao Agathos Daimon.
107
Figura 38. Anúbis soldado anguípede
.À esquerda, fotografia em preto e branco do relevo. Fonte: VENIT (2015, p. 71). À direita, desenho
arqueológico correspondente. Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena. 25
Com auxílio do desenho arqueológico, podemos identificar melhor os sintagmas
presentes no relevo. O deus Anúbis possui na cabeça uma coroa de chifres que se assemelha à
coroa de Osíris26. Um manto é disposto em seu ombro esquerdo e preso ao ombro direito. O
tronco é vestido com uma couraça, apresentando detalhes como umbigo e definição muscular.
Sua mão direita segura uma lança em posição de guarda, à altura de sua cabeça. Sua mão
esquerda segura o tecido do seu manto, à altura de sua cintura. Um curto saiote segmentado
cobre a região abaixo do abdômen, em que se segue uma longa cauda de serpente, apresentando
de detalhes das escamas e parte interna do corpo de cobra. O corpo de serpente se dispõe de
25 Disponível em: <https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262696>. Acesso em 28 abr. 2018.
26 Conhecida como coroa atef, geralmente ladeada por plumas e com chifres de carneiro.
108
ambos os lados. A figura da divindade está apoiada em um bloco que se assemelha a um banco
ou altar, de base retangular e topo proeminente.
Como vimos anteriormente com a figura de Agathos Daimon, divindades egípcias
poderiam se apresentar na forma de serpentes, como as deusas Ísis e Néftis, ou foram
concebidas originalmente assim, como no caso de Apófis (serpente associada ao caos) e Wadjet
(divindade da região do Delta e símbolo do Baixo Egito). Para Grenier (1977, p. 38-39), a
associação de Anúbis com roupa de soldado romano e membros inferiores de serpente é
bastante singular, até aqui apenas observada na câmara funerária de Kom el-Shoqafa.
Figura 39. Anúbis soldado/legionário
. À esquerda, fotografia em preto e branco do relevo. Fonte: VENIT (2015. p. 70). À direita, desenho
arqueológico correspondente. Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena27.
27 Disponível em: <https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263245>. Acesso em 28 abr. 2018.
109
Ao lado direito da parede interna está o relevo que retrata a figura do deus Anúbis com
cabeça de chacal e corpo antropomórfico, apresentando vestes de um soldado romano. Assim
como o relevo da esquerda, o esquema de representação é majoritariamente frontal, restando
apenas a cabeça de forma lateralizada. A ideia de protetor das tumbas fez com que se associasse
a figura de soldado e guerreiro a Anúbis. Segundo Grenier (1977, p. 39) essa representação é
bastante comum no período romano, sobretudo em estatuetas (fig. 40).
Figura 40.Anúbis anguípede (a) e Anúbis soldado (b)
O emaranhamento presente nas representações de Anúbis. Proveniência desconhecida, Período Romano. Fonte:
GRENIER (1977, Pr. XIV).
Na figura 39, a cabeça de chacal apresenta um toucado e é voltada para a porta de entrada
da câmara; sua mão esquerda está erguida enquanto segura uma lança. Seu tronco apresenta
uma couraça, que termina em um curto saiote segmentado. Seu braço direito está abaixado. Os
sintagmas presentes na cabeça do deus são essencialmente egípcios: um disco lunar (Anúbis
apresenta um aspecto lunar ao invés do solar) disposto ao topo e um adereço que se assemelha
ao toucado real ou nemés. Os ombros e o tronco são revestidos com uma armadura; segmentos
cobrem os ombros e detalhes abdominais (músculos e umbigo) cobrem o resto do tronco. Um
saiote segmentado cobre sua região genital junto a um calção curto. Não é possível dizer se ele
utiliza algum tipo de calçado. Anúbis segura um escudo em sua mão direita, representado de
110
forma lateral, enquanto na mão esquerda ele segura uma lança, à altura de sua cabeça. Um cinto
preso ao lado esquerdo de seu tronco guarda uma bainha com uma espada, voltada para as
costas da divindade. Os pés são representados frontalmente. Assim como na figura anterior, a
divindade está apoiada em um banco ou altar, de base retangular e topo mais proeminente. O
tema se apresenta essencialmente egípcio, por trazer a figura de Anúbis como protetor,
enquanto o esquema emaranha elementos romanos nas vestimentas e na técnica de
representação frontal.
Localizado ao fundo da câmara mortuária (como é possível ver na fig. 29, p. 81), o nicho
central tem formato retangular cavado na rocha. Ele apresenta elementos em sua fachada que
são semelhantes aos que são encontrados na antessala: o frontão arqueado com um disco solar
envolto pelas serpentes uraei, seguidos de um friso entalhado com círculos encadeados,
motivos decorativos gregos denominados de egg-and-dart ou egg-and-tongue28 (GUIMIER-
SORBETS; PELLE; SEIF EL-DIN, 2017, p. 49). As pilastras do nicho são entalhadas de forma
que simulem colunas, com entalhe nos capitéis e nas bases, principalmente de flor de lótus,
folhas e ramos de papiro.
Figura 41. Cena da mumificação no nicho central
Fonte: GUIMIER-SORBETS, Anne-Marie; PELLE, André; EL-DIN, Seif Mervat (2017, p. 48)
28 “Ovo e dardo” ou “ovo e língua”, em tradução livre, é um padrão decorativo da arquitetura greco-romana,
composto de círculos encadeados e entremeados por dardos ou pequenas flechas. Os círculos ovais podem conter
um contorno baixo, dando a aparência de uma língua.
111
O teto do nicho é abobadado, seguindo o padrão de frontão arqueado nas paredes
internas laterais. Esse padrão arquitetônico, denominado de arcosolium, é repetido nos dois
outros nichos, dispostos ao lado esquerdo e direito. Na figura 41, é possível observar de mais
perto o relevo da cena, bem como o formato do nicho em arcosolium e o friso entalhado de ovo
e dardo.
