espaÇo funerÁrio em alexandria: tumba principal de … · alexandria, centro político do governo...

141
ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL- SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C. ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

Upload: others

Post on 21-Jul-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-

SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, IDENTIDADES E ESPACIALIDADES

ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-

SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

NATAL, JULHO 2019

ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-

SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do

grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área

de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa

III, Linguagens, Identidades e Espacialidades, da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a

orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Marcia Severina Vasques

NATAL, JULHO 2019

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -

CCHLA

Castro Júnior, Elian Jerônimo de.

Espaço funerário em Alexandria: tumba principal de Kom el-

Shoqafa, séculos I e II d.C / Elian Jerônimo de Castro Júnior. - Natal, 2019.

139f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e

Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Marcia Severina Vasques.

1. Espaço Funerário - Dissertação. 2. Alexandria - Dissertação.

3. Emaranhamento Cultural - Dissertação. I. Vasques, Marcia

Severina. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(32)

ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-

SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

Dissertação aprovada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-

Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão

formada pelos professores:

_________________________________________

Nome do Orientador

__________________________________________

Nome do Avaliador Externo

________________________________________

Nome do Avaliador Interno

____________________________________________

Nome do Suplente

Natal, _________de__________________de____________

AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente ao meu pai, minha mãe e minha irmã pelo apoio, suporte e

estímulo aos estudos. Nos momentos alegres e tristes, fáceis e difíceis, foram eles que mais

estiveram presentes, me ouviram, me confortaram e me incentivaram. Muito obrigado por todo

o amor e compreensão que recebo de vocês.

Agradeço à minha professora orientadora, Dra. Márcia Vasques. Muito obrigado pela

paciência, pela generosidade em compartilhar sua sabedoria (e seus livros!), por acreditar na

minha capacidade. Essa dissertação é reflexo do meu fascínio e interesse pela Antiguidade, que

surgiu nas suas aulas de História Antiga I, em 2012. Sou completamente grato pela sua

orientação desde a minha graduação.

Muito obrigado aos professores Dra. Lyvia Vasconcellos e Dr. Francisco Santiago, pelas

contribuições na minha banca de qualificação.

Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa, auxílio essencial para a confecção deste

trabalho.

Agradeço aos amigos do MAAT – Núcleo de História Antiga da UFRN, por ter

acompanhado minha trajetória ao longo da graduação e do mestrado. Em específico, sou muito

grato à Keidy Matias, pela amizade, suporte e incentivo.

Agradeço aos amigos que me acompanharam de perto nessa jornada:

Jorge, Igor, Gabriel, Nilson e Arthur: nosso time de League of Legends é o melhor,

mesmo que tenhamos mais derrotas do que vitórias. As risadas em meio às partidas são o que

mais vale a pena.

Famara, Malu, Rafael, João Paulo e Lizandro, sou muito grato pelas conversas,

desabafos, e reflexões que tivemos juntos.

Aretuza, Vanessa, Analu e Katy, obrigado pela amizade e pelo carinho. Muitas saudades

dos almoços de sábado, mesmo que fosse o dia mais cansativo do trabalho.

Aos demais amigos, sou grato pelo carinho recebido, pela paciência compartilhada e

pelos bons momentos vividos juntos.

RESUMO

Alexandria, centro político do governo dos Ptolomeus e capital da província do Egito no

período romano, foi marcada pelo aspecto cosmopolita de sua população e cultura. Apesar de

haver uma valorização da cultura grega, a religião egípcia exerceu grande influência nessa

cidade. Aspectos religiosos são os mais notáveis, sobretudo no que diz respeito às crenças

funerárias. Essa pesquisa busca investigar as interações culturais que aconteceram no espaço

funerário, tendo como objeto de estudo uma tumba localizada no sítio arqueológico de Kom el-

Shoqafa, situado em Alexandria, cuja construção data entre os séculos I e II d.C. A partir de

uma análise da arquitetura e da iconografia presentes nessa tumba, defendemos a ideia de que

as culturas egípcia, grega e romana se integraram em um processo de emaranhamento, conceito

criado pelo arqueólogo Phillip Stockhammer (2012). Esse processo é reflexo da diversidade

cultural e social de Alexandria no período romano, resultado do contato com a cultura egípcia

ao longo dos séculos de dominação ptolomaica.

Palavras-chave: Espaço Funerário – Alexandria – Emaranhamento Cultural

ABSTRACT

Alexandria, the political center of the Ptolemies and capital of the province of Egypt during the

Roman period, was marked by the cosmopolitan aspect of its population and culture. Although

there was an overvaluation of Greek culture, the Egyptian tradition had a great influence in this

city. Religious aspects are the most notable, especially regarding to funeral beliefs. This

research seeks to investigate the cultural interactions that took place in the funerary space,

having as object of study a tomb located in the archaeological site of Kom el-Shoqafa, situated

in Alexandria, whose construction dates between the first and second centuries AD. By

analyzing the architecture and the iconography present in this tomb, we defend the idea that the

Egyptian, Greek and Roman cultures were integrated in a process of entanglement, a concept

created by archaeologist Phillip Stockhammer (2012). This process reflects the cultural and

social diversity of Alexandria in the Roman period, deriving from the contact with the Egyptian

culture throughout the centuries of Ptolemaic domination.

Keywords: Funerary Space; Alexandria; Cultural Entanglement

ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1. Busto do deus Serápis encontrado no Serapeum, datação do século II d.C. ............ 32

Figura 2. Planta baixa e reprodução do complexo templário de Serápis................................. 33

Figura 3. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período ptolomaico ................ 53

Figura 4. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período romano. ..................... 53

Figura 5. Mapa atual de Alexandria com todos os sítios de necrópole já escavados .............. 54

Figura 6. Alabaster Tomb, visão externa e interna. ................................................................. 59

Figura 7. Planta baixa do hipogeu “A”, sítio de Shabti ........................................................... 60

Figura 8. Planta baixa do hipogeu Moustafa Pasha 1 .............................................................. 60

Figura 9. Fachada sul de Moustafa Pasha 1 ............................................................................ 61

Figura 10. Planta baixa do sítio de Ras el-Tin, Ilha de Faros .................................................. 62

Figura 11. Tumba 8 de Ras el-Tin, sala contendo o nicho com kliné ..................................... 63

Figura 12. Planta baixa do sítio de Anfushy............................................................................ 64

Figura 13. Câmara funerária da tumba de Lefkadia, século IV a.C., Macedônia ................... 65

Figura 14. Sala I da tumba II em Anfushy ............................................................................... 65

Figura 15. Naiskos em loculus da tumba Anfushy V ............................................................... 66

Figura 16. Desenho de vista áerea do Serapeum e Lageion .................................................... 68

Figura 17. Planta baixa de Kom el-Shoqafa. ........................................................................... 69

Figura 18. Plano seccional da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa ...................................... 70

Figura 19. Poço e Rotunda ...................................................................................................... 71

Figura 20. Triclínio .................................................................................................................. 72

Figura 21. Detalhe da concha esculpida na rocha acima da antessala..................................... 73

Figura 22. Kliné da tumba de Isidora, Hermópolis Magna, século II d.C .............................. 74

Figura 23. Pronaos da Tumba Principal .................................................................................. 75

Figura 24. Desenho arqueológico da antessala ....................................................................... 76

Figura 25. Estátua feminina, nicho esquerdo .......................................................................... 77

Figura 26. Estátua masculina, nicho direito ............................................................................ 78

Figura 27. Estátua e amuleto do Período Tardio.. ................................................................... 79

Figura 28. Parede interna da entrada da câmara mortuária. .................................................... 81

Figura 29. Nicho central .......................................................................................................... 82

Figura 30. Detalhe do sarcófago romano do nicho central. ..................................................... 83

Figura 31. Desenho arqueológico do sarcófago do nicho central ........................................... 84

Figura 32. Nichos esquerdo e direito da câmara mortuária. .................................................... 85

Figura 33. Sarcófago do nicho esquerdo ................................................................................. 86

Figura 34. Sarcófago do nicho direito ..................................................................................... 86

Figura 35. As famílias de imagem ........................................................................................... 88

Figura 36. Resumo da teoria imagética de Bruneau e dos conceitos de Bérard .................... 103

Figura 37. Relevo escultórico da serpente Agathos Daimon ................................................ 104

Figura 38. Anúbis soldado anguípede .................................................................................. 107

Figura 39. Anúbis soldado/legionário. .................................................................................. 108

Figura 40.Anúbis anguípede (a) e Anúbis soldado (b).. ........................................................ 109

Figura 41. Cena da mumificação no nicho central. ............................................................... 110

Figura 42. Detalhe do sarcófago com a cena da mumificação, Hawara, 100 d.C. ................ 111

Figura 43. Encantamento 151 do Livro dos Mortos. ............................................................. 112

Figura 44.Desenho arqueológico da cena de mumificação .................................................. 113

Figura 45. Nicho central – Parede direita.. ............................................................................ 116

Figura 46. Hieróglifo Mehyt/moita de papiro e pilar djed. ................................................... 117

Figura 47. Nicho central – Parede esquerda. ......................................................................... 118

Figura 48. Nicho esquerdo – Parede central. ......................................................................... 119

Figura 49. Estela de Ptolomeu II e estela de Diocleciano ..................................................... 121

Figura 50. Nicho esquerdo - Parede direita.. ......................................................................... 122

Figura 51. Nicho esquerdo – Parede esquerda. ..................................................................... 123

Figura 52. Nicho direito – Parede direita .............................................................................. 124

Figura 53. Nicho direito – Parede esquerda .......................................................................... 126

SUMÁRIO

MAPA ....................................................................................................................................... 11

CRONOLOGIA ........................................................................................................................ 12

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 15

CAPÍTULO 1 – EGITO GRECO-ROMANO E ALEXANDRIA ........................................... 22

1.1. UMA PROPOSTA TEÓRICA PARA O HIBRIDISMO CULTURAL: EMARANHAMENTO ......... 38

CAPÍTULO 2 – ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA .............................................. 43

2. 1. ESPAÇO FUNERÁRIO: PREMISSAS, REFLEXÕES E DEFINIÇÕES ................... 43

2.2. TUMBAS ALEXANDRINAS: CARACTERÍSTICAS GERAIS E CLASSIFICAÇÕES ....... 52

2.3. TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA: ANÁLISES E INTERPRETAÇÕES ......... 67

2.3.1 ANTESSALA OU PRONAOS ................................................................................. 72

2.3.2 – CÂMARA MORTUÁRIA .................................................................................... 81

CAPÍTULO 3 – RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA ............... 88

3.1 – QUESTÕES CONCEITUAIS SOBRE IMAGEM ...................................................... 88

3.2 - PROPOSIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: O PARADIGMA SEMIOLÓGICO ..... 96

3.3 – ANÁLISE ICONOGRÁFICA DOS RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL ........... 104

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS .................................................................................. 127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 132

11

MAPA1

1 Território do Egito durante a época romana. Fonte: RIGGS (2006).

12

CRONOLOGIA

PERÍODO GRECO-ROMANO ATÉ 395 d.C. 2

DINASTIA MACEDÔNICA 332-305 a.C.

Alexandre III O Grande 332-323

Filipe Arrideu 323-316

Alexandre IV 316-305

DINASTIA PTOLOMAICA 305-30 a.C.

Ptolomeu I Sóter 305-282

Ptolomeu II Filadélfo 285-246

Ptolomeu III Evérgeta I 246-221

Ptolomeu IV Filópator 221-205

Ptolomeu V Epifânio 205-180

Ptolomeu VI Filómetor 180-164, 163-145

Ptolomeu VIII Evérgeta II (Fiscão) 170-163, 145-116

Ptolomeu VII Neo Filópator 145

Cleópatra III e Ptolomeu IX Sóter II (Látiro) 116-107

Cleópatra III e Ptolomeu X Alexandre I 107-88

Ptolomeu IX Sóter II 88-81

Cleópatra Berenice 81-80

Ptolomeu XI Alexandre II 80

Ptolomeu XII Neo Dioniso (Auleta) 80-58, 55-51

Berenice IV 58-55

Cleópatra VII Filópator 51-30

Ptolomeu XIII 51-47

Ptolomeu XIV 47-44

Ptolomeu XV Cesário 44-30

DOMÍNIO ROMANO

Júlio César 48-44 a.C.

Dinastia Julio-Claudiana

Caio Otávio César (Otaviano) Augusto 30 a.C. – 14 d.C.

d.C.

Tibério Cláudio Nero César 14-37

2 Cronologia baseada em McKenzie (2007). Recorte temporal proposto por Vasques (2006), em que se

estabeleceu a data 395 d.C. para divisão do Império Romano.

13

Caio Júlio César Calígula 34-41

Tibério Cláudio César Augusto Germânico 41-54

Nero Cláudio César Augusto Germânico 54-68

Galba 68-69

Otão 69

Vitélio 69

Dinastia Flaviana

Tito Flávio Vespasiano 69-79

Tito Flávio Sabino Vespasiano 79-81

Tito Flávio Domiciano 81-96

Marco Coceio Nerva 96-98

Marco Úlpio Trajano 98-117

Públio Élio Adriano 117-138

Dinastia Antonina

Tito Aurélio Antonino Pio 138-161

Marco Aurélio Antonino (com Lúcio Aurélio Vero) 161-180 (161-169 )

Lúcio Aurélio Cômodo 180-192

Públio Hélvio Pertinax 193

Marcos Dídio Severo Juliano 193

Pescênio Níger 193

Dinastia Severa

Lúcio Septímio Severo 193-211

Marco Aurélio Antonino Caracala 211-217

Públio Sétimo Geta 211

Opélio Severo Macrino 217-218

Marco Opélio Diadumeniano 218

Marco Aurélio Antonino Heliogábalo 218-222

Marco Aurélio Severo Alexandre 222-235

Caio Júlio Vero Maximino 235-238

Marco Antônio Giordano Semproniano (Giordano I) 238

Marco Antônio Giordano Semproniano (Giordano II) 238

Marco Clódio Pupieno 238

Décimo Célio Calvino Balbino 238

Marco Antônio Giordano (Giordano III) 238-244

Marco Júlio Felipe, “o Árabe” 244-249

Caio Méssio Quinto Trajano Décio 249-251

14

Caio Víbio Treboniano Galo 251-253

Marco Emílio Emiliano 253

Públio Licínio Valeriano 253-260

Públio Licínio Inácio Galiano 253-268

Marco Aurélio Cláudio II 268-270

Marco Aurélio Quintilo 270

Lúcio Domicio Aureliano 270-275

Marco Cláudio Tácito 275-276

Marco Ânio Floriano 276

Marco Aurélio Probo 276-282

Marco Aurélio Caro 282-283

Marco Aurélio Numeriano 283-284

Marco Aurélio Carino 283-285

Caio Aurélio Valério Diocleciano 284-305

Marco Aurélio Valério Maximiano 286-310

Caio Flávio Valéio Constâncio I 305-306

Galério Valério Maximiano 305-311

Tetrarquia (Diocleciano, Maximiano, Constâncio,

Galério)

293-305

Severo II 306-307

Marco Aurélio Valério Magêncio 306-312

Galério Valério Maximino Daia 310-313

Flávio Constantino 306-337

Caio Valério Liciniano Lincínio 308-324

Dinastia de Constantino

Constantino II 337-340

Constante I 337-350

Constâncio II 337-361

Juliano (“O Apóstata”) 361-363

Joviano 363-364

Dinastia Valentiniana

Valente (Leste) 364-378

Valentiniano I (Oeste) 364-375

Graciano (Oeste) 367-383

Valentiniano II (Oeste) 375-392

Eugênio (Oeste, usurpador) 392-394

Teodósio I 379-395

15

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa versa sobre a diversidade cultural da cidade de Alexandria durante a época

de dominação romana no Egito. Fundada em 331 a.C. com uma forte matriz helênica, a cidade

manteve contato com diversos povos e culturas que transitavam pelo Mar Mediterrâneo, assim

como também interagiu com a tradição milenar egípcia. Nosso principal interesse de

investigação é compreender tais interações que acontecem no espaço funerário, tomando como

objeto análise uma tumba alexandrina do século I e II d.C. A evidência material encontrada

nesse espaço é capaz de indicar a complexidade nas relações culturais e sociais de Alexandria,

cidade que nasceu em um diversificado feixe de culturas.

A invasão de Alexandre no Egito, em 332 a.C. resultou na expulsão dos governantes

persas, provocando mudanças radicais na sociedade egípcia, principalmente no que diz respeito

à política, administração, economia e nas várias esferas culturais. Em 305 a.C., quando o

general Ptolomeu assumiu o posto de rei e fundou a dinastia ptolomaica, já era visível a

legitimidade dada pelo clero egípcio da cidade de Mênfis a esses novos governantes, que se

associaram à figura do faraó e se investiram de símbolos egípcios ligados à realeza. O novo

governo fez uso da tradição religiosa egípcia para se manter no poder, mas introduziu também

uma máquina administrativa e burocrática nova para controlar as riquezas e expandir seus

domínios.

A entrada de imigrantes greco-macedônicos no território egípcio aumentou o contato da

tradição helênica com a cultura milenar do período faraônico. A língua grega foi estabelecida

como oficial; a capital do país, fundada com o status de pólis, Alexandria, dispunha de

instituições gregas que garantiram a disseminação da educação e do estilo de vida helênico. O

território da chôra3, adentrando no Médio e Alto Egito, também contou com o estabelecimento

de população de origem helênica. A partir disso, os indivíduos de origem greco-macedônica

passaram a ter privilégios ligados ao status grego, em detrimento dos nativos, principalmente

na questão da participação política e administrativa, em que os egípcios se encontravam

excluídos das decisões.

Contudo, as instituições religiosas ligadas à tradição egípcia continuaram existindo e

exercendo papel político importante, como é o caso do clero menfita e da sua ação legitimadora

3 Original em grego “χώρα”, o termo pode significar espaço, território, campo ou interior. No caso de

Alexandria, o restante do território egípcio era tido como a zona rural e interiorana.

16

na sucessão real dos Ptolomeus; os deuses egípcios mantiveram-se cultuados nos templos e os

costumes funerários também persistiram conjuntamente aos costumes de origem grega e

macedônica. A diferenciação de status social entre gregos e egípcios coexistiu com momentos

de contato e troca cultural entre esses dois grupos. Atualmente, prefere-se evitar ideias

extremas: não é possível afirmar uma forte separação ou isolamento, mas também não podemos

assumir uma ideia de completa mistura ou fusão de tradições culturais tão distintas e em certos

aspectos excludentes. Tanto a administração ptolomaica quanto a romana distinguiam o status

dos indivíduos por meio de genealogias e categorias identitárias. Essas divisões foram se

tornando permeáveis, devido à miscigenação e à própria temporalidade, acumulando séculos

de trocas culturais.

O contato do Egito Ptolomaico com Roma já datava desde o fim do período republicano.

César já havia criado laços políticos com a rainha Cleópatra VII, sucedido por Marco Antônio

após a morte do general em 44 a.C. A derrota de Cleópatra e Marco Antônio para as tropas de

Otávio significaram o fim da soberania do Egito enquanto região independente. A partir de 30

a.C., o Egito se tornou uma província romana; Alexandrea ad Aegyptum é a denominação

romana que aparece nos documentos escritos da época. O governo da província estava a cargo

de um prefeito nomeado diretamente pelo imperador; a divisão administrativa tomou forma de

acordo com as regras e políticas romanas. O período romano no Egito se estendeu até 395 d.C.,

quando o imperador Teodósio dividiu o território entre Império Romano do Ocidente e Império

Romano do Oriente4. O Egito integrou a porção oriental do império.

O campo religioso se mostra de forma interessante em meio ao contexto de dominação.

Apesar das inovações políticas e administrativas provenientes da hegemonia romana, os

templos tradicionais continuaram suas atividades de culto aos deuses egípcios. Os costumes

funerários do Egito faraônico também sobreviveram e ganharam novos adeptos no período

romano, sobretudo nas póleis do Médio e Baixo Egito que possuíam população grega

miscigenada. Essa dinâmica atesta uma realidade muito mais complexa do que podemos

imaginar. Em Alexandria, a investigação das interações culturais possui grande potencial na

análise dos espaços funerários, tendo em vista o grau de preservação desses locais. Dessa forma,

podemos indagar: como o espaço funerário é capaz de registrar a interação das culturas greco-

romana e egípcia? Em que medida isso é reflexo da diversidade cultural da sociedade

alexandrina do período romano?

4 Marco cronológico proposto por Marcia S. Vasques (2006).

17

A evidência material nos traz diferentes aspectos sobre como as culturas podem interagir

entre si. Por exemplo, os retratos dos reis da dinastia ptolomaica ilustram o aspecto dual entre

a cultura clássica e egípcia, visto a produção de bustos no estilo clássico e de estátuas que

seguem o padrão egípcio. A literatura acadêmica sobre as interações culturais de Alexandria

costuma privilegiar o componente grego, em detrimento das contribuições egípcias e romanas.

Buscamos nessa pesquisa reavaliar essa questão, trazendo à tona a importância da religião

egípcia e as inovações arquitetônicas romanas que são visíveis nas tumbas dessa cidade. Dessa

forma, a dimensão espacial possui grande destaque e protagonismo nesse trabalho.

O espaço funerário, entendido enquanto um artefato, nos evidencia a interação cultural:

a tradição egípcia de deuses e rituais coexiste, interage e eventualmente se mescla com traços e

temas gregos e romanos. Sustentamos a ideia de que as culturas presentes em Alexandria

passaram por processos de trocas, assimilações e interpretações que culminaram na criação de

um espaço funerário distinto, de caráter notavelmente mesclado na sua arquitetura e

iconografia. Nossa hipótese é de que esses processos se iniciam no período ptolomaico, se

intensificam no último século a.C. e é amplamente observado no período romano. Podemos

inferir, a partir disso, que a sociedade alexandrina nos séculos I e II d.C. se aproximava e se

apropriava de forma intensa da cultura egípcia, mantendo ainda o seu substrato cultural clássico

presente. As inovações arquitetônicas de caráter romano diversificam ainda mais o contexto

funerário trabalhado nessa pesquisa.

Nossa pesquisa toma como objeto de investigação o espaço funerário da Tumba

Principal de Kom el-Shoqafa, sítio arqueológico localizado na cidade de Alexandria, datando

da época de dominação romana no Egito. Escavado no início do século XX, o sítio arqueológico

nomeado em árabe por Kom el-Shoqafa abriga o maior sítio de necrópole de Alexandria. A

datação é estimada entre a segunda metade do primeiro século d.C. até a primeira metade do

segundo século, a partir das associações de datas aos motivos arquitetônicos e decorativos

presentes no local. A hipótese de datação mais aceita é que a tumba foi construída por volta de

69-79 d.C, defendida por autores como Susan Venit (2002, 2015) e Anne-Marie Guimier

Sorbets (2017). Em contrapartida, os sarcófagos encontrados na câmara funerária sugerem uma

datação posterior, indo até a segunda metade do século II d.C. A simplicidade desses elementos

em comparação com sarcófagos romanos impede que essa datação seja posta como definitiva.

Daí justifica-se a datação variar entre o final do século I até a primeira metade do século II.

18

O local possui três pisos escavados na rocha. O primeiro nível apresenta corredores e

estruturas arquitetônicas greco-romanas. O segundo nível abriga a Tumba Principal,

denominada Great Tomb/Main Tomb nas produções científicas estrangeiras. Ela consiste em

um grande hipogeu (tumba subterrânea cavada diretamente na rocha), assumindo a forma de

templo funerário subterrâneo. O terceiro nível abriga pequenas tumbas e nichos funerários

adjacentes, que se encontram no nível de um lençol freático. A tumba estudada por nós está no

segundo piso, onde se localizam esculturas, relevos de cenas egípcias e sarcófagos de pedra de

estilo romano.

A arquitetura da Tumba Principal, bem como o seu esquema decorativo, tem chamado

atenção dos arqueólogos e historiadores pela sua singularidade na combinação de temas e

formas das tradições egípcias e greco-romanas. Friedrich Wilhelm von Bissing, egiptólogo

alemão responsável pelas primeiras escavações em Kom el-Shoqafa, utilizou da palavra alemã

mischkunst (“arte misturada” em uma tradução livre) para definir a Tumba Principal (RIGGS,

2005, p. 5). Susan Venit (2002, 2015), autora de ampla produção sobre as tumbas alexandrinas,

considera que houve uma integração singular em torno das tradições egípcias e greco-romanas

que é observada na Tumba Principal, desembocando na ideia de bilinguismo cultural. Anne-

Marie Guimier Sorbets e Mervat Seif el-Din (2017) definem as tradições artísticas vistas na

tumba como justapostas, em que elementos egípcios coexistem com os elementos clássicos. A

partir das nossas escolhas conceituais e teóricas, chamaremos de emaranhamento cultural o

processo de interação cultural presente no espaço já referido. Esse conceito é recente, proposto

pelo arqueólogo Phillip Stockhammer em 2012 e permite análises da cultura material de caráter

híbrido, oriunda de contextos históricos e geográficos de contato entre povos. Ao propormos o

uso desse conceito, o objetivo não é tomá-lo de forma definitiva ou superior, mas sim

diversificar e oferecer uma interpretação diferenciada do que se observa nas produções sobre

esse objeto de pesquisa.

Enquanto categoria de nossa investigação, o espaço funerário será entendido pela sua

materialidade e pelos seus elementos simbólicos; daremos atenção ao visível e ao invisível. A

dimensão material, inerente a qualquer sítio de necrópole, é investida de significados e símbolos

sagrados ligados ao mundo do além. A sacralização do espaço ocorre também a partir da

realização de rituais, em que a ação humana é capaz de estabelecer pontes com o mundo que

não se vê, mas se faz presente a partir da experiência religiosa. Essa experiência acontece em

um espaço específico, consagrado a partir dos rituais e símbolos investidos nele. Uma tumba

pode ser vista tanto quanto a última moradia dos mortos ali depositados, quanto um limiar entre

19

o mundo dos vivos e o mundo do além. Dedicado à morte, o espaço funerário é planejado,

pensado e também praticado em vida.

Uma análise das estruturas arquitetônicas e da iconografia presentes na câmara funerária

será capaz de nos indicar como as tradições culturais tão distintas foram amalgamadas e

resultaram em uma arte diferenciada. A dimensão espacial é, portanto, intrínseca: em sua

materialidade, o espaço físico dessa tumba apresenta as evidências para o nosso problema de

investigação. Os relevos não apenas retratam cenas religiosas e de rituais funerários, como

também evidenciam um processo de apropriação e criação singular. Esse espaço material

reflete, também, uma concepção abstrata, ligada a preceitos religiosos de vida após a morte.

Nossas fontes compõem um conjunto de fotografias, desenhos arqueológicos e plantas

arquitetônicas. As fotografias e plantas arquitetônicas foram retiradas das seguintes obras:

Repertorio d'arte dell'Egitto greco-romano (1961), de Achille Adriani, um dos principais

arqueólogos que escavou Alexandria; Alexandria Rediscovered (1998), de Jean-Yves

Empereur; Monumental Tombs in ancient Alexandria: The Theater of the Dead (2002) e

Visualizing the Afterlife in the tombs of Graeco-Roman Egypt (2015), da autora Marjorie Susan

Venit; e Resurrection in Alexandria: The Painted Greco-Roman Tombs of Kom al-Shuqafa de

Anne Marie Guimier-Sorbets, André Pelle, Mervat Seif el-Din (2017). As descrições e análises

das fotografias se deram a partir da contribuição de informações presentes nessas obras.

Infelizmente, não há menção sobre as dimensões do sítio arqueológico e de seus elementos,

como paredes, colunas e corredores.

Os desenhos arqueológicos são dedicados a grande parte dos relevos presentes na tumba.

Essas imagens foram retiradas de um banco de imagens da Universidade de Viena5, responsável

pela digitalização das pranchas da obra Les Bas-reliefs de Kom el Chougafa: La catacombe

nouvellement découverte de Kom el Chougafa, publicada em 1901 pelo arqueólogo alemão

Friedrich Wilhelm von Bissing. A obra conta com o trabalho técnico e artístico de Émile

Gilliéron, desenhista de origem sueca. Ressaltamos que nem todos os relevos possuem

desenhos correspondentes.

A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro deles, Egito Greco-romano e

Alexandria, é composto por um panorama de informações históricas e características gerais do

5 Phaidra. Universität Wien – University of Viena. Disponível em:

<https://phaidra.univie.ac.at/search_object>. Acesso em 26 abr. 2018.

20

período ptolomaico e romano. Dedicamos também essa parte da pesquisa para apresentar as

interpretações mais recorrentes sobre o tema que abordamos. Veremos que não há consenso

sobre a arte e arquitetura alexandrinas, por exemplo; mas há uma tendência relativamente nova,

que enxerga a interação cultural capaz de mesclar elementos egípcios, gregos e romanos na

criação de algo novo. Por fim, o capítulo conta com uma discussão sobre o conceito de

emaranhamento cultural, no qual nos referimos anteriormente. Consideramos pertinente

apresentar essa ideia desde o início, visto que ela perpassará a análise espacial e iconográfica

dos demais capítulos.

O segundo capítulo, Espaço funerário em Alexandria, traz inicialmente uma discussão

teórica sobre espaço, seguindo a premissa já mencionada anteriormente de se pensar na

materialidade e no aspecto simbólico inerente ao contexto funerário. Procuramos articular

ideias de autores das ciências humanas, variando entre obras da Arqueologia, Antropologia,

Arquitetura, Geografia, entre outros. Essa discussão teórica nos fornece conceitos importantes

na análise espacial da tumba a ser estudada aqui. Nossa premissa, em linhas gerais, consiste em

ver o espaço funerário associado à prática dos rituais, possibilitada pelos elementos da sua

arquitetura, planejada para receber os mortos. Analisar os componentes materiais é

indissociável da reflexão sobre a prática que ali se exercia, mas que não deixa, infelizmente,

registros suficientes para avançarmos além de inferências. Uma exposição breve das

características gerais das tumbas alexandrinas do período ptolomaico, constando nesse capítulo,

nos permitirá que se observe, ao longo do tempo, as assimilações de elementos egípcios à

arquitetura greco-macedônica. Por fim, descreveremos e analisaremos a Tumba Principal de

Kom el-Shoqafa, utilizando as fotografias do nosso conjunto de imagens. Faremos a

identificação o processo de emaranhamento junto aos elementos constituintes desse espaço,

aplicando os conceitos discutidos na primeira parte do capítulo.

O terceiro e último capítulo, Relevos da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, consiste

na análise iconográfica dos relevos presentes na antessala e câmara funerária da tumba. Esse

capítulo contém uma seleção das fotografias e desenhos arqueológicos que trazem mais

detalhes das cenas presentes nos relevos. A priori, propomos uma reflexão teórica sobre

Imagem, atentando para a complexa natureza desse elemento e função que ele exerce no espaço.

Fazemos uso das ideias de autores da Antropologia, História da Arte e Arqueologia para

compor um quadro teórico articulado e diversificado. Em seguida, apresentaremos o nosso

referencial metodológico de análise iconográfica, baseado nos preceitos da Arqueologia da

Imagem. Essa análise iconográfica decompõe e recompõe a imagem de forma descritiva e

21

analítica, interpretando os detalhes constituintes das cenas. Conceitos discutidos nos capítulos

anteriores, ligados ao espaço funerário e ao emaranhamento serão retomados de forma conjunta

nessa análise.

22

CAPÍTULO 1 – EGITO GRECO-ROMANO E ALEXANDRIA

Segundo Mendoza (2015, p. 399-400), as sociedades das ilhas Egeias do terceiro

milênio, como Creta e as Cíclades (c. 2600 a.C.) apresentam indícios de comércio indireto com

o Egito, havendo presença de cerâmica e faiança oriundas do Vale do Nilo6. Esse contato a

partir de trocas indiretas se acentuou no último milênio a.C., com a emergência das sociedades

gregas a partir do século IX e VIII a.C., que comercializavam com o Egito durante sua época

Tardia. Colônias gregas foram fundadas no Baixo Egito durante o reinado do faraó Psamético

I, na 26ª Dinastia, por volta do século VII a.C. Náucratis é um bom exemplo de colônia grega

em território egípcio, onde ocupava uma região estratégica para as atividades comerciais do

Egito com o Mediterrâneo. O apoio militar de mercenários contra as investidas assírias no Delta

garantiu uma maior presença de população estrangeira oriunda de Miletos, Cária, Iônia.

As investidas persas do Império Aquemênida, sob o comando de Cambises II, chegaram

ao Egito por volta de 529-22 a.C., derrotando o faraó Psamético III, último da dinastia saíta.

Alexandre, nascido na família real da Macedônia nos meados do século IV a.C., foi responsável

pelo avanço bem-sucedido contra o Império Persa. Para Alan K. Bowman (1997, p. 22)

Alexandre encontrou pouca resistência dos dirigentes persas ao entrar no Egito, e foi aclamado

pelos nativos, que o agraciaram como um faraó legítimo. Ao chegar em Mênfis, o general

macedônico fez sacrifícios aos deuses egípcios, recebendo os títulos de realeza tradicionais.

Antes de partir rumo à Babilônia, Alexandre fundou uma cidade no Delta, próximo ao povoado

nativo de Rhakotis: Alexandria.

A morte de Alexandre em 323 a.C. deixou uma vacância no comando de um vasto

império, que se encontrava dividido em satrapias. No Egito, Cleômenes de Náucratis ficou

responsável pela região até Ptolomeu, general ligado a Alexandre, ter subido ao poder em 305

a.C.. A partir desta data também se iniciava o período de governo da dinastia Ptolomaica7, com

o seu primeiro monarca intitulado Ptolomeu I Sóter (“salvador”). Essa dinastia se manteve no

controle do Egito até 30 a.C., sendo Cleópatra VII Filopátor a última regente descendente dos

Ptolomeus.

6 Em seu artigo de título Egyptian Connections with the Larger World, a autora discorre sobre as mútuas influências

artísticas das culturas egípcia, egeia/grega e romana em diferentes períodos, como no segundo milênio a.C., Época

Tardia no Egito e durante a ascensão do helenismo e do Império Romano. Está presente na coletânea de trabalhos

organizada por Melinda K. Hartwig, A companion to Ancient Egyptian Art, publicado pela editora Blackwell no

ano de 2015. 7 Também conhecida como Dinastia Lágida, nome derivado de Lagos, pai de Ptolomeu I (HÖLBL, 2010, p. 14).

23

Os laços familiares da dinastia ptolomaica eram cada vez mais reforçados por meio dos

casamentos consanguíneos, estratégia adotada com o intuito de preservar a linhagem dinástica.

As conquistas e a expansão territorial na região da Cirenaica, atual Líbia, e à leste, na região

do Levante, são bons exemplos dos sucessos militares de Ptolomeu III. Economicamente, o

período ptolomaico atingiu altos níveis de riqueza, muito derivada do comércio marítimo por

meio do Mediterrâneo. Alexandria tinha posição privilegiada para essa atividade, dispondo de

dois portos, um a leste e outro a oeste. Muito se comercializava com as ilhas gregas e

adjacências; Alexandria assim se tornou uma cidade de alto status econômico e intelectual. O

território do Egito estava dividido entre a capital, Alexandria e a chôra, palavra grega atribuída

à área rural próxima à pólis. No contexto em que estamos nos referindo, tratava-se de todo o

restante do país, incluindo as cidades. No período romano, a denominação da província foi de

Alexandrea ad Aegyptum, “Alexandria próxima ao Egito”. Havia, portanto, uma diferenciação

da pólis com o restante do território. Existiram ainda algumas outras póleis no Egito: Náucratis

e Ptolemais, para o período ptolomaico; e Antinoópolis, fundada pelo imperador romano

Adriano no ano de 130 d.C.

A prosperidade econômica e militar dos Ptolomeus foi abalada em alguns momentos.

Os conflitos com a monarquia selêucida, na região do Levante e da Síria, que aconteceram a

partir da segunda metade do século III a.C., resultaram em grandes perdas territoriais para o

reinado ptolomaico, principalmente no início do século II a.C. Demais mudanças políticas

também ocorreram a partir desses conflitos. Ptolomeu IV batalhou contra Antíoco III utilizando

tropas egípcias em meio ao exército, na batalha de Ráfia, acontecida no ano de 217 a.C.

Bowman (1997, p. 31) argumenta que pouco tempo depois, entre o ano de 207 e 206 a.C., a

região de Tebas testemunhou revoltas nativas, que culminaram na proclamação de dois faraós

nativos, Haronnophris e Chaonnophris, situação que persistiu até por volta de 186 a.C. Vasques

(2006, p. 14) nos informa que no reinado de Ptolomeu IX Sóter II, a região da Tebaída também

atestou novos episódios de revolta, no ano de 88 a.C.; já durante a dominação romana, no

controle do prefeito Cornellus Galius, em 29 d.C., a região apresentou sua última revolta.

Apesar da prosperidade econômica no início do período ptolomaico, houve também momentos

de crise de abastecimento e reivindicações, principalmente pelos nativos.

Antes da metade do século II a.C., a monarquia ptolomaica já mostrava sinais de

turbulência política, processo gradativo ao longo das décadas do século II e I a.C. até o

momento de transição da dominação macedônica para a romana. O casamento com rainhas

estrangeiras foi uma estratégia encontrada pelos monarcas Ptolomeus para garantir alguma

24

estabilidade em meio aos conflitos dinásticos e políticos. Um bom exemplo dessa tática política

foi o casamento de Ptolomeu V Epifânio com Cleópatra I, filha de Antíoco III, monarca

selêucida. Os filhos dos casamentos entre monarquias ficavam responsáveis pelo governo das

regiões conquistadas, reafirmando as alianças políticas e mantendo os laços dinásticos

relativamente próximos. Entretanto, as monarquias helenísticas – na qual se insere o Egito

Ptolomaico – passaram por momentos de crise política e instabilidade, tanto por questões

geopolíticas externas ou por problemas administrativos internos.

Segundo Livia Capponi (2005, p. 5), a diplomacia entre Roma e o Egito data desde o

reinado de Ptolomeu II Filadelfo, que no ano de 273 a.C. estabeleceu acordos diplomáticos com

Roma em Alexandria. Essa relação se acentuou nos fins do século III a.C., nos reinados de

Ptolomeu IV, Ptolomeu VI e Ptolomeu VIII Evérgeta, cujo reinado se viu em uma forte crise

no ano de 155 a.C. A mediação da crise foi encabeçada por Roma, que criava laços diplomáticos

cada vez maiores com o Egito. Ptolomeu XII Neo Dioniso (ou Auletes) também protagonizou

uma crise em seu reinado, cuja resolução se deu através do senado romano, no ano de 67 a.C.

O maior exemplo das estreitas relações entre Roma e a monarquia ptolomaica se deu com

Cleópatra VII, a última regente dessa dinastia. Ela já havia se relacionado com Júlio César, que

a colocou no trono do Egito em 48 a.C., após travar batalhas com Ptolomeu XIII, seu irmão.

Posteriormente à morte de César, as alianças aconteceram entre Cleópatra e Marco Antônio,

que estava na disputa com Otávio sobre o controle das posses romanas.

A expansão dos domínios romanos, encabeçada por Otávio, encontrou seu último

episódio de oposição na aliança entre Cleópatra e Marco Antônio, que foram derrotados na

Batalha de Áccio no ano de 30 a.C. Dali em diante, o Egito foi anexado às posses territoriais

romanas. Estavam sob domínio político e militar romano diversas regiões do Mediterrâneo

oriental e ocidental, se estendendo do norte do continente africano até localidades da Ásia

Menor.

O Egito Ptolomaico foi marcado por um estado burocrático bastante presente. A corte,

situada na capital Alexandria, era responsável pela manutenção da máquina de governo,

composta por oficiais encarregados de regulamentação e fiscalização da produção econômica,

espalhada ao longo do território. A produção de papiro, óleo e trigo, o carro-chefe da economia

egípcia desde os tempos faraônicos, manteve o seu controle e distribuição pelas mãos do

Estado. A terra também era de propriedade estatal, podendo ser concedida (denominada de

clerúquia) aos soldados de origem helênica e macedônica que imigravam para o Egito, se

25

estabelecendo principalmente nas póleis (Alexandria, Náucratis e Ptolemais) e também na

região do Fayum. Outro tipo de concessão existente era a doreai, destinada aos membros da

alta corte ligada ao rei (VASQUES, 2006, p. 12).

Em termos demográficos e populacionais, o período ptolomaico foi responsável pela

introdução massiva de populações oriundas de várias partes do Mediterrâneo, falantes da língua

grega, dentro do Egito. Além da nova elite governante ser estrangeira, contingentes

populacionais provenientes da Grécia continental, Ilhas Egéias, Trácia e colônias gregas da

Ásia Menor adentraram no território egípcio, destinando-se principalmente para Alexandria e

as demais póleis. A partir do século II a.C., judeus também passaram a imigrar para a região,

se concentrando principalmente na capital. Os egípcios nativos ainda eram a maioria e estavam

concentrados no Vale do Nilo, nas aldeias e unidades administrativas denominadas de nomos,

organização oriunda dos tempos faraônicos. Segundo Bowman (1997, p. 141), existiram cerca

de 30 a 40 nomos, havendo maior preservação documental nos nomos de Oxirrinco e

Hermópolis. A língua oficial do governo ptolomaico era o grego, falado e usado na escrita

também nas póleis e demais regiões ocupadas pela população grega. A língua egípcia, mais

especificamente o demótico, também é observada na documentação.

Segundo Livia Capponi (2011, p. 17), existiu ao longo do século XX um amplo debate

sobre as mudanças e impactos da dominação romana no Egito. Joana Clímaco (2007) discutiu

de forma abrangente e clara as ideias acerca das inovações ou manutenções que se sucederam

a partir de Augusto. Atualmente, entende-se que a dominação romana foi habilidosa em utilizar

as estruturas burocráticas existentes dos reinos helenísticos que subjugava, mas que houve

também estratégias únicas e diferenciadas para cada contexto específico de dominação. No caso

do Egito, a vasta documentação em papiro já foi a razão pela qual se acreditou que a província

se diferenciava das demais regiões tomadas por Roma; hoje em dia não existem razões

contundentes para acreditar que o tratamento dado ao Egito foi muito diferenciado das demais

províncias espalhadas ao longo do Mediterrâneo. Na verdade, o estudo da dominação romana

no Egito tem servido de base para entender as formas de administração de outras províncias.

Obviamente, a tomada de poder por Augusto trouxe impactos notáveis na administração

política e econômica no Egito. Ele confiscou as terras de posse de Cleópatra VII e Marco

Antônio, assim como as terras dos templos egípcios tradicionais, instituições de grande poder

político, perpassando o período faraônico e o ptolomaico. Esse confisco se deu em prol da

distribuição que o imperador realizou aos seus mais próximos. Reformas foram feitas no

26

sistema de irrigação derivado das cheias do Nilo, aumentando a produtividade – é preciso

relembrar o papel crucial do Egito como “celeiro” do Império. Augusto também foi responsável

pela regulamentação de atividades e serviços compulsórios: as chamadas liturgias.

A peculiaridade na administração romana no Egito se deu pelo cargo de prefeito,

responsável por todas as questões administrativas, financeiras e de magistraturas da província.

O território egípcio passou por uma nova divisão: Baixo Egito (na região do Delta),

Heptanômia (região do Médio Egito) e a Tebaída (região do Alto Egito). Para ajudar na

administração, havia o cargo de epistratego, oriundo dos tempos ptolomaicos e que possuía

responsabilidades civis e militares, estando restrito à esfera civil no período romano. O cargo

administrativo de estratego também deriva do período ptolomaico, estando concentrado nos

nomos. Os censos foram a principal ferramenta de controle e captação de impostos, sendo

implantados desde o governo de Augusto e estabelecidos em intervalos de 14 anos.

Os critérios de classificação e hierarquização social determinados nos censos vieram a

acirrar as questões identitárias e étnicas, a fim de promover um maior controle sobre a

sociedade. Os cidadãos romanos residentes no Egito (legionários, imigrantes, cúpula

burocrática) e cidadãos alexandrinos estavam isentos dos impostos. Em segundo plano, os

gregos helenizados, que poderiam incluir judeus e egípcios que receberam educação distintiva

grega, geralmente habitantes das póleis e das capitais distritais dos nomos. Eles pagavam taxas

menores ao fisco romano, variando de região para região. Por fim, estavam os egípcios nativos,

o estrato basal dessa pirâmide social: pagavam as maiores taxas de impostos e não possuíam

nenhum tipo de privilégio; estavam impossibilitados de ocupar cargos administrativos.

Destacamos brevemente alguns imperadores que tiveram suas histórias marcadas pelo

Egito. Em 69 d.C., o general Vespasiano, envolvido na guerra da Judeia, buscou apoio político

do então prefeito de Alexandria, Tibério Julio Alexandre. Após visitar o Serapeum e participar

de rituais, ele foi aclamado como imperador pelas tropas que se encontravam em Alexandria.

Veremos mais adiante que a datação da tumba de Kom el-Shoqafa é comumente atribuída ao

período de governo de Vespasiano, ainda que não sejam encontradas inscrições ou nomes8. De

acordo com Susan Venit (2002, p.143), Vespasiano visitou o templo de Serápis e sob as bênçãos

8 A datação da tumba de Kom el-Shoqafa é imprecisa. Por meio da análise estilística dos retratos esculpidos

presentes nesse lugar, autores como Susan Venit (2002) mesclam essas informações com o contexto histórico de

Vespasiano em Alexandria. Todavia, existem outras linhas de datação, baseadas nos sarcófagos da câmara

funerária, que se assemelham aos sarcófagos romanos típicos do período de Adriano, nas primeiras décadas do

século II d.C..

27

do deus realizou milagres de cura em dois homens deficientes. Em contrapartida, Joana

Clímaco (2007, p. 101) citando Dion Cássio (História Romana, 65.8-9), afirmou que os

alexandrinos ficaram decepcionados e revoltados com Vespasiano, após o imperador retomar

impostos e aumentar cobranças. Livia Capponi (2011, p. 30) acrescenta que o imperador havia

bloqueado o suprimento de grãos do Egito para Roma para chantagear o Senado em prol de sua

ratificação como imperador. Isso colocaria em xeque a datação da Tumba Principal de Kom el-

Shoqafa, algo que permanece ainda sem uma precisão cronológica.

Demais revoltas foram observadas em Alexandria9, havendo relativa estabilidade

apenas com as ações do imperador Adriano, a partir de 117 d.C.. O imperador visitou o Egito

e Alexandria nesse mesmo ano, assumindo o papel de benfeitor e estabilizador: restaurou

templos, construiu novos edifícios e fortaleceu os cultos egípcios, gregos e romanos. A

princípio, seus atos foram concentrados em Alexandria. De volta a Roma, o imperador iniciou

as construções de sua vila em Tibur (Tivoli), onde havia imagens de inspiração egípcia. Adriano

retornou ao Egito em 130 d.C., visitando cidades da chôra, como Mênfis. A morte de Antinoo

no rio Nilo, amante atribuído ao imperador, resultou na fundação de uma pólis com o seu nome:

Antinoopolis. As revoltas voltariam a acontecer no território egípcio a partir da segunda metade

do século II d.C., motivadas por problemas de epidemias e pelo assassinato do prefeito Lucius

Munatius Felix, em 153 d.C. (CAPPONI, 2011, p. 32).

Na transição do século II para III d.C., destacamos a ação do imperador Caracala, que

seguindo os passos do seu pai Septímio Severo, estendeu a cidadania romana para toda a

população masculina do império, por meio do edito Constitutio Antoniniana de 212. A visita

do imperador à cidade de Alexandria, no entanto, foi extremamente negativa: houve repressão

e perseguição por parte das forças imperiais à população nativa e aos cristãos que residiam em

Alexandria.10 Para Capponi (2011, p. 35), isso marcou o declínio político e cultural da cidade.

A religiosidade no Egito se demonstrava receptiva desde os tempos faraônicos. Os

Textos das Pirâmides, que datam do Antigo Império, atestam a presença de uma divindade da

Núbia, Dedun. Deuses orientais, provenientes da região da Síria e Palestina como Reshep, Baal

9 Cf. a dissertação de mestrado de Joana Campos Clímaco, Cultura e Poder na Alexandria Romana, defendida na

USP no ano de 2007. Nesse trabalho, a autora analisa um conjunto de papiros encontrados em Alexandria, Acta

Alexandrinorum, em meio ao contexto de reivindicações políticas e conturbações sociais entre judeus e gregos,

nos dois primeiros séculos do Império Romano. 10 Especula-se que uma área adjacente à Tumba Principal de Kom el-Shoqafa serviu de refúgio para os perseguidos

do imperador, que foram encurralados pelas tropas imperiais. Trata-se do “corredor de Caracala” (Hall of

Caracalla).

28

e Astarte possuem evidências de culto durante o reinado de Amenhotep II, na 18ª Dinastia,

durante o Novo Império. Eles eram reconhecidos em seu status divino, chamados de ntjer, que

na língua egípcia significava “deus”. A iconografia e o culto a esses deuses se dava à moda

egípcia. Tallet e Zivie Coche (2012, p. 437) atentam para o fato de que a entrada dessas

divindades não necessariamente indicou o estabelecimento de assentamentos estrangeiros no

Egito, sendo muito mais uma característica da religiosidade politeísta.

A chegada de imigrantes gregos em território egípcio, a partir do século VII a.C.,

permitiu também a entrada de divindades helênicas a receberem cultos, santuários e templos,

como pode ser observado na colônia grega de Náucratis, inserida no Egito. A priori, tais

divindades atendiam às necessidades religiosas dessa população estrangeira. Do século V a.C.,

a obra de Heródoto, Histórias, especificamente o segundo volume, traz importantes

informações sobre a geografia, a população, a história, os costumes e a religião egípcia, sob o

olhar de um homem grego. Para o nosso interesse específico, destacamos a tradução que

Heródoto faz sobre o nome de alguns deuses egípcios, empregando nomes de divindades

gregas11:

Desde então, os egípcios moldam suas estátuas de Zeus com a cabeça de um

carneiro, e os amônios fazem-na graças aos egípcios e aos que são colonos

dos egípcios e etíopes, e que falam uma língua que está entre ambas. Parece-

me que também o nome que os amônios têm vem disso, eles o colocaram

como o seu epônimo; pois os egípcios chamam Zeus de Ámon (HERÓDOTO,

Histórias, v. II, 47).

Ainda os nomes dos deuses, quase todos, vieram do Egito para a Hélade. Por

esse motivo, eles vieram dos bárbaros, assim eu descobri que eram, após ter

sido informado; penso que vieram especialmente do Egito (HERÓDOTO,

Histórias, II, 50).

Mas, antes desses homens, os deuses governavam no Egito e eles habitavam

junto aos homens, também sempre um deles era o mais poderoso. E que o

último deus que reinou no Egito foi Hórus, o filho de Osíris, o qual os helenos

nomearam Apolo; ele pôs fim ao reinado de Tífon e foi o último deus que

reinou sobre o Egito. E Osíris é Dioniso, conforme a língua Hélade

(HERÓDOTO, Histórias, II, 144).

Não é possível compreender se essa tradução helênica dos nomes foi uma maneira de

aproximar seus leitores ao universo religioso egípcio, visto que o autor, às vezes, emprega os

nomes egípcios para tais divindades. Concordamos com o ponto de vista da autora Françoise

11 Gaëlle Tallet e Christiane Zivie-Coche (2012) empregam o termo interpretatio graeca para o processo de

tradução e compreensão da cultura do outro a partir de elementos gregos. Isso também acontece do lado egípcio,

culminando no que seria a interpretatio aegyptiaca.

29

Dunand, ao afirmar que provavelmente as correspondências entre os nomes gregos e egípcios

eram característica comum do tempo de Heródoto (DUNAND, 2004, p. 241). Demais

associações e traduções são observadas ao longo do período helenístico e romano: Afrodite e

Hathor; Hermes e Thot; Tífon e Seth; Hefesto e Ptah; Deméter e Ísis, dentre outros. No século

I d.C., Plutarco produziu uma vasta reflexão filosófica em torno do mito de Ísis e Osíris,

presente em um tratado do sétimo volume da sua obra Moralia. Em Iside et Osiris também

encontramos essas associações de deuses egípcios e gregos por meio da tradução dos nomes.

A evidência literária, seja por Heródoto ou por Plutarco, corroboram as evidências materiais de

coexistência religiosa entre essas sociedades.

Para o período ptolomaico e romano, as circunstâncias políticas mudaram

consideravelmente em comparação com o período faraônico. Os estrangeiros se tornaram

responsáveis pela administração política e econômica do Estado. Do ponto de vista egípcio,

não houve integração dos deuses de origem helênica ao panteão da religião tradicional nativa.

A interação da religião egípcia e helênica se deu muitas vezes de forma contraditória, como

afirmam as autoras Gallet e Zivie-Coche (2012, p. 440): ao mesmo tempo em que a população

grega se restringia aos seus deuses, também houve contato e interação com o universo religioso

egípcio, havendo interpretações e associações entre as divindades. Essas situações aconteceram

em diferentes regiões dentro do território egípcio. Os principais centros de culto da religião

egípcia tradicional no período helenístico e romano são os templos de Dendera, Esna, Edfu,

Kom Ombo e Philae, localizados na chôra. Em Alexandria, centro difusor da cultura helênica

para o restante do Egito e para as áreas adjacentes do Mediterrâneo, os cultos helênicos foram

mais presentes. Contudo, a interação com a religião egípcia foi presente e se deu de forma

paulatina e mais voltada a uma interpretatio graeca. Em nossa perspectiva, essa interação se

mostra intensa no final do período ptolomaico e no período romano, como se atesta nos sítios

de necrópole dessa cidade.

Fundada em 331 a.C. por Alexandre, o Grande, Alexandria se tornou um importante

centro cultural e econômico durante o período helenístico, quando também era a capital do

Egito durante o governo da dinastia ptolomaica. A partir de 30 a.C., quando da dominação

romana, Alexandria ainda ocupou uma posição de destaque no comércio do Mar Mediterrâneo,

permanecendo como um grande centro populacional, econômico, intelectual e uma região

estratégica de articulação do Império Romano com as províncias orientais. A fundação de

Constantinopla, nos meados do século IV d.C., reduziu consideravelmente a importância

política e comercial de Alexandria para o Império Romano da porção oriental.

30

Apesar do esplendor e da grandiosidade alcançados na Antiguidade, a cidade de

Alexandria não preservou a maioria dos seus monumentos, como palácios, a Biblioteca e o

Museu, conhecidos apenas por fontes literárias da época. Os locais de enterramento dos

monarcas da dinastia ptolomaica, bem como a tumba de Alexandre, o Grande, permanecem

desconhecidos. Capponi (2011, p. 53-56) cita o volume 17 da obra Geografia de Estrabão, que

visitou Alexandria por volta de 20 d.C.:

Estrabão descreve o porto e os prédios vizinhos: o teatro; o templo de

Poseidon; o Cesareum, templo construído a mando de Cleópatra VII e

dedicado a Júlio César; a praça de comércio, os armazéns de estocagem de

grãos e o cais. Ele também descreve as duas principais artérias de Alexandria,

avenidas de grande proporção (30m de largura); a Necrópolis ou o cemitério

da população grega; o santuário de Serápis ou Serapeum; o anfiteatro, o

estádio e o complexo do gymnasium que incluía pistas, banhos, pórticos e

jardins. Segundo Estrabão, o palácio real se mostrava como um grande

complexo, cobrindo quase um terço da cidade, visto que cada monarca da

dinastia lágida acrescentava novos prédios ao palácio.

A cidade foi originalmente organizada seguindo os padrões urbanísticos gregos: uma

rede de ruas retilíneas, dividida em cinco quarteirões que seguiam a sequência das cinco

primeiras letras do alfabeto grego (alpha, bêta, gamma, delta e épsilon). A população de

Alexandria era, sobretudo, cosmopolita: havia habitantes nativos do Egito, como também havia

grupos populacionais provenientes da península itálica, Chipre, Trácia, Gália, Líbia, Judeia,

Fenícia, Pérsia, Arábia, Índia e entre outras localidades do Mediterrâneo. A comunidade judaica

era bastante expressiva em Alexandria, desde o início do período ptolomaico.

A cidadania das póleis era estritamente controlada, havendo a princípio a proibição de

casamentos inter-raciais. Essas cidades possuíam as instituições civis conhecidas no mundo

helênico, como os conselhos, assembleias e o ginásio. Dessa forma, é possível perceber uma

busca por elementos da identidade grega que fizesse distinção com o elemento nativo egípcio,

visto que havia privilégios jurídicos (acesso a cortes de justiça diferenciadas) e econômicos

(redução ou isenção de impostos) àqueles que eram reconhecidos pelo Estado como gregos. É

sabido, todavia, que a partir da segunda metade do século II e ao longo do século I a.C., as

identidades se tornam menos restritas, havendo a possibilidade de trocas e fluências entre o

status grego e os elementos egípcios, comumente associados a questões religiosas e funerárias.

A busca pelo status da cultura grega estava associada ao grupo que ocupava o poder,

não somente em relação à dinastia ptolomaica, mas também aos cargos administrativos do

Estado. A língua falada na cidade era o grego, assim como se difundia o pensamento e a filosofia

31

helênica na cidade. Algumas instituições típicas de uma pólis existiram em Alexandria, como

o Conselho de cidadãos (demos), a Assembleia (ecclesia), o Conselho municipal (boule), o

Conselho de magistrados (prytaneis) e o Conselho de anciãos (gerousia). A cidade ainda

contava com uma ágora, fóruns, ginásios, anfiteatros e outras localidades de uma típica pólis

(VENIT, 2002, p. 9). O farol da cidade, localizado na ilha de Faros, foi planejado pelo arquiteto

Sostratos de Cnidos, erguido entre 297 e 283/3 a.C., ligado à cidade por meio de um dique

construído chamado Heptastadeion.12 A construção se tornou símbolo da grandiosidade

alexandrina, sendo motivo iconográfico de moedas encontradas ao longo do Mediterrâneo. O

farol se encontrava em franca deterioração durante a Conquista Árabe; estando grande parte da

ilha de Faros submersa hoje em dia. O Lago Mareótis, localizado ao sul da cidade, integrava

parte do comércio fluvial do Nilo por meio de canais.

Alexandria contava com duas importantes instituições de formação intelectual, traço de

status grego por excelência: o Museu e as duas Bibliotecas. O primeiro foi fundado por

Ptolomeu I Sóter e finalizado por Ptolomeu II Filadélfo, próximo ao templo das Musas. O

Museu se tornou rapidamente um centro notável de produção intelectual em diversas áreas, da

medicina à literatura e astronomia, passando pela matemática e geografia. As bibliotecas, por

sua vez, estavam localizadas dentro do Museu (a mais conhecida pela magnitude de seu acervo)

e do Serapeum, templo dedicado ao deus Serápis. As estimativas sobre a quantidade de livros

vão de 50 a 60 mil exemplares, sendo um reduto importantíssimo para o conhecimento da

Antiguidade. Os episódios de incêndio são relatados durante a época de Júlio César e Cleópatra,

por volta de 48/47 a.C., que resultou na queima de uma pequena parte do acervo da biblioteca

do Museu. Ela foi destruída por volta de 272 d.C., durante a invasão de Alexandria por tropas

da cidade de Palmira (CAPPONI, 2011, p. 60). A biblioteca do Serapeum, que também contava

com um grande acervo de obras, foi destruída pelos cristãos no século IV d.C.

A monarquia ptolomaica carecia, no início, de bases legitimadoras que se alinhassem à

ideologia política e religiosa egípcia. Nesse sentido, teve papel fundamental o culto dinástico

do deus Serápis, comumente atribuído como uma criação do próprio Ptolomeu I Sóter. A

divindade apresentava características físicas de um deus grego (homem de barba,

provavelmente ligado à imagem de Hades, Asclépio e Zeus), mas tinha um nome de inspiração

12 Segundo Capponi (2011, p. 53), a palavra grega significa “sete stadias”, stadion sendo uma medida de

comprimento que correspondia a 175 metros.

32

egípcia, proveniente de Osor-Hapi, deidade adorada em Mênfis e que se tratava da junção de

Ápis a Osíris após a morte.

Figura 1. Busto do deus Serápis encontrado no Serapeum, datação do século II d.C.

Fonte: BIANCHI; SAVVAPOULOS, 2012, p.131

Dunand (2004, p. 215) argumenta que a divindade egípcia muito provavelmente já era

conhecida pelos gregos que residiam no Egito antes do período ptolomaico; a imagem

helenizada e o culto tomado pela dinastia ptolomaica foram estratégias de legitimação do poder

e de criação de templos e locais de adoração da divindade. Sua associação com Ísis, divindade

amplamente conhecida no mundo helenístico e que ganhou versões helenizadas, satisfez os

preceitos religiosos e ideológicos da realeza egípcia. Aspectos ligados à fertilidade e à cura

foram largamente atribuídos a Serápis, sendo considerado também como patrono da cidade de

Alexandria. A figura 1 traz a iconografia mais conhecida: o deus possui cabelos ondulados e

barba encaracolada. Um pequeno cesto, chamado em grego de kalathos, é adornado com um

motivo iconográfico floral, ligado ao sentido de fertilidade.

O principal templo da cidade e dedicado a Serápis, o Serapeum, foi construído entre os

reinados de Ptolomeu I Sóter, Ptolomeu II Filadélfo e Ptolomeu III Evérgeta, passando por

reformas também no período romano. Localizado ao sul da cidade, o complexo templário o

33

contava com um grande pátio cercado por colunas, salas de leitura e uma biblioteca; com o

templo dedicado a Serápis ao centro.

Figura 2. Planta baixa e reprodução do complexo templário de Serápis, o Serapeum, em

Alexandria

Fonte: MCKENZIE, 2007, p. 201; CAPPONI, 2011, p. 57

Escavações nesse sítio arqueológico revelaram a presença de esculturas em estilo

clássico e egípcio, que provavelmente faziam parte dos altares e locais de culto de divindades

que também eram cultuadas nesse lugar. Por volta de 181 d.C., o templo passou por um grande

incêndio, sendo reconstruído em 215/16 d.C. (MCKENZIE, 2007, p. 195). Em 298 d.C., em

comemoração à vitória do imperador Diocleciano sobre o usurpador Domício Domiciano, o

prefeito de Alexandria à época, Públio, ergueu uma coluna com capitel em estilo coríntio,

estrutura visível até os dias atuais. O Serapeum funcionou como importante centro religioso e

intelectual até meados de 391 d.C., quando o imperador Teodósio II decretou o fechamento de

todos os templos pagãos. A Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, construída entre os séculos I

e II d.C., se situa próximo ao sítio arqueológico do Serapeum.

34

Pela sua matriz helênica, a capital apresentava uma variedade de cultos de origem grega,

coexistentes com as divindades egípcias. Destacamos o culto do Agathos Daimon13,

denominado como o gênio protetor da cidade. Sua representação mais comum consistia em

uma serpente barbada e coroada; houve provavelmente conexões com a divindade egípcia Shai,

também uma serpente. Ísis foi a divindade egípcia que passou por maiores transformações: o

aspecto de fortuna foi incorporado à deusa egípcia, na forma de Ísis-Tyche; a associação à deusa

Afrodite, observada em figuras de terracota do segundo século d.C., trouxe o aspecto da

fertilidade junto aos atributos de Ísis; em Alexandria, a deusa egípcia ganhou um aspecto

universalizante. Os primeiros monarcas lágidas endossaram o culto do deus Dioniso, assim

como instituíram o culto dinástico da realeza, como pode ser visto com Ptolomeu I e Berenice

I (DUNAND, 2004, p. 274-273). Infelizmente, não há registro arqueológico de santuários de

divindades helênicas, restando as evidências textuais de Estrabão, Políbio e Suetônio, como

nos informa Susan Venit (2012, p. 88). A partir dessas fontes, sabe-se da presença de culto de

deuses gregos como Zeus, Dioniso, Deméter, havendo um apelo ao aspecto ctônico, quando

possível, atribuído às divindades.

É importante perceber que a maior presença da religiosidade grega está acompanhada

com o contingente populacional que imigrou para o Egito e povoou as póleis, locais onde mais

evidências são vistas ligadas aos cultos helênicos. Nas regiões pouco afetadas pela população

grega, a tradição egípcia preservou sua hegemonia. É sabido também que, diferentemente dos

colonizadores helênicos, a dominação romana não significou um deslocamento populacional

em massa de romanos adentrando no Egito, o que pode explicar a presença menor – em

comparação com a tradição helênica - de divindades romanas associadas aos deuses egípcios.

No caso de Alexandria, a cidade passou por um processo gradual de permeabilidade à cultura

egípcia, como poderemos observar, sobretudo no último século do período ptolomaico.

Observaremos esse fenômeno quando tratarmos das tumbas alexandrinas, no segundo capítulo.

Os costumes funerários são aspectos religiosos de grande importância, pela preservação

documental e pela possibilidade de se perceber as interações culturais. No caso do Egito

Ptolomaico e Romano, mediante as variações locais, os costumes funerários trazem a matriz

egípcia atrelada à mumificação e ao culto de Osíris, principal divindade funerária desde os

tempos faraônicos. Ao tratarmos de Alexandria (e também das demais póleis), as evidências

13 Trataremos sobre o Agathos Daimon na análise iconográfica da tumba pesquisada nessa dissertação (terceiro

capítulo).

35

materiais indicam práticas funerárias comuns aos povos helênicos, sendo a técnica da cremação

e inumação amplamente utilizadas. A mumificação é também documentada, passando por uma

maior adesão nos últimos séculos do período ptolomaico e amplamente difundida no período

romano. Apesar das delimitações identitárias impostas nos censos romanos, em que se buscava

segregar a população da província por meio de status como grego e egípcio, no campo da

religião funerária as identidades são muito mais entremeáveis e fluidas. Essa fluidez no tocante

aos costumes funerários é observada já no período ptolomaico, sendo mais constatada na

documentação do período romano. A simbologia egípcia, ligada ao ciclo da vida e ao culto de

Osíris, passou por acomodações, acréscimos e releituras advindas da tradição helênica.

Autores como Susan Venit (2002, 2015), Françoise Dunand (2004), Christina Riggs

(2005), Kryiakos Savvopoulous (2011, 2013), entre outros, concordam com a ideia de que as

concepções funerárias egípcias eram atrativas, visto que forneciam uma perspectiva positiva e

de continuidade da vida após a morte, o que justificaria a adesão desses costumes em várias

regiões do Egito, incluindo as de colonização estrangeira. Estamos alinhados à essa

interpretação, tendo em vista as evidências da religião funerária egípcia presentes na arquitetura

e iconografia das tumbas alexandrinas. É preciso ressaltar que, pela ausência de prédios ou

templos da antiguidade preservados em Alexandria, o estudo da arte e arquitetura dessa cidade

se dá muitas vezes de forma indireta, por meio dos escritos de autores clássicos, como Estrabão,

assim como também se baseia nos estudos arqueológicos em áreas de necrópole. Essas áreas

foram as mais bem preservadas. Assim, a produção sobre as tumbas alexandrinas aparece mais

comumente ao se falar de arte e arquitetura.