O nicho central traz ao fundo a cena mais reproduzida no contexto funerário do Período
Ptolomaico e Romano (VENIT, 2002;2015), sendo encontrado em outras tumbas, sarcófagos,
cartonagem de múmias e máscaras funerárias de Alexandria e da chôra, denominação para o
restante do território egípcio nas épocas citadas acima. A preparação da múmia pelo deus
Anúbis, acompanhado de divindades como Ísis e Néftis, aparece de forma original e singular
no nicho principal, onde os deuses Hórus e Tot acompanham Anúbis no ritual com a múmia.
Figura 42. Detalhe do sarcófago com a cena da mumificação
Hawara, 100 d.C. Fonte: SEIDEL; SCHULZ (2006, p. 246).
A provável inspiração para essa cena advém do feitiço/capítulo 151 do Livro dos
Mortos, em que são descritos os equipamentos envolvidos no processo de embalsamamento do
corpo, além de trazer dizeres de proteção ao morto pelas deusas Ísis e Néftis e pelos quatro
filhos de Hórus. Segundo Matias, (2016, p.79) a associação do morto com a figura de Osíris
também se dá por meio desse capítulo. Um ritual de proteção mágica para a tumba é descrito
no texto, envolvendo o uso de quatro tijolos de argila não cozidos, posicionados nos pontos
cardeais e contendo fórmulas mágicas e símbolos. Esse ritual de proteção é documentado em
112
papiros e em evidência arqueológica que datam desde o início da XVIII Dinastia, no Novo
Império (RÉGEN, 2017, p. 101).
A vinheta do capítulo 151 traz em um registro Anúbis voltado para a múmia, deitada
em um leito em forma de leão. Um pilar djed, símbolo associado a Osíris, é colocado próximo
à cena. Eles são rodeados pelas deusas Ísis e Néftis; no registro abaixo, Anúbis na forma de
chacal protege a tumba, representada em branco. Nos demais registros, os quatro filhos de
Hórus e o deus Tot (em sua forma de babuíno) concedem proteção ao morto.
Figura 43. Vinheta do feitiço 151 do Livro dos Mortos
Encantamento 151 do Livro dos Mortos do Papiro de Nakht, XIX Dinastia, Novo Império. Fonte: Acervo Online
do Museu Britânico.29
A inovação e originalidade da cena de mumificação do nicho central nos evidencia o
potencial criativo e de agência dos artesãos envolvidos na decoração da tumba. A partir da
análise do desenho arqueológico a seguir, conseguiremos identificar os sintagmas que
compõem a cena, buscando compreender as possíveis interpretações da religião egípcia que
foram materializadas nesse relevo. Ele também apresenta características emaranhadas, como
veremos na análise.
29 Disponível em:
<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.a
spx?assetId=704823001&objectId=113284&partId=1>. Acesso em 20 jul. 2018.
113
Esquematicamente, o relevo segue o sistema de representação egípcia, estando todas as
figuras retratadas de forma aspectiva30. É visível, entretanto, que o relevo não apresenta rigor
na proporção do corpo, havendo certa deformidade nos membros superiores e principalmente
nos inferiores. No geral, as figuras vistas nesse relevo e nos demais presentes na tumba possuem
mais volume no corpo e em especial na região da face. O tema do relevo também apresenta
características majoritariamente egípcias, contando com interpretações e releituras da época
romana.
Figura 44.Desenho arqueológico da cena de mumificação
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena. 31
À esquerda, uma figura com corpo antropomórfico e cabeça de falcão está virada à
direita, se direcionando ao centro. Pela associação dos atributos do cabeça (coroa dupla e cabeça
de falcão), deduz-se que se trata do deus Hórus. Ele apresenta a coroa pschent, usando um
toucado real nemés e um colar usekh32, sintagmas associados à realeza egípcia. Suas vestes são
de tecido plissado, com um uma parte superior que cobre o tronco e um saiote que se estende
30 Criado em 1963 por Emma Brunner-Traut, editora da clássica obra de Heinrich Schäfer de 1919, Principles of
Egyptian Art. No epílogo da obra, Brunner-Traut propõe o conceito, que reúne os princípios de bidimensionalidade
e lateralização nos corpos representados nessa arte (VERBOVSEK, 2012, p. 146). 31 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263314>. Acesso em 26 abr. 2018. 32 Colar formado por contas que cobrem o peito e ombros, usado por deuses e pelos mortos.
114
até acima do joelho. Suas pernas entreabertas indicam movimento. Sua mão direita segura o
cetro was33 e sua mão esquerda traz um pequeno vaso com um ramo brotando, traço que indica
uma originalidade própria desse relevo.
Acredita-se que esse vaso com o ramo esteja associado à ideia de fertilidade e
ressurreição, atributos ligados à figura de Osíris, principal divindade da religião funerária.
Susan Venit (2002, p. 137) afirma que o vaso com ramo pode também ter relação com o mito
de Adônis, personagem da mitologia grega associado ao ciclo da vegetação e que também
aparecia ligado ao mundo funerário. Considerando como pertinente essa relação com o mito
grego, observamos aqui a interação entre as culturas egípcia e grega em torno da mesma ideia
de ciclo, fertilidade, morte e ressurreição, que culmina nessa iconografia emaranhada.
Ao centro, outra figura de corpo antropomórfico, mas cabeça de chacal, possui um disco
solar envolto pelas serpentes uraeus. A cabeça nos indica que se trata do deus Anúbis, divindade
ligada ao processo de mumificação e ao mundo dos mortos. Ele utiliza um toucado real e possui
uma veste longa, semelhante à uma túnica com detalhes plissados e um manto que recai em seu
ombro esquerdo. Enquanto sua mão direita repousa sobre a múmia, sua mão esquerda levanta
um vaso adornado com duas serpentes. À direita está a terceira figura antropomórfica, com
cabeça de íbis, indicando que se trata do deus Tot. Ele está voltado à esquerda, direcionado ao
centro da figura. Possui uma coroa composta em sua cabeça, assim como o toucado real nemés.
Assim como Hórus, Tot usa o colar usekh. Suas vestes também são similares com às do deus
Hórus, mas apresenta uma diferenciação no tecido da parte superior. Ele segura o cetro was e
um ankh34 na mão esquerda; a mão direita ergue um vaso sem decoração. Suas pernas
entreabertas também indicam movimento.
Ao centro, uma figura mumiforme está repousando em um leito que possui cabeça e
pernas de leão. A cauda é alongada e está voltada para cima. A cabeça é adornada com uma
coroa atef e uma vasta juba, que se pronuncia até a metade da pata dianteira, que está segurando
uma pena, símbolo da deusa Maat. O focinho do animal traz detalhes de olho, nariz e boca.
Retângulos com circunferências ao centro decoram a parte central do leito. A múmia apresenta
adornos na parte da cabeça, provavelmente com uma máscara e uma peruca, além de uma tiara
33 Cetro que possui o topo em formato de cabeça de animal, geralmente um canídeo. Associado às divindades
masculinas, simbolizava poder, estabilidade e domínio. 34 Hieróglifo que significa “vida”, tomado como amuleto ou motivo decorativo, comum nos ambientes
funerários.
115
com a cabeça de abutre. É possível notar a presença de uma barba khebesut, associada a Osíris
e indicativo do mundo dos mortos. Ela apresenta ainda faixas de adornos até a altura do peito.
Mais uma vez identificamos uma inovação iconográfica nesse relevo: apenas três dos
quatro jarros canopos estão presentes na cena. Duamutef, com a cabeça de chacal, Imsety, com
a cabeça humana, e Qebehsenuef, com a cabeça de falcão. Respectivamente, os jarros
continham o estômago, o fígado e os intestinos. O vaso que está faltando corresponde ao deus
Hapy, e que guardava os pulmões. Como afirmou Christina Riggs (2008, p. 345), a
mumificação no Período Romano no Egito contava com uma variedade de técnicas e
qualidades, sendo muitas delas bem preservadas mesmo sem passarem pelo processo de
evisceração. A presença dos vasos canopos nas cenas poderia, portanto, estar relacionada ao
valor simbólico de proteção associada aos filhos de Hórus, como vimos na referência ao feitiço
151 do Livro dos Mortos, sem necessariamente indicar o processo de retirada das vísceras.
Susan Venit (2015, p. 72) afirma que, apesar da recorrência das cenas de mumificação
nas tumbas alexandrinas, poucas múmias foram encontradas nas necrópoles de Alexandria no
período ptolomaico e romano, em contraste com a larga quantidade de múmias no território da
chôra. Também não restaram evidências de mumificação no sítio arqueológico de Kom el-
Shoqafa. A autora interpreta, apoiada em uma visão mais helenizante, de que as cenas de
mumificação exerciam poder simbólico no contexto funerário e complementam as concepções
de ressureição, sem necessariamente indicar a prática funerária egípcia de fato.
Apesar de considerarmos a colocação pertinente, buscamos entendê-la de forma
significativa no contexto dessa tumba, enxergando a interação cultural entre a tradição egípcia
e grega, que emaranhou narrativas e concepções sobre a morte e a vida no além. Visto a forte
integração de símbolos e de narrativas egípcias no programa decorativo da tumba, podemos
considerar possível a prática de mumificação em relação aos mortos que foram ali depositados,
mesmo que essas evidências não estejam mais disponíveis. Pensando na questão espacial
desenvolvida no capítulo anterior, a cena da mumificação é um exemplo de prática ritualística,
condição essencial para a sacralização e diferenciação do espaço funerário. Os demais relevos
encontrados nos nichos trazem também cenas ritualísticas, reiterando a importância desse tipo
de atividade praticada no contexto funerário.
Os nichos da câmara mortuária apresentam decoração em suas paredes laterais internas,
que apresentam largura igual a dos sarcófagos dispostos ali. Essas cenas apresentam temas
majoritariamente egípcios, ligado ao culto de Ísis e à religião funerária egípcia.
116
Esquematicamente, os relevos seguem o padrão iconográfico já comentado por nós
anteriormente: representação aspectiva, corpos com membros superiores e inferiores levemente
distorcidos na proporção, rostos e corpos volumosos. Esse padrão é aplicado em todo o restante
da câmara mortuária.
Figura 45. Nicho central – Parede direita
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena.35
A cena é composta por duas figuras antropomórficas e um pequeno altar ao centro. A
figura da esquerda possui o rosto masculino e duas grandes penas presas à cabeça em uma
pequena faixa. Suas vestes são longas, com sobreposição de tecidos e uma pele de pantera presa
ao seu tronco. Essa pele junto às plumas em sua cabeça constituem sintagmas que indicam um
cargo sacerdotal importante, denominado de Pterophoros – “aquele que veste plumas” -
(VENIT, 2002, p. 138). Sua mão direita possui um ramo de flor de lótus, enquanto a mão
esquerda ergue uma bandeja com um vaso semelhante à uma ânfora. A figura da direita possui
um disco solar ao topo de sua cabeça, uma peruca de camadas e vestes mais simples,em forma
de túnica ou vestido. O rosto é feminino. Os braços e as mãos estão erguidos em um gesto de
lamentação. Ao canto superior direito, inscrições ilegíveis são colocadas em um retângulo. O
altar no centro segue o formato dos altares das demais cenas, com base e topo circulares e corpo
35 Disponível em:< https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263417>. Acesso em 20 jan. 2018.
117
afunilado, decorado com linhas e traços geométricos. Flores se dispõem ao lado do altar e em
cima das oferendas; frutos ou pães são colocados acima.
Levantamos a hipótese de que os pequenos altares (em especial os que estão nos relevos
das paredes centrais do nicho esquerdo e direito) tiveram em seu formato a inspiração no pilar
djed, símbolo hieroglífico e amuleto associado à coluna vertebral do deus Osíris, estando ligado
à ideia de estabilidade e regeneração. De acordo com Richard Wilkinson (2011, p. 165), esse
símbolo é conhecido desde o Antigo Império, quando fora associado ao deus Ptah, mas que a
partir do Novo Império passou a ser atribuído ao deus Osíris. Ele tanto aparece no contexto
funerário quanto no templário, sendo também um símbolo ligado à realeza. Erguer o pilar djed
tinha o simbolismo de vitória de Osíris sobre Seth, ato praticado pelos faraós.
Figura 46. Hieróglifo Mehyt/moita de papiro e pilar djed.
Fonte: WILKINSON, R. 2011, p.123-165.