As missões arqueológicas da década de 1990 realizadas em Alexandria foram

responsáveis por trazer à tona debates e reflexões a respeito da arte e arquitetura da cidade. O

estudo da evidência material descoberta na época, combinado com as escavações anteriores,

reacenderam o pensamento sobre a sociedade alexandrina e sua diversidade cultural. Entre

historiadores da arte, temos um amplo debate acerca da existência de um estilo alexandrino. A

obra Alexandria and Alexandrianisms, publicada em 1996, traz uma compilação de artigos que

versam sobre variados temas sobre Alexandria. A seção Arts of Hellenistic Alexandria: Greek

and Egyptian contributions discute sobre o estilo alexandrino, em que não há um consenso ou

ideia fechada sobre o tema. Grande parte dos autores reconhece a influência da tradição egípcia

em meio à tradição clássica presente nas esculturas e arquitetura de Alexandria, havendo a

coexistência dos estilos de forma separada, mas também sendo possível encontrar artefatos que

mesclam elementos de ambas as tradições.

36

Judith McKenzie é uma das principais defensoras da ideia de um estilo propriamente

alexandrino, voltado especificamente à arquitetura. Sua obra, The Architecture of Alexandria

and Egypt, 300 BC- AD 700, publicada em 2010, cobre um vasto recorte cronológico, do Egito

Ptolomaico ao Período Bizantino. McKenzie demonstra nesse trabalho o desenvolvimento do

estilo arquitetônico próprio da cidade alexandrina e da circulação desse estilo por áreas

adjacentes no Mediterrâneo, como na cidade de Petra, na Ásia Menor, e Miletos, na Grécia. A

partir do acervo de fragmentos do Museu Greco-Romano de Alexandria, a autora indica a

variedade de estilos arquitetônicos de capitéis, fachadas e pórticos que mesclaram traços

jônicos, dóricos e egípcios. Todavia, as demais expressões arquitetônicas tidas como puramente

clássica ou egípcia ainda são observadas ao longo do território do Egito durante a dominação

ptolomaica e romana. Para a autora, existiu um estilo arquitetônico propriamente alexandrino,

de base clássica, mas com influências egípcias.

Ainda dentro do debate sobre estilo na arte e arquitetura alexandrina, a ideia de estilo

duplo surgiu com o egiptólogo Laszlo Castiglione durante a década de 1960, para definir e

interpretar os artefatos e a iconografia presentes em tumbas do Egito da época ptolomaica e

romana. Essa ideia inspirou várias interpretações posteriores, como podemos observar na obra

de Jean Yves-Empereur, Alexandria Rediscovered, do ano 1998. Empereur emprega as noções

de estilo duplo e justaposição para tratar da interação cultural observada na Tumba Principal

de Kom el-Shoqafa, identificando os elementos da religião egípcia e greco-romana envolvidos

no programa decorativo da tumba. O estilo duplo também aparece nas interpretações dos

autores Anne-Marie Guimier-Sorbets, André Pelle e Mervat Seif el-Din, responsáveis pela obra

Renaître avec Osiris et Perséphone: Alexandrie, les tombes peintes de Kôm el-Chougafa

(2015), que se debruça majoritariamente sobre tumbas pintadas do sítio arqueológico onde a

Tumba Principal é situada.

Buscando superar a ideia de estilo duplo de Castiglione, assim como se distanciando da

discussão de arte, Marjorie Susan Venit propõe a ideia de mescla para se referir à iconografia e

arquitetura das tumbas alexandrinas. Houve a combinação de sistemas visuais para atender às

tradições egípcia e grega de forma simultânea, ideia apresentada na sua obra Monumental

Tombs of Ancient Alexandria: The Theater of the Dead, publicada em 2002. Em seu último

livro, Visualizing the Afterlife in the Tombs of Graeco-Roman Egypt, publicado em 2015, Susan

Venit buscou direcionar suas análises das tumbas do período romano às negociações e

mediações sobre morte e vida no além, observando esse fenômeno nas tumbas do período.

Nessa obra mais recente, a autora mudou sua interpretação anterior e fez uso das ideias de

37

bilinguismo (ideia já citada por nós anteriormente, pelas autoras Gaelle Tallet e Christiane

Zivie-Coche, 2012) e justaposição para falar do sistema de representação da arte funerária, sem

que haja uma mescla profunda de elementos culturais.

Christina Riggs, autora da obra The Beautiful Burial in Roman Egypt: Art, Identity and

Funerary Religion (2005), traz uma perspectiva diferenciada dos autores citados anteriormente,

ao defender a ideia de criação de uma arte funerária original no Egito Romano. Ela afirma que:

A escolha de empregar convenções e elementos que não estavam

tradicionalmente incluídos no repertório egípcio foi significativa, seja

conscientemente ou não, e a arte criada como resultado dessa escolha é ainda

mais significativa diante disso. Apenas analisando precisamente como as

divergentes tradições pictóricas e simbólicas interagem, e imaginando a arte

funerária egípcia em seu próprio lugar e tempo, poderemos começar a

apreender os significados que ela incorporou. (2006, p. 5-6).

Dessa forma, percebemos que no ponto de vista de Riggs, houve a criação de uma arte

funerária distinta e que mesclou traços da tradição clássica e egípcia. Essa visão corrobora com

a nossa hipótese de pesquisa, em que sustentamos a ideia de emaranhamento cultural no

contexto funerário da Alexandria Romana. Para não nos determos na discussão dos temos arte

e estilo para se tratar do fenômeno visual da tumba estudada, adotamos preferencialmente o

termo iconografia. Discutiremos brevemente sobre essas terminologias no terceiro capítulo.

A variedade de conceitos para definir tal fenômeno permite que a questão fique aberta à

discussão e à proposição de novas ideias. Kyriakos Savvopoulos, autor do artigo The Polyvalent

Nature of the Alexandrian Elite Hypogea: A case study in the Greco-Egyptian Cultural

Interaction in the Hellenistic and Roman Period, (2013) cunhou o termo “alexandrinização”

(alexandrinization) para definir o processo de percepção e combinação das tradições culturais

do Egito que são observadas nas tumbas de Alexandria. Ele assume a premissa de que a

dualidade do fator egípcio e grego passou a se manifestar de forma imbricada a partir do século

II e I a.C, em que se verifica uma intensa miscigenação populacional. Com a dominação

romana, esse processo de integração entre as culturas continuou sendo observado e até se

intensificou: a partir do século I d.C, as tumbas apresentam um esquema decorativo ainda mais

mesclado, como é o caso da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa.

A obra Egyptian Cultural Identity in the Architecture of Roman Egypt (30 BC – AD

325), publicada em 2015 pelo pesquisador egípcio Youssri Ezzat Hussein Abdelwahed, possui

o escopo de investigação mais próximo ao nosso trabalho. O autor discute questões ligadas à

38

etnicidade e identidade a partir da arquitetura, buscando identificar a permeabilidade das

identidades no contexto de dominação romana no Egito. Dessa forma, a questão espacial e

arquitetônica é enfatizada junto à sua investigação. O autor buscou ainda perceber as

continuidades e mudanças no que diz respeito à tradição egípcia frente à cultura greco-romana.

Para isso, Abdelwahed afirma que (2015, p. 7-8) o uso de conceitos como bilinguismo,

biculturalismo e hibridismo são intercambiáveis na análise da cultura material (inscrições,

iconografia e arquitetura, por exemplo).

Como é possível perceber, a arte e arquitetura de Alexandria, estando ligadas ou não

aos espaços funerários, são temas longe de consensos e conclusões definitivas. Afastamo-nos

da discussão teórica mais ligada à arte, havendo preferência pelas interpretações de autores que

se baseiam na arqueologia. Nossa pesquisa irá empregar o referencial teórico do

emaranhamento cultural, conhecido a partir da leitura o artigo Espaços territoriais e redes de

poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade, de autoria de Marcia Severina

Vasques e publicado no ano de 2014. Nesse trabalho, Vasques aborda os conceitos de

imperialismo, centro e periferia e redes de poder para uma análise mais abrangente de Roma e

suas províncias; a autora emprega o conceito de emaranhamento, proposto pelo arqueólogo

Phillip Stockhammer, para a análise de artefatos funerários do Egito Romano. Na seção a

seguir, estaremos discutindo de forma mais detalhada sobre esse conceito.

1.1. UMA PROPOSTA TEÓRICA PARA O HIBRIDISMO CULTURAL:

EMARANHAMENTO

A partir da contextualização histórica e da revisão bibliográfica sobre Alexandria

desenvolvidas anteriormente, foi possível perceber que existe um grande potencial de estudo

acadêmico sobre a interação cultural nessa cidade, em especial nos espaços funerários.

Concordamos com as perspectivas que apontam em direção a uma interação cultural mais

intensa e com traços de mescla e inovação visíveis na arquitetura e iconografia funerária.

Sabemos, em contrapartida, que ainda assim não é possível afirmar a existência de uma religião

híbrida. Nossa proposta de uso do conceito de emaranhamento surge para elucidar questões

ligadas à noção de hibridismo e para nos auxiliar na interpretação das nossas fontes, sem

necessariamente indicar um sistema religioso completamente emaranhado.

A diversidade étnica e cultural da cidade alexandrina deixou marcas visíveis dessa

variedade nos registros materiais. A fim de trabalharmos com o nosso objeto específico de

39

pesquisa, propomos aqui uma abordagem teórica recente, trazendo um conceito pertinente na

análise de cultura material com características híbridas: o emaranhamento, proposto pelo

arqueólogo Phillip Stockhammer. Basear-nos-emos nos artigos publicados nos anos de 2012 e

2013, em livros organizados pelo próprio autor e que conta com a contribuição de

pesquisadores da arqueologia que também trabalham com a questão do hibridismo.

A questão de híbrido versus puro é o tema enfatizado na reflexão preliminar da sua obra

Conceptualizing Cultural Hybridization, organizada em 2012, reunindo diversos artigos que

versam sobre hibridismo na arqueologia. De fato, para podermos utilizar o conceito ou a ideia

de híbrido, se faz necessário também definirmos o que significa ser puro nesse determinado

contexto. Tanto as noções de hibridismo como de pureza são problemáticas dentro dos estudos

culturalistas, em especial na discussão pós-colonial. A ideia de pureza, por exemplo, possui

potencial de ser utilizada em discursos de xenofobia e racismo, práticas que não possuem

nenhum tipo de respaldo científico. Entretanto, a discussão sobre hibridismo precisa avançar

nessa dicotomia entre puro versus híbrido. Nas palavras do autor:

Hibridismo pode apenas existir em oposição à pureza; se falamos sobre

hibridismo, devemos aceitar a existência da ideia de pureza. Todo princípio

de transcender as fronteiras culturais começa com o reconhecimento de que

elas existem, confirmando a existência daquilo que precisa ser superado. Toda

disciplina que discute o hibridismo deve definir como se entende a pureza. Se

nada pode ser definido como puro, tudo se torna híbrido e essa ideia se torna

um termo redundante, talvez sendo utilizável como metáfora para estimular

discussões, mas não como uma ferramenta conceitual. [...] A pureza tem sido

tão frequentemente inventada pelos poderosos como uma estratégia de

supressão que esse termo deve ser tratado com extrema cautela. Portanto, é

importante reconhecer a existência das três dimensões do hibridismo:

primeiro, a construção e percepção de hibridismo - e pureza como seu oposto

- por diferentes indivíduos ou grupos que construíram estruturas e ideologias

sobre essas duas noções para manter ou impor relações de poder assimétricas;

em segundo lugar, o hibridismo como uma metáfora para uma abordagem

científica que visa analisar e desconstruir relações de poder assimétricas que

resultam de suposições de pureza cultural; em terceiro lugar, o hibridismo

como base de uma abordagem metodológica para a análise de encontros

transculturais (2012a, p. 1-2).

Tendo em vista o papel exercido pelo pesquisador cientista, reconhecendo também sua

ação de forma política, Stockhammer assinala um duplo interesse pela ideia de hibridismo: ela

é percebida e adotada enquanto metáfora para delimitar o objeto de pesquisa; assim como é

também adotada de forma metodológica na operacionalização de um conceito que permite a

análise de um corpo específico de fontes a ser trabalhado pela arqueologia (2012a, p.2). O

artigo de título Conceptualizing Cultural Hybridization in Archaeology, contido nessa obra já

40

referenciada anteriormente, reúne as reflexões teóricas em torno do conceito de hibridismo e

que resultaram na criação do conceito emaranhamento. O autor reitera seus objetivos

metodológicos ao afirmar que

Mesmo que o mundo pareça ser completamente emaranhado, considero que

seja possível desenvolver a metáfora em um conceito epistemologicamente

utilizável, ao restringirmos o uso do termo “emaranhamento” ligado aos

termos “espaços liminares” ou “transições” para a análise de processos

distintos de apropriação (2012a, p. 48).

Dessa forma, as noções de híbrido ou emaranhado se tornam ferramentas úteis para a

análise das fontes oriundas de contexto em que houve trocas culturais, em especial no tocante

à análise de cultura material. O termo emaranhamento (entanglement, no inglês, geflecht;

verflechtung no alemão) sintetiza a ideia de mescla nas características morfológicas e/ou nos

significados e funções que os artefatos arqueológicos apresentam em seu contexto. Para

Stockhammer (2012a, p.47), emaranhamento compreende as noções de agência,

processualidade e criação de algo novo que vai além de uma simples justaposição de suas

origens.

Procurando retirar as dificuldades epistemológicas e terminológicas das ideias sobre

hibridização, que derivam principalmente do pensamento de Homi Bhabha e da sua obra O

local da cultura (1994), Stockhammer se utiliza das ideias de Bhabha sobre espaços liminares

das identidades culturais, que constituem espaços de encontro e de potencial de hibridização.

Na proposta de Stockhammer (2012b, p. 90), os espaços liminares são os espaços ou situações

de encontro das entidades culturais - esquemas mentais úteis do ponto de vista ético ao

pesquisador, que reúnem características comuns a uma cultura, encontrados em um contexto

determinado. A noção de que um artefato é grego, romano ou fenício é um exemplo da

aplicação de entidades culturais a partir das características morfológicas visíveis, combinadas

com as informações contextuais de achado.

No encontro de duas ou mais entidades culturais nos espaços liminares, existe o

potencial de desencadear o processo de apropriação, no qual Stockhammer se baseia nas ideias

de Hans P. Hahn (2004a, 64–67; 2004b, 218–220; 2005, 102–104; 2007, 209–210 apud

STOCKHAMMER, 2012, p. 48). Esse processo é composto por quatro fases: apropriação,

incorporação, objetificação e transformação, que ocorrem de forma simultânea e entrelaçada.

Ao pensar no registro material, Stockhammer argumenta que

41

Enquanto apropriação e incorporação podem ser facilmente identificados em

um contexto de achado bem preservado, a objetificação e transformação são

mais difíceis de serem reconstruídos, visto que eles se referem à percepção

dos artefatos e, portanto, exigem uma perspectiva êmica. No entanto, o

contexto de achado de um objeto pode nos indicar alguma pista para a

objetificação e transformação: cálices ou copos estrangeiros encontrados

juntos aos copos “locais” ou “nativos” indicam um sistema de classificação;

cálices estrangeiros encontrados em contextos funerários locais supõem a

atribuição de um novo significado (2012a, p.49).

Esse processo, que pode ocorrer em diferentes intensidades, resulta em dois tipos de

emaranhamento. O relacional pode ser definido quando se trata de uma apropriação de objetos

estrangeiros e que recebem um uso social diferente daquele de origem. A utilização de vasos

gregos de armazenamento de bebidas em contextos funerários em outras sociedades é um

exemplo dessa possibilidade de emaranhamento. Não houve alteração na materialidade dos

vasos, isto é, suas características morfológicas continuam intactas; a função e o uso social é

que foram alterados e emaranhados.

O segundo modo de emaranhamento, denominado material, envolve um processo que

vai além da modificação dos usos sociais de um artefato; a própria materialidade dos objetos

em questão registra em si a amálgama das entidades culturais - modelos mentais que reúnem

as características de determinada cultura - envolvidas nos processos de assimilação e criação.

É também possível considerar o objeto emaranhado como formador de uma terceira entidade,

devido às suas características inovadoras (2012a, p. 51).

A adoção desse novo conceito não apenas elucida questões pouco trabalhadas dentro da

concepção de hibridismo, como também permite que pensemos sobre o grau de dinâmica e

processualidade presente nos contextos de apropriação e interação cultural. Stockhammer

argumenta que

Enquanto muitos estudiosos focalizam na distinção entre o híbrido e outros

fenômenos, defendo que temos que estudar a maneira pela qual o fenômeno

emaranhado conecta, de forma criativa, as entidades anteriormente separadas;

como esses envolvimentos podem ter desempenhado um papel ativo nas

práticas cotidianas e – por fim, nas visões de mundo. Nós temos que estudar

as práticas associadas com o objeto emaranhado, a fim de compreender o seu

significado (s) e função (s) em vez de terminar com a declaração do seu estado

de emaranhamento (2013, p. 17).

Contextualizando com o nosso objeto e tema de pesquisa, o conceito de emaranhamento

será utilizado para compreendermos de forma mais clara a interação cultural presente no espaço

funerário, por meio da análise dos relevos encontrados na Tumba Principal de Kom el-Shoqafa.

42

Faremos menção às ideias de Stockhammer também na análise da arquitetura desse sítio

arqueológico, complementando assim a análise espacial a ser elaborada nos capítulos seguintes.

Ao analisarmos tanto a arquitetura como a iconografia a partir do conceito de emaranhamento,

poderemos levantar hipóteses de interpretação relacionadas à presença da religião e rituais

egípcios na elite de Alexandria durante a época romana, assim como perceberemos o papel do

espaço em possibilitar e registrar a interação das culturas no contexto funerário.

43

CAPÍTULO 2 – ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA

Desde a década de 1980, as ciências humanas têm colocado atenção especial nos estudos

sobre o espaço. Notadamente a geografia humanística, os estudos teóricos da arquitetura e a

arqueologia marcam posição de importância na integração do espaço aos fenômenos históricos

em seus aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos.

A investigação histórica no contexto funerário possui grande potencial de evidenciar a

interação cultural de uma sociedade antiga, uma vez que corresponde, na maioria dos casos, aos

registros arqueológicos disponíveis em maior quantidade e qualidade de conservação. Em

cidades como Alexandria, que contava com uma confluência de variadas tradições, é possível

visualizar como a cultura greco-romana interagiu com os elementos egípcios a partir de uma

análise das estruturas arquitetônicas dos sítios arqueológicos de necrópole. A princípio, faremos

uma discussão teórica acerca do espaço funerário, buscando compreendê-lo de forma completa,

atentando para seus aspectos materiais e simbólicos. Em seguida, abordaremos as

características arquitetônicas gerais das tumbas alexandrinas que datam do período ptolomaico

e romano, finalizando com um enfoque no sítio arqueológico de Kom el-Shoqafa.

2. 1. ESPAÇO FUNERÁRIO: PREMISSAS, REFLEXÕES E DEFINIÇÕES

Planejado em vida, destinado à morte. Praticado por vivos e mortos. A experiência

humana diante da morte, fenômeno implacável para todos os seres vivos, imprime marcas

visíveis no espaço. As sociedades, desde os seus primórdios, buscaram diferenciar o espaço

escolhido como última morada daqueles que partiram. Essa diferenciação se deu, obviamente,

de formas específicas quanto às culturas e ao tempo.

Falar do espaço funerário requer compreender sua dimensão sagrada para os indivíduos

e para a sociedade, visto que a morte traz à tona as crenças, cultos e rituais ligados ao fim da

vida. Ao pensarmos na questão do sagrado no espaço, as ideias de Mircea Eliade oriundas de

sua obra Sagrado e Profano (1957) serão nosso ponto de partida, com as devidas ressalvas e

críticas ao autor. Consideramos suas ideias pertinentes por mostrarem a relação entre sagrado

e espaço por um viés fenomenológico, todavia, algumas de suas ideias foram superadas ou

complementadas com os estudos da geografia, antropologia e arqueologia, por exemplo. Ao

perceber a relação entre experiência religiosa e espaço, Mircea Eliade influenciou os estudos

44

que vieram a se desenvolver ao longo da segunda metade do século XX e que ainda estão em

amplo debate nos dias atuais.

A manifestação do divino, ou no termo proposto por Eliade, a hierofania, consagra o espaço

em que se realiza. A partir disso, o espaço ganha um ponto fixo, ou centro, e tem sua fundação

ontológica. Ao pensarmos no contexto funerário, a hierofania está relacionada com os rituais

que buscam trazer o sagrado diante do fenômeno da morte. A ideia de experiência religiosa

como marcador de diferença entre espaços é pertinente; pois ao pensarmos no espaço funerário,

a experiência religiosa dos ritos de passagem produz marcações profundas no espaço, muitas

vezes visíveis por meio da cultura material.

A experiência com o sagrado e sua manifestação no espaço também ocorre no meio

funerário, envolvendo deidades funerárias e deixando marcas de profunda diferenciação no

ambiente destinado aos mortos. Eliade pontua que “[...] todos os símbolos e rituais concernentes

aos templos, às cidades e às casas derivam, em última instância, da experiência primária do

espaço sagrado.” (1992, p. 34). Percebemos, portanto, uma relação estreita entre símbolos e

ritualizações para consagrar um espaço: a partir de tais elementos, o sagrado se manifesta aos

homens e diferencia o ambiente ao seu redor.

Um ponto de crítica pertinente às ideias de Eliade está no universalismo almejado na

obra citada, havendo uma busca recorrente do autor em constatar padrões de repetição de

comportamentos e ideias religiosas em diferentes lugares e cronologias. Gil Filho traz críticas

pertinentes em relação a essa postura, que se sustentava na noção de arquétipo, sob influência

de Carl Jung:

Para Eliade, [...] os simbolismos de centro do mundo e os simbolismos celestes

de fertilidade assentam-se em um padrão arquetípico que fundamenta o

conceito de repetição. [...] Ao atribuir uma base uniforme de edificação dos

atos simbólicos, Eliade apresenta a possibilidade de uma essência uníssona do

fenômeno religioso. [...] A nossa crítica ao uso do conceito de arquétipo na

análise da religião refere-se ao fato de estarmos creditando ao mito a

configuração única de uma reminiscência da psique, e não de atos tecidos e

exercidos na trama histórica. [...] Nas sociedades complexas, a religião seria

uma variável pertinente na estruturação das relações sociais. Então, o ponto

de convergência e a comparação do estudo de diferentes tradições religiosas

estariam muito mais atinentes ao seu caráter histórico contextualizado do que

propriamente a uma essência arquetípica (2008, p. 18-19).

Logo, é preciso abandonar as perspectivas universalizantes ao se estudar a dimensão do

sagrado, colocando-a em um contexto histórico e atentando sobre as influências da sociedade

em sua temporalidade.

45

Dentro de uma perspectiva fenomenológica, o geógrafo Yi-Fu Tuan reúne ideias

interessantes acerca do espaço, retomando, de certa forma, as ideias de Eliade no que diz

respeito à experiência do homem no espaço, mas abandonando as ideias arquetípicas. Pensando

no nosso objeto de estudo, os locais destinados às práticas funerárias costumam apresentar uma

organização e uma disposição dada pela ação humana; e mais ainda; esses locais são dotados

de uma carga de experiências que envolvem as emoções, os sentimentos e a sensorialidade dos

indivíduos. Podemos refletir sobre esses espaços a partir dos conceitos de espaço e lugar.

Segundo Tuan,

O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida

que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. [...] As ideias de “espaço” e

“lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir da segurança e

estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça

do espaço, e vice-versa. Além disso, se pensamos no espaço como algo que

permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna

possível que localização se transforme em lugar (2013, p.14).

Tais conceitos são inter-relacionados e ligados à noção de experiência. O autor define

essa categoria de forma abrangente, compreendendo as diferentes maneiras pelas quais os

indivíduos constroem e conhecem a realidade. Essa experiência pode ser simples e direta,

envolvendo os sentidos sensoriais como a visão, o olfato, o tato, mas também pode acontecer

de forma indireta e conceitual, mediada pelos símbolos (2013, p. 14-17). As dimensões da

temporalidade, cultura e da sociedade são essenciais para se compreender o peso da experiência

nos espaços e nos indivíduos.

Trazendo essas reflexões para o nosso recorte temático do espaço funerário,

encontramos alguns pontos de convergência com o pensamento de Tuan, que se mostram

interessantes à nossa proposta de estudo. O espaço funerário traz consigo as noções de

experiência e afetividade; além disso, ele marca um ponto fixo no espaço de uma comunidade

ou grupo social, bem como representa um ponto fixo para aqueles entes mais próximos o morto.

Dessa forma, o espaço funerário pode ser visto como um lugar. Ele possui um caráter de

estabilidade e é composto pelas relações afetivas e de memória dos vivos para os mortos.

É preciso destacar o papel do espaço físico e da materialidade ao pensarmos sobre a

relação entre homem e espaço. A experiência humana no espaço acontece, inevitavelmente, por

meio da materialidade, dimensão que deve ser levada em consideração ao nos debruçarmos

sobre o contexto funerário: seja pela sua própria corporalidade, seja pela ação direta no espaço.

A espécie humana tem manipulado e modificado os ambientes em que se estabelece. No âmbito

46

funerário, as sociedades antigas apresentaram atenção especial quanto à diferenciação do local

que abriga os falecidos, havendo muitas vezes elaboradas construções dedicadas aos mortos.

O ato de construir, ligado à manipulação do meio físico, é permeado pelo conhecimento

e é dotado de uma dimensão simbólica e reflexiva. Os ambientes construídos trazem

intrinsecamente os valores, ideias e visões de mundo de uma sociedade em seu tempo: a

arquitetura é um produto sociocultural e histórico por excelência. Os vestígios materiais das

construções, deixados pelas sociedades pretéritas, podem ser importantes fontes históricas; os

indivíduos enquanto agentes históricos estão sempre ligados à uma dimensão espacial e

temporal. Como já ressaltamos previamente, a arqueologia e os estudos teóricos da arquitetura

contribuem de forma crucial no estudo dos ambientes construídos do passado. Aldrovandi

(2009, p. 13) afirma que

[...] A arqueologia do espaço construído busca justamente analisar e

interpretar esses componentes que permaneceram no registro material. Os

remanescentes físicos dos usos e costumes das sociedades passadas, que

ficaram impressos na forma de edificações, se pensarmos num contexto

delimitado, ou de assentamentos inteiros e, é claro, nas cidades – objetos e

pontos focais das principais abordagens sobre espaço construído

desenvolvidas nas últimas décadas. Assim, a análise espacial em Arqueologia

abrange desde as relações entre os cômodos de uma habitação, o uso dos

espaços domésticos e, em uma perspectiva mais ampla, os espaços funcionais

das cidades, sejam estes cívicos ou sagrados [...]

Portanto, a apropriação desse tipo de registro para o estudo do passado permite que se

compreendam as intenções e motivações do homem ao organizar o espaço habitado, construído

e praticado. Não somente palco das ações dos homens, o espaço é produtor e mediador das

relações sociais que nele acontecem. Mais ainda, o espaço construído retém memórias, propaga

ideologias e demarca diferenças sociais; não havendo, portanto, neutralidade nesse campo. Os

arqueólogos Parker-Pearson e Richards (1994, p. 3-4) consideram que “os ambientes

construídos existem em termos de ações e significados, um espaço existencial que não é tanto

objeto externo nem uma experiência interna”. Para esses estudiosos, o espaço pode ser definido

como uma concretização do espaço existencial, ele torna visível e conserva essa visibilidade

social. A partir de um espaço indiferenciado, ele é categorizado e nomeado, transformado em

local delimitado e marcado. O espaço deve ser entendido sempre pela ação vinculada a ele,

como podemos perceber nas palavras dos autores:

[...] Espaço é prática das ações cotidianas; ele também é símbolo, e nós

podemos conceituar a arquitetura como uma tecnologia simbólica. Os

significados que são dados aos lugares e à ordem do espaço não são fixos ou

47

invariáveis, mas devem ser invocados no contexto da prática e do uso

recorrente. Os significados somente são aderidos ao espaço por meio da

atividade humana. [...] A relação entre a forma do espaço e a agência humana

é mediada por significados. Pessoas dão significados ao ambiente físico de

forma ativa, e então agem de acordo com esses significados (1994, p. 3-4).

Ao tomarmos a arquitetura como tecnologia simbólica, reconhecemos o caráter

simbólico e funcional que as construções apresentam de forma simultânea, que podem ser

observadas nas residências, templos, santuários e tumbas. O significado do espaço construído

está intimamente ligado à prática e ao uso recorrente, estando a sacralidade do espaço

relacionada aos rituais que nele são praticados. As formas arquitetônicas dão acesso à dimensão

simbólica intencionada pelos indivíduos, que constroem e praticam as mais variadas ações

nesse ambiente.

Pensando no contexto funerário, os rituais garantem a função e significado do espaço

destinado aos mortos, sendo elementos constituintes da prática e da experiência vinculadas a

esse espaço. Nesse sentido, os rituais possuem uma forte conexão com as formas arquitetônicas,

visto que elas funcionam como a tecnologia necessária para se atingir o objetivo do ritual –

entendido por nós como pertencente a uma dimensão simbólica. Jas Elsner (2012, p. 3) auxilia

nossa linha de raciocínio, ao afirmar que

A questão da arquitetura é um caso especial do tema do ritual e da arte, pois

se trata da orquestração do espaço (performativo) – os quadros dentro dos

quais as pessoas eram construídas como sujeitos rituais – em oposição aos

artefatos específicos usados no ritual. Em geral, enquanto os artefatos

ritualísticos são frequentemente manipulados por corpos, o caso específico da

arquitetura – juntamente com as topografias sagradas de grande escala –

relaciona-se com o cercamento de corpos dentro de um espaço pelo menos

potencialmente e ocasionalmente reservado para ação ritual. Além disso, na

medida em que a arquitetura é um convite e um anúncio do espaço sagrado,

ela serve uma função material análoga a algumas qualidades do ritual em si.

Notavelmente, na medida em que o ritual é sobre a liminaridade e a articulação

das fronteiras entre o sagrado e o profano, a arquitetura é potencialmente uma

das suas supremas formulações materiais.

Logo, fica visível a forte relação entre arquitetura e ritual para se pensar na sacralidade

do espaço. Para obtermos claridade nesse quesito, é necessário que entendamos o ritual

enquanto um conceito ou categoria aplicável em nossa investigação. Desde a década de 1990,

antropólogos, historiadores, cientistas da religião e arqueólogos têm debatido acerca da questão

ritualística, havendo vários pontos de vista teóricos e abordagens.

48

Não existe consenso ou visão hegemônica nos estudos sobre ritual, como constatou

Catherine Bell (1992, 1997). Essa autora afirma que o ritual se trata de “uma construção

histórica e cultural que tem sido ostensivamente utilizada para diferenciar vários estilos e graus

de religiosidade, racionalidade e determinismo cultural” (1997, p. XI). Bell entende o ritual

como um meio sociocultural complexo e construído a partir de tradições, exigências e auto-

expressão; ele é entendido para encenar vários papéis e comunicar uma rica densidade de

mensagens e atitudes pré-determinadas. O ritual, portanto, evocaria as relações entre indivíduos

e as forças produtoras de poder, autoridade e valor (1997, p. XII). Assim, o ritual pode tanto

estar ligado à esfera religiosa ou sagrada, como também pode estar envolvido na trama social e

política de uma sociedade.

A autora ainda pontua que existem características inerentes aos rituais, que se

apresentam quase sempre de forma contínua: formalismo, tradicionalismo, invariância,

governança de regras, simbolismo sacro e performance. Os rituais tendem a acontecer sob um

decoro; buscam retomar tradições transmitidas pelo passado; apresentam ações marcadas pela

repetição e controle precisos e estão regidos por um conjunto de regras compartilhadas pelo

grupo social inserido no ritual. Símbolos sagrados – variando entre objetos, alimentos,

indumentária e até mesmo espaços, que evocam e expressam valores e ideias transcendentes –

são sacralizados na ação ritual, ao mesmo tempo que constituem partes geradoras dessa prática.

Por fim, o caráter performático da ação ritual está no apelo à experiência sensorial e cognitiva

dos participantes (1997, p. 139-161). Essas características são úteis para identificação e

classificação da atividade ritualística, sobretudo quando estamos lidando com fontes materiais.

Dentro das disciplinas que lidam com a cultura material, escolhemos seguir alguns

autores da arqueologia que se basearam em diversos estudos sobre ritual e que procuraram fazer

a conexão entre esse tipo de atividade e as fontes arqueológicas. Evangelos Kyriakidis (2007)

argumenta que apesar de ser difícil reconstruir a ação por meio de vestígios arqueológicos, o

pesquisador pode inferir a prática ritual a partir da dimensão cognitiva, que pode deixar marcas

físicas e, portanto, materiais.

Kyriakidis define ritual enquanto uma categoria ética: o ritual se refere a um conjunto

de atividades compostas de ações intencionadas de caráter especial, que são específicas a um

determinado grupo de indivíduos (2007, p. 294). Esse autor entende que as práticas religiosas

podem ser tidas como práticas ritualísticas, de forma geral, e enxerga uma relação estreita entre

a identidade de um grupo e as práticas rituais. Ao compartilharem da mesma experiência

49

ritualística, o grupo envolvido nessa prática demarcaria algum tipo de identidade, visto que a

prática ritual é capaz de criar laços identitários (2007, p.295). Esse autor argumenta que os

rituais são compostos de ações cristalizadas, seguindo os preceitos de Bell (1997) trabalhados

anteriormente por nós. Mais ainda, Kyriakidis enxerga uma relação íntima entre ritual,

paisagem e sistema de signos, quando afirma que:

Os rituais são sistemas de signos. De fato, os rituais - especialmente os

comunitários - criam um espaço cultural, um topos, muito parecido com

monumentos. Eles podem não afetar a paisagem visualmente, mas

certamente afetam cognitivamente. Rituais, literalmente, possuem um lugar;

eles são realizados em um local específico e estão inscritos nas memórias

dos participantes. Esses rituais que se repetem renovam esse espaço

cognitivo na memória. A mudança cognitiva da paisagem tem uma

infinidade de efeitos: sentimental, perceptivo, associativo, territorial,

histórico e assim por diante. [...]. O ritual define o espaço cognitivo em

grande escala, mas também define o espaço em pequena escala (por

exemplo, dentro de um edifício). Se o ritual é uma prática que muitas vezes

é constituída de uma série repetida de ações, então cada uma dessas ações

geralmente ocorre em uma localização específica em microescala (como o

púlpito de uma igreja ou uma mesa sacrificial). O ritual dá sentido, ou

melhor, enriquece o significado das várias características do local onde

ocorre (2007, p. 299).

Dessa forma, percebemos que existe uma dimensão espacial dentro da prática

ritualística, inerente tanto aos espaços físicos –sejam naturais ou construídos – quanto aos

espaços cognitivos, ligados ao pensamento e à memória. Elsner (2012, p.4-5) traz o pensamento

similar ao de Kyriakidis, quando aponta que nas disciplinas que lidam com documentação

material, em contraponto com a antropologia, o ritual não pode ser empiricamente observável,

sendo assim muito mais uma inferência a partir das evidências encontradas e que podem ser

mescladas para sustentar a ideia de ritual. Para esse autor, as disciplinas como arqueologia e

história adotam ritual como uma categoria cognitiva, na medida em que se busca esboçar a

dimensão do modo de pensar a partir das inferências sobre os vestígios materiais.

Colin Renfrew (1994, 2012) definiu como escopo da arqueologia cognitiva a

possibilidade de se chegar às formas de pensamento dos indivíduos do passado, a partir dos

registros materiais, tendo como base a capacidade humana de criar e usar símbolos. Estes são

entendidos como os meios pelos quais os homens comunicam e transmitem significados,

apreendendo assim a realidade em que estão inseridos. Ao entender como os seres humanos

criaram e organizaram os símbolos, o arqueólogo pode fazer inferência sobre os processos

cognitivos que levaram as sociedades a desenvolver seus traços culturais.

50

Os símbolos são empregados em contextos e sob intenções diversas, estando a dimensão

sagrada ou sobrenatural intimamente relacionada com símbolos. Segundo Renfrew e Bahn,

(2012, p. 390), eles são mediadores da esfera humana com o sobrenatural e transcendente. Ao

utilizar símbolos que estão associados à dimensão sagrada e transcendental, os indivíduos

demarcam a prática religiosa; isto é, os rituais sagrados; das demais que não estão

necessariamente vinculadas a um aspecto religioso ou sagrado.

Para que aconteçam, os rituais demandam uma diferenciação no espaço, sendo a

arquitetura um componente de grande importância; precisam demarcar os limites entre o mundo

dos homens e o Outro mundo; exigem a presença das deidades, que é alcançada através dos

símbolos materializado nas imagens, que podem ser simples ou tridimensionais; por fim,

demandam a participação e oferendas dos participantes às deidades, acontecendo por meio de

performances, banquetes e sacrifícios (BAHN; RENFREW, 2012, p. 404). Os marcadores do

ritual que podem ser identificados espaço estão ligados à ideia de repetição de símbolos, ou

redundância, havendo também o uso de imagens das deidades envolvidas no ritual. Assim,

verificamos a importância crucial da arquitetura e da iconografia, dotados de dimensão

simbólica, para que o ambiente se torne adequado para ser palco do ritual e permitir o contato

dos homens com o sagrado.

Para que possamos inferir sobre as práticas ligadas ao espaço a partir de sua arquitetura,

devemos atentar para o potencial comunicativo que os ambientes construídos possuíram para

os seus usuários, e que ainda pode ser apreendido pelos pesquisadores. Em outras palavras, os

marcadores do ritual identificados e dispostos no espaço são capazes de comunicar os

significados e intenções, assim como podem denotar as atividades exercidas nesse ambiente. A

obra do arquiteto Amos Rapoport, The meaning of the Built Environment: A non verbal

communication approach, publicada em 1990, traz a abordagem da comunicação não-verbal

para o estudo da arquitetura e dos ambientes construídos, nos auxiliando com conceitos

pertinentes na análise do espaço investigado nessa pesquisa.

Segundo Rapoport (1990, p. 19) a compreensão do ambiente construído se dá em dois

níveis: o perceptual e o associativo. A descrição perceptual identifica os itens físicos e os

elementos perceptíveis aos usuários, enquanto a descrição associativa está relacionada às

diferentes associações feitas pelos usuários com os elementos físicos. O comportamento social

de um ambiente construído é resultado da relação entre a percepção dos usuários e as

associações atribuídas a essa percepção; o ambiente construído fornece estímulos, que geram

51

as ações dos indivíduos que utilizam esse espaço. Essa perspectiva é bastante interessante ao

pensarmos na prática exercida no espaço funerário, isto é, os rituais, que operam na ação, no

pensamento e no comportamento dos indivíduos.

A comunicação não-verbal do espaço pode ser apreendida a partir da identificação e

interpretação dos elementos dispostos no espaço. Rapoport (1990, p. 86-97) estipulou três

grupos ou categorias desses elementos:

1. Elementos fixos, que consistem na constituição básica da arquitetura, como paredes,

pisos, tetos; são considerados como fixos por não apresentarem mudança ou

mudarem de forma muito rara e lenta. A maneira pela qual esses elementos são

organizados espacialmente, bem como o tamanho, sequência, localização e arranjo

indicam e comunicam significado, que influencia no comportamento do usuário

inserido nesse espaço. Os esquemas culturais são chave na compreensão da

organização desses elementos, que geralmente são conjugados a outros tipos de

elemento na significação do espaço.

2. Elementos semifixos, que consistem no aparato de mobiliária, como móveis, vasos,

plantas, quadros e outros tipos de mobília. Eles apresentam um grau de mudança

maior que os elementos fixos, assim como podem exibir um grau maior de

personalização. A partir desses elementos é possível diferenciar ambientes

construídos que apresentam estrutura arquitetônica em comum. Rapoport traz o

exemplo da cidade antiga de Çatal Hüyük (sítio arqueológico encontrado nas

proximidades da atual Turquia), onde a distinção entre moradias e locais de culto se

deu a partir da disposição de elementos semifixos (1990, p. 90).

3. Elementos não-fixos, se referem aos indivíduos que ocupam o ambiente construído,

assim como os seus comportamentos, posições, posturas, expressões faciais e

relações espaciais desenvolvidas nesse espaço.

Algumas outras características também estão envolvidas na comunicação verbal, como

altura, cor e redundância. Algumas dessas categorias serão utilizadas na nossa análise do espaço

funerário, visto que permitem a identificação e intepretação dos elementos arquitetônicos que

possuem diferentes naturezas e funções. Mais ainda, podemos tomar tais elementos como

constituintes ou vestígios das atividades rituais desempenhadas no ambiente construído,

articulando assim a ideia de comunicação não-verbal com a diferenciação do espaço a partir do

52

ritual. Retomaremos mais sobre o assunto ao analisarmos diretamente as nossas fontes, ao final

deste capítulo e no próximo.

Nessa breve discussão teórica, buscamos apontar a existência de uma circularidade entre

ritual e o espaço construído: o primeiro exige que haja uma diferenciação no espaço para que

ele aconteça, na medida em que o segundo gera estímulos ligados à atividade ritual, dando

suporte, significado e completude. Podemos pensar que o ritual e o espaço construído para esse

tipo de atividade – o espaço funerário por excelência – funcionam em um esquema de causa e

consequência. A abordagem da comunicação não-verbal permitirá que façamos a inferência da

atividade ritual no espaço funerário, entendendo que esse espaço integrava a prática ritualística

e comunicava os valores e ideias religiosas do grupo que o utilizava.

Para analisarmos o nosso objeto de pesquisa, a Tumba Principal de Kom el-Shoqafa,

será necessário conhecermos também de forma geral as características comuns e as diferenças

das tumbas alexandrinas, com as devidas especificações temporais quanto ao período

ptolomaico. A partir de fotografias, faremos comparações a fim de entender as possíveis

influências das tradições helênicas e egípcias presentes nos sítios de necrópole de Alexandria.

2.2. TUMBAS ALEXANDRINAS: CARACTERÍSTICAS GERAIS E

CLASSIFICAÇÕES

As tumbas encontradas em Alexandria não apresentam hegemonia da arquitetura e da

iconografia funerária grega, visto que a influência da religião egípcia – principalmente nas

crenças relacionadas à vida após a morte – é possível de ser observada nos achados

arqueológicos. Essa associação de elementos egípcios a uma base helênica é observada,

sobretudo, nos dois últimos séculos do período ptolomaico e se intensifica no período romano,

tanto em Alexandria como na chôra, o restante do território do Egito.

Segundo Susan Venit (2002, p. 2), as tumbas alexandrinas que chegaram até o presente

pertenceram majoritariamente a pessoas que buscavam uma identidade grega,

independentemente de suas origens ancestrais apresentarem geografias distintas. Esses sítios

arqueológicos apresentam um grande nível de preservação, sendo fontes inestimáveis para o

conhecimento da cidade no que diz respeito a sua população e as culturas que ali passaram.

53

Figura 3. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período ptolomaico

Fonte: MCKENZIE, Judith. 2007, p. 26

Figura 4. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período romano

Marcação no sítio de Kom el-Shoqafa feita por nós. Fonte: MCKENZIE, Judith. 2007, p. 26

54

Figura 5. Mapa atual de Alexandria com todos os sítios de necrópole já escavados

Marcação no sítio de Kom el-Shoqafa feita por nós. Fonte: VENIT, Susan. 2002, p. 2.

Nos mapas acima, que retratam diferentes épocas (período ptolomaico e romano),

podemos perceber que Alexandria contava com duas grandes áreas ou regiões dedicadas à

construção de tumbas, que consistiam nas margens oriental e ocidental. O sítio onde a tumba

que pesquisamos está localizada, em Kom el-Shoqafa, ocupa uma região próxima da necrópole

ocidental. Trataremos com mais detalhes desse sítio na terceira parte deste capítulo, ao abordar

mais especificamente sobre tumba desse estudo.

Alexandria apresentava diferentes práticas funerárias relacionadas ao corpo: a

mumificação, costume milenar do Egito, pode ser constatado a partir das evidências

arqueológicas dos sítios de necrópole dos últimos dois séculos do período ptolomaico, seja na

necrópole oriental em Hadra (sítio de Ezbet el-Makhlouf); ou na parte ocidental da cidade; no

sítio de Gabbari, na Ilha de Faros (sítio de Ras el-Tin e Anfushy) e ao sul no sítio de Kom el-

Shoqafa (VENIT, 2002, p. 11). Cremação e inumação, costumes funerários provenientes da

Macedônia, Grécia e Roma, são observados em todos os sítios de necrópole de Alexandria e

tanto na época ptolomaica quanto romana. Essa diversidade de práticas funerárias também

reflete a diversidade arquitetônica das tumbas alexandrinas, que apresentam aspectos comuns e

características singulares entre si.

55

A fim de entender os rituais funerários de forma mais geral, Susan Venit (2002, p. 11)

baseia seu pensamento na obra de Arnold Van Gennep, Os ritos de passagem, de 1908, que

determinou uma estrutura de três etapas para os ritos de transição. A primeira etapa consiste na

separação e preparação do corpo; o morto é separado do seu grupo social. A segunda trata do

percurso até a tumba, em um processo de transição, uma liminaridade. O terceiro e último

estágio consiste na deposição do corpo na tumba, havendo assim uma integração do morto a

sua realidade no além. Essa estrutura tripartite pode ser observada na cosmovisão egípcia e

helênica; havendo uma importância crucial nos locais onde o morto deveria ser destinado pela

última vez.

Susan Venit (2002, p. 14) postulou que as tumbas alexandrinas, sendo concebidas com

bases culturais tanto helênica quanto egípcia, configuravam áreas liminares que permitiam o

contato dos vivos com os seus mortos, provendo suporte para a vida no além: em ambas as

culturas as tumbas provêm recursos para o morto garantir sua existência, além da função

primária de guardar e preservar o corpo ou restos mortais dos falecidos. Pensando no contexto

do Império Romano, as tumbas estavam relacionadas a dois fatores principais: a sobrevivência

da memória dos entes falecidos nos grupos familiares e a assistência dada ao morto por meio

de oferendas, banquetes e cerimônias funerárias, que tinham como objetivo renovar a existência

dos espíritos no além (TOYNBEE, 1996, p. 62). Assim como no mundo helênico, o costume

funerário de banquetes e refeições no ambiente funerário também pode ser visto no contexto

imperial romano em diversas províncias, como é no caso de Alexandria.

De forma geral, as tumbas alexandrinas estavam ligadas à função de abrigo dos mortos

e lugar de veneração e memória dos falecidos para os vivos. Isso traz à tona aspectos comuns

da cultura egípcia, greco-macedônica e romana, ao mesmo tempo que diverge de tumbas

egípcias do período faraônico e de tumbas gregas e romanas de cronologias anteriores e

geografias distintas. Assim, existe uma confluência e circularidade de inspirações, inovações e

peculiaridades na arquitetura e decoração das tumbas de Alexandria.

Apesar de tratar especificamente das tumbas do período faraônico, Assmann (2004)

teceu ideias sobre o espaço funerário dos hipogeus egípcios que podem ser observados ou

contrapostos com as tumbas alexandrinas. Ainda que estivessem assentadas em bases da

arquitetura e religião greco-macedônica, as tumbas alexandrinas também apresentam influência

de ideias e características egípcias. Para este autor (2004, p. 47-49), a tumba egípcia estava

associada à memória e representação biográfica do morto, visto que a tumba deveria ser visitada

56

na posterioridade. Nesse sentido, tempos um ponto em comum com a tradição greco-romana,

que também dedicava a tumba às funções memorialísticas. Nas tumbas egípcias, havia noções

de secretismo, inacessibilidade, isolamento e ocultamento, fontes de sacralidade para esse

espaço. O paradoxo entre essas características e a necessidade de visita nas tumbas foi sendo

resolvido, ao longo da história egípcia, através da arquitetura: as capelas funerárias, a partir do

Novo Império, trouxeram ao alcance dos vivos as estátuas de oferenda e de culto, provendo

mais uma função às tumbas como lugar de culto aos deuses e aos mortos.

Nas tumbas alexandrinas também podemos observar essas noções de sacralidade ligadas

às ideias acima: as câmaras funerárias dos hipogeus tendem a ser o local mais interno ou

afastado, juntamente aos loculi14, colocados geralmente no lado mais oposto à entrada.

Contudo, não se observam as mesmas estruturas das tumbas egípcias empregadas na

manutenção da ordem do espaço funerário, ao pensarmos comparativamente com os hipogeus

alexandrinos. Um bom exemplo está no uso de fórmulas mágicas e encantamentos, escritos nas

paredes e presente também em alguns objetos de dentro das tumbas egípcias, que possuíam

função de selar ou proteger aquele espaço; não foram encontradas configurações semelhantes

nas tumbas de Alexandria. É exatamente na questão arquitetônica que observaremos as

diferenças mais visíveis entre o período faraônico e as tumbas alexandrinas, que irão apresentar

diferentes configurações espaciais.

Janos Fedak (1990, p. 130) argumenta que, provavelmente no início do período

ptolomaico, os macedônicos que habitaram Alexandria enterraram seus mortos seguindo o

costume de sua herança cultural, mas também havendo contato e interação entre as tradições

grega e egípcia na arquitetura funerária da cidade. Segundo o autor, as influências na

arquitetura das tumbas alexandrinas são provenientes da Macedônia, de cidades de colonização

grega da costa do Mediterrâneo na região da Ásia Menor; ao leste, e da cidade de Cirene, a

oeste; em ambas as localidades são encontradas tumbas cavadas diretamente na rocha, contendo

câmaras ou salas dispostas em volta de uma corte ou pátio, chamado também de peristilo

(VENIT, 2002, p. 14).

Pela sua monumentalidade arquitetônica, as tumbas privadas de Alexandria foram

destinadas ao enterramento de gerações de famílias, e que a partir do meio do século III a.C..,

também serviram para sepultamentos comunais e coletivos de membros de guildas

14 Susan Venit (2002, p. 16) define os loculi como nichos cavados na rocha, longos e estreitos, onde os mortos

eram depositados. Essas estruturas são observadas nos sítios de necrópole mais antigos de Alexandria, assim como

são observados em demais regiões do Mediterrâneo em tempos posteriores, como no período romano.

57

profissionais, associações religiosas ou outros tipos de grupos ou seitas (VENIT, 2002, p. 21).

Susan Venit (2002, p. 15) afirma que existe uma clara inspiração nos modelos arquitetônicos

do período ptolomaico nas tumbas do período romano; entretanto, é necessário pontuar e

destacar as diferenças entre ambos os períodos. De forma comum, os hipogeus de ambos os

períodos são acessados por escadas cavadas na rocha e possuem uma abertura para o céu, onde

provavelmente haveria alguma construção de capela ao nível do solo. A abertura deveria

fornecer luz e ventilação ao interior da tumba, assim como permitia a fumaça dos rituais que

envolvia o uso de fogo; como também era o acesso às oferendas fornecidas nos serviços

funerários e rituais ligados à memória dos mortos. No período romano, o uso de cisternas ou

poços junto ao complexo funerário tornou mais eficiente a provisão de água, elemento

comumente associado aos rituais.

As câmaras funerárias das tumbas do período ptolomaico apresentam influência e traços

das tumbas macedônicas, como o uso de tronos e de kliné, elemento mobiliário tipicamente

grego. Tanto no período ptolomaico como no período romano, verifica-se o uso de nichos

funerários estreitos conhecidos como loculi. No período romano, o kliné é substituído pelos

sarcófagos cavados em pedra acoplados aos nichos arqueados, denominados arcosolium. As

tumbas subterrâneas contam com articulação das salas e instalações funerárias por meio de

colunas e corredores e cavados na rocha, que costumam ser adornados e decorados seguindo a

tradição helênica, mas também conta com elementos iconográficos egípcios. É exatamente o

uso e a apropriação de diferentes tradições culturais no programa decorativo das tumbas

alexandrinas que as torna tão peculiares.

A origem dos loculi é ainda incerta, havendo hipóteses ligadas à Fenícia e a Israel, por

exemplo. Na visão de Venit (2002, p. 16-17) os loculi alexandrinos são produtos da influência

egípcia, em que é possível atestar o uso de anexos funerários em formato de nicho cavados na

rocha, a partir do Período Tardio, na necrópole de Saqqara, onde outrora se localizava a cidade

de Mênfis. Gregos e macedônicos já conheciam e ocupavam Mênfis antes do período

ptolomaico; os sítios de necrópole para animais sagrados - como o touro associado a Ápis,

babuínos e íbis associados a Toth – contam com estruturas muito semelhantes aos loculi

observados em Alexandria. Concordamos com a autora na premissa de que Mênfis foi, muito

provavelmente, uma influência mais forte e presente para Alexandria do que demais regiões ao

longo do Mediterrâneo. Dessa forma, tomamos aqui o uso de loculi nas tumbas alexandrinas

como um traço indicativo da influência egípcia presente nos costumes funerários observados

nessa cidade.

58

Por sua vez, as câmaras funerárias das tumbas alexandrinas trazem características muito

semelhantes às tumbas macedônicas, principalmente no uso de leitos funerários, conhecidos no

mundo grego como kliné. Nas tumbas macedônicas, os klinai costumavam ser produzidos a

partir de material rochoso, e seu uso no meio funerário provém da tradição grega, datando

provavelmente do século VI a.C. O uso de klinai, posicionados ao longo das paredes, formando

um retângulo aberto, compõem o triclínio, largamente utilizado em contextos de banquetes

domésticos e funerários no mundo romano (KURTZ; BOARDMAN, 1971, p. 271).

Susan Venit (2015) denomina esse uso simultâneo das tradições helênica-macedônica e

egípcias nas tumbas alexandrinas de bilinguismo, em que diferentes culturas sobrevivem de

forma simultânea sem haver necessariamente processos de hibridização. Para a autora,

O intercâmbio de material visual que ocorre nos túmulos neste volume é

altamente reflexivo e proposital, e não meramente um produto do casamento

ou do acaso, e a interseção das ideias gregas e romanas é aquela em que a

herança de cada grupo pode ser facilmente diferenciada, em vez da fusão que

o hibridismo implica (2015, p. 3).

No nosso ponto de vista, as tumbas alexandrinas apresentam diferentes níveis de

articulação das tradições culturais, ao longo do período ptolomaico e romano. Em alguns sítios

arqueológicos, a integração das tradições egípcia e helênica-macedônica se apresenta de forma

muito mais intensa, indo além da ideia de bilinguismo. É possível observar tal fenômeno

durante no período romano. Nessa época, percebemos que as tradições não apenas aparecem de

forma simultânea ou separada, mas apresentam considerado grau de mescla, combinação e

criação de algo novo. Denominamos esse processo de integração das tradições de

emaranhamento, conforme foi explicado no capítulo anterior. Na breve exposição de algumas

tumbas alexandrinas que vem a seguir, atentamos à visualização do emaranhamento em torno

do ambiente funerário, utilizando para isso fotografias das estruturas arquitetônicas, desenhos

arqueológicos e plantas baixas dos sítios escavados.

Os sítios mais antigos de necrópole em Alexandria são os de Shabti e Moustafa Pasha,

localizados na porção oriental da cidade. No sítio de Shabti encontra-se o único vestígio

material arquitetônico que diverge do padrão observado nas tumbas de Alexandria, denominado

de Alabaster Tomb, ou Tumba de Alabastro em uma tradução livre. Consiste em uma câmara

retangular, construída ao nível do chão e que provavelmente fazia parte de um complexo

funerário palaciano, onde possivelmente estiveram sepultados os membros da realeza

ptolomaica do século III a.C. A configuração arquitetônica desse espaço é mais próxima da

59

tradição macedônica de tumbas construídas na superfície, traço que diverge do restante das

tumbas encontradas em Alexandria ainda no período ptolomaico e posteriormente no período

romano, que se apresentam como grandes hipogeus: complexos funerários construídos

subterraneamente.

Figura 6. Alabaster Tomb, visão externa e interna

Fonte: FEDAK, 1990, p. 388.

O sítio arqueológico de Shabti conta também com um hipogeu de proporções

significativas e que possui a datação mais antiga do período ptolomaico, estimada por volta de

280 a.C. (VENIT, 2015, p. 51). É o hipogeu mais antigo encontrado em Alexandria e que

compartilha as características arquitetônicas gerais das tumbas posteriores; ele apresenta

colunas em estilo dórico e jônico, trazendo assim uma tradição grega mais clássica. As câmaras

funerárias contam com a presença de loculi e sarcófagos em formato de kliné, indicando o uso

dessas estruturas arquitetônicas desde cedo na cidade de Alexandria.

Na planta baixa a seguir, percebemos a complexidade do sítio arqueológico, composto

de diversas salas conectadas por corredores e apresentando diferentes funções: o vestíbulo (b),

corte (f) e antessala (d) foram espaços de circulação e uso dos vivos nos rituais ligados aos

mortos, que ocuparam os espaços da câmara funerária (g) e as salas com loculi (e, c). Uma sala

anexa (h), próxima à corte, traz também loculi.

60

Figura 7. Planta baixa do hipogeu “A”, sítio de Shabti, necrópole oriental de Alexandria

Fonte: VENIT, 2015, p. 52.

Figura 8. Planta baixa do hipogeu Moustafa Pasha 1, necrópole oriental de Alexandria

Fonte: VENIT, 2015, p. 54

O sítio de Moustafa Pasha, localizado também na porção oriental da cidade, traz um

complexo de hipogeus com um alto nível de conservação, tendo sua datação por volta da metade

do século III a.C. e sua escavação/restauração datam da primeira metade do século XX (VENIT,

2015, p. 53). O hipogeu de maiores proporções e melhor estado de conservação é denominado

de Moustafa Pasha 1, trazendo estruturas e características similares ao hipogeu A do sítio de

Shabti, como o uso de colunas e pilares em estilo dórico, assim como decoração de frisos e vãos

de porta seguindo a tradição helênica. A planta baixa desse hipogeu (fig. 8) indica um total de

61

dez salas dispostas em volta de um grande pátio, que contava com uma escada de acesso e um

altar posicionado ao centro.

Figura 9. Fachada sul de Moustafa Pasha 1

Fonte: VENIT, 2015, p. 55

Na fachada sul da corte, adornada com frisos, métopas, colunas e vãos de entrada

seguindo o estilo dórico, seis pequenos pedestais são posicionados à frente das portas, havendo

resquícios de quatro esfinges esculpidas em pedra no topo dos pedestais. As esfinges, criaturas

mitológicas presentes tanto na tradição helênica quanto na egípcia, apresentam aqui

características tipicamente egípcias: a cabeça, erguida diante do corpo deitado, possui formato

do toucado real nemés15; elas não apresentam asas como as esfinges gregas. Susan Venit (2002,

p. 56; 2015, p. 55) postula que o uso dessa figura egípcia poderia estar associado à função de

proteção da tumba, assim como traz um aspecto de realeza e poder a uma tumba particular. A

mesma autora interpreta que Moustafa Pasha 1 iniciou o bilinguismo nas tumbas alexandrinas,

ao trazer um elemento egípcio – a esfinge, que existe também no universo helênico, mas com

diferenças – em meio ao conjunto arquitetônico grego do hipogeu. Para esse sítio arqueológico,

visto que a apropriação de símbolos egípcios aparece de forma muito modesta, concordamos

com a interpretação da autora. O processo de integração de elementos egípcios a uma base

religiosa helênica aconteceu de forma paulatina, ainda mais ao tratarmos da religião funerária,

15 Toucado listrado com abas que recaem sobre o peito, usado pelo faraó.

62

aspecto que costuma ser conservador em seus costumes. Por mais que os habitantes de

Alexandria clamassem para si uma identidade grega, a influência egípcia foi permeando as

concepções religiosas concernentes à morte.

A integração de elementos egípcios nas tumbas alexandrinas passou a ser mais intensa

e visível a partir do século I a.C., conforme mostram as evidências dos sítios de necrópole da

Ilha de Faros. Em Ras el-Tin e Anfushy, foram escavados hipogeus contendo decoração

inspirada em motivos egípcios e helênicos, ambas se apresentando de forma mais integrada e

coesa - incluindo a figura de deuses de ambos os panteões - algo até então inédito para a época.

Susan Venit (2002, p. 68) indicou que houve uma tendência no século I, em Alexandria e nas

demais cidades do mundo helenístico, a se voltarem às religiões que ofereciam ideias e visões

mais positivas e afortunadas sobre a vida após a morte. Isso pode justificar a adesão aos

elementos egípcios na arquitetura das tumbas que veremos a seguir.

Figura 10. Planta baixa do sítio de Ras el-Tin, Ilha de Faros, Alexandria

Fonte: VENIT, 2002, p. 69

As escavações em Ras el-Tin aconteceram no início do século XX, em uma primeira

etapa em 1913 e sendo complementada em 1939 e 1940. Devido à erosão e ao desgaste do sítio

arqueológico, muito das estruturas antigas foram comprometidas. A publicação do arqueólogo

Achille Adriani, da década de 1950, trouxe os detalhes desse sítio que nos permitem visualizar

o processo de integração e combinação das tradições culturais no âmbito funerário, acontecendo

no último século antes da era comum. Os hipogeus possuem uma configuração mais linear e

axial do que os outros sítios já mencionados; contando com pátios, loculi e salas pequenas com

63

nichos em formato de kliné. Segundo Susan Venit (2002, p. 69), as tumbas numeradas de 1, 3

e 8 (fig. 10) contêm decoração inspirada tanto na tradição helênica quanto na tradição egípcia.

A decoração dessas tumbas se deu pela técnica de pintura, havendo imagens de deidades

gregas como Héracles e Afrodite, contando também com a representação do touro Ápis coroado

com o disco solar (VENIT, 2002, p. 70-71). Em Ras el-Tin, nota-se o mais antigo uso de nichos

arqueados, os arcosolium, cavados na rocha e geralmente acompanhados de uma estrutura em

forma de kliné, no período ptolomaico; ou de sarcófago, como é observado no período romano.

O desenho abaixo mostra uma estrutura de nicho com kliné, contando com a decoração

quadriculada, que buscava emular faiança egípcia, utilizada como cobertura em algumas

paredes de templos. Nas demais tumbas adjacentes, observa-se o uso desse padrão decorativo.

Figura 11. Tumba 8 de Ras el-Tin, sala contendo o nicho com kliné

Fonte: VENIT, 2015, p. 57

O sítio arqueológico de Anfushy, localizado na porção mais à leste da Ilha de Faros,

também foi escavado na primeira metade do século XX, contando com o trabalho de

arqueólogos italianos responsáveis pelas escavações em outros sítios de Alexandria, como

Evaristo Breccia, Giuseppe Botti e Achille Adriani. O sítio conta com cinco hipogeus

escavados, seguindo o plano linear axial semelhante ao observado em Ras el-Tin, tendo sua

datação na mesma época citada anteriormente, no século I a.C. A figura 10 traz a planta baixa

dos hipogeus encontrados nesse sítio:

64

Figura 12. Planta baixa do sítio de Anfushy, Ilha de Faros, Alexandria

Fonte: VENIT, 2002, p. 74

De forma geral, as tumbas também apresentam decoração pintada, mas aqui avançam

na temática egípcia, trazendo cenas que buscam reproduzir o padrão de arte do período

faraônico. Também apresentam elementos da arquitetura egípcia nos vãos de porta, decoração

das paredes e em naiskos, estruturas esculpidas na rocha que simulam pequenos templos ou

altares, dispostos aqui como portas ou entradas para alguns loculi. A maior singularidade das

tumbas desse sítio arqueológico está no uso de tetos abobadados, traço arquitetônico presente

nas tumbas macedônicas construídas parcialmente abaixo do solo e cobertas com terra.16 Sítios

arqueológicos na região da Macedônia, como os que abrigam a tumba de Vergina e Lefkadia

(fig. 13, página seguinte) , apresentam essa estrutura abobadada de forma mais acentuada

(MILLER, 1982, p. 153).

16 Apesar de haver estruturas abobadadas em tumbas egípcias e em construções mesopotâmicas, a técnica de

construção de abóboda macedônica apresenta estruturas singulares, semelhantes às de Alexandria. Para maiores

informações, cf. TOMLINSON, 1987.

65

Figura 13. Câmara funerária da tumba de Lefkadia, século IV a.C., Macedônia.

Fonte: MILLER, 1982, p. 155

Na foto abaixo, é possível visualizar o vão da porta com os detalhes egipcianizados:

pequenos altares flanqueiam a abertura, semelhantes aos altares com esfinge do complexo de

Moustafa Pasha 1; colunas com padrão quadriculados são dispostas ao lado com capitéis

papiriformes e sustentando um frontão arqueado, apoiado em frisos denticulados. As paredes

trazem o quadriculado egípcio e o teto é pintado com ornamentações também egípcias.

Empereur (2003, p. 44) confirma a ideia de Susan Venit sobre esse quadriculado, que buscava

simular a faiança egípcia.

Figura 14. Sala I da tumba II em Anfushy, Ilha de Faros, Alexandria.

Fonte: VENIT, 2015, p. 58

66

Como observamos a seguir, o pequeno altar naiskos traz também influências

egipcianizadas. Na fotografia a seguir, percebemos o mesmo arranjo de templo egípcio, com

frontão arqueado, frisos denticulados e colunas papiriformes, compondo a fachada deste

pequeno altar que tem como função de ser a porta de um dos loculus encontrados na quinta

tumba do sítio de Anfushy.

Figura 15. Naiskos em loculus da tumba Anfushy V, Ilha de Faros, Alexandria.

Fonte: SAVVOPOULOS, 2011, p. 87

Nos sítios de Anfushy e Ras el Tin, a integração de elementos egípcios na arquitetura

macedônica atingiram um patamar maior do que o observado em Moustafa Pasha, por exemplo,

sendo possível falarmos de um processo de emaranhamento nesses locais. Existem outras

tumbas que demonstram a penetração gradual da tradição egípcia em meio ao programa

arquitetônico e decorativo de bases gregas que compõem as tumbas alexandrinas: a tumba

Ghirghis, a tumba encontrada no Forte de Saleh, ambas localizadas no sítio de Gabbari, assim

como as tumbas da necrópole de Wardian, localizadas próximas aos sítios mencionados

anteriormente e pertencentes ao lado ocidental da cidade de Alexandria. Por não dispormos de

fotografias e outras fontes suficientes desses sítios, limitamo-nos a trazer suas características

comuns descritas por Susan Venit (2002, p. 92-103). Ghirghis e a tumba do Forte Saleh trazem

os elementos comuns nas tumbas de Anfushy, como os naiskos egipcianizados, nichos em

formato de kliné e iconografia com temas egípcios. Na necrópole de Wardian, os hipogeus

apresentam uma configuração diferente do plano axial linear (como observado na Ilha de Faros)

67

ou em forma de peristilo (observado nos hipogeus da necrópole oriental, como em Moustafa

Pasha). A tumba denominada como Saqiya Tomb, conta com murais pintados relativamente

bem conservados, trazendo temas gregos e egípcios em uma complexidade de integração e

interpretação considerável. A datação desse sítio arqueológico é imprecisa: autores divergem

entre o final do século II a.C., últimas décadas do século I a.C. e também há a hipótese de ser

do período cristão, entre os séculos III e IV d.C.