Também consideramos pertinente comparar a disposição das flores ao hieróglifo mehty,
ou como denominou Richard Wilkinson (2011, p. 123), moita de papiros (papyrus clump).
Associado à região do Delta e do Baixo Egito, a planta papiro (Cyperus papyrus) quando
utilizada como amuleto tinha um sentido conotativo de vida ligado ao ciclo da vegetação, à
juventude e ao florescimento. Esse motivo iconográfico aparecerá nos demais altares das paredes
centrais e laterais dos nichos da direita e da esquerda, e seu uso pode servir como complemento
aos atributos de Osíris ligados ao ciclo da vida e à ressurreição. Se essas hipóteses forem tomadas
como corretas, presumimos que os artesãos envolvidos na decoração da tumba conheciam um
grande repertório iconográfico egípcio, assim como os proprietários.
118
A parede esquerda traz uma cena composta por duas figuras antropomórficas, com um
pequeno altar ao centro. Inscrições ilegíveis são colocadas no canto superior esquerdo. A figura
da esquerda possui um disco solar ao topo da cabeça, cabelos envoltos em uma espécie de touca
e o tronco desnudo. Um tecido compõe uma saia longa, que se estende até a altura dos
tornozelos. O rosto possui traços masculinos. O braço direito, demasiadamente longo, segura
um objeto difícil de ser identificado, mas que se assemelha a um tecido dobrado. A mão
esquerda é erguida na altura do rosto, em um gesto de lamentação.
Figura 47. Nicho central – Parede esquerda
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena 36.
O altar do centro segue o padrão dos demais altares, base e topo circulares e corpo
afunilado. Um vaso cilíndrico com decoração de lótus abriga um pequeno ramo ou raíz
(podendo ser também fumaça ou vapor que dali emana). À direita, a figura dispõe de vestes
compostas, com tecido bastante decorado com linhas e pontos, além de uma pele de pantera
presa ao seu tronco. Seu rosto é masculino e o cabelo parece estar envolto em uma touca. Seus
braços erguem um papiro, em posição de recitação de fórmulas mágicas. Pela composição dos
sintagmas envolvidos (vestimenta, pele de leopardo e leitura), presume-se que seja um
sacerdote. Pensando na questão ritualística que é retratada, a cena traz um momento de leitura
36 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262962>. Acesso em 26 jan. 2018.
119
feita pelo sacerdote, direcionada ao indivíduo à esquerda, que apresenta postura de
concentração diante das palavras.
Ao pensarmos no contexto em que essas cenas estão gravadas – o nicho central, que
abriga a cena da mumificaçao – podemos fazer algumas inferências sobre os personagens
representados, tomando como base as interpretações mais recentes feitas por Susan Venit (2015,
p. 77). De acordo com a autora, o homem e a mulher representados nesses relevos podem estar
associados aos proprietários da tumba, devido à semelhança dos traços do rosto e cabelo com
outras cenas ali presentes (nicho esquerdo e nicho direito) em que um homem e uma mulher
estão mumificados. O disco solar presente nessas representações indicaria uma assimilação
desses indivíduos a um plano do além, associando-se com o aspecto de vida no além de Rê-
Osíris. A ausência de inscrições com nomes ou outro tipo de identificação compromete o
levantamento de uma hipótese mais sólida, no entanto.
O nicho esquerdo e direito possuem o relevo central espelhados, como já observamos
na figura 32 (p. 84). Com o desenho arqueológico seguinte (figura 48), conseguimos identificar
mais detalhes acerca dos componentes da cena.
Figura 48. Nicho esquerdo – Parede central
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena37.
37 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262964>. Acesso em 20 jan. 2018.
120
À esquerda, a deusa está coroada com um disco solar e usa uma tiara com uraeus na
cabeça, com cabelos até a altura do ombro. Seu corpo está lateralizado, como as demais figuras
da cena. Ela olha para o centro, onde está o touro. Seus braços estão abertos para frente,
exibindo longas asas, com detalhes das penas bastante destacados. Os dedos da mão esquerda
aparecem detalhados. Ela segura na sua mão esquerda uma pena da deusa Maat, podendo assim
entendermos que se trata da deusa Ísis-Maat. Sua veste deixa um dos seios à mostra, se estende
até os tornozelos e é decorada com linhas, figuras geométricas e círculos. Seus pés estão
descalços e lateralizados, com detalhes nos dedos do pé direito.
O touro possui um disco entre os chifres, provavelmente sendo o disco lunar devido ao
seu aspecto aqui fazer referência a Osíris e Serápis. Ele possui um colar com formato de templo,
pendurado no pescoço. Detalhes como focinho, orelhas, olhos e boca são observados. Ele
possui uma lua crescente em seu dorso e está apoiado em um pequeno altar com detalhes
dentilhados. Amuletos estão pendurados acima do touro. Um pequeno altar de base e topo
circulares, com detalhes dentilhados, é decorado com rosas, havendo as possíveis conexões com
os hieróglifos mencionados anteriormente. À direita, um homem coroado com a coroa dupla
(pschent) e vestido com roupa egípcia está fazendo uma oferenda ao touro sagrado. Sua roupa
traz detalhes diferenciados na parte superior e inferior, com círculos e linhas. Seus braços estão
erguidos, com detalhes para os dedos da mão direita. A oferenda dada por ele se assemelha ao
colar usekh. Suas pernas abertas indicam movimento. Os pés possuem detalhes no tornozelo e
de dedos.
É pertinente observar que a cena desse relevo pode ter sido inspirada na composição de
estelas que datam desde o início do período ptolomaico, sendo também encontradas durante o
período romano. Os exemplos a seguir trazem estelas dividas em três registros, no centro
havendo a oferenda a um touro sagrado feita por um homem com trajes de realeza. Não cabe
aqui fazer a análise completa de todos os elementos dessas estelas, visto que nosso prinicipal
objetivo é a comparação imagética do registro central.