Ao longo dessa breve exposição sobre as tumbas alexandrinas, buscamos identificar

características gerais e peculiaridades observadas nos sítios de necrópole de Alexandria, tendo

foco no recorte cronológico do período ptolomaico. Percebemos que os elementos egípcios

foram gradualmente sendo incorporados no programa decorativo e arquitetônico, seguindo uma

tendência ligada à narrativa egípcia sobre a vida após a morte, de caráter mais positivo em

comparação com à tradição grega. No período romano, as tumbas alexandrinas apresentam uma

integração ainda maior nos programas decorativos e arquitetônicos, o que pode ser entendido

como uma tendência ou tentativa maior de sincretismo religioso no que diz respeito ao contexto

funerário, desembocando no que chamamos de emaranhamento.

Veremos a seguir a descrição, análise e interpretação do espaço funerário da Tumba

Principal de Kom el-Shoqafa, possuindo datação estimada entre o primeiro e o segundo século

da era cristã. Esse local apresenta um claro exemplo de emaranhamento de elementos helênicos,

romanos e egípcios em sua arquitetura e decoração. Estaremos retomando os conceitos teóricos

sobre ritual e comunicação do espaço, trabalhados na primeira parte deste capítulo, a fim de

identificar características importantes sobre o nosso objeto de pesquisa. A análise iconográfica

e interpretação das cenas dos relevos serão abordadas de forma mais minuciosa no capítulo

seguinte.

2.3. TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA: ANÁLISES E

INTERPRETAÇÕES

Descoberto no ano de 1900, o sítio arqueológico de Kom el-Shoqafa abriga o maior

complexo de necrópole de Alexandria, localizado no lado oeste da cidade. A tradução mais

próxima do nome árabe significa “monte de cacos” (mound of shards), devido à grande

quantidade de cerâmica e material de construção presente no local. Apesar de as lendas locais

retratarem um episódio de um asno ter caído em um fosso que dava acesso às câmaras

subterrâneas, atribui-se a descoberta ao alexandrino Es-Sayed Aly Gibarah. No dia 28 de

68

setembro de 1900, ele descobriu o fosso que dava acesso ao sítio subterrâneo e entrou em

contato com as autoridades locais do museu da cidade (VENIT, 2002, p. 125). Giuseppe Botti,

diretor do Museu Greco-Romano de Alexandria à época, foi o responsável pelas primeiras

escavações e pesquisas sobre o local, seguido por Allan Rowe, na década de 1940, e Achille

Adriani, na década de 1950 e 1960. O local voltou a ser pesquisado in loco durante a primeira

metade da década de 1990, por Jean-Yves Empereur nas missões arqueológicas do Centro de

Estudos Alexandrinos. O sítio arqueológico se localiza à sudoeste da cidade, próximo onde

estava localizado o Serapeum e um hipódromo identificado como Lageion, que data desde o

período ptolomaico.

Figura 16. Desenho de vista aérea do Serapeum (canto direito superior) Lageion (ao centro)

Sítio de Kom el-Shoqafa, circulado por nós. Fonte: MCKENZIE, 2007, p. 195

O complexo abriga três grandes pisos escavados em rocha. Acredita-se que houve uma

estrutura de capela no nível do solo, premissa possível ao se comparar o sítio de Marina el-

Alamein, distante 60km de Kom el-Shoqafa e que apresenta estruturas de capela assim como

um hipogeu cavado embaixo. Todavia, o sítio que estudamos atualmente não apresenta indícios

dessa construção acima do solo. Jean-Yves Empereur (1997, p. 155) informa que a

profundidade do sítio arqueológico é de cerca de 20m. O plano da tumba se assemelha aos

hipogeus do período ptolomaico, mas traz um esquema mais desenvolvido de forma

verticalizada do que horizontal, conforme indicam as figuras da página seguinte. Algumas

69

estruturas são próprias do período romano, derivadas da arquitetura da época imperial, como a

presença de vestíbulo, rotunda17, triclínio e êxedra18. O uso de loculi continua sendo observado

no sítio de Kom el-Shoqafa, sobretudo nos corredores adjacentes à Tumba Principal e no

terceiro piso, que hoje se encontra inundado por um lençol freático.

Figura 17. Planta baixa de Kom el-Shoqafa

Fonte: VENIT, 2015, p.126.

A datação da Tumba Principal é estimada para o período Flaviano, mais

especificamente de 69 a 79 d.C.; a partir da análise estilística dos retratos encontrados na

antessala. Outra hipótese, baseando-se nos sarcófagos entalhados em rocha da câmara

mortuária, coloca a datação da tumba para a primeira metade do século II d.C., com estimativas

para o período de Adriano. Conforme já mencionamos anteriormente, a datação absoluta desse

sítio arqueológico não é possível de ser obtida, havendo, portanto, preferência na cronologia

aproximada, situada entre o final do século I e a primeira metade do século II d.C.

17 Estrutura circular ou em forma cilíndrica. 18 Estrutura semicircular que ladeia um átrio, como pode ser visto na figura 17 (no plural, exedrae)

70

Figura 18. Plano seccional da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa

Fonte: VENIT, 2002, p. 125

O poço dava o acesso ao interior do hipogeu, além de prover entrada de ar e luz ao

interior do ambiente. Uma estrutura circular, denominada como rotunda, dá acesso a uma

escada e aos corredores do primeiro piso, conforme demonstram as fotografias da figura 15 na

página anterior. Uma estrutura retangular aberta, localizada à esquerda da rotunda, foi

identificada como um triclínio nas escavações de Allan Rowe em 1942. O triclínio é composto

por quatro colunas quadradas e de capitéis simples, contendo três blocos de pedra rentes ao

chão, que formam um retângulo aberto. O local provavelmente serviu para realização de

banquetes funerários e outras cerimônias ligadas ao culto dos mortos. Fragmentos de cerâmica

de pratos, vasilhas e vasos indicaram a realização dessas cerimônias (EMPEREUR, 1997, p.

169).

71

Figura 19. Poço e Rotunda

Fonte: EMPEREUR, 1997, p. 153-154

A presença de uma sala com triclínio (fig. 20) é um traço característico do período

romano; a câmara mortuária da Tumba Principal também assume o formato dessa estrutura.

Algumas tumbas encontradas na cidade de Petra, localizada entre as províncias orientais do

Império, também apresentam estruturas de triclínio para o uso ritualístico, datando dos

primeiros séculos da era comum (TOYNBEE, 1996, p. 192-193).

Podemos pensar nessas estruturas como elementos fixos desse espaço construído,

possuindo funções ligadas ao uso e a prática desempenhados ali. O poço e a rotunda estão

ligados à orientação e iluminação, enquanto o triclínio indica o uso ritualístico desse espaço nas

cerimônias e comemorações funerárias. Apesar de ser um item de mobília, o triclínio aqui se

apresenta de forma fixa, sendo escavado na própria rocha do hipogeu. Essa característica se

repete também nos relevos esculpidos nas paredes da câmara mortuária: apesar de comporem a

decoração, função associada aos elementos semifixos, por questões morfológicas, eles são parte

indissociável dos elementos fixos que compõem esse espaço.

72

Figura 20. Triclínio

Fonte: EMPEREUR (1997. p. 125-169).

2.3.1 ANTESSALA OU PRONAOS

Ao entrar no segundo piso, uma concha cavada na rocha acima da fachada é o elemento

decorativo grego que se destaca em meio à decoração da antessala, que se apresenta de forma

majoritariamente egípcia. Esse mesmo tipo de relevo é encontrado no pátio do primeiro piso,

onde se encontram as exedras. Jean-Yves Empereur (1997, p. 156) identificou esse relevo como

uma concha de vieira (Pecten maximus), enquanto Susan Venit (2015, p. 68) denomina-o como

uma concha de tridacna (Tridacna ss.). Ambas as identificações fazem referência a espécies

diferentes de moluscos bivalves, cujas conchas inspiraram tal motivo iconográfico. O uso de

conchas como motivo iconográfico é comum a diversas áreas do Mar Mediterrâneo, como se

observa na tradição etrusca, grega, romana, e no lado mais oriental, como na Mesopotâmia. As

conchas eram apreciadas pelo seu valor comercial e uso ritualístico.

73

Figura 21. Detalhe da concha esculpida na rocha acima da antessala

Fonte: EMPEREUR, 1997, p. 156

Podemos inferir algumas interpretações sobre o uso da concha no meio funerário. Na

tradição greco-romana, a concha de vieira estava associada ao nascimento da deusa Afrodite,

ligada ao nascimento e fertilidade, se desdobrando também para as concepções de ciclo da vida,

sendo um motivo iconográfico encontrado largamente no mundo imperial romano

(BOGDANOVIĆ, 2017, p. 279). Essa linha de raciocínio se torna mais forte ao pensarmos na

associação que Afrodite teve com Ísis durante o período helenístico e romano, havendo um

forte culto dessa divindade em Alexandria. No caso da concha de tridacna, na tradição etrusca,

o motivo iconográfico estava relacionado também à feminilidade, à riqueza e comércio, visto

que tais conchas são encontradas no Mar Vermelho e no Oceano Índico (HARRISON, 2013, p.

1098). De modo geral, a concha pode ter sido empregada para expressar as ideias de ciclo da

vida e fertilidade, indicando também o status ligado à riqueza do comércio portuário da cidade.

Na chôra, mais precisamente no sítio arqueológico de Tuna el-Gebel, a concha como

motivo iconográfico também aparece numa tumba, associada desta vez exclusivamente a uma

mulher chamada Isidora, datando por volta do segundo século da Era Cristã. Nas inscrições

epigráficas presentes nesse local, ninfas das águas do Nilo aparecem como responsáveis pela

construção do aparato funerário de Isidora, havendo menção inclusive ao desenho da concha

feito por uma das ninfas filhas do Nilo (LARSON, 2001, p. 191). Acreditamos que é possível

74

que em Kom el-Shoqafa haja essa mesma associação de ninfas e a concha, trazendo à tona o

aspecto funerário desses elementos. Assim, reiteramos a ideia sobre esse motivo iconográfico

estar associado ao ciclo da vida, nascimento, fertilidade, morte e renascimento.

Figura 22. Kliné da tumba de Isidora, sítio de Tuna el-Gebel, Hermópolis Magna, século II

d.C

Fonte: VENIT, 2015, p. 92

O segundo piso em Kom el-Shoqafa é dividido em dois grandes espaços, como já

mencionamos anteriormente. O programa decorativo desses dois locais chama atenção pelos

seus acabamentos e sua mescla de motivos iconográficos. A organização do espaço da câmara

funerária segue o modelo de triclínio, com três nichos dispostos formando um retângulo aberto.

Susan Venit (2002, p. 125) considera que a Tumba Principal assume o plano de um templo

grego, enquanto para Savvopoulos (2011, p. 284), os elementos arquitetônicos da antessala e

da câmara mortuária configuram o espaço como um templo egípcio.

As duas colunas que sustentam o frontão arqueado apresentam elementos egípcios na

base e nos capitéis, identificados por McKenzie (2007, p. 117) como capitéis alexandrinos do

tipo III. Na parte superior, observa-se uma fachada arqueada, com uma circunferência ao centro.

Logo abaixo, uma faixa de quadrados esculpidos alternadamente em baixo e alto-relevo,

seguido abaixo com um relevo de Hórus-Behdety, disco solar alado envolto de duas serpentes.

Dois falcões ladeiam o disco solar, fazendo referência ao deus Hórus em sua forma de ave.

75

Figura 23. Pronaos da Tumba Principal

Fonte: VENIT, 2015, p. 67

A parede ao fundo é a fachada da câmara mortuária, que possui um formato retangular

e apresenta uma decoração similar à entrada da antessala, na parte superior. O friso da porta de

entrada é adornado novamente com Hórus-Behdety e volutas acima. Em cada um dos lados,

encontram-se serpentes Agathos Daimon. Acima, encontram-se escudos adornados com a face

de medusas, completando o significado de proteção associado à serpente Agathos Daimon. A

porta funciona como uma moldura para a cena da mumificação de Osíris, localizada

centralmente e ao fundo da câmara mortuária: provavelmente trata-se de um recurso visual

trabalhado intencionalmente para quem entrasse na antessala visualizasse tal cena. A análise

iconográfica presente no capítulo seguinte trará mais detalhes sobre esses relevos.

76

Figura 24. Desenho arqueológico da antessala.

Fonte: Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena19

Por meio do desenho arqueológico da antessala, podemos visualizar melhor a disposição

do espaço, ainda que não compreenda a totalidade do local. Uma escada dá acesso ao local, que

está em um nível um pouco acima do chão. As colunas apresentam decoração de lótus em sua

base, apoiadas em uma base rochosa octogonal. O lado esquerdo traz um nicho de formato

retangular, que abriga uma estátua feminina em pose hierática. Ao lado direito, um nicho

também abriga uma estátua, dessa vez masculina, em pose hierática. O espelhamento é uma

característica recorrente na antessala, como podemos observar nos relevos do deus Hórus em

forma de falcão e nos relevos de Agathos Daimon. Essa característica de espelhamento, comum

na arte egípcia, pode ser pensada de acordo com a ideia de redundância, compartilhada por

Rappoport e Renfrew, conforme nossa exposição sobre comunicação não-verbal do espaço e

19 Disponível em: <https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263234>. Acesso em: 28 abr. 2018.

77

indicadores do ritual. Existe, assim, a ideia de reforço do simbolismo no espaço a partir da

repetição de símbolos e iconografias.

As esculturas, que a princípio constituiriam parte da mobília funerária da antessala,

podem ser interpretadas tanto como elementos fixos – por permanecerem em sua localização

de forma estática, visto que foram colocadas em nichos – como podem ser entendidas também

como elementos semifixos, visto que foram esculpidas em um bloco de pedra e posicionadas

onde estão atualmente. Sua função no espaço pode ser compreendida de diferentes formas: elas

estão posicionadas olhando para o centro da antessala, dando boas-vindas aos indivíduos que

adentravam naquele espaço; indicam os possíveis proprietários do hipogeu e assumem o papel

de imagem de culto e memória dos falecidos, como discutiremos mais a seguir.

Figura 25. Estátua feminina, nicho esquerdo

Fonte: EMPEREUR, 1998. p. 158; VENIT, 2002, p. 134.

Localizada no nicho esquerdo (cavado na rocha e de formato retangular), a estátua

feminina provavelmente representa a proprietária da tumba. A cabeça da estátua possui cabelos

ondulados e partidos ao meio, com uma fileira encaracolada à raíz se dispondo nos dois lados.

78

O rosto possui traços femininos, com detalhes nos olhos, nariz e lábios finos. A expressão facial

é serena e se assemelha a um retrato romano, a partir da comparação estilística dos traços faciais

e do penteado. O corpo é apresentado com um vestido, aparentemente de tecido fino e sem

mangas, que se estende até a altura dos tornozelos. Ele se assemelha aos vestidos observados

em esculturas do Antigo Império, em que o tecido se mostra colado ao corpo e sem marcação

ou presença de mangas.

Os seios e o umbigo são visíveis e bem marcados, assim como a área púbica. Para Riggs

(2005, p. 34) o destaque em volume para as regiões dos seios, barriga e região púbica faz alusão

às características de fertilidade, valor que buscava ser transmitido ao mundo dos mortos. Os

braços são dispostos ao lado do corpo, com as mãos encostadas nas coxas; notamos que os

espaços entre os braços e o corpo não foram cavados na escultura, havendo ainda sinais do

bloco de rocha que dá sustenção à peça. As pernas estão entreabertas, com a perna direita à

frente, simulando a posição de marcha das estátuas egípcias. Os pés estão descalços e

apresentam diferenciação entre os dedos.

Figura 26. Estátua masculina, nicho direito

Fonte: EMPEREUR, 1998. p. 159; VENIT, 2002, p.133.

79

Assim como na estátua feminina, presume-se que esta seja uma estátua retrato do

proprietário da tumba. A estátua masculina apresenta uma maior deterioração na sua estrutura,

como observamos na ausência dos membros inferiores, mas apresenta maior detalhe de traços

no rosto. A cabeça da estátua possui cabelos encaracolados; o rosto apresenta marcas de

expressão na testa e nas dobras nasolabiais. Os olhos, em conjunto com os lábios, passam uma

expressão séria. O nariz é longo e possui narinas pequenas. O maxilar é largo e fortemente

marcado. O corpo não dispõe de vestimenta no tronco e a peça veste apenas um saiote egípcio

que cobre o quadril logo abaixo do umbigo. Ele é composto por três dobras de tecido, com uma

parte maior ao centro. As pernas são grossas, sem detalhes nos joelhos e estão entreabertas,

com a perna esquerda à frente, apresentando a posição de marcha típica das estátuas egípcias.

Os pés possuem diferenciação entre os dedos.

Figura 27. Estátua e amuleto do Período Tardio

À esquerda: estátua ka de Tjayasetimu, XXVI Dinastia. À direita: Amuleto da deusa Ísis. Ambas as figuras

apresentam-se vestidas à moda do Antigo Império. In: Acervo Online do Museu Britânico20.

20 À esquerda, disponível em:

<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.a

spx?assetId=337768001&objectId=111559&partId=1>. Acesso em 20 jul. 2018.

80

Segundo Susan Venit (2002, p. 129), as características dos traços faciais e penteado/tipo

de cabelo das peças indicariam a época do governo do imperador Vespasiano, datando de 69 a

79 d.C. Podemos inferir que tais peças são emaranhadas por trazer na cabeça esculpidas

seguindo o padrão greco-romano, enquanto a vestimenta e a posição do corpo emulam

características egípcias. Kyriakos Savvopoulos (2013, p. 116) conjecturou que, diante do

contexto que está colocada e da posição que assumem - bastante frontalizada e hierática - as

esculturas poderiam servir como estátuas ka21, ligadas à rituais de culto ao morto. O autor

reforça essa conjectura ao indicar a similaridade da posição de marcha vista nas figuras e o uso

de roupas tipicamente egípcias, similares às que são observadas em esculturas do Período

Tardio e que retornam ao padrão do Antigo Império, como podemos observar na fotografias da

figura 27. Consideramos válida a premissa do autor, principalmente se levarmos em conta a

possibilidade de a antessala ser um espaço dedicado à realização de rituais e culto aos mortos

enterrados ali. Assumindo essa assertiva, a ideia de emaranhamento é ainda mais reforçada.

Ao pensarmos nessas estátuas como retratos romanos, principalmente pelos traços

físicos observados nos rostos, questões ligadas à memória, identidade social e desejo de

imortalizar-se vêm a tona, conforme argumentou Jane Fejfer (2008, p.105):

[...] Os recentes estudos veem o simbolismo funerário como uma mistura de

preocupações e anseios sobre status social e crenças sobre a vida a após a

morte, bem como o considera como parte da expressão de luto e de outras

emoções. Status social, financeiro, afiliações culturais, preferências pessoais,

pesar e emoções, gostos, tradições familiares e locais e crenças sobre o pós-

vida podem ser elementos que contribuem no modo de representação

escolhido nos túmulos dos indivíduos.

Sabendo disso, podemos fazer algumas inferências a respeito dessas esculturas, a partir

do potencial de comunicação de significado que elas possuem. A princípio, elas indicam culto

ou atividades de comemoração aos mortos, além de reforçarem o aspecto de memória presente

nesse contexto. A antessala foi provavelmente um espaço mais voltado a essas atividades,

contando com uma maior circulação e uso por parte dos indivíduos. Essas esculturas também

À direita, disponível em:

<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.a

spx?assetId=329170001&objectId=154731&partId=1>. Acesso em 20 jul. 2018. 21 O ka consiste em um dos componentes que constituem o indivíduo, comumente acompanhado do elemento ba.

Não há consenso nas definições para o ka, como ressaltou Assmann (2005, p. 96). Esse autor afirma que enquanto

o ba está ligado à ideia de movimento e à esfera física do morto, o ka está relacionado à esfera social, ao status

social, à honra e à dignidade. O ka pode ser entendido como uma energia vital, espírito protetor e duplo

(doppelgänger) do indivíduo. Na parte mais externa das tumbas, as oferendas e cultos eram atribuídos a uma

estátua que resguardava o ka do morto.

81

são exemplificam o emaranhamento presente em todo o programa decorativo da tumba. As

características faciais da tradição clássica são combinadas com as vestimentas e a posição

corporal tipicamente egípcias. Pela escolha dos traços greco-romanos na cabeça, podemos

pensar também em uma identidade social ligada ao status alexandrino/grego, visto os benefícios

dessa condição em Alexandria. As roupas e posição do corpo, por sua vez, nos indicam uma

crença funerária alinhada aos preceitos egípcios, ao tomarmos essas esculturas como estátuas

ka. Como não há epígrafe ou qualquer tipo de informação escrita sobre nome, profissão ou

posto social, essas interpretações são baseadas principalmente pelas características observáveis

das esculturas.

2.3.2 – CÂMARA MORTUÁRIA

A câmara mortuária possui formato retangular e segue o padrão de triclínio, sendo

composta por três nichos do tipo arcosolium conjugados ou articulados, posicionados

transversalmente na forma de um retângulo aberto para a porta de entrada. Na parede interna

da entrada, dois relevos do deus Anúbis são localizados em cada lado, flanqueando a porta e

retomando a função de guardas da tumba. Assim como na antessala, os relevos são esculpidos

diretamente na rocha das paredes, articulando assim elementos fixos e semifixos no mesmo

material de composição da sala. A análise iconográfica desses relevos constará no capítulo

seguinte, em que mais questões sobre a função e o significado serão apresentadas.

Figura 28. Parede interna da entrada da câmara mortuária

Fonte: SAVVOPOULOS, 2011, p. 87

82

O modelo de nicho arcosolium tornou-se popular no Império Romano, sendo observado,

por exemplo, nas catacumbas romanas dos primeiros dois séculos da era cristã (GUIMIER-

SORBETS; PELLE; SEIF EL-DIN, 2017, p. 49). Os nichos apresentam o mesmo padrão

decorativo, havendo colunas decoradas com motivos egípcios na base e no capitel. Cada nicho

possui um bloco entalhado na parte inferior, possuindo formato de um sarcófago romano. A

tampa não abre, tendo sido entalhada diretamente na rocha junto ao restante do sarcófago, que

apresenta decoração em alto-relevo.

Os relevos encontrados na câmara mortuária possuem enorme potencial comunicativo

e indicam as atividades rituais relacionadas aos tratos funerários desenvolvidos nesse espaço.

Contando com cenas de ações rituais que envolvem deuses, sacerdotes e os possíveis

proprietários da tumba, os nichos articulam um alto nível de simbolismo e sacralidade em sua

decoração. Os sarcófagos provavelmente serviram de leito funerário, onde as múmias seriam

colocadas.

Figura 29. Nicho central

Partes das pilastras dos demais nichos são visíveis na fotografia. Fonte: VENIT (2002, Pr. VIII).

83

Os relevos trazem cenas ligadas ao ritual da mumificação e o renascimento de Osíris,

que serão analisados de forma mais minuciosa no capítulo seguinte, assim como os demais

relevos da tumba. Por enquanto, podemos tomá-los como elementos fixos e indicadores do

ritual, sendo, portanto, elementos-chave na sacralização e diferenciação desse espaço. As

paredes centrais e internas dos nichos também trazem relevos; no caso dos nichos esquerdo e

direito, as paredes centrais são espelhadas, havendo diferença nas paredes laterais. Novamente,

a redudância é um recurso optado pelos artesãos e proprietários na tumba, no que diz respeito

a comunicação de ideias e valores presente nesse espaço.

O nicho central possui um sarcófago entalhado na rocha, que segue o padrão romano

com relevos de guirlanda e máscaras associadas ao deus Dioniso e Medusa. Devido ao modelo

do sarcófago, supõe-se que a tumba pode datar da primeira metade do século II d.C., época em

que esse tipo de sarcófago passou a ser amplamente utilizado em Roma e nas províncias da

Ásia Menor (GUIMIER-SORBETS; PELLE; SEIF EL-DIN, 2017, p. 153). A datação se torna

imprecisa, contudo, pela simplicidade desses sarcófagos em comparação com os que são

observados em Roma nessa mesma época.

Figura 30. Detalhe do sarcófago romano do nicho central

Fonte: ADRIANI (1961. Pr III)

Os relevos entalhados trazem personagens e elementos gregos, característica dos

sarcófagos romanos do século II d.C... O sarcófago possui decoração de entalhe na parte frontal,

com uma guirlanda ondulada com frutos e vegetais; máscaras de Medusa e um sátiro, associado

ao deus Dioniso. O sátiro é careca e possui barba encaracolada, com o cenho franzido. A

referência a símbolos de Dioniso, como as máscaras de Medusa e sátiro e a guirlanda,

provavelmente é oriunda da dimensão funerária dessa divindade, associada a Osíris. Segundo

Susan G. Cole (2007, p. 339) um dos aspectos do deus Dioniso é o papel de ponte entre a vida

e a morte, visto que essa divindade está relacionada aos momentos de transe e às transições. A

84

associação de Dioniso a Osíris também se deu pela similaridade do mito de renascimento do

deus egípcio, que fora desmembrado, mumificado e ressuscitado, com uma narrativa comum

aos cultos de mistério em que Dioniso é morto, desmembrado e ressucitado. Heródoto é um dos

autores clássicos a fazer esse paralelo entre o deus grego e o deus egípcio (BURKERT, 1993,

p. 566-567). Outros símbolos dionisíacos aparecem no programa decorativo, como veremos de

forma mais detalhada no capítulo seguinte.

Pelo formato da boca de ambas as faces, é deduzido que se tratam de máscaras de teatro.

A máscara de Medusa apresenta cabelos ondulados, em referência as serpentes de sua cabeça.

Suas sobrancelhas estão franzidas em uma expressão de dor. Junto às medusas dos escudos que

estão posicionados acima dos relevos de Agathos Daimon, associa-se o poder apotropaico da

figura. Ao centro está uma figura feminina repousando em uma kliné, assento tipicamente

grego. Um manto cobre grande parte do corpo, que se apresenta de forma bastante curvilínea.

De acordo com Susan Venit (2002, p. 135), esse relevo poderia indicar a proprietária da tumba

como a principal benificiária desse espaço.

Figura 31. Desenho arqueológico do sarcófago do nicho central

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena.22

As fachadas dos nichos esquerdo e direito seguem o padrão já observado na tumba, com

frontão arqueado e um disco solar envolto pelo uraeus23. Uma faixa de baixo-relevo com

22 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263389>. Acesso em 26 jan. 2018.

23 Serpente protetora, símbolo da realeza e do poder divino. Segundo Brancaglion (2003, p.136), a palavra

uraeus é a variação latina da palavra grega que deriva do egípcio, que significa “aquela que se ergue”. A

serpente era filha de Rê e atacava os inimigos do rei e dos deuses.

85

círculos encadeados decora a parte externa e interna do nicho. As pilastras, cavadas na rocha,

seguem o padrão decorativo das colunas da antessala, com capitéis compostos e base decorada

com desenhos geométricos de lótus.

Figura 32. Nichos esquerdo e direito da câmara mortuária

Fonte: EMPEREUR, 1998, p. 162-165.

Nas paredes centrais do nicho esquerdo e direito um homem coroado – possivelmente o

imperador romano investido de símbolos da realeza faraônica – faz oferendas ao touro Ápis,

enquanto Ísis-Maat abençoa o ato. Esses relevos nos trazem à tona, sobretudo em Alexandria,

a importância do culto isíaco e de Serápis. A divindade, criada e oficializada como culto

dinástico já no reinado de Ptolomeu I, possuía associações a divindades egípcias como Osíris,

Ptah, Ápis, e Amun, junto aos deuses gregos Zeus, Hades, Dioniso e Asclépio. Pelo contexto

dos relevos, o touro Ápis que aparece na câmara mortuária retoma os valores de Osíris. De

acordo com Richard Wilkinson (2003, p. 170), quando encontrado no contexto funerário, o

touro Ápis é denominado de ba de Osíris. Novamente, por estarmos inseridos no contexto de

Alexandria, a figura de Ápis possui ligação direta com a divindade protetora da cidade, Serápis.

86

Novamente, os elementos de mobiliária que restaram na tumba são componentes da

própria estrutura do ambiente; os sarcófagos de pedra são mais um exemplo dessa fusão de

elementos fixos e semifixos. Eles trazem a tradição romana para o programa decorativo da

tumba, que segue um plano majoritariamente egípcio. Os sarcófagos dos nichos esquerdo e

direito trazem o aspecto do espelhamento na sua decoração, apresentando características

morfológicas iguais. Eles contam com decoração de guirlanda, máscaras de Medusa e um

bucrânio ao centro. A guirlanda e os cachos de uva fazem referência ao culto dionisíaco em

relação ao âmbito funerário, já mencionados anteriormente, enquanto as máscaras de Medusa

buscam trazer seu aspecto apotropaico. O bucrânio, por sua vez, é um motivo iconográfico

bastante difundido no mundo greco-romano, ligado à ideia de sacrifício animal. Pode ter

relação, portanto, aos rituais funerários ligados ao deus Dioniso.

Figura 33. Sarcófago do nicho esquerdo

Fonte: ADRIANI (1961, Pr. III)

Figura 34. Sarcófago do nicho direito

Fonte: ADRIANI (1961, Pr. III)

A análise iconográfica que iremos desenvolver no capítulo seguinte será capaz de nos

indicar, de forma mais precisa, o potencial ritualístico das cenas que ali foram representadas,

87

complementando assim a nossa interpretação sobre esse espaço. Nossa divisão de análise entre

capítulos se deu meramente por questões metodológicas necessárias ao tratamento das fontes,

mas devemos atentar à indissociabilidade das imagens no espaço, visto que elas próprias

constituem os valores e significados observados nesse ambiente. Até aqui, podemos perceber

que os artesãos responsáveis pelo programa decorativo, bem como os proprietários desse

hipogeu, apresentavam alto nível de conhecimento sobre a religião egípcia. Ao analisarmos o

significado das cenas, no capítulo a seguir, procuraremos entender quais as possíveis

motivações no uso da iconografia funerária egípcia em meio aos elementos greco-romanos

empregados na decoração da Tumba Principal, articulando as ideias que desenvolvemos sobre

espaço funerário junto à análise iconográfica das cenas.

88

CAPÍTULO 3 – RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA

A discussão teórica sobre espaço funerário, junto à contextualização histórica dos sítios

de necrópole de Alexandria auxiliaram-nos a compreender as características gerais do espaço

destinado aos mortos, com foco na cidade alexandrina na época ptolomaica e no início do

período romano. Percebemos que na Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, os elementos fixos

e semifixos estão presentes de forma unificada, e que as imagens entalhadas na rocha possuem

papel crucial na diferenciação desse espaço. Neste capítulo, discutiremos algumas noções sobre

imagem, que serão pertinentes para entendermos a presença desse material no espaço funerário.

Também neste capítulo abordaremos a metodologia de análise iconográfica, que

permitirá a interpretação das cenas dos relevos. Apesar de já termos mostrados algumas

fotografias desses relevos no capítulo anterior, a análise que será feita neste capítulo possui

mais detalhes e trará mais interpretações.

3.1 – QUESTÕES CONCEITUAIS SOBRE IMAGEM

Pensar em um conceito unificado e definitivo para “imagem” é uma tarefa muito

complicada, assim como também se torna simplista e redutora frente à multiplicidade,

polissemia e dinamismo do termo. É possível, entretanto, usar de algumas ideias para guiar o

nosso pensamento diante do problema da imagem: entender não apenas sua definição ou

natureza, mas como elas acontecem, funcionam e se propagam, por exemplo.

Figura 35. As famílias de imagem

Fonte: MITCHELL (1986, p. 10).

89

É conhecido que as imagens estão ligadas ao campo da visualidade e da linguagem, mas

não apenas a isso. A polissemia da palavra imagem tampouco indica que os seus múltiplos

significados sejam sinônimos ou palavras facilmente intercambiáveis. Assim, imagem pode ser

entendida como um fenômeno amplo, ligado a diferentes formas de expressão e representação.

O campo da visualidade – o qual estamos interessados aqui, visto a natureza das nossas fontes

- faz parte desse fenômeno junto ao campo das operações mentais, da percepção, da linguagem,

e da ótica. Mitchell (1986, p. 9-10) define esse fato a partir da ideia de família de imagens,

como pode ser observado na figura 35 da página anterior.

A divisão proposta pelo autor teve como finalidade ordenar as diversas possibilidades

nas quais empregamos o termo imagem, auxiliando assim a se pensar de forma diversificada e

multilateral. Entretanto, a complexidade da imagem reside no fato de que os campos conceituais

atuantes nesse fenômeno não estão deslocados ou desconectados um dos outros. Por exemplo,

o cinema evidencia a ação conjunta desses campos: as imagens de caráter visual se encontram

majoritariamente no campo gráfico e ótico, mas também necessitam e promovem a ação do

campo da percepção, da mente e da linguagem verbal. A partir dessa ideia, as diferentes

imagens conhecidas podem empreender diversas combinações da ação dos campos conceituais

para que aconteçam: esculturas, pinturas, sonhos, memórias, hologramas, descrições verbais

estão longe de serem entidades fixas, elas acontecem a partir da mediação dos campos

conceituais.

Contextualizando essa ideia às nossas fontes, que consistem em imagens de relevos

produzidos na Antiguidade e encontrados em um contexto funerário, o campo gráfico

(correspondente à materialidade) atua em conjunto ao campo da percepção, ao campo mental e

ao campo verbal, tendo em vista o que representam: questões ligadas à religião e rituais

destinados à vida após a morte. Parte desses relevos traz também um aspecto narrativo, por

fazerem referência às cenas de textos funerários, como o Livro dos Mortos da cultura egípcia.

Por representarem um tema complexo, tais imagens empreendem uma ação conjunta complexa

desses campos conceituais.