O touro sagrado das estelas, entretanto, trata-se de Buchis, divindade cultuada na região
tebana, associado ao seu aspecto de força (ligado também ao deus Montu) e de cura. Na primeira
estela, trata-se de Ptolomeu II (281-246 a.C.) fazendo oferendas ao touro, adornado com uma
coroa dupla de plumas. Um pequeno altar é colocado entre os dois, e um disco solar (ou Rê-
Horakhty) com asas aparece à esquerda na cena, em um gesto similar ao de Ísis-Maat no relevo
121
da tumba que estudamos. A datação precisa e o contexto de achado não são informados pelo
Museu Britânico.
Figura 49. Estela de Ptolomeu II e de Diocleciano
Figura 50. Estela de Ptolomeu II fazendo oferendas ao touro Buchis (à esquerda); Estela de Diocleciano fazendo
oferendas à Buchis (à direita). Fonte: Acervo online do Museu Britânico38.
Caso essa inspiração tenha realmente acontecido, é pertinente afirmarmos que os
atributos de realeza foram empregados efetivamente no programa decorativo dessa tumba.
Mais ainda, isso pode ser visto como um reforço às hipóteses de que a figura masculina com
trajes faraônicos se trata de um imperador, provavelmente Vespasiano (69-79 d.C.), visto que
a datação mais aceita da construção dessa tumba coincide com o seu governo. Como afirmamos
anteriormente, a aclamação desse imperador aconteceu em Alexandria, o que poderia
corroborar com essa linha de interpretação39. Observa-se que os imperadores também foram
representados como faraós nos templos egípcios, seguindo o padrão tradicional da arte egípcia,
38 À esquerda disponível em:
<https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.
aspx?partid=1&assetid=969666001&objectid=123652>. Acesso em 20 fev. 2019.
À direita disponível em:
<https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.
aspx?assetId=439770001&objectId=123810&partId=1 >. Acesso em 20 fev. 2019. 39 Ao mesmo tempo, as desavenças de Vespasiano com os alexandrinos, comentadas brevemente no capítulo 1
(p. 6) podem ir de encontro com a ideia de homenagem ao imperador nesse relevo.
122
havendo o emprego dos símbolos de realeza faraônica à figura do imperador. O uso de símbolos
reais em tumbas privadas foi comum no período faraônico, em especial quando o poder do faraó
estava descentralizado. Nesse sentido, podemos conjecturar que a figura masculina com trajes
faraônicos pode também ser uma representação do proprietário da tumba, que investiu em si
próprio os símbolos reais. A ausência de inscrições com nomes ou datas nos impede de
afirmarmos com mais precisão. De qualquer forma, a apropriação da simbologia real em tumbas
privadas é também atestada nas tumbas do período ptolomaico e romano, como é possível
observar nos relevos de Kom el-Shoqafa.
Figura 50. Nicho esquerdo - Parede direita
À direita: GUIMIER-SORBETS, Anne-Marie; PELLE, André; EL-DIN, Seif Mervat. (2017, p. 112). À
esquerda: Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena.40
Na figura 50, a cena é espelhada ao relevo da parede esquerda do nicho direito (figura
53, p.126), composta por uma figura mumiforme, um altar ao centro e uma figura
antropomórfica à direita. A figura mumiforme possui um disco solar ao topo de sua cabeça,
rosto masculino e uma barba postiça curvada (khebesut), sendo possível afirmarmos, a
princípio, que se trata da figura do deus Osíris. Seu corpo é envolto por bandagens transversais
e decoradas, com desenhos de lua crescentes, círculos e figuras antropomórficas. Seus pés estão
lateralizados e se assemelham aos pés de um sarcófago. Seus braços estão cruzados à altura do
peito, por dentro das bandagens. O altar possui base e topo circulares, com decofrações
40 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263639>. Acesso em 20 jan. 2018.
123
geométricas e de flor de lótus. Um cesto é colocado acima, com alguns frutos. Ramos ou caules
estão dispostos ao lado do altar.
O homem à direita usa uma coroa composta com chifres e plumas, provavelmente se
tratando da coroa hem-hem41. Ele possui um toucado nemés, o torso desnudo e um saiote
plissado no estilo egípcio. Seu braço direito é estendido ao deus Osíris, trazendo a pena de Maat
como oferenda. Seu braço esquerdo é abaixado junto ao corpo. Sua perna esquerda é levemente
mais grossa que a perna direita. Elas estão abertas, indicando movimento. Acredita-se que seja
a figura do imperador, devido aos seus atributos de realeza faraônica, correspondentes aos
sintagmas da coroa hem-hem, saiote e toucoado nemés. Isso pode indicar o caráter faraônico
que o Imperador assumia para os proprietários da tumba, estando associado ao exercício da
justiça – indicado pelo ato de conceder a pena de Maat – até mesmo no âmbito funerário.
Figura 51. Nicho esquerdo – Parede esquerda
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena42.
No relevo acima (figura 51), a cena é composta por uma figura feminina mumiforme à
esquerda, um pequeno altar ao centro e uma figura mumiforme à direita, com cabeça de falcão
e coroa dupla. À figura da esquerda possui um disco solar ao topo de sua cabeça, que dispõe de
cabelos ou uma peruca em camadas até à altura abaixo dos ombros.
41 Coroa composta de três coroas-atef, adorno atribuído à Osíris. Na coroa hem-hem, observa-se ainda chifres de
carneiro. Era utilizada pelo faraó morto. 42 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262720>. Acesso em 20 jan. 2018.
124
O corpo à esquerda é lateralizado e envolto de um tecido ou faixas, com detalhes
decorativos nos ombros. Uma parte do tecido recai frontalmente, evidenciando também
elementos decorativos. Os braços estão envoltos pelo tecido, mas as mãos são visíveis para fora
segurando uma haste. Detalhes dos dedos da mão esquerda são visíveis. Pela similaridade da
peruca dessa figura com a que está presente no relevo na parede direita do nicho central (fig.
45, p. 115), Susan Venit (2015, p. 77) acredita que se trate da representação da proprietária da
tumba.O altar ao centro possui a base e o topo circular, com detalhes de linhas no corpo
afunilado. Ao topo está um vaso com decoração de lótus e dois frutos ao lado.
A figura da direita possui o corpo lateralizado envolto com tecido ou faixas, assim como
a sua oposta. A cabeça de falcão junto ao corpo mumiforme pode indicar que se trate da
divindade Qebehsenuef, filho de Hórus e representado em um dos vasos canopos. Ele está
associado ao ponto cardeal do oeste, correspondendo ao lado onde foi representado no nicho.