Quando entendidas como um fenômeno dinâmico, as imagens assumem a necessidade

de um veículo ou um meio para que aconteçam. Hans Belting (2006; 2011) nos fornece o

conceito de meio e traz o corpo para a discussão de sua teoria imagética. A partir de uma

abordagem antropológica para a arte, Belting (2011, p. 2-10) sugere que a pergunta “o que é

uma imagem? ” seja respondida de forma dupla: deve-se atentar para as imagens não apenas

90

enquanto produtos de determinada mídia – como fotografias, pinturas ou vídeo –, mas também

deve-se entender as imagens como produtos de nós mesmos, tendo em vista a possibilidade de

produzirmos imagens mentais a partir das imagens visíveis e vice-versa.

É possível perceber a influência do pensamento de Jean-Pierre Vernant (1996) sobre as

imagens gregas antigas na teoria de Belting. O helenista francês criou a base de sua

argumentação sobre as imagens gregas do Período Arcaico a partir da ideia de figuração do

invisível: as imagens marcam, paradoxalmente, a ausência daquilo que representam, ao mesmo

tempo que lhes dão uma presença. A presentificação do invisível está relacionada com os mitos

e com os deuses, fazendo parte da experiência religiosa em si:

[...] Ao lado do mito em que se contam histórias, em que se narram relatos, ao

lado do ritual em que se cumpre sequências organizadas de atos, todo sistema

religioso comporta um terceiro aspecto: os fatos de figuração. Entretanto, a

figura religiosa não visa apenas evocar na mente do espectador que a observa

a potência sagrada à qual remete, que “representa” em certos casos, como no

caso da estátua antropomórfica, ou que evoca na forma simbólica, em outros.

Sua ambição, mais ampla, é diferente. Ela pretende estabelecer com a potência

sagrada, por meio daquilo que a figura de uma forma ou de outra, uma

verdadeira comunicação, um contato autêntico; sua ambição é tornar presente

esta potência “aqui e agora”, para colocá-la à disposição dos homens, nas

formas ritualmente necessárias. [...] Estabelecer com o além um contato real,

atualizá-lo, presentificá-lo e, assim, participar intimamente do divino – mas,

no mesmo movimento, sublinhar o que o divino comporta de inacessível, de

misterioso, de fundamentalmente outro e estrangeiro -, esta é a tensão

necessária que, nos quadros do pensamento religioso, toda forma de figuração

deve instaurar (VERNANT, 1996, p. 297-298).

A natureza intrínseca das imagens reside no paradoxo da presença da ausência: elas

buscam trazer a presença, mesmo que simbólica, de algo que está ausente, ao mesmo tempo

que evidenciam essa ausência pela sua própria existência. Mais do que produtos da percepção,

as imagens são também resultado do conhecimento individual ou coletivo, marcadas por

intenções. Dentre elas, destacamos a intenção de estabelecer o contato com os deuses, em

especial, no espaço funerário, como é o caso das imagens que estudamos nesta pesquisa.

Segundo Belting (2011, p. 3), “[...] Imagens se apoiam em dois atos simbólicos, ambos

envolvendo o corpo: o ato de fabricação e o ato de percepção, sendo um o propósito do outro”.

A percepção das imagens é um ato simbólico guiado por padrões culturais e por tecnologias

imagéticas. O lugar da percepção é o corpo; enquanto as técnicas imagéticas estão relacionadas

aos meios. Em suma, o corpo produz imagens a partir dos meios. Nas palavras de Hans Belting:

91

Proponho falar de imagem e mídias como dois lados da mesma moeda, ainda

que eles se separem no nosso olhar e signifiquem coisas diferentes. A pintura

é a imagem com uma mídia. O último termo, entendido dessa forma, abarca

tanto “forma” quanto “conteúdo”, conceitos discretos que aparecem ao

falarmos de obras de arte e objetos de valor estético. [...] O conceito de mídia,

de fato, complementa as ideias de imagem e corpo. Ele fornece, por assim

dizer, o “elo perdido”, pois as mídias nos permitem perceber as imagens de

maneira que não as confundamos nem com os corpos reais nem com as coisas

simples. A distinção entre imagem e meio surge da nossa própria experiência

corporal. As imagens da recordação e da fantasia surgem no nosso corpo como

se ele fosse uma mídia viva, pela qual as imagens são experienciadas (2011,

p.10-11).

A teoria imagética de Hans Belting nos permite enxergar as imagens de forma mais

complexa e dinâmica, atentando para questões importantes como a produção, percepção e

circulação das imagens. Sua ideia de meio/mídias para as imagens traz à tona a questão material

e a coloca em lugar de importância para que as imagens aconteçam. O corpo como lugar da

percepção também adquire o status de meio, pois é parte essencial do caminho pelo qual as

imagens percorrem. Lembramos que o corpo também é agente de produção das imagens, desde

o nível mental ao nível gráfico e material.

Visto que as imagens possuem relação íntima com a experiência corporal, percebemos

que a tríade dos conceitos Imagem – Mídia – Corpo operam de forma conjunta diante do

fenômeno da morte. A questão funerária, contexto principal no qual trabalhamos nesta pesquisa,

assume um papel central na produção das imagens: a inevitável ausência criada pela morte é a

força geradora das imagens, que buscam dar presença ao morto que está ausente em sua

condição corpórea. As imagens reestabelecem a ordem diante da vacância originada pela morte,

sendo elas parte significativa da experiência funerária. O domínio das relações sociais é

expandido e abarca os mortos a partir da produção e do uso das imagens, podendo envolver o

aspecto mágico-religioso (alcançado por meio dos ritos fúnebres) e a questão da memória social

e coletiva sobre o morto (BELTING, 2011, p.85-87).

A imagem funerária necessita de ações rituais para que o significado e a função

atribuídos a ela sejam plenamente alcançados. As imagens ganham voz e ação dentro dos

rituais; fora deles, elas são reduzidas ao papel de mídia para a lembrança (BELTING, 2011, p.

89). Vernant novamente parece ser uma forte influência no pensamento de Hans Belting,

quando afirma que

A figura plástica, no nível do xoánon [ídolo de madeira do Período Arcaico],

não pode em momento algum separar-se inteiramente da ação ritual: o ídolo é

92

feito para ser mostrado e escondido, passeado e preso, vestido e despido,

lavado. A figura necessita do rito para representar a potência e ação divinas (1996, p. 299).

Dessa forma, as imagens são complementadas pela ação ritual diante da experiência da

morte; a produção e o culto que envolvem as imagens são permeados pelos rituais e crenças

religiosas. Logo, a agência das imagens é alcançada por meio dessas ações. Carlo Severi (2009)

aliou o conceito de agência das imagens à ação ritual, ligada a uma atribuição ou empréstimo

de palavras aos objetos. A partir da teoria de Alfred Gell, Art and Agency (1998), Severi afirma

que a agência dos objetos inanimados é atribuída pela antropomorfização que realizamos sobre

os artefatos; dentro do contexto ritual, esse processo ocorre de forma mais duradoura e eficiente.

Nas palavras do autor:

É certamente no bojo da ação ritual, em que se constrói progressivamente um

universo de verdade distinto da vida cotidiana, que o exercício do pensamento

antropomórfico pode cristalizar e produzir crenças duradouras. Então os

objetos assumem, de modo infinitamente mais estável, um certo número de

funções próprias aos seres vivos. A depender do caso considerado, podem

perceber, pensar, agir ou tomar a palavra. Passamos da palavra dirigida à

palavra atribuída/emprestada aos artefatos. [...] No espaço do ritual, sob a

forma de estatuetas, imagens pintadas ou fetiches, os objetos são naturalmente

tidos como representação de seres (espíritos, divindades, ancestrais)

construídos à imagem de locutores humanos (2009, p. 460).

É possível, portanto, relacionar a dimensão espacial, a linguagem verbal e as imagens

como partes essenciais dentro ação ritualística. A distinção que fazemos entre esses três

aspectos aconteceu na antiguidade de forma muito mais imbricada e inter-relacionada. Sob

influência de Vernant (1965), Severi entende as imagens funerárias gregas do Período Arcaico

como representações da ausência-presença do morto, sendo parte atuante e essencial nos ritos

(2009, p. 483). Essas imagens, os kolossos, são compreendidas como dispositivos de ações

rituais, em que se destinam a elas oferendas e libações; a palavra na forma da inscrição presente

na estátua, que deve ser lida e enunciada e traz o nome do morto representado ali; e o olhar

dirigido à imagem que é diferenciado diante da representação. Os agentes do ritual assumem o

papel de locutores para o morto, pois realizam a enunciação a partir da inscrição presente na

imagem, atribuindo ou emprestando a palavra à imagem para que ela exerça sua função de

evocar a ausência-presença do morto. Percebe-se assim que o ritual funerário mobiliza tanto a

voz quanto a imagem; a comunicação verbal e visual são aspectos fundamentais e inseparáveis

do costume funerário grego arcaico. Como conclui Severi:

93

O ato verbal atribuído à estátua implica e realiza uma série de relações

complexas que constituem sua presença. A palavra emprestada realiza assim

uma série de identificações rituais, simultâneas e múltiplas, que ligam

celebrante e defunto, realizando dois tipos distintos de contato, pela imagem

e pela palavra pronunciada. A estátua funerária, que fixa na imagem a

identidade ritual do defunto, não é portanto apenas representação de um ideal

social: presente na cena do rito, é o foco de um conjunto de relações (2009, p.

498).

O costume funerário de associar a fala às imagens também é possível de ser visto em

outras culturas antigas, como é o caso do Egito Antigo. Os textos funerários do período

faraônico, como Os textos das pirâmides, Os textos dos sarcófagos e O Livro dos Mortos, por

exemplo, possuem uma longa tradição ritualística, composta por fórmulas mágico-religiosas

para a sobrevivência do morto no Além. Mark Smith (2009, p. 17) afirma que grande parte da

tradição faraônica nos textos ritualísticos permanece sendo atestada nos papiros do período

greco-romano, contando também com a criação de novos textos, como O livro das respirações

e O livro da travessia da eternidade. Esses textos possuíam papel singular dentro da ação

ritualística funerária; o ritual de Abertura de Boca, por exemplo, continuou sendo atestado por

evidência papirológica entre os séculos I e II d.C. Esse ritual empreendia um conjunto de

fórmulas mágicas, encantamentos e ações realizadas diante do sarcófago que continha a múmia;

a partir disso se restaurariam os cinco sentidos do morto para que o falecido tivesse sua

plenitude no mundo dos mortos.

Podemos compreender o ritual de Abertura de Boca tanto a partir das ideias de Carlo

Severi quanto das ideias de Hans Belting: a imagem do morto, isto é, a múmia, marca a

ausência-presença do indivíduo falecido, sendo uma mídia elaborada a partir do próprio corpo;

ela adquire seu status de agência e poder a partir da atribuição da palavra e das ações realizadas

no ritual. Acreditamos ser possível estender tais concepções não apenas para a múmia ou para

as estátuas funerárias, mas para todo o espaço da tumba, tendo em vista que ele também

mobiliza uma comunicação visual a partir das imagens ali presentes, mediando as ações que ali

serão encenadas.

Apesar de não contarmos com as evidências textuais precisas dos rituais funerários

atribuídos às nossas fontes de estudo – não foram encontrados papiros ou outros documentos

textuais sobre a Tumba Principal de Kom el-Shoqafa em específico – os relevos de temas

sagrados denotam o caráter ritualístico presente nesse espaço. Como será possível ver na análise

das fontes, os relevos trazem cenas de rituais como a mumificação e a adoração do touro sagrado

Ápis, por exemplo.

94

Como já discutimos anteriormente, as imagens possuem funções e representam

intenções dentro da sociedade que elas foram produzidas. O material imagético possui

inevitavelmente uma complexidade singular, uma vez que, distante dos padrões culturais de

quando elas foram produzidas, as imagens se tornam difíceis de serem entendidas. Contudo,

por serem produtos de um tempo, de um espaço e de uma cultura, a inteligibilidade se torna

possível a partir da sua contextualização. Os estudiosos que trabalham com esse tipo de material

se deparam, assim, com fragmentos que “capturam” porções pequenas do tempo e espaço de

onde foram originadas. Brian Leigh Molyneaux chama tal característica de inércia da imagem

quando postula que:

O reforço de ideias em algumas imagens é muito poderoso. Representações

históricas ou religiosas que retratam pessoas, tempos e eventos extraordinários

fornecem uma abreviação muito intensa, densa e envolvente para eras inteiras

e situações altamente complexas. Cada imagem captura literalmente ou

figurativamente um momento congelado no tempo, mas pode eventualmente

representar uma eternidade. [...] Este é um conceito estranho, a compressão de

tempo e espaço em uma única imagem. É um conceito arqueológico não

menos fantástico do que o de uma pessoa religiosa que afirma que os

ancestrais ainda estão conosco. No entanto, estamos fadados a imaginar,

sabendo que, embora cada imagem possa ser marcada por uma legenda,

protegida por um texto dentro de um livro, ela ainda terá vida própria. O

problema é que a imagem supera o tempo e a erudição, capturando a essência

imaginada de um evento de forma facilmente lembrada, replicada e

transportada. Se é um evento humano, é ainda mais resistente a mudanças. [...]

Imagens e outras representações visuais, portanto, têm uma tremenda inércia,

ou poder de permanência, que pode persistir por muito tempo depois que as

idéias por trás das imagens saíram de moda. Tal persistência, ou

frequentemente, anacronismo, pode ser observado na arte ao longo da História (1997, p.6).

É devido a essa inércia que nós, indivíduos do presente, conseguimos extrair informação

histórica das imagens. Molyneaux sugere alguns aspectos interessantes para a análise de

iconografias da Antiguidade, para se entender o significado desse material: questões ligadas à

altura dos personagens, posição e orientação fazem parte da composição da cena, que é

carregada de intenção comunicativa. Nossas fontes passarão por um processo de descrição

atento às essas características intrínsecas da imagem.

A diferença entre a natureza das nossas fontes – fotografias e desenhos arqueológicos -

provoca reflexões necessárias, ligadas às especificidades de produção desses materiais sobre o

registro arqueológico. O uso de fotografias na arqueologia pode ser observado desde os

primórdios da disciplina, visto a utilidade da fotografia em registrar artefatos, ajudar na

identificação de características impossíveis de serem vistas a olho nu (o caso de luz infra-

95

vermelho, por exemplo) e fornecer visões panorâmicas sobre a paisagem em que os sítios

arqueológicos estão inseridos. Portanto, as fotografias muitas vezes são tidas como

instrumentos objetivos dentro da ciência arqueológica, sem haver grandes reflexões sobre a

natureza e a intencionalidade desse material. Michael Shanks (1997) produziu algumas

reflexões sobre a objetividade e a verdade na Arqueologia, evidenciando a dimensão retórica e

discursiva por trás desses registros. Nas palavras do autor,

A heterogeneidade do trabalho fotográfico é marcada pela multiplicidade de

conexões possíveis. [...] Meu argumento é de que fotografias são poderosos

instrumentos retóricos para estabelecer objetividade: elas funcionam como

imagens e como produtos da técnica, que aparentemente captura

objetivamente o seu correspondente. Isso me levou a introduzir o discurso

como um conceito vital para entender a produção histórica e social do

conhecimento. [...] O discurso sempre esteve ligado aos textos e à palavra; nós

devemos também olhar para as imagens e seu caráter discursivo em particular

(1997, p. 82-82).

Assim, para as imagens fazerem sentido – seja no contexto histórico e social em que

foram produzidas, ou no contexto em que o estudioso da História e Arqueologia as analisa –, é

necessário estabelecer conexões dentro e fora das imagens, para que se chegue até as

informações da sociedade que as produziu. É notável que o nosso conjunto de fotografias,

derivadas de trabalhos de arqueólogos, possuem a intencionalidade de destacar e trazer

informações, assim como evidenciar o aspecto material do sítio arqueológico em questão.

Sabemos que as fotografias que dispomos não trazem a totalidade desse espaço, mas funcionam

aqui objetivamente ao serem contextualizadas e interrogadas a partir dos referenciais teóricos

apresentados até então.

Como já afirmamos anteriormente, os desenhos arqueológicos que dispomos foram

elaborados para uma obra publicada no ano de 1901, em meio às primeiras escavações

realizadas no local. Apesar de não termos os relatos de produção desses desenhos, consideramos

pertinente fazer algumas inferências sobre esse material a partir de reflexões mais recentes

sobre o trabalho de reconstrução visual na arqueologia. Simon James (1997, p.22) argumenta

que apesar do termo reconstrução ter se estabelecido dentro da arqueologia, seria mais

adequado chamar os desenhos de simulação, tendo em vista a temporalidade que separa o

desenhista técnico e os sítios arqueológicos, assim como a fragmentação das informações dos

sítios em questão. O autor chama atenção para o fato de que os valores estéticos são secundários,

ainda que também façam parte do trabalho de desenhistas profissionais. O propósito dos

desenhos arqueológicos será sempre o de transmitir informações e características daqueles

96

objetos “reconstruídos”. O desenhista técnico segue regras básicas, como a de não contradizer

as evidências visíveis dos artefatos e respeitar as suas propriedades físicas e morfológicas. É

necessário que o desenhista técnico trabalhe junto ao arqueólogo, quando não compartilham a

mesma formação. Nas palavras de James,

Antes de começar, os ilustradores precisam ter em mente qual o propósito do

trabalho de reconstrução. [...] No geral, uma reconstrução busca fornecer ao

expectador uma percepção da aparência sobre algo, alguém e/ou algum lugar

do passado, com o impacto máximo efetivo e o mínimo de conteúdo enganoso

ou especulativo. A reconstrução pode ser inapropriada, quando as evidências

arqueológicas são extremamente fragmentárias, impedindo a produção de

desenhos de cenas complexas. [...] Quando o desenho é apropriado,

precisamos saber o quão detalhado ele precisa ser. Diagramas simples podem

ser mais eficazes que traços mais elaborados. [...] Os desenhos de reconstrução

devem ser parte integral do trabalho de escavação arqueológica, de preferência

quando acontecem concomitantemente a esse processo. Um bom

conhecimento dos aspectos funcionais sobre a vida na Antiguidade, assim

como conhecimento em Arqueologia de forma geral levam a um bom trabalho

de reconstrução (1997, p. 26-27).

Assim como já afirmamos em relação às fotografias e a partir das inferências de Simon

James, temos ciência de que os nossos desenhos não trazem a totalidade material dos relevos,

mas simulam suas características com um número maior de detalhes. Pelo ano de produção da

obra de Von Bissing coincidir com o período de escavação do sítio de Kom el-Shoqafa, os

desenhos apresentam um grande nível de detalhes, tendo em vista que houve deterioração

desses relevos desde então. Esses detalhes serão levados em conta em nossa análise

iconográfica, como já demonstramos anteriormente na exposição da nossa metodologia.

3.2 - PROPOSIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: O PARADIGMA

SEMIOLÓGICO

Explicitaremos aqui os caminhos metodológicos para a análise da arte funerária,

complementando nossa interpretação com os referenciais teóricos da Antropologia, História,

História da Arte e Arqueologia. Nossa metodologia se baseia majoritariamente nas

contribuições da Arqueologia da Imagem da escola francesa, dos anos 1980. Os helenistas

franceses contaram com forte influência da semiologia para a elaboração dos procedimentos de

análise de imagem.

A forte presença da visualidade no cotidiano do homem contemporâneo fez com que

os variados campos de atuação da ciência se apropriassem das imagens visuais como objeto de

97

estudo. A variedade dos veículos de imagem que surgiu na contemporaneidade tem provocado

novas indagações, proposições e métodos para análise e interpretação do fenômeno da

visualidade. Sabemos que é impossível unificar conceitos e abordagens em torno das imagens

visuais. Buscaremos explicitar, portanto, os caminhos metodológicos e teóricos que juntos

compõem o nosso suporte de análise de um material tão complexo como são as imagens e o

fenômeno visual em si.

O uso de categorias e conceitos para o fenômeno visual tem fomentado o pensamento

de pensadores de diversas áreas das ciências humanas. Christopher Pinney (2006, p. 131) afirma

que o teor antropológico de cultura visual direcionou a atenção de objeto de arte às questões de

percepção cultural, assim como passou a considerar práticas culturais cotidianas, valorizando-

se assim a questão cultural em relação às intenções artísticas e valores estéticos. Os conceitos

de arte, iconografia e imagem, que muitas vezes passam como sinônimos, são abarcados pelo

termo cultura visual, mas que também serão contemplados por nós, ao longo deste capítulo, em

sua particularidade de significado. Traremos conceitos, definições e abordagens que dialogam

entre si, fornecendo meios de inteligibilidade ao fenômeno visual.

A abordagem iconográfica ganhou popularidade entre os historiadores, principalmente

durante o século XX. O uso de imagens enquanto evidências do passado foi sustentado, durante

várias décadas, pelo método iconográfico e pela iconologia, que possuem raízes nos estudos

dos historiadores da arte da Áustria e Alemanha, durante as décadas de 1920 e 1930. Dentre

esses intelectuais, destacam-se Aby Warburg (1866-1929) e Erwin Panofsky (1892-1968).

Esses pensadores corroboraram com a perspectiva das imagens enquanto suporte aos signos, e

que elas transmitiriam vestígios do pensamento compartilhado do passado para a

posterioridade. Assim, a partir da leitura das imagens, o estudioso poderia chegar ao

pensamento de uma época, remontando contextos históricos e sociais mais vastos e abrangentes.

O termo iconografia, em seu sentido etimológico, está ligado à descrição e classificação

de imagens a partir dos seus elementos intrínsecos. Iconologia se refere a uma interpretação

mais abrangente, que busca inserir as imagens em contextos históricos e sócio-culturais

maiores, tomando a imagem enquanto um “sintoma” do pensamento da época em que foi criada.

Panofsky, estudioso da arte renascentista, elaborou o método iconográfico e definiu os estudos

da iconografia e iconologia como “ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das

obras de arte em contraposição à sua forma.” (1979. p. 47). Fazemos referência aqui na

metodologia proposta pelo autor na obra Significado das Artes Visuais (1955), em que o autor

98

propõe três etapas analíticas: a descrição pré-iconográfica; análise iconográfica e a

interpretação iconológica. Apesar de não ser mais o método mais adequado para o trabalho

histórico com imagens, consideramos pertinente alguns de seus pressupostos, principalmente

na sua dimensão descritiva.

O primeiro deles, tema primário ou natural, está associado à identificação de formas

puras, que representam objetos naturais como o homem, animais e a natureza em si, estando

essa percepção ligada à nossa experiência prática. Nas próprias palavras do autor: “O mundo

das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais

pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos

constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte” (1979, p. 50).

O segundo nível corresponde ao tema secundário ou convencional, sendo o nível em

que se associa os motivos artísticos ou formas puras com assuntos, alegorias e conceitos. Isso

desemboca no processo conhecido como análise iconográfica. É necessário se familiarizar a

temas específicos e conceitos, muitas vezes transmitidos a partir de escritos e pela tradição oral.

A iconografia ocupa na história da arte o papel de descrever e classificar imagens, sendo

necessário ir além para que se tenha um estudo integral de um objeto artístico.

O terceiro nível advém diretamente dessa necessidade de ir além da descrição,

identificação e classificação dos símbolos, alegorias. O nível do significado intrínseco ou

conteúdo consiste na interpretação da análise iconográfica em meio a um contexto histórico e

social, revelando assim traços de uma nação, sociedade e religião que foram condensados em

um objeto da expressão artística. A interpretação iconológica pressupõe um nível de

elucidação das imagens enquanto sintomas de uma época, trazendo em si um vestígio vivo do

momento em que foi produzida. Nota-se a influência da filosofia de Ernst Cassirer (1874-1945)

e das formas simbólicas no pensamento de Panofsky: as imagens contém os símbolos culturais

e sociais que remetem uma realidade maior; a imagem está para além de sua simples aparência

e pode ser assim entendida como indício de um inconsciente coletivo.

É necessário ter atenção às críticas que se faz ao método panofskyano, tendo em vista

que não podemos cobrar, anacronicamente, as demandas mais atuais relacionadas à imagem –

como agência e a dimensão artefatual e social das imagens, por exemplo. As críticas residem

principalmente no reducionismo metodológico, do preciosismo por grandes obras de arte às

quais o método se destinou a princípio, e do papel generalizante da fase de Interpretação

Iconológica.

99

As etapas delimitadas pelo autor contam com uma dimensão subjetiva e intuitiva, ainda

que pareçam demonstrar ou buscar por uma objetividade plena. O ato de descrever, por si só,

já conta com uma dimensão interpretativa. Acreditamos que ambas as etapas são partes

indissociáveis de um mesmo processo. Isso não significa dizer que a descrição é inválida; mas

se torna necessário reconhecer a dimensão subjetiva do ato descritivo. Observamos que tanto

a descrição pré-iconográfica como a análise iconográfica auxiliam na classificação das imagens

e na identificação de símbolos, figuras e personagens, tarefa necessária para o uso sistemático

desse tipo de fonte. O ato descritivo e a identificação de símbolos continuam sendo

procedimentos pertinentes para o estudo de imagens da Antiguidade, como será observado nas

proposições da Arqueologia da Imagem, discutidas mais à frente neste capítulo.

De fato, o historiador que se debruça com as fontes imagéticas precisa ir além das obras

de arte, sobretudo no recorte cronológico da Antiguidade: não existem objetos de arte, assim

como não existiam artistas, na concepção moderna do termo que pressupõe individualidade e

apreço estético proeminente. A ideia de uma cultura homogênea e compartilhada - alvo da

interpretação iconológica - é demasiadamente idealizada, como demarcou Meneses (2012, p.

247). Nas palavras de Peter Burke (2008, p. 52): “[...] pode-se dizer que os historiadores

precisam da iconografia, porém, devem ir além dela”.

A partir da década de 1980 surgiram novas propostas de análise de cultura visual,

sobretudo entre historiadores e arqueólogos franceses especializados em iconografia de vasos

gregos. Afastando-se da matriz da Filologia Arqueológica, que ligava a tradição textual clássica

às imagens como simples formas de ilustração, as propostas da Arqueologia da Imagem tiveram

como base os estudos da Semiologia, da Linguística e do Estruturalismo, empregando conceitos

e abordagens dessas disciplinas para o tratamento das fontes iconográficas (REDE, 1993;

SARIAN, 1999).

Nossa proposta para a análise das fontes será guiada, majoritariamente, pelos preceitos

metodológicos da Arqueologia da Imagem da escola francesa, nos apoiando sobretudo nas

ideias de Claude Bérard (1983). Acrescentaremos aqui as considerações de Cibele Aldrovandi

(2006; 2009) e sobre a Arqueologia da Imagem e a teoria imagética de Phillipe Bruneau (1985),

tendo em vista a pertinência dos conceitos de imagem e referente - tema e esquema elaborados

por este autor e que irão auxiliar nosso trabalho de análise iconográfica.

Antes de explanarmos a metodologia de Bérard, acreditamos que seja pertinente definir

o sentido do termo iconografia para os estudos da Arqueologia, que se diferencia do sentido

100

cunhado por Erwin Panofsky para o estudo de obras de arte. Entende-se por iconografia o

conjunto de símbolos e repertório imagético de determinada sociedade, encontrado na cultura

material em diversos tipos de suporte. Ainda que existam valores estéticos ligados à

iconografia, prevalece o sentido da função e comunicação que essas imagens possuem e

representam. Nas palavras de Cassiane Bars:

A análise iconográfica em arqueologia é de extrema importância para a

compreensão de diversos aspectos que envolvem a sociedade como um todo.

Segundo Flannery e Marcus [1998], “quando arqueólogos, de maneira geral,

utilizam o termo ‘iconografia’, eles se referem a uma análise do modo como

os povos antigos representavam conceitos ligados à religião, à política, à

cosmologia ou a ideologias vigentes, através de sua arte”[...] Para a

Arqueologia, é também de suma importância que a leitura destas imagens

leve a uma compreensão do papel dos símbolos, ou dos sistemas simbólicos,

em seu contexto social, e como seus mecanismos de funcionamento

proporcionam a manutenção e a construção de padrões sociais e ideologias

(2010, p. 23-26).

Dessa forma, os estudos de iconografia são parte essencial da disciplina da Arqueologia,

campo fértil das pesquisas sobre Antiguidade. A semiologia e a linguística trouxeram

importantes contribuições para que procedimentos metodológicos fossem sistematizados dentro

da disciplina.

Foi dentro do paradigma linguístico e da semiologia que Claude Bérard formulou seus

conceitos para analisar o repertório iconográfico de vasos gregos do século VI ao IV a.C. Para

o autor, a imagem na Antiguidade possui natureza artesanal, de produção coletiva e anônima;

são de cunho popular, tendo em vista a produção, circulação e consumo se dá em objetos – os

vasos – que possuíam um propósito ligado ao transporte e difusão. As imagens possuem um

potencial narrativo, havendo a necessidade de compilá-las em um corpus para que sejam

entendidos os princípios de organização lógica (1983, p. 5-6). Para Bérard, uma imagem só

pode ser compreendida dentro de um grupo de imagens. Nosso conjunto de fontes seguiu

preceitos de organização de um corpus, como poderá ser constatado no capítulo seguinte.

A elaboração do corpus permite que o repertório comum de elementos estáveis e

constantes seja observado dentre as imagens catalogadas, denominados de unidades formais

mínimas. Tais unidades, quando combinadas entre si, produzem relações de significado a partir

de uma relação de referência. Nas palavras de Bérard:

De uma perspectiva semiótica, esse repertório de unidades icônicas pode ser

caracterizado como sistemático-intrínseco-direto. De fato, o processo é

sistemático, uma vez que as imagens podem ser decompostas em sinais

101

estáveis e constantes, mesmo ao longo de vários séculos. Também é claro que

existe uma relação intrínseca entre o senso de unidade e sua forma, assim

como esta relação é direta, como a fala, já que nada fica entre a forma de

unidade e o significado atribuído a ela [...]. Diante de seu repertório de

unidades formais mínimas, o artesão esforça-se por representar uma cena

precisa cujo significado será o menos ambíguo possível e facilmente

compreensível para sua clientela. As combinações que ele desenvolve estão,

portanto, longe de serem livres, e a composição será enriquecida até que a

transição da relação de referência para a relação de significação seja

assegurada. Não se trata simplesmente de acumular unidades de maneira

paratática, mas de produzir um sistema coerente cujos elementos são

solidários (1983, p. 8-10).

Assim, para compreender a composição elaborada pelo artesão, realiza-se uma

decomposição da imagem em seus sintagmas, que são conjugações das unidades formais

mínimas. O processo de decomposição consiste, portanto, na descrição da imagem em que a

maior quantidade de detalhes deve ser destacada, para que as unidades formais mínimas e os

sintagmas sejam identificados, classificados e montem um repertório compartilhado. Bérard

aponta:

[...] admitir-se-á que a maneira pela qual as unidades formais mínimas são

combinadas é fundamental para a compreensão da imagem. Combinações

transformam unidades em signos e esquemas em temas; eles devem atender a

certos requisitos lógicos não apenas na organização da imagem em si, mas

também por causa das relações associativas que cada imagem mantém, se não

com todas as imagens, pelo menos com um corpus (1983, p. 12).

Após decompor, realiza-se a operação inversa: a recomposição da imagem, quando

ocorre a busca pelos mecanismos de articulação do repertório de unidades formais mínimas e

sintagmas. Tamanho, repetição, duplicação, posição e sentido, presença e ausência são alguns

exemplos de como as unidades formais mínimas e os sintagmas podem ser combinados para

compor uma imagem. Marcelo Rede sintetiza tal processo:

Para o historiador que trabalha com imagens, trata-se, conseqüentemente, de

explicitar e compreender os diversos meios de arranjo das partes na formação

de um todo, e, nos casos mais otimistas, desvendar as leis que regulam os

procedimentos de formação da imagem neste momento crucial da articulação

das unidades icônicas mínimas. Metodologicamente falando, está-se

percorrendo um caminho inverso daquele trilhado no momento inicial da

análise: lá, o estudioso decompunha a imagem no intuito de discernir os

elementos formais mínimos e, isto feito, construir um repertório, proceder a

uma taxonomia, ordenar e classificar o material; já aqui, procura-se ver os

mecanismos que nortearam a combinação das unidades para a formação da

cena. Lá, houve um desmonte ideal; aqui, uma recomposição, também ideal,

da imagem (1993, p. 270).

102

Para complementar nossa metodologia, consideramos pertinente a interpretação de

Cibele Aldrovani (2006; 2009) sobre a teoria imagética do arqueólogo Philippe Bruneau.

Oriundo da mesma época de efervescência dos estudos franceses de iconografia grega, assim

como Bérard, Philippe Bruneau expôs sua teoria sobre imagem em seu artigo De l’image,

publicado no ano de 1986, contando com fortes influências do paradigma linguístico.

Bruneau afirma que a imagem deriva de uma categoria mais abrangente, denominada

produtos da técnica, “que resulta de uma conduta por meio da qual os meios necessários são

fornecidos para sua produção” (ALDROVANDI, 2009, p. 40). Bruneau ressaltou a dimensão

técnica que existe nas imagens e que deve ser levada em consideração na análise dos

arqueólogos. A imagem se faz análoga a um referente, termo da linguística que o autor

empregou para designar aquilo que a imagem materializa através da técnica. Nas palavras do

autor:

Definida, a grosso modo, como imitante, a imagem é, por sua vez, necessária

à coisa imitada. É preciso um termo para designar genericamente aquilo que,

na imagem, a técnica usa como trajeto, o que ela tem por fim mostrar o

aspecto. A palavra modelo tornou-se uma concepção muito particularizada das

ciências humanas e, sobretudo, supõe que a imagem deva representar, sempre,

uma realidade previamente sensível, o que não é o caso. Acho mais cômodo o

termo referente, mas se fiz aqui esse empréstimo da linguística, não é devido

à atual mania de encontrar em tudo a semântica, nem por confusão induzida

da arte e da linguagem. É porque, precisamente nesse ponto, a imagem, que

serve para mostrar o universo das coisas, está para ele não numa relação

idêntica, mas análoga àquela da palavra, que serve ao dizer (BRUNEAU,

1986, p.256-257 apud ALDROVANDI, 2009, p. 41).

Ao postular a diferenciação entre imagem e referente, Bruneau também indicou a

existência de um tema e um esquema, que são categorias de análise do arqueólogo; os artesãos

da Antiguidade não diferenciaram nem distinguiram seu trabalho a partir dessa dicotomia.

Entende-se por tema o aspecto abstrato e ideal ligado ao referente, enquanto o esquema está

associado à ordenação material e à organização estrutural de linhas, traços e formas. Essa

distinção permite que a análise iconográfica leve em conta tanto a questão abstrata e subjetiva

da imagem – o significado das cenas em seu conjunto, o seu potencial narrativo – como também

as questões ligadas à materialidade e estilo, compreendendo o papel constitutivo que os suportes

possuem na materialização da imagem. No esquema a seguir, sintetizamos as ideias de Bruneau

e Bérard sobre imagem e análise iconográfica:

103

Figura 36. Resumo da teoria imagética de Bruneau e dos conceitos de Bérard

Baseado em Aldrovandi (2006; 2009) e Gregori (2013).

Esse conjunto de conceitos, juntos aos procedimentos de elaboração de um corpus,

assim como a descrição e recomposição das imagens, irão nos guiar na análise imagética,

articulando nossa interpretação de forma sistematizada. As unidades formais mínimas e os

sintagmas, compostos a partir delas, são os elementos constitutivos dos esquemas, meios pelos

quais a imagem faz analogia ao seu referente, ou seja, seu tema. O aspecto material é o suporte

dos aspectos abstratos ou mentais das imagens, que possuem um caráter sagrado devido ao

contexto em que se encontram e ao conteúdo que fazem referência. Esses relevos fizeram parte

de uma situação prática muito complexa, incapaz de ser reconstituída em sua plenitude pela

inevitável distância temporal em que nos encontramos deles: os rituais funerários, atividades

chave para a definição desse espaço. Nesse complexo contexto, elas certamente adquiriam

agência por presentificar os deuses e reencenarem os ritos de fúnebres associados ao morto.

Nossa hipótese é sustentada pela ideia de mescla de traços culturais, que são visíveis

tanto na questão material – na arquitetura e nos relevos religiosos – quanto na temática das

imagens. Elas envolvem majoritariamente elementos da religião egípcia, interagindo também

com elementos da cultura grega e romana. Ao investigarmos os indícios de emaranhamento

cultural por meio das formas arquitetônicas e dos relevos de cenas religiosas encontrados na

câmara principal de Kom el-Shoqafa, os aspectos simbólicos e físicos presentes nesse espaço

serão possíveis de serem identificados, classificados e interpretados a partir dos referenciais

teóricos e metodológicos propostos acima.

104

3.3 – ANÁLISE ICONOGRÁFICA DOS RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL DE

KOM EL-SHOQAFA

Ao fundo da antessala, como se observa na figura 23 (p. 74), relevos foram entalhados

no lado externo da parede de entrada da câmara mortuária. Em oposição/espelhamento, eles

trazem a figura de uma serpente entronizada, portando uma coroa dupla ou pschent24 e uma

barba postiça, além de um escudo com uma máscara de Medusa que paira na região superior da

parede. Associa-se essa serpente à figura mitológica do Agathos Daimon, personagem da

mitologia grega associada à Alexandria em seu mito de fundação.

Figura 37. Relevo escultórico da serpente Agathos Daimon

Lado direito da fachada externa da câmara mortuária. Fonte: GUIMIER-SORBETS, Anne-Marie; PELLE,

André; EL-DIN, Seif Mervat (2017, p. 141).

Daniel Ogden (2015) afirma que o mito está presente na obra Romance de Alexandre,

de autoria desconhecida e que data do início do período helenístico, apesar da cópia existente

datar de 300 d.C.. Nesse mito, Alexandre teve de ordernar a morte do monstro-serpente que

24 Coroa dupla, simbolizando a união do Baixo e Alto Egito.

105

impedia os construtores de trabalhar no que seria a futura cidade de Alexandria. Seguindo uma

tradição mitológica grega, a morte da criatura significava também a proteção ligada ao lugar

em que residia (OGDEN, 2015, p. 133). No contexto da tumba, o Agathos Daimon fornece

proteção ao espaço, afastando os maus agouros possíveis.

O culto à figura do Agathos Daimon foi incentivado já no reinado de Ptolomeu I,

indicando a possível data de escrita do mito citado acima. No mundo helênico, associava-se

Agathos Daimon à concepção de destino e boa sorte, ligado também à deusa grega Tyche, que

apresenta esses mesmos aspectos. No Egito, mais precisamente, em Alexandria, essas criaturas

divinas foram associadas à serpente Shai, deus que correspondia à ideia de destino. A partir daí,

na iconografia egípcia, o Agathos Daimon e Tyche vão ser apresentados também como

serpentes, estando a última muito associada à deusa Ísis na versão Ísis Agathé-Tyche

(GASPARRO, 2005, p. 70).

Esquematicamente, o relevo apresenta bastante volume e certa noção de movimento, se

aproximando mais das técnicas clássicas do que egípcias. O tema, por sua vez, é completamente

emaranhado. A serpente está coroada com a coroa pschent ou dupla, a qual identificamos como

um sintagma que traz às figuras um mais um toque da tradição egípcia, associando-o com a

ideia de realeza. Atrás da serpente encontram-se dois bastões adornados, identificados como

um tirso e caduceu, símbolos associados respectivamente ao deus Dioniso e Hermes. O escudo,

formado por um círculo maior plano e um menor convexo, traz a cabeça de Medusa ao centro,

num fundo de plumas disposto em quatro partes. Junto ao Agathos Daimon, esse escudo traz a

função apotropaica de espantar os maus espíritos e fornecer proteção ao local.

Pelo contexto onde se encontram, Venit (2015, p. 69) afirma que a presença do tirso

(dardo envolvido de um ramo de videira) indica o aspecto ctônico de Dioniso, associado aos

cultos de mistério. Por sua vez, o caduceu (bastão envolvido por duas serpentes) revela o

aspecto ctônico de Hermes, deus responsável por realizar a travessia dos mortos ao Hades.

Ressaltamos também a associação que foi feita do deus grego Dioniso com Osíris, havendo

mais referências disso na câmara mortuária, como veremos mais à frente. Jean Claude Grenier

(1977) observou, a partir de fontes textuais, iconográficas e esculturas, a associação de Hermes

com o deus egípcio Anúbis no início do período Ptolomaico. A associação se deu pelo aspecto

de guia que os deuses poderiam assumir para os mortos no além.

Esse relevo evidencia o processo de apropriação de diferentes tradições que resultaram

na criação de algo novo; o emaranhamento presente nessa iconografia é notável e único pela

106

mescla de elementos egípcios e clássicos. Tomando-os como sintagmas ligados ao mundo

funerário, o tirso e o caduceu retomam a tradição greco-romana que complementam a função e

o significado da figura que se apresenta de forma egipcianizada.

A fachada interna da parede de entrada da câmara mortuária abriga duas figuras do deus

egípcio Anúbis (fig. 28, p. 81), em versões bastante peculiares e originais, que reforçam nossa

assertiva sobre a interação cultural chegando aos níveis de emaranhamento. Associado ao

contexto funerário egípcio por excelência, o deus Anúbis estava ligado ao processo de

mumificação, protegia a tumba e guiava o morto ao tribunal de Osíris. Assim, sua figura foi

constantemente representada nas tumbas, sarcófagos e outros adereços funerários. Ao serem

posicionados na parede interna da entrada da tumba, os relevos de Anúbis assumem a função

de proteção desse espaço. Veremos que com o emprego de vestimentas de legionário romano,

esse aspecto de “guarda” ou protetor é ainda mais intensificado.

O relevo do lado esquerdo da parede de entrada (fig. 38, página seguinte) traz Anúbis

em uma forma completamente emaranhada: com cabeça de chacal, tronco e membros

superiores antropomórficos e membros inferiores em forma de serpente. O esquema do relevo

é majoritariamente frontal, junto ao outro Anúbis presente no lado direito. A cabeça é

representada de forma lateralizada, voltada para a porta de entrada da câmara. O braço direito

do deus é erguido enquanto segura uma lança; o braço esquerdo é representado frontalmente

segurando o tecido do manto que recobre seu peito. O tronco apresenta uma couraça, com

detalhes do umbigo e de musculatura. Um saiote curto dá lugar a uma longa cauda de serpente.

O tema é majoritariamente egípcio, por trazer a figura de Anúbis em sua posição de guarda da

tumba; o emaranhamento é notável na sua vestimenta de soldado e na sua metade anguípede,

provavelmente associada ao Agathos Daimon.

107

Figura 38. Anúbis soldado anguípede

.À esquerda, fotografia em preto e branco do relevo. Fonte: VENIT (2015, p. 71). À direita, desenho

arqueológico correspondente. Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena. 25

Com auxílio do desenho arqueológico, podemos identificar melhor os sintagmas

presentes no relevo. O deus Anúbis possui na cabeça uma coroa de chifres que se assemelha à

coroa de Osíris26. Um manto é disposto em seu ombro esquerdo e preso ao ombro direito. O

tronco é vestido com uma couraça, apresentando detalhes como umbigo e definição muscular.

Sua mão direita segura uma lança em posição de guarda, à altura de sua cabeça. Sua mão

esquerda segura o tecido do seu manto, à altura de sua cintura. Um curto saiote segmentado

cobre a região abaixo do abdômen, em que se segue uma longa cauda de serpente, apresentando

de detalhes das escamas e parte interna do corpo de cobra. O corpo de serpente se dispõe de

25 Disponível em: <https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262696>. Acesso em 28 abr. 2018.

26 Conhecida como coroa atef, geralmente ladeada por plumas e com chifres de carneiro.

108

ambos os lados. A figura da divindade está apoiada em um bloco que se assemelha a um banco

ou altar, de base retangular e topo proeminente.

Como vimos anteriormente com a figura de Agathos Daimon, divindades egípcias

poderiam se apresentar na forma de serpentes, como as deusas Ísis e Néftis, ou foram

concebidas originalmente assim, como no caso de Apófis (serpente associada ao caos) e Wadjet

(divindade da região do Delta e símbolo do Baixo Egito). Para Grenier (1977, p. 38-39), a

associação de Anúbis com roupa de soldado romano e membros inferiores de serpente é

bastante singular, até aqui apenas observada na câmara funerária de Kom el-Shoqafa.

Figura 39. Anúbis soldado/legionário

. À esquerda, fotografia em preto e branco do relevo. Fonte: VENIT (2015. p. 70). À direita, desenho

arqueológico correspondente. Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena27.

27 Disponível em: <https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263245>. Acesso em 28 abr. 2018.

109

Ao lado direito da parede interna está o relevo que retrata a figura do deus Anúbis com

cabeça de chacal e corpo antropomórfico, apresentando vestes de um soldado romano. Assim

como o relevo da esquerda, o esquema de representação é majoritariamente frontal, restando

apenas a cabeça de forma lateralizada. A ideia de protetor das tumbas fez com que se associasse

a figura de soldado e guerreiro a Anúbis. Segundo Grenier (1977, p. 39) essa representação é

bastante comum no período romano, sobretudo em estatuetas (fig. 40).

Figura 40.Anúbis anguípede (a) e Anúbis soldado (b)

O emaranhamento presente nas representações de Anúbis. Proveniência desconhecida, Período Romano. Fonte:

GRENIER (1977, Pr. XIV).

Na figura 39, a cabeça de chacal apresenta um toucado e é voltada para a porta de entrada

da câmara; sua mão esquerda está erguida enquanto segura uma lança. Seu tronco apresenta

uma couraça, que termina em um curto saiote segmentado. Seu braço direito está abaixado. Os

sintagmas presentes na cabeça do deus são essencialmente egípcios: um disco lunar (Anúbis

apresenta um aspecto lunar ao invés do solar) disposto ao topo e um adereço que se assemelha

ao toucado real ou nemés. Os ombros e o tronco são revestidos com uma armadura; segmentos

cobrem os ombros e detalhes abdominais (músculos e umbigo) cobrem o resto do tronco. Um

saiote segmentado cobre sua região genital junto a um calção curto. Não é possível dizer se ele

utiliza algum tipo de calçado. Anúbis segura um escudo em sua mão direita, representado de

110

forma lateral, enquanto na mão esquerda ele segura uma lança, à altura de sua cabeça. Um cinto

preso ao lado esquerdo de seu tronco guarda uma bainha com uma espada, voltada para as

costas da divindade. Os pés são representados frontalmente. Assim como na figura anterior, a

divindade está apoiada em um banco ou altar, de base retangular e topo mais proeminente. O

tema se apresenta essencialmente egípcio, por trazer a figura de Anúbis como protetor,

enquanto o esquema emaranha elementos romanos nas vestimentas e na técnica de

representação frontal.

Localizado ao fundo da câmara mortuária (como é possível ver na fig. 29, p. 81), o nicho

central tem formato retangular cavado na rocha. Ele apresenta elementos em sua fachada que

são semelhantes aos que são encontrados na antessala: o frontão arqueado com um disco solar

envolto pelas serpentes uraei, seguidos de um friso entalhado com círculos encadeados,

motivos decorativos gregos denominados de egg-and-dart ou egg-and-tongue28 (GUIMIER-

SORBETS; PELLE; SEIF EL-DIN, 2017, p. 49). As pilastras do nicho são entalhadas de forma

que simulem colunas, com entalhe nos capitéis e nas bases, principalmente de flor de lótus,

folhas e ramos de papiro.

Figura 41. Cena da mumificação no nicho central

Fonte: GUIMIER-SORBETS, Anne-Marie; PELLE, André; EL-DIN, Seif Mervat (2017, p. 48)

28 “Ovo e dardo” ou “ovo e língua”, em tradução livre, é um padrão decorativo da arquitetura greco-romana,

composto de círculos encadeados e entremeados por dardos ou pequenas flechas. Os círculos ovais podem conter

um contorno baixo, dando a aparência de uma língua.

111

O teto do nicho é abobadado, seguindo o padrão de frontão arqueado nas paredes

internas laterais. Esse padrão arquitetônico, denominado de arcosolium, é repetido nos dois

outros nichos, dispostos ao lado esquerdo e direito. Na figura 41, é possível observar de mais

perto o relevo da cena, bem como o formato do nicho em arcosolium e o friso entalhado de ovo

e dardo.

O nicho central traz ao fundo a cena mais reproduzida no contexto funerário do Período

Ptolomaico e Romano (VENIT, 2002;2015), sendo encontrado em outras tumbas, sarcófagos,

cartonagem de múmias e máscaras funerárias de Alexandria e da chôra, denominação para o

restante do território egípcio nas épocas citadas acima. A preparação da múmia pelo deus

Anúbis, acompanhado de divindades como Ísis e Néftis, aparece de forma original e singular

no nicho principal, onde os deuses Hórus e Tot acompanham Anúbis no ritual com a múmia.

Figura 42. Detalhe do sarcófago com a cena da mumificação

Hawara, 100 d.C. Fonte: SEIDEL; SCHULZ (2006, p. 246).

A provável inspiração para essa cena advém do feitiço/capítulo 151 do Livro dos

Mortos, em que são descritos os equipamentos envolvidos no processo de embalsamamento do

corpo, além de trazer dizeres de proteção ao morto pelas deusas Ísis e Néftis e pelos quatro

filhos de Hórus. Segundo Matias, (2016, p.79) a associação do morto com a figura de Osíris

também se dá por meio desse capítulo. Um ritual de proteção mágica para a tumba é descrito

no texto, envolvendo o uso de quatro tijolos de argila não cozidos, posicionados nos pontos

cardeais e contendo fórmulas mágicas e símbolos. Esse ritual de proteção é documentado em

112

papiros e em evidência arqueológica que datam desde o início da XVIII Dinastia, no Novo

Império (RÉGEN, 2017, p. 101).

A vinheta do capítulo 151 traz em um registro Anúbis voltado para a múmia, deitada

em um leito em forma de leão. Um pilar djed, símbolo associado a Osíris, é colocado próximo

à cena. Eles são rodeados pelas deusas Ísis e Néftis; no registro abaixo, Anúbis na forma de

chacal protege a tumba, representada em branco. Nos demais registros, os quatro filhos de

Hórus e o deus Tot (em sua forma de babuíno) concedem proteção ao morto.

Figura 43. Vinheta do feitiço 151 do Livro dos Mortos

Encantamento 151 do Livro dos Mortos do Papiro de Nakht, XIX Dinastia, Novo Império. Fonte: Acervo Online

do Museu Britânico.29

A inovação e originalidade da cena de mumificação do nicho central nos evidencia o

potencial criativo e de agência dos artesãos envolvidos na decoração da tumba. A partir da

análise do desenho arqueológico a seguir, conseguiremos identificar os sintagmas que

compõem a cena, buscando compreender as possíveis interpretações da religião egípcia que

foram materializadas nesse relevo. Ele também apresenta características emaranhadas, como

veremos na análise.

29 Disponível em:

<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.a

spx?assetId=704823001&objectId=113284&partId=1>. Acesso em 20 jul. 2018.

113

Esquematicamente, o relevo segue o sistema de representação egípcia, estando todas as

figuras retratadas de forma aspectiva30. É visível, entretanto, que o relevo não apresenta rigor

na proporção do corpo, havendo certa deformidade nos membros superiores e principalmente

nos inferiores. No geral, as figuras vistas nesse relevo e nos demais presentes na tumba possuem

mais volume no corpo e em especial na região da face. O tema do relevo também apresenta

características majoritariamente egípcias, contando com interpretações e releituras da época

romana.

Figura 44.Desenho arqueológico da cena de mumificação

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena. 31

À esquerda, uma figura com corpo antropomórfico e cabeça de falcão está virada à

direita, se direcionando ao centro. Pela associação dos atributos do cabeça (coroa dupla e cabeça

de falcão), deduz-se que se trata do deus Hórus. Ele apresenta a coroa pschent, usando um

toucado real nemés e um colar usekh32, sintagmas associados à realeza egípcia. Suas vestes são

de tecido plissado, com um uma parte superior que cobre o tronco e um saiote que se estende

30 Criado em 1963 por Emma Brunner-Traut, editora da clássica obra de Heinrich Schäfer de 1919, Principles of

Egyptian Art. No epílogo da obra, Brunner-Traut propõe o conceito, que reúne os princípios de bidimensionalidade

e lateralização nos corpos representados nessa arte (VERBOVSEK, 2012, p. 146). 31 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263314>. Acesso em 26 abr. 2018. 32 Colar formado por contas que cobrem o peito e ombros, usado por deuses e pelos mortos.

114

até acima do joelho. Suas pernas entreabertas indicam movimento. Sua mão direita segura o

cetro was33 e sua mão esquerda traz um pequeno vaso com um ramo brotando, traço que indica

uma originalidade própria desse relevo.

Acredita-se que esse vaso com o ramo esteja associado à ideia de fertilidade e

ressurreição, atributos ligados à figura de Osíris, principal divindade da religião funerária.

Susan Venit (2002, p. 137) afirma que o vaso com ramo pode também ter relação com o mito

de Adônis, personagem da mitologia grega associado ao ciclo da vegetação e que também

aparecia ligado ao mundo funerário. Considerando como pertinente essa relação com o mito

grego, observamos aqui a interação entre as culturas egípcia e grega em torno da mesma ideia

de ciclo, fertilidade, morte e ressurreição, que culmina nessa iconografia emaranhada.

Ao centro, outra figura de corpo antropomórfico, mas cabeça de chacal, possui um disco

solar envolto pelas serpentes uraeus. A cabeça nos indica que se trata do deus Anúbis, divindade

ligada ao processo de mumificação e ao mundo dos mortos. Ele utiliza um toucado real e possui

uma veste longa, semelhante à uma túnica com detalhes plissados e um manto que recai em seu

ombro esquerdo. Enquanto sua mão direita repousa sobre a múmia, sua mão esquerda levanta

um vaso adornado com duas serpentes. À direita está a terceira figura antropomórfica, com

cabeça de íbis, indicando que se trata do deus Tot. Ele está voltado à esquerda, direcionado ao

centro da figura. Possui uma coroa composta em sua cabeça, assim como o toucado real nemés.

Assim como Hórus, Tot usa o colar usekh. Suas vestes também são similares com às do deus

Hórus, mas apresenta uma diferenciação no tecido da parte superior. Ele segura o cetro was e

um ankh34 na mão esquerda; a mão direita ergue um vaso sem decoração. Suas pernas

entreabertas também indicam movimento.

Ao centro, uma figura mumiforme está repousando em um leito que possui cabeça e

pernas de leão. A cauda é alongada e está voltada para cima. A cabeça é adornada com uma

coroa atef e uma vasta juba, que se pronuncia até a metade da pata dianteira, que está segurando

uma pena, símbolo da deusa Maat. O focinho do animal traz detalhes de olho, nariz e boca.

Retângulos com circunferências ao centro decoram a parte central do leito. A múmia apresenta

adornos na parte da cabeça, provavelmente com uma máscara e uma peruca, além de uma tiara

33 Cetro que possui o topo em formato de cabeça de animal, geralmente um canídeo. Associado às divindades

masculinas, simbolizava poder, estabilidade e domínio. 34 Hieróglifo que significa “vida”, tomado como amuleto ou motivo decorativo, comum nos ambientes

funerários.

115

com a cabeça de abutre. É possível notar a presença de uma barba khebesut, associada a Osíris

e indicativo do mundo dos mortos. Ela apresenta ainda faixas de adornos até a altura do peito.

Mais uma vez identificamos uma inovação iconográfica nesse relevo: apenas três dos

quatro jarros canopos estão presentes na cena. Duamutef, com a cabeça de chacal, Imsety, com

a cabeça humana, e Qebehsenuef, com a cabeça de falcão. Respectivamente, os jarros

continham o estômago, o fígado e os intestinos. O vaso que está faltando corresponde ao deus

Hapy, e que guardava os pulmões. Como afirmou Christina Riggs (2008, p. 345), a

mumificação no Período Romano no Egito contava com uma variedade de técnicas e

qualidades, sendo muitas delas bem preservadas mesmo sem passarem pelo processo de

evisceração. A presença dos vasos canopos nas cenas poderia, portanto, estar relacionada ao

valor simbólico de proteção associada aos filhos de Hórus, como vimos na referência ao feitiço

151 do Livro dos Mortos, sem necessariamente indicar o processo de retirada das vísceras.

Susan Venit (2015, p. 72) afirma que, apesar da recorrência das cenas de mumificação

nas tumbas alexandrinas, poucas múmias foram encontradas nas necrópoles de Alexandria no

período ptolomaico e romano, em contraste com a larga quantidade de múmias no território da

chôra. Também não restaram evidências de mumificação no sítio arqueológico de Kom el-

Shoqafa. A autora interpreta, apoiada em uma visão mais helenizante, de que as cenas de

mumificação exerciam poder simbólico no contexto funerário e complementam as concepções

de ressureição, sem necessariamente indicar a prática funerária egípcia de fato.

Apesar de considerarmos a colocação pertinente, buscamos entendê-la de forma

significativa no contexto dessa tumba, enxergando a interação cultural entre a tradição egípcia

e grega, que emaranhou narrativas e concepções sobre a morte e a vida no além. Visto a forte

integração de símbolos e de narrativas egípcias no programa decorativo da tumba, podemos

considerar possível a prática de mumificação em relação aos mortos que foram ali depositados,

mesmo que essas evidências não estejam mais disponíveis. Pensando na questão espacial

desenvolvida no capítulo anterior, a cena da mumificação é um exemplo de prática ritualística,

condição essencial para a sacralização e diferenciação do espaço funerário. Os demais relevos

encontrados nos nichos trazem também cenas ritualísticas, reiterando a importância desse tipo

de atividade praticada no contexto funerário.

Os nichos da câmara mortuária apresentam decoração em suas paredes laterais internas,

que apresentam largura igual a dos sarcófagos dispostos ali. Essas cenas apresentam temas

majoritariamente egípcios, ligado ao culto de Ísis e à religião funerária egípcia.

116

Esquematicamente, os relevos seguem o padrão iconográfico já comentado por nós

anteriormente: representação aspectiva, corpos com membros superiores e inferiores levemente

distorcidos na proporção, rostos e corpos volumosos. Esse padrão é aplicado em todo o restante

da câmara mortuária.

Figura 45. Nicho central – Parede direita

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena.35

A cena é composta por duas figuras antropomórficas e um pequeno altar ao centro. A

figura da esquerda possui o rosto masculino e duas grandes penas presas à cabeça em uma

pequena faixa. Suas vestes são longas, com sobreposição de tecidos e uma pele de pantera presa

ao seu tronco. Essa pele junto às plumas em sua cabeça constituem sintagmas que indicam um

cargo sacerdotal importante, denominado de Pterophoros – “aquele que veste plumas” -

(VENIT, 2002, p. 138). Sua mão direita possui um ramo de flor de lótus, enquanto a mão

esquerda ergue uma bandeja com um vaso semelhante à uma ânfora. A figura da direita possui

um disco solar ao topo de sua cabeça, uma peruca de camadas e vestes mais simples,em forma

de túnica ou vestido. O rosto é feminino. Os braços e as mãos estão erguidos em um gesto de

lamentação. Ao canto superior direito, inscrições ilegíveis são colocadas em um retângulo. O

altar no centro segue o formato dos altares das demais cenas, com base e topo circulares e corpo

35 Disponível em:< https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263417>. Acesso em 20 jan. 2018.

117

afunilado, decorado com linhas e traços geométricos. Flores se dispõem ao lado do altar e em

cima das oferendas; frutos ou pães são colocados acima.

Levantamos a hipótese de que os pequenos altares (em especial os que estão nos relevos

das paredes centrais do nicho esquerdo e direito) tiveram em seu formato a inspiração no pilar

djed, símbolo hieroglífico e amuleto associado à coluna vertebral do deus Osíris, estando ligado

à ideia de estabilidade e regeneração. De acordo com Richard Wilkinson (2011, p. 165), esse

símbolo é conhecido desde o Antigo Império, quando fora associado ao deus Ptah, mas que a

partir do Novo Império passou a ser atribuído ao deus Osíris. Ele tanto aparece no contexto

funerário quanto no templário, sendo também um símbolo ligado à realeza. Erguer o pilar djed

tinha o simbolismo de vitória de Osíris sobre Seth, ato praticado pelos faraós.

Figura 46. Hieróglifo Mehyt/moita de papiro e pilar djed.

Fonte: WILKINSON, R. 2011, p.123-165.

Também consideramos pertinente comparar a disposição das flores ao hieróglifo mehty,

ou como denominou Richard Wilkinson (2011, p. 123), moita de papiros (papyrus clump).

Associado à região do Delta e do Baixo Egito, a planta papiro (Cyperus papyrus) quando

utilizada como amuleto tinha um sentido conotativo de vida ligado ao ciclo da vegetação, à

juventude e ao florescimento. Esse motivo iconográfico aparecerá nos demais altares das paredes

centrais e laterais dos nichos da direita e da esquerda, e seu uso pode servir como complemento

aos atributos de Osíris ligados ao ciclo da vida e à ressurreição. Se essas hipóteses forem tomadas

como corretas, presumimos que os artesãos envolvidos na decoração da tumba conheciam um

grande repertório iconográfico egípcio, assim como os proprietários.

118

A parede esquerda traz uma cena composta por duas figuras antropomórficas, com um

pequeno altar ao centro. Inscrições ilegíveis são colocadas no canto superior esquerdo. A figura

da esquerda possui um disco solar ao topo da cabeça, cabelos envoltos em uma espécie de touca

e o tronco desnudo. Um tecido compõe uma saia longa, que se estende até a altura dos

tornozelos. O rosto possui traços masculinos. O braço direito, demasiadamente longo, segura

um objeto difícil de ser identificado, mas que se assemelha a um tecido dobrado. A mão

esquerda é erguida na altura do rosto, em um gesto de lamentação.

Figura 47. Nicho central – Parede esquerda

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena 36.

O altar do centro segue o padrão dos demais altares, base e topo circulares e corpo

afunilado. Um vaso cilíndrico com decoração de lótus abriga um pequeno ramo ou raíz

(podendo ser também fumaça ou vapor que dali emana). À direita, a figura dispõe de vestes

compostas, com tecido bastante decorado com linhas e pontos, além de uma pele de pantera

presa ao seu tronco. Seu rosto é masculino e o cabelo parece estar envolto em uma touca. Seus

braços erguem um papiro, em posição de recitação de fórmulas mágicas. Pela composição dos

sintagmas envolvidos (vestimenta, pele de leopardo e leitura), presume-se que seja um

sacerdote. Pensando na questão ritualística que é retratada, a cena traz um momento de leitura

36 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262962>. Acesso em 26 jan. 2018.

119

feita pelo sacerdote, direcionada ao indivíduo à esquerda, que apresenta postura de

concentração diante das palavras.

Ao pensarmos no contexto em que essas cenas estão gravadas – o nicho central, que

abriga a cena da mumificaçao – podemos fazer algumas inferências sobre os personagens

representados, tomando como base as interpretações mais recentes feitas por Susan Venit (2015,

p. 77). De acordo com a autora, o homem e a mulher representados nesses relevos podem estar

associados aos proprietários da tumba, devido à semelhança dos traços do rosto e cabelo com

outras cenas ali presentes (nicho esquerdo e nicho direito) em que um homem e uma mulher

estão mumificados. O disco solar presente nessas representações indicaria uma assimilação

desses indivíduos a um plano do além, associando-se com o aspecto de vida no além de Rê-

Osíris. A ausência de inscrições com nomes ou outro tipo de identificação compromete o

levantamento de uma hipótese mais sólida, no entanto.

O nicho esquerdo e direito possuem o relevo central espelhados, como já observamos

na figura 32 (p. 84). Com o desenho arqueológico seguinte (figura 48), conseguimos identificar

mais detalhes acerca dos componentes da cena.

Figura 48. Nicho esquerdo – Parede central

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena37.

37 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262964>. Acesso em 20 jan. 2018.

120

À esquerda, a deusa está coroada com um disco solar e usa uma tiara com uraeus na

cabeça, com cabelos até a altura do ombro. Seu corpo está lateralizado, como as demais figuras

da cena. Ela olha para o centro, onde está o touro. Seus braços estão abertos para frente,

exibindo longas asas, com detalhes das penas bastante destacados. Os dedos da mão esquerda

aparecem detalhados. Ela segura na sua mão esquerda uma pena da deusa Maat, podendo assim

entendermos que se trata da deusa Ísis-Maat. Sua veste deixa um dos seios à mostra, se estende

até os tornozelos e é decorada com linhas, figuras geométricas e círculos. Seus pés estão

descalços e lateralizados, com detalhes nos dedos do pé direito.

O touro possui um disco entre os chifres, provavelmente sendo o disco lunar devido ao

seu aspecto aqui fazer referência a Osíris e Serápis. Ele possui um colar com formato de templo,

pendurado no pescoço. Detalhes como focinho, orelhas, olhos e boca são observados. Ele

possui uma lua crescente em seu dorso e está apoiado em um pequeno altar com detalhes

dentilhados. Amuletos estão pendurados acima do touro. Um pequeno altar de base e topo

circulares, com detalhes dentilhados, é decorado com rosas, havendo as possíveis conexões com

os hieróglifos mencionados anteriormente. À direita, um homem coroado com a coroa dupla

(pschent) e vestido com roupa egípcia está fazendo uma oferenda ao touro sagrado. Sua roupa

traz detalhes diferenciados na parte superior e inferior, com círculos e linhas. Seus braços estão

erguidos, com detalhes para os dedos da mão direita. A oferenda dada por ele se assemelha ao

colar usekh. Suas pernas abertas indicam movimento. Os pés possuem detalhes no tornozelo e

de dedos.

É pertinente observar que a cena desse relevo pode ter sido inspirada na composição de

estelas que datam desde o início do período ptolomaico, sendo também encontradas durante o

período romano. Os exemplos a seguir trazem estelas dividas em três registros, no centro

havendo a oferenda a um touro sagrado feita por um homem com trajes de realeza. Não cabe

aqui fazer a análise completa de todos os elementos dessas estelas, visto que nosso prinicipal

objetivo é a comparação imagética do registro central.

O touro sagrado das estelas, entretanto, trata-se de Buchis, divindade cultuada na região

tebana, associado ao seu aspecto de força (ligado também ao deus Montu) e de cura. Na primeira

estela, trata-se de Ptolomeu II (281-246 a.C.) fazendo oferendas ao touro, adornado com uma

coroa dupla de plumas. Um pequeno altar é colocado entre os dois, e um disco solar (ou Rê-

Horakhty) com asas aparece à esquerda na cena, em um gesto similar ao de Ísis-Maat no relevo

121

da tumba que estudamos. A datação precisa e o contexto de achado não são informados pelo

Museu Britânico.

Figura 49. Estela de Ptolomeu II e de Diocleciano

Figura 50. Estela de Ptolomeu II fazendo oferendas ao touro Buchis (à esquerda); Estela de Diocleciano fazendo

oferendas à Buchis (à direita). Fonte: Acervo online do Museu Britânico38.

Caso essa inspiração tenha realmente acontecido, é pertinente afirmarmos que os

atributos de realeza foram empregados efetivamente no programa decorativo dessa tumba.