A divindade possui os braços erguidos para frente, segurando uma haste igual à sua figura
oposta. Os detalhes dos dedos da mão direita são visíveis. A presença dessa divinidade diante
de uma múmia deve ter raízes na concepção de proteção que ele exerceria ao morto.
O relevo a seguir (figura 52) traz a cena de duas figuras mumiformes voltadas para si,
entremeadas por um altar.
Figura 52. Nicho direito – Parede direita
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena43.
43 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263207>. Acesso em 20 jan. 2018
125
A figura da esquerda traz um disco solar ao topo de sua cabeça, corpo lateralizado
envolto por um tecido ou faixa, com detalhes de decoração à direita na parte do tecido que recai
frontalmente. O rosto é representado também de forma lateral e traz traços masculinos, com um
leve sorriso. Dois cordões com amuletos envolvem o corpo, que se finaliza com pés também
lateralizados e que se assemelham aos sarcófagos verticais. As mãos da figura mumiforme
seguram juntas uma haste da altura de todo o corpo. Ao centro, um altar de base e topo circulares
e corpo afunilado traz um vaso com decoração de flor de lótus e uma pequena planta. Acima,
um relevo de bordas retangulares traz inscrições ilegíveis.
À direita está a figura mumiforme com cabeça de babuíno. Pela atribuição do corpo
mumiforme e da cabeça de babuíno, interpreta-se que seja o deus Hapy, filho de Hórus. Essa
divindade estava ligada ao ponto cardeal norte, não havendo aparentemente relação com a
posição que ocupa no nicho. A cabeça do deus é coberta por um toucado nemés que se estende
até a altura do peito. Faixas de bandagem são observadas em seus ombros e braços. Uma parte
do tecido ou faixa que o envolve recai frontalmente, evidenciando o padrão decorativo. Assim
como a sua figura oposta, Hapy é representado completamente lateralizado. Ele também segura
uma haste da altura de seu corpo. Para Susan Venit (2002, p. 141-142), a figura mumiforme à
esquerda se trata do proprietário da tumba, tendo em vista que na cena da mumificação (figuras
41 e 44) o vaso canopo com Imsety não é incluído. Segundo a autora, dificilmente o artesão
responsável pelos relevos representaria Imsety em outro contexto.
No relevo abaixo (figura 53), a cena apresenta características de espelhamento com a
cena da parede direita do nicho esquerdo (figura 50, p. 122). Cena com uma figura
antropomórfica à esquerda, um altar ao centro e uma figura mumiforme à direita. O homem
possui um disco solar envolto por um uraeus, usa um toucado nemés e apenas um saiote egípcio,
deixando o torso desnudo. Sua mão direita segura um objeto circular, abaixada ao seu quadril,
enquanto a mão esquerda oferece uma pena à divindade. Suas pernas estão abertas, o que pode
indicar a ideia de movimento. Pelos seus atributos, interpreta-se que é a figura do imperador.
Ao centro, um altar de base e topo circular com corpo afunilado é decorado com flores nos
lados e possui desenhos ondulados, que se assemelham ao hieróglifo mehyt, já mencionado por
nós anteriormente. A base é ligeiramente maior que o topo, que possui uma faixa de quadrados
em alto e baixo-relevo. Um objeto similar a um vaso ou caixa está colocado em cima desse
altar, que parece exalar uma fumaça.
126
Figura 53. Nicho direito – Parede esquerda
Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena44.
A figura mumiforme da direita é ligeiramente menor que o homem; possui rosto
masculino e é coroado com um disco solar. O corpo envolto em bandagem é majoritariamente
frontalizado, com detalhes das mãos que se prendem a um cetro, segurado ao centro. A cabeça
e os pés estão lateralizados. A bandagem apresenta uma decoração de quadrados e linhas
horizontais, com alguns desenhos inscritos. Pelos atributos iconográficos (figura masculina em
posição mumiforme e segurando um bastão a sua frente) associa-se, a priori, tal figura com o
deus Ptah. Novamente, as interpretações recentes de Susan Venit (2015, p. 77) apontam na
direção de que essa figura mumiforme esteja associada ao proprietário da tumba. Levantamos
novamente nossa conjectura sobre o homem de trajes faraônicos estar associado ao proprietário
da tumba, o que levaria a figura mumiforme se tratar do deus Ptah. Mais uma vez, a ausência
de inscrições com nomes de divindades ou dos indivíduos ali representados nos impede de
afirmarmos de forma mais precisa ou definitiva, deixando abertas as possibilidades de
interpretação.
44 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262460>. Acesso em 20 jan. 2018.
127
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Alexandria possui como uma de suas principais características o caráter cosmopolita,
atribuído desde os tempos da Antiguidade. A pólis nasceu em 331. a.C. em um contexto de
dominação macedônica no Egito, e estava inserida na dinâmica comercial, social e cultural do
Mediterrâneo. A tradição milenar dos tempos faraônicos foi um fator importante, associado e
apropriado à matriz helênica observada em Alexandria. Sua população refletia tal diversidade
cultural, havendo uma maioria de habitantes provenientes da Macedônia e Grécia, mas
contando com um contingente de nativos egípcios, judeus, persas, entre outros. Em contextos
como esse, de diversidade populacional e étnica, torna-se pertinente investigar os processos de
interação culturais, sobretudo no que diz respeito à religiosidade.
A interação do Egito com outras culturas não é exclusividade do período ptolomaico ou
romano. O Egito faraônico se mostrava aberto a divindades estrangeiras, sobretudo às oriundas
do Mediterrâneo oriental, como mencionamos no primeiro capítulo. A entrada de populações
de origem grega, no século VII a.C., fez com que o Egito também tivesse contato com o panteão
grego, e divindades fossem associadas umas às outras, mas sem haver fusão de panteões. A
monarquia ptolomaica se apropriou da religião egípcia para se firmar politicamente, sendo o
culto de Serápis difundido a partir de Alexandria para o restante do território, um bom exemplo
da interação entre os monarcas macedônicos e a religião faraônica. Ao longo desta pesquisa,
estivemos investigando sobre a interação cultural, mais especificamente, nas trocas e
apropriações ligadas à religião funerária, a partir da análise da arquitetura e iconografia de uma
tumba alexandrina, cuja datação se situa entre os séculos I e II d.C. Denominamos o processo
de apropriação e criação de uma arquitetura e iconografia original de emaranhamento, algo
fortemente presente na Tumba Principal de Kom el-Shoqafa.
Conforme foi visto no segundo capítulo, a dimensão histórica dos espaços possui grande
potencial no estudo das sociedades antigas. A compreensão do espaço funerário é capaz de
indicar as concepções religiosas e atividades ritualísticas praticadas por um grupo; sendo
também um campo fértil para se observar a interação cultural de diferentes tradições que
operam juntas diante do fenômeno da morte. A materialidade do espaço, isto é, a arquitetura, é
de extrema importância para que se alcance a esfera sagrada dos ambientes funerários. Os
elementos constituintes da arquitetura do espaço dão suporte à prática ritualística, ação
imprescindível para haver contato dos homens com a dimensão divina, necessidade comum
diante do fenômeno da morte.
128
Pensando no contexto de Alexandria, as tumbas escavadas na cidade se apresentam com
arquitetura e iconografia variáveis de acordo com a localidade e a temporalidade. No período
ptolomaico, a tradição helênica é a principal inspiração para tais espaços: as tumbas do século
III a.C, localizadas na parte oriental da cidade, possuem arquitetura proveniente da Macedônia
e da Grécia. Isso é observável no sítio de Moustafa Pasha, conforme foi verificado. Ao mesmo
tempo em que apresenta elementos majoritariamente greco-macedônicos, a tumba 1 de
Moustafa Pasha (figura 9, p. 61) também traz elementos egípcios, ao possuir esfinges egípcias
próximas às portas da fachada sul do complexo funerário. Essa evidência, que data da segunda
metade do século III a.C., nos indica que interação cultural entre a tradição greco-macedônica
e egípcia aparece de forma modesta e paulatina.
Somente a partir do século I a.C., conforme percebemos nos hipogeus localizados na
ilha de Faros (sítios arqueológicos de Ras el Tin e Anfushy, figuras 10, 11, 12 e 14, p. 62-65),
as evidências materiais do espaço funerário demonstram uma interação e apropriação mais
acentuada de elementos egípcios em meio à tradição greco-macedônica. A presença de tetos
abobadados é uma característica presente nas tumbas dessa ilha, denotando a influência da
arquitetura macedônica; nota-se a influência egípcia no uso de decoração quadriculada, que
simulava faiança, e a presença de naiskos (figura 15, p. 66), pequeno altar em formato de templo
egípcio. Consideramos que nessas tumbas, a interação já é mais avançada do que se
compararmos com Moustafa Pasha 1, por exemplo. Elas também indicam as inovações próprias
do contexto funerário de Alexandria, quando se atesta o uso de nichos arqueados cavados na
rocha, denominados de arcosolium. Para o período ptolomaico, essas estruturas estavam
associadas ao uso de kliné, elemento mobiliário difundido no mundo grego, utilizado em
contextos de banquetes e também em tumbas; no período romano houve a substituição do kliné
pelos sarcófagos entalhados na rocha, sem necessariamente possuírem a tampa removível.
Esse segundo caso é visto na tumba de Kom el-Shoqafa. A presença de triclínio,
estrutura arquitetônica composta de três bancos ou leitos dispostos como um “Π”, é
característica das tumbas alexandrinas do período romano. A organização espacial da câmara
funerária de Kom el-Shoqafa segue o modelo de triclínio, e o primeiro piso possui essa estrutura
escavada em rocha, onde provavelmente banquetes eram realizados. A rotunda, construção
circular que envolvia o poço, também dava direção e acesso ao segundo piso. Ambas as
estruturas se configuram como elementos fixos e comunicam informações ligadas ao uso desse
espaço. Ao pensarmos no triclínio e na realização de banquetes, a prática ritualística é também
algo inerente à essas atividades e pode ser inferida a partir dessa evidência material.
129
A antessala, já no segundo piso, conta com a presença de duas esculturas, fixadas em
nichos laterais. Identificamos tais esculturas como representações dos proprietários da tumba,
provavelmente pessoas da elite alexandrina, uma vez que as dimensões da tumba demandaram
uma grande quantidade de recursos. As esculturas se apresentam de forma emaranhada: a
cabeça traz características de retratos romanos, as vestes e a posição corporal são de traço
egípcio. Consideramos válida a premissa de que se tratam de esculturas ka, ligadas à tradição
egípcia; exerciam função de culto e homenagem aos mortos. Isso também é observado na
cultura greco-romana, ligado à memória social do morto. Assim, as esculturas exercem uma
dupla função, ligadas à tradição egípcia e greco-romana ao mesmo tempo. A arquitetura e
iconografia da antessala são de inspiração majoritariamente egípcia, assim como todo o
programa decorativo da câmara funerária. Os nichos em formato de arcosolium, seguidos dos
sarcófagos entalhados na rocha, são os elementos arquitetônicos de inspiração greco-romana
desse espaço. Eles são decorados pelos relevos entalhados com cenas egípcias associadas aos
rituais funerários e ao ciclo de Osíris. Interpretamos que a presença dessa iconografia são
elementos comunicativos da prática desse espaço, funcionando como importantes agentes na
sacralização desse ambiente.
A análise dos relevos da Tumba Principal foi o tema do terceiro capítulo. Tendo em
vista que trabalhamos com imagens, precedemos a análise com uma reflexão sobre esse material
de grande complexidade. Compreendemos que o termo imagem comporta uma variedade de
sentidos, que visam abranger as diferentes possibilidades nas quais esse fenômeno pode ser
apreendido. Para levar em conta a dinamicidade das imagens, as ideias de mídia, imagem e
corpo proposta por Hans Belting (2006, 2011) elucidam questões ligadas à natureza desse
objeto. As imagens acontecem entre o corpo e o meio através das mídias; são produzidas,
percebidas e transmitidas por meio desse diálogo entre os três elementos.
É preciso também ressaltar a função que as imagens exercem no espaço: sob influencia
do pensamento de Vernant (1996), concordamos com a premissa de que as imagens marcam o
paradoxo da presença da ausência. Elas marcam a ausência daquilo que é invisível, ao mesmo
tempo que lhes dão uma presença, ainda que simbólica. Trazendo tais ideias para o espaço
funerário, as imagens materializadas nos relevos da Tumba Principal possuem (dentre as suas
várias funções) o papel de presentificar os deuses envolvidos nos rituais funerários. Mais ainda,
essas imagens ganham agência em meio à própria ação empreendida nos rituais desempenhados
nesse espaço.
130
Para a metodologia, fizemos opção pela análise iconográfica. Seguimos os preceitos da
Arqueologia da Imagem, de inspiração em autores franceses especialistas em análise de
iconografia grega, como Claude Bérard (1983) e Phillipe Bruneau (1986, apud ALDROVANDI
2006; 2009). A iconografia é analisada em um processo de decomposição e recomposição, em
que os elementos que constituem o esquema (aspecto técnico e material da imagem) são
decompostos e recompostos para se chegar ao tema (conteúdo abstrato e imaterial ao qual a
imagem se refere). Por meio de descrições minusciosas e detalhadas, analisamos fotografias e
desenhos arqueológicos dos relevos.
A execução técnica dos relevos demonstra uma diferenciação do sistema de
representação egípcia tradicional: os corpos são mais curvilíneos e os relevos são mais
destacados da parede, havendo uma possível influência da técnica ligada aos relevos greco-
romanos. No entanto, a lateralização típica da arte egípcia se faz presente. Encontramos
exceções a essa tendência laterlizada nos relevos do deus Anúbis, nas figuras 38 e 39 (p. 106 e
p. 107, respectivamente) em que somente a cabeça é lateralizada. O esquema desses relevos,
portanto, apresenta características emaranhadas, assim como o tema, que traz a divindade com
corpo de serpente e vestida em trajes de um legionário romano. Essa composição é original e
evidencia o processo de apropriação e criação inerentes ao emaranhamento.
Outra cena de destaque é a da mumificação (figura 41, p. 110 e figura 44, p.113),
presente no nicho central. Essa cena tem um papel imprescindível para a sacralização e
diferenciaçao do espaço, visto que retrata o ritual que permitiria a vida no Além. Os
personagens envolvidos nas cenas estão diretamente ligados à concepção egípcia do ciclo da
morte e renascimento. Os demais relevos também trazem conteúdo ritualístico, como nas cenas
centrais dos nichos direito e esquerdo, que são espelhadas (figura 32, p. 85). A homenagem ao
touro Ápis feita pelo homem com trajes faraônicos, conforme podemos ver na figura 48 (p.
119), nos trouxe possibilidades de interpretação: esse relevo pode tanto fazer referência ao
Imperador (notadamente Vespasiano, segundo os autores especialistas), como pode ser uma
apropriação dos trajes faraônicos vestidos pelo proprietário da tumba. Consideramos ambas as
possibilidades como plausíveis.
Percebemos que os artesãos envolvidos no programa decorativo da tumba, assim como
os proprietários desse espaço, apresentavam um conhecimento significativo da religião egípcia,
entremeando elementos greco-romanos que também faziam parte do universo religioso de
Alexandria. Infelizmente, não há registros escritos nos relevos que possam identificar nomes
131
ou cargos atribuídos aos proprietários, assim como não há informações sobre os artesãos. Pela
localização da tumba ser próxima ao Serapeum, presumimos que a família a ser beneficiada
desse espaço estava envolvida nos cultos de Serápis, que se associavam fortemente ao culto de
Ísis. Pensando na religião funerária, o ciclo de Osíris tinha um peso essencial na crença na vida
após a morte; daí a simbologia egípcia ser tão presente nessa tumba. Em linhas gerais: a
religiosidade egípcia aparece de forma abrangente, indicando a presença da cultura egípcia em
uma cidade de matriz cultural greco-macedônica. Isso foi resultado de séculos de contato entre
alexandrinos (de cultura majoritariamente helênica e macedônica) e egípcios, iniciado no
período ptolomaico e que atinge altos níveis de apropriação, combinação e criação durante o
período romano, e que definimos nessa pesquisa como emaranhamento. O que o
emaranhamento pode significar? Uma aproximação forte à religiosidade egípcia por cidadãos
alexandrinos, que demarcavam seu status social grego devido aos privilégios diante da
administração romana. No espaço funerário, todavia, tais cidadãos estavam muito mais
próximos aos elementos egípcios, adotando para si os rituais e o culto às divindades egípcias.
A cena da mumificação indica a adoção do costume funerário tradicional do Egito.
Juntamente a isso, a arquitetura do local apresenta características romanas que
figuravam à época, como a disposição da tumba como um triclínio e o uso de nichos em formato
de arcosolium, contando com sarcófagos entalhados na rocha, que contavam com decoração de
elementos gregos (ramos de folhas, bucrânio e máscaras de sátiro e Medusa). Pensando na
datação da tumba, que varia entre o final do século I e início do século II d.C., torna-se
pertinente perceber a influência da arquitetura romana em Alexandria já se fazendo presente
nesse momento.
A escolha pelo repertório religioso e iconográfico egípcio pode ser um forte indício da
prática ritualística exercida na Tumba Principal também ser de natureza egípcia. É possível que,
no contexto de Alexandria, os rituais passassem por influências e trocas entre as tradições
egípcia e greco-macedônicas. A presença da cena da mumificação, todavia, indica uma
aproximação maior ao fator egípcio, no que diz respeito ao tratamento dado ao corpo do morto.
Como já mencionamos anteriormente, o uso de elementos egípcios no contexto funerário
provavelmente se deu pela perspectiva positiva de uma vida após a morte, característica
somente encontrada na tradição egípcia. Essa apropriação acontece no período ptolomaico, se
intensifica no século I a.C. e pode ser vista francamente no período romano. Em Alexandria,
com séculos de contato com a tradição religiosa faraônica, observamos os registros
emaranhados desse anseio pela continuidade da vida nos espaços dedicados aos mortos.
132
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