Mais ainda, isso pode ser visto como um reforço às hipóteses de que a figura masculina com

trajes faraônicos se trata de um imperador, provavelmente Vespasiano (69-79 d.C.), visto que

a datação mais aceita da construção dessa tumba coincide com o seu governo. Como afirmamos

anteriormente, a aclamação desse imperador aconteceu em Alexandria, o que poderia

corroborar com essa linha de interpretação39. Observa-se que os imperadores também foram

representados como faraós nos templos egípcios, seguindo o padrão tradicional da arte egípcia,

38 À esquerda disponível em:

<https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.

aspx?partid=1&assetid=969666001&objectid=123652>. Acesso em 20 fev. 2019.

À direita disponível em:

<https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_gallery.

aspx?assetId=439770001&objectId=123810&partId=1 >. Acesso em 20 fev. 2019. 39 Ao mesmo tempo, as desavenças de Vespasiano com os alexandrinos, comentadas brevemente no capítulo 1

(p. 6) podem ir de encontro com a ideia de homenagem ao imperador nesse relevo.

122

havendo o emprego dos símbolos de realeza faraônica à figura do imperador. O uso de símbolos

reais em tumbas privadas foi comum no período faraônico, em especial quando o poder do faraó

estava descentralizado. Nesse sentido, podemos conjecturar que a figura masculina com trajes

faraônicos pode também ser uma representação do proprietário da tumba, que investiu em si

próprio os símbolos reais. A ausência de inscrições com nomes ou datas nos impede de

afirmarmos com mais precisão. De qualquer forma, a apropriação da simbologia real em tumbas

privadas é também atestada nas tumbas do período ptolomaico e romano, como é possível

observar nos relevos de Kom el-Shoqafa.

Figura 50. Nicho esquerdo - Parede direita

À direita: GUIMIER-SORBETS, Anne-Marie; PELLE, André; EL-DIN, Seif Mervat. (2017, p. 112). À

esquerda: Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena.40

Na figura 50, a cena é espelhada ao relevo da parede esquerda do nicho direito (figura

53, p.126), composta por uma figura mumiforme, um altar ao centro e uma figura

antropomórfica à direita. A figura mumiforme possui um disco solar ao topo de sua cabeça,

rosto masculino e uma barba postiça curvada (khebesut), sendo possível afirmarmos, a

princípio, que se trata da figura do deus Osíris. Seu corpo é envolto por bandagens transversais

e decoradas, com desenhos de lua crescentes, círculos e figuras antropomórficas. Seus pés estão

lateralizados e se assemelham aos pés de um sarcófago. Seus braços estão cruzados à altura do

peito, por dentro das bandagens. O altar possui base e topo circulares, com decofrações

40 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263639>. Acesso em 20 jan. 2018.

123

geométricas e de flor de lótus. Um cesto é colocado acima, com alguns frutos. Ramos ou caules

estão dispostos ao lado do altar.

O homem à direita usa uma coroa composta com chifres e plumas, provavelmente se

tratando da coroa hem-hem41. Ele possui um toucado nemés, o torso desnudo e um saiote

plissado no estilo egípcio. Seu braço direito é estendido ao deus Osíris, trazendo a pena de Maat

como oferenda. Seu braço esquerdo é abaixado junto ao corpo. Sua perna esquerda é levemente

mais grossa que a perna direita. Elas estão abertas, indicando movimento. Acredita-se que seja

a figura do imperador, devido aos seus atributos de realeza faraônica, correspondentes aos

sintagmas da coroa hem-hem, saiote e toucoado nemés. Isso pode indicar o caráter faraônico

que o Imperador assumia para os proprietários da tumba, estando associado ao exercício da

justiça – indicado pelo ato de conceder a pena de Maat – até mesmo no âmbito funerário.

Figura 51. Nicho esquerdo – Parede esquerda

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena42.

No relevo acima (figura 51), a cena é composta por uma figura feminina mumiforme à

esquerda, um pequeno altar ao centro e uma figura mumiforme à direita, com cabeça de falcão

e coroa dupla. À figura da esquerda possui um disco solar ao topo de sua cabeça, que dispõe de

cabelos ou uma peruca em camadas até à altura abaixo dos ombros.

41 Coroa composta de três coroas-atef, adorno atribuído à Osíris. Na coroa hem-hem, observa-se ainda chifres de

carneiro. Era utilizada pelo faraó morto. 42 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262720>. Acesso em 20 jan. 2018.

124

O corpo à esquerda é lateralizado e envolto de um tecido ou faixas, com detalhes

decorativos nos ombros. Uma parte do tecido recai frontalmente, evidenciando também

elementos decorativos. Os braços estão envoltos pelo tecido, mas as mãos são visíveis para fora

segurando uma haste. Detalhes dos dedos da mão esquerda são visíveis. Pela similaridade da

peruca dessa figura com a que está presente no relevo na parede direita do nicho central (fig.

45, p. 115), Susan Venit (2015, p. 77) acredita que se trate da representação da proprietária da

tumba.O altar ao centro possui a base e o topo circular, com detalhes de linhas no corpo

afunilado. Ao topo está um vaso com decoração de lótus e dois frutos ao lado.

A figura da direita possui o corpo lateralizado envolto com tecido ou faixas, assim como

a sua oposta. A cabeça de falcão junto ao corpo mumiforme pode indicar que se trate da

divindade Qebehsenuef, filho de Hórus e representado em um dos vasos canopos. Ele está

associado ao ponto cardeal do oeste, correspondendo ao lado onde foi representado no nicho.

A divindade possui os braços erguidos para frente, segurando uma haste igual à sua figura

oposta. Os detalhes dos dedos da mão direita são visíveis. A presença dessa divinidade diante

de uma múmia deve ter raízes na concepção de proteção que ele exerceria ao morto.

O relevo a seguir (figura 52) traz a cena de duas figuras mumiformes voltadas para si,

entremeadas por um altar.

Figura 52. Nicho direito – Parede direita

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena43.

43 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:263207>. Acesso em 20 jan. 2018

125

A figura da esquerda traz um disco solar ao topo de sua cabeça, corpo lateralizado

envolto por um tecido ou faixa, com detalhes de decoração à direita na parte do tecido que recai

frontalmente. O rosto é representado também de forma lateral e traz traços masculinos, com um

leve sorriso. Dois cordões com amuletos envolvem o corpo, que se finaliza com pés também

lateralizados e que se assemelham aos sarcófagos verticais. As mãos da figura mumiforme

seguram juntas uma haste da altura de todo o corpo. Ao centro, um altar de base e topo circulares

e corpo afunilado traz um vaso com decoração de flor de lótus e uma pequena planta. Acima,

um relevo de bordas retangulares traz inscrições ilegíveis.

À direita está a figura mumiforme com cabeça de babuíno. Pela atribuição do corpo

mumiforme e da cabeça de babuíno, interpreta-se que seja o deus Hapy, filho de Hórus. Essa

divindade estava ligada ao ponto cardeal norte, não havendo aparentemente relação com a

posição que ocupa no nicho. A cabeça do deus é coberta por um toucado nemés que se estende

até a altura do peito. Faixas de bandagem são observadas em seus ombros e braços. Uma parte

do tecido ou faixa que o envolve recai frontalmente, evidenciando o padrão decorativo. Assim

como a sua figura oposta, Hapy é representado completamente lateralizado. Ele também segura

uma haste da altura de seu corpo. Para Susan Venit (2002, p. 141-142), a figura mumiforme à

esquerda se trata do proprietário da tumba, tendo em vista que na cena da mumificação (figuras

41 e 44) o vaso canopo com Imsety não é incluído. Segundo a autora, dificilmente o artesão

responsável pelos relevos representaria Imsety em outro contexto.

No relevo abaixo (figura 53), a cena apresenta características de espelhamento com a

cena da parede direita do nicho esquerdo (figura 50, p. 122). Cena com uma figura

antropomórfica à esquerda, um altar ao centro e uma figura mumiforme à direita. O homem

possui um disco solar envolto por um uraeus, usa um toucado nemés e apenas um saiote egípcio,

deixando o torso desnudo. Sua mão direita segura um objeto circular, abaixada ao seu quadril,

enquanto a mão esquerda oferece uma pena à divindade. Suas pernas estão abertas, o que pode

indicar a ideia de movimento. Pelos seus atributos, interpreta-se que é a figura do imperador.

Ao centro, um altar de base e topo circular com corpo afunilado é decorado com flores nos

lados e possui desenhos ondulados, que se assemelham ao hieróglifo mehyt, já mencionado por

nós anteriormente. A base é ligeiramente maior que o topo, que possui uma faixa de quadrados

em alto e baixo-relevo. Um objeto similar a um vaso ou caixa está colocado em cima desse

altar, que parece exalar uma fumaça.

126

Figura 53. Nicho direito – Parede esquerda

Fonte: Acervo digital Phaidra, Universidade de Viena44.

A figura mumiforme da direita é ligeiramente menor que o homem; possui rosto

masculino e é coroado com um disco solar. O corpo envolto em bandagem é majoritariamente

frontalizado, com detalhes das mãos que se prendem a um cetro, segurado ao centro. A cabeça

e os pés estão lateralizados. A bandagem apresenta uma decoração de quadrados e linhas

horizontais, com alguns desenhos inscritos. Pelos atributos iconográficos (figura masculina em

posição mumiforme e segurando um bastão a sua frente) associa-se, a priori, tal figura com o

deus Ptah. Novamente, as interpretações recentes de Susan Venit (2015, p. 77) apontam na

direção de que essa figura mumiforme esteja associada ao proprietário da tumba. Levantamos

novamente nossa conjectura sobre o homem de trajes faraônicos estar associado ao proprietário

da tumba, o que levaria a figura mumiforme se tratar do deus Ptah. Mais uma vez, a ausência

de inscrições com nomes de divindades ou dos indivíduos ali representados nos impede de

afirmarmos de forma mais precisa ou definitiva, deixando abertas as possibilidades de

interpretação.

44 Disponível em:<https://phaidra.univie.ac.at/view/o:262460>. Acesso em 20 jan. 2018.

127

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Alexandria possui como uma de suas principais características o caráter cosmopolita,

atribuído desde os tempos da Antiguidade. A pólis nasceu em 331. a.C. em um contexto de

dominação macedônica no Egito, e estava inserida na dinâmica comercial, social e cultural do

Mediterrâneo. A tradição milenar dos tempos faraônicos foi um fator importante, associado e

apropriado à matriz helênica observada em Alexandria. Sua população refletia tal diversidade

cultural, havendo uma maioria de habitantes provenientes da Macedônia e Grécia, mas

contando com um contingente de nativos egípcios, judeus, persas, entre outros. Em contextos

como esse, de diversidade populacional e étnica, torna-se pertinente investigar os processos de

interação culturais, sobretudo no que diz respeito à religiosidade.

A interação do Egito com outras culturas não é exclusividade do período ptolomaico ou

romano. O Egito faraônico se mostrava aberto a divindades estrangeiras, sobretudo às oriundas

do Mediterrâneo oriental, como mencionamos no primeiro capítulo. A entrada de populações

de origem grega, no século VII a.C., fez com que o Egito também tivesse contato com o panteão

grego, e divindades fossem associadas umas às outras, mas sem haver fusão de panteões. A

monarquia ptolomaica se apropriou da religião egípcia para se firmar politicamente, sendo o

culto de Serápis difundido a partir de Alexandria para o restante do território, um bom exemplo

da interação entre os monarcas macedônicos e a religião faraônica. Ao longo desta pesquisa,

estivemos investigando sobre a interação cultural, mais especificamente, nas trocas e

apropriações ligadas à religião funerária, a partir da análise da arquitetura e iconografia de uma

tumba alexandrina, cuja datação se situa entre os séculos I e II d.C. Denominamos o processo

de apropriação e criação de uma arquitetura e iconografia original de emaranhamento, algo

fortemente presente na Tumba Principal de Kom el-Shoqafa.

Conforme foi visto no segundo capítulo, a dimensão histórica dos espaços possui grande

potencial no estudo das sociedades antigas. A compreensão do espaço funerário é capaz de

indicar as concepções religiosas e atividades ritualísticas praticadas por um grupo; sendo

também um campo fértil para se observar a interação cultural de diferentes tradições que

operam juntas diante do fenômeno da morte. A materialidade do espaço, isto é, a arquitetura, é

de extrema importância para que se alcance a esfera sagrada dos ambientes funerários. Os

elementos constituintes da arquitetura do espaço dão suporte à prática ritualística, ação

imprescindível para haver contato dos homens com a dimensão divina, necessidade comum

diante do fenômeno da morte.

128

Pensando no contexto de Alexandria, as tumbas escavadas na cidade se apresentam com

arquitetura e iconografia variáveis de acordo com a localidade e a temporalidade. No período

ptolomaico, a tradição helênica é a principal inspiração para tais espaços: as tumbas do século

III a.C, localizadas na parte oriental da cidade, possuem arquitetura proveniente da Macedônia

e da Grécia. Isso é observável no sítio de Moustafa Pasha, conforme foi verificado. Ao mesmo

tempo em que apresenta elementos majoritariamente greco-macedônicos, a tumba 1 de

Moustafa Pasha (figura 9, p. 61) também traz elementos egípcios, ao possuir esfinges egípcias

próximas às portas da fachada sul do complexo funerário. Essa evidência, que data da segunda

metade do século III a.C., nos indica que interação cultural entre a tradição greco-macedônica

e egípcia aparece de forma modesta e paulatina.

Somente a partir do século I a.C., conforme percebemos nos hipogeus localizados na

ilha de Faros (sítios arqueológicos de Ras el Tin e Anfushy, figuras 10, 11, 12 e 14, p. 62-65),

as evidências materiais do espaço funerário demonstram uma interação e apropriação mais

acentuada de elementos egípcios em meio à tradição greco-macedônica. A presença de tetos

abobadados é uma característica presente nas tumbas dessa ilha, denotando a influência da

arquitetura macedônica; nota-se a influência egípcia no uso de decoração quadriculada, que

simulava faiança, e a presença de naiskos (figura 15, p. 66), pequeno altar em formato de templo

egípcio. Consideramos que nessas tumbas, a interação já é mais avançada do que se

compararmos com Moustafa Pasha 1, por exemplo. Elas também indicam as inovações próprias

do contexto funerário de Alexandria, quando se atesta o uso de nichos arqueados cavados na

rocha, denominados de arcosolium. Para o período ptolomaico, essas estruturas estavam

associadas ao uso de kliné, elemento mobiliário difundido no mundo grego, utilizado em

contextos de banquetes e também em tumbas; no período romano houve a substituição do kliné

pelos sarcófagos entalhados na rocha, sem necessariamente possuírem a tampa removível.

Esse segundo caso é visto na tumba de Kom el-Shoqafa. A presença de triclínio,

estrutura arquitetônica composta de três bancos ou leitos dispostos como um “Π”, é

característica das tumbas alexandrinas do período romano. A organização espacial da câmara

funerária de Kom el-Shoqafa segue o modelo de triclínio, e o primeiro piso possui essa estrutura

escavada em rocha, onde provavelmente banquetes eram realizados. A rotunda, construção

circular que envolvia o poço, também dava direção e acesso ao segundo piso. Ambas as

estruturas se configuram como elementos fixos e comunicam informações ligadas ao uso desse

espaço. Ao pensarmos no triclínio e na realização de banquetes, a prática ritualística é também

algo inerente à essas atividades e pode ser inferida a partir dessa evidência material.

129

A antessala, já no segundo piso, conta com a presença de duas esculturas, fixadas em

nichos laterais. Identificamos tais esculturas como representações dos proprietários da tumba,

provavelmente pessoas da elite alexandrina, uma vez que as dimensões da tumba demandaram

uma grande quantidade de recursos. As esculturas se apresentam de forma emaranhada: a

cabeça traz características de retratos romanos, as vestes e a posição corporal são de traço

egípcio. Consideramos válida a premissa de que se tratam de esculturas ka, ligadas à tradição

egípcia; exerciam função de culto e homenagem aos mortos. Isso também é observado na

cultura greco-romana, ligado à memória social do morto. Assim, as esculturas exercem uma

dupla função, ligadas à tradição egípcia e greco-romana ao mesmo tempo. A arquitetura e

iconografia da antessala são de inspiração majoritariamente egípcia, assim como todo o

programa decorativo da câmara funerária. Os nichos em formato de arcosolium, seguidos dos

sarcófagos entalhados na rocha, são os elementos arquitetônicos de inspiração greco-romana

desse espaço. Eles são decorados pelos relevos entalhados com cenas egípcias associadas aos

rituais funerários e ao ciclo de Osíris. Interpretamos que a presença dessa iconografia são

elementos comunicativos da prática desse espaço, funcionando como importantes agentes na

sacralização desse ambiente.

A análise dos relevos da Tumba Principal foi o tema do terceiro capítulo. Tendo em

vista que trabalhamos com imagens, precedemos a análise com uma reflexão sobre esse material

de grande complexidade. Compreendemos que o termo imagem comporta uma variedade de

sentidos, que visam abranger as diferentes possibilidades nas quais esse fenômeno pode ser

apreendido. Para levar em conta a dinamicidade das imagens, as ideias de mídia, imagem e

corpo proposta por Hans Belting (2006, 2011) elucidam questões ligadas à natureza desse

objeto. As imagens acontecem entre o corpo e o meio através das mídias; são produzidas,

percebidas e transmitidas por meio desse diálogo entre os três elementos.

É preciso também ressaltar a função que as imagens exercem no espaço: sob influencia

do pensamento de Vernant (1996), concordamos com a premissa de que as imagens marcam o

paradoxo da presença da ausência. Elas marcam a ausência daquilo que é invisível, ao mesmo

tempo que lhes dão uma presença, ainda que simbólica. Trazendo tais ideias para o espaço

funerário, as imagens materializadas nos relevos da Tumba Principal possuem (dentre as suas

várias funções) o papel de presentificar os deuses envolvidos nos rituais funerários. Mais ainda,

essas imagens ganham agência em meio à própria ação empreendida nos rituais desempenhados

nesse espaço.

130

Para a metodologia, fizemos opção pela análise iconográfica. Seguimos os preceitos da

Arqueologia da Imagem, de inspiração em autores franceses especialistas em análise de

iconografia grega, como Claude Bérard (1983) e Phillipe Bruneau (1986, apud ALDROVANDI

2006; 2009). A iconografia é analisada em um processo de decomposição e recomposição, em

que os elementos que constituem o esquema (aspecto técnico e material da imagem) são

decompostos e recompostos para se chegar ao tema (conteúdo abstrato e imaterial ao qual a

imagem se refere). Por meio de descrições minusciosas e detalhadas, analisamos fotografias e

desenhos arqueológicos dos relevos.

A execução técnica dos relevos demonstra uma diferenciação do sistema de

representação egípcia tradicional: os corpos são mais curvilíneos e os relevos são mais

destacados da parede, havendo uma possível influência da técnica ligada aos relevos greco-

romanos. No entanto, a lateralização típica da arte egípcia se faz presente. Encontramos

exceções a essa tendência laterlizada nos relevos do deus Anúbis, nas figuras 38 e 39 (p. 106 e

p. 107, respectivamente) em que somente a cabeça é lateralizada. O esquema desses relevos,

portanto, apresenta características emaranhadas, assim como o tema, que traz a divindade com

corpo de serpente e vestida em trajes de um legionário romano. Essa composição é original e

evidencia o processo de apropriação e criação inerentes ao emaranhamento.

Outra cena de destaque é a da mumificação (figura 41, p. 110 e figura 44, p.113),

presente no nicho central. Essa cena tem um papel imprescindível para a sacralização e

diferenciaçao do espaço, visto que retrata o ritual que permitiria a vida no Além. Os

personagens envolvidos nas cenas estão diretamente ligados à concepção egípcia do ciclo da

morte e renascimento. Os demais relevos também trazem conteúdo ritualístico, como nas cenas

centrais dos nichos direito e esquerdo, que são espelhadas (figura 32, p. 85). A homenagem ao

touro Ápis feita pelo homem com trajes faraônicos, conforme podemos ver na figura 48 (p.

119), nos trouxe possibilidades de interpretação: esse relevo pode tanto fazer referência ao

Imperador (notadamente Vespasiano, segundo os autores especialistas), como pode ser uma

apropriação dos trajes faraônicos vestidos pelo proprietário da tumba. Consideramos ambas as

possibilidades como plausíveis.

Percebemos que os artesãos envolvidos no programa decorativo da tumba, assim como

os proprietários desse espaço, apresentavam um conhecimento significativo da religião egípcia,

entremeando elementos greco-romanos que também faziam parte do universo religioso de

Alexandria. Infelizmente, não há registros escritos nos relevos que possam identificar nomes

131

ou cargos atribuídos aos proprietários, assim como não há informações sobre os artesãos. Pela

localização da tumba ser próxima ao Serapeum, presumimos que a família a ser beneficiada

desse espaço estava envolvida nos cultos de Serápis, que se associavam fortemente ao culto de

Ísis. Pensando na religião funerária, o ciclo de Osíris tinha um peso essencial na crença na vida

após a morte; daí a simbologia egípcia ser tão presente nessa tumba. Em linhas gerais: a

religiosidade egípcia aparece de forma abrangente, indicando a presença da cultura egípcia em

uma cidade de matriz cultural greco-macedônica. Isso foi resultado de séculos de contato entre

alexandrinos (de cultura majoritariamente helênica e macedônica) e egípcios, iniciado no

período ptolomaico e que atinge altos níveis de apropriação, combinação e criação durante o

período romano, e que definimos nessa pesquisa como emaranhamento. O que o

emaranhamento pode significar? Uma aproximação forte à religiosidade egípcia por cidadãos

alexandrinos, que demarcavam seu status social grego devido aos privilégios diante da

administração romana. No espaço funerário, todavia, tais cidadãos estavam muito mais

próximos aos elementos egípcios, adotando para si os rituais e o culto às divindades egípcias.

A cena da mumificação indica a adoção do costume funerário tradicional do Egito.

Juntamente a isso, a arquitetura do local apresenta características romanas que

figuravam à época, como a disposição da tumba como um triclínio e o uso de nichos em formato

de arcosolium, contando com sarcófagos entalhados na rocha, que contavam com decoração de

elementos gregos (ramos de folhas, bucrânio e máscaras de sátiro e Medusa). Pensando na

datação da tumba, que varia entre o final do século I e início do século II d.C., torna-se

pertinente perceber a influência da arquitetura romana em Alexandria já se fazendo presente

nesse momento.

A escolha pelo repertório religioso e iconográfico egípcio pode ser um forte indício da

prática ritualística exercida na Tumba Principal também ser de natureza egípcia. É possível que,

no contexto de Alexandria, os rituais passassem por influências e trocas entre as tradições

egípcia e greco-macedônicas. A presença da cena da mumificação, todavia, indica uma

aproximação maior ao fator egípcio, no que diz respeito ao tratamento dado ao corpo do morto.

Como já mencionamos anteriormente, o uso de elementos egípcios no contexto funerário

provavelmente se deu pela perspectiva positiva de uma vida após a morte, característica

somente encontrada na tradição egípcia. Essa apropriação acontece no período ptolomaico, se

intensifica no século I a.C. e pode ser vista francamente no período romano. Em Alexandria,

com séculos de contato com a tradição religiosa faraônica, observamos os registros

emaranhados desse anseio pela continuidade da vida nos espaços dedicados aos mortos.

132

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. OBRAS CLÁSSICAS:

HERÓDOTO. Histórias. Livro II – Euterpe. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva.

São Paulo: Edipro, 2016.

2. BIBLIOGRAFIA

ABDELWAHED, Youssri Ezzat Hussei. Egyptian Cultural Identity in the Architecture of

Roman Egypt (30 BC – AD 325). Oxford: Archaeopress/Hollywell Press/Hollywell

Press/Hollywell Press, 2015.

ADRIANI, Achille. Repertorio d'arte dell'Egitto greco-romano. Palermo: Fondazione

"Ignazio Mormino" del Banco di Sicilia, 1961.

ALDROVANDI, Cibele Elisa Viegas. A Imagética Pretérita: perspectivas teóricas sobre a

Arqueologia da Imagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. USP, São Paulo, v.

19, p. 39-61, 2009.

ALDROVANDI, Cibele Elisa Viegas. As exéquias do Buda Sãkyamuni: morte, lamento e

transcendência na iconografia indiano-budista de Gandhara. 2006. Tese (Doutorado em

Arqueologia) - Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2006.

ALDROVANDI, Cibele Elisa Viegas; HIRATA, Elaine Farias Veloso; KORMIKIARI, Maria

Cristina Nicolau (org.). Estudos sobre o espaço na Antiguidade. São Paulo: EDUSP, 2011.

ASSMANN, Jan. Death and Salvation in Ancient Egypt. Nova York: Cornell University

Press, 2005.

BAHN, Paul; RENFREW, Colin. Archaeology: Theories, Methods and Practices. London:

Thames&Ludson LTD, 2012.

BAINES, John. Visual and written culture in ancient Egypt. Oxford: Oxford University

Press, 2007.

133

BARS, C. R. Semiótica aplicada à Arqueologia – um estudo de caso na área Andina. Revista

de História da Arte e Arqueologia, Unicamp, Campinas - SP, n.14, p.21-37, jul/dez. 2010.

BELL, Catherine. Ritual Theory, Ritual Practice. Nova York: Oxford University Press, 1992.

BELL, Catherine. Ritual: Perspectives and dimensons. Nova York: Oxford University Press,

1997.

BELTING, Hans. An Antropology of Images. New Jersey: Princetown University Press, 2011.

BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à Iconologia. Ghrebh: Revista

de Comunicação, Cultura e Teoria da Imagem, São Paulo, n. 08, p. 32-60, 2006.

BÉRARD, Claude. Iconographie, Iconologie, Iconologique. Études des lettres, Paris, n. 4, p.

05-37, 1993.

BIANCHI, Robert Steven; SAVVAPOULOS, Kyriakos. Alexandrian Sculpture in the

Graeco-Roman Museum. Alexandria: Bibliotheca Alexandrina, Graeco-Roman Museum

series, 2012.

BIGEN, Jean. Hellenistic Egypt: Monarchy, Society, Economy, Culture. Los Angeles:

University of California Press, 2007.

BOARDMAN, John; KURTZ, Donna C. Greek Burial Customs. London: Thames and

Hudson, 1971.

BOGDANOVIĆ, Jelena. The framing of sacred space. The canopy and byzantine church.

Oxford: Oxford University Press, 2017.

BOWMAN, Alan K. Egypt after the Pharaohs: 332 BC – AD 642. From Alexander to the

Arab Conquest. London: British Museum Press, 1996.

BRANCAGLION Jr., Antonio. Manual de Arte e Arqueologia Egípcia. Rio de Janeiro:

Sociedade dos Amigos do Museu Nacional, 2003. (Série Monografias, 5). CD-ROOM

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem, Bauru, SP: EDUSC, 2004.

BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 1993.

134

CAPONI, Livia. Roman Egypt. London: Bloomsbury Academic Publishing, 2011.

CAPPONI, Livia. Augustan Egypt: the creation of a Roman Province. Nova York:

Routledge, 2005.

CLIMACO, Joana Campos. A Alexandria dos antigos: entre a polêmica e o encantamento.

2013. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

CLÍMACO, Joana Campos. Cultura e Poder na Alexandria Romana. 2007. Dissertação

(Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

COLE, Susan Guettel. Finding Dionysus. In: OGDEN, Daniel (ed). A companion to Greek

Religion. Oxford, Willey Publishing, 2007. p. 327-342.

CUNHA, Liliane Pessoa. O sagrado na Roma imperial do século II d.C.: construção espacial

e ritualística do culto ísiaco na obra O Asno de Ouro. 2016. Dissertação (Mestrado em História)

– Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

Natal, 2016.

DUNAND, Françoise; ZIVIE-COCHE, Christiane. Gods and men in Egypt: 3000 BCE to 395

CE. Nova York: Cornell University Press, 2004.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ELSNER, Jás. Imperial Rome and Christian Triumph. Oxford: Oxford University Press.

1998.

EMPEREUR, Jean-Yves. Alexandria Rediscovered. Nova York: British Museum Press, 1997.

EMPEREUR, Jean-Yves. Les necrópoles d’Alexandrie. In: CHARRON, Alain (dir). La mort

n’est pas une fin. Pratiques funéraires en Égypte d’Alexandre à Cléopâtre. Musée de l’Arles

antique, 2003.

FABRICIO, Arthur Rodrigues. O complexo de culto real de Ramessés III: espaço e memória

na XX Dinastia do Antigo Egito. 2016. 661f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de

Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

135

FAULKNER, R. O. The Ancient Egyptian Book of the Dead. Austin: University of Texas

Press, 2006.

FEDAK, Janos. Monumental tombs of the Hellenistic Age. Toronto: University of Toronto

Press, 1990.

FEJFER, Jane. Roman Portraits in Context. Berlim: Walter de Gruyter Company, 2008.

FLORENZANO, Maria Beatriz Borba; HIRATA, Elaine Farias Veloso (org.). Estudos sobre

a cidade antiga. São Paulo: EDUSP, 2009.

FRANKFURTER, David. Religion in Roman Egypt: Assimilation and Resistance. Princeton:

Princeton University Press, 1998.

GASPARRO, Giulia Sfameni. The hellenistic face of Isis: Cosmic and Saviour Goddess. In:

BRICAULT, L.; VERSLUYS, M.J.; MEYBOOM, P.G.P. Nile into Tiber: Egypt in the

Roman World. Proceedings of the IIIrd International Conference of Isis studies, Faculty of

Archaeology, Leiden University, May 11-14 2005. Leiden: J. Brill Publishing, 2007. p. 41-72.

GIL FILHO, Sylvio Fausto. Espaço sagrado: estudos em geografia da religião. Curitiba:

Editora Intersaberes, 2012.

GREGORI, Alessandro Mortaio. Comunicação visual na antiguidade cristã: a construção de

um discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). 2014.

Dissertação (Mestrado em Arqueologia) - Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de

São Paulo, São Paulo, 2014.

GRENIER, Jean-Claude. Anubis Alexandrin et Romain. Leiden: J. Brill Editéur. 1977.

GUIMIER-SORBETS, Anne-Marie; PELLE, André; EL-DIN, Seif Mervat. Ressurrection in

Alexandria: The Painted Tomb Greco-Roman Tombs of Kom al-Shuqafa. Cairo: The

American University in Cairo Press, 2017.

HAGEN, Rainer; HAGEN, Rose-Marie. Arte Egípcia. Lisboa: Editora Taschen, 2008.

HAMMA, Kenneth (ed). Alexandria and Alexandrianism. Papers Delivered at a Symposium

Organized by The J. Paul Getty Museum and The Getty Center for the History of Art and the

Humanities and Held at the Museum April 22–25, 1993. Malibu, California. 1996.

136

HARRIS, W. V.; RUFFINI, Giovanni (ed). Ancient Alexandria: Between Egypt and Greece.

Columbia: BRILL Publications, 2004.

HARRISON, Adrian P. Animals in the Etruscan World and Environment. In: TURFA, Jean

Macintosh. The Etruscan World. Nova York: Routledge, 2013.

HARTWIG, Melinda K. Sculpture. In: HARTWIG, Melinda K. (ed). A companion to Ancient

Egyptian Art. Oxford: Willey Blackwell Publishing, 2015. p. 191-218.

HARTWIG, Melinda K. Style. In: HARTWIG, Melinda K. (ed). A companion to Ancient

Egyptian Art. Oxford: Willey Blackwell Publishing, 2015. p. 39-56.

HÖLBL, Günther. A History of the Ptolemaic Empire. Nova York: Routledge, 2001.

JAMES, Simon. Drawing Interferences: Visual reconstructions in theory and practice. In

MOLYNEAUX, B.L. (ed.) The Cultural Life of Images – cultural representation in

archaeology. London: Routledge, 1997. p. 51-78.

KYRIAKIDIS, Evangelos. Archaeologies of Ritual. In: KYRIAKIDIS, Evangelos. (ed.). The

Archaeology of Ritual. Los Angeles: Cotsen Institute of Archaeology, UCLA publications.

2007. p. 289-308.

LARSON, Jennifer. Greek Nymphs: Myth, Culture, Lore. Nova York: Oxford University

Press, 2001.

MATIAS, Keidy Narelly Costa. Cartografias do Além: o mundo dos vivos e o universo dos

mortos no antigo Egito. 2016. 199f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências

Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

MCKENZIE, Judith. The Architecture of Alexandria and Egypt 300 B.C.-A.D. 700. The

Yale University Press Pelican History of Art Series. Connecticut: Yale University Press, 2011.

MENDOZA, Barbara. Egyptian Connections with the Larger World, Greece and Rome. In:

HARTWIG, Melinda K. (ed.) A companion to Ancient Egyptian Art. Oxford: Willey

Blackwell Publishing, 2015. p. 399-422.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. História e Imagem: Iconografia/Iconologia e além. In:

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (ed.). Novos Domínios da História. Rio de

Janeiro: Editora Elsevier, 2012. p. 243-262

137

MILLER, STELLA G. Macedonian Tombs: Their Architecture and Architectural

Decoration. Studies in the History of Art, Washington D.C., National Gallery of Art, v. 10,

Symposium Series I: Macedonia and Greece in Late Classical and Early Hellenistic Times, p.

152–171, 1982.

MILNE, Grafton J. A History of Egypt under Roman Rule. Illinois: Ares Publishers, INC,

1992.

MITCHELL, Wiliam John Thomas. Iconology: Image, Text, Ideology. Chicago: University of

Chicago Press, 1987.

MOLYNEAUX, Brian Leigh.(org.) The Cultural Life of Images: Visual Representation in

Archaeology. London: Routledge. 1997.

MORI, Anatole. Names and Places: Myth in Alexandria. In: DOWDEN, Ken;

LIVINGSTONE, Niall (org). A companion to Greek Mythology. Oxford: Willey Blackwell

Publishing, 2011. p. 227-240.

MOYER, Ian S. Egypt and the Limits of Hellenism. Cambridge: Cambridge University Press,

2011.

OGDEN, Daniel. Alexander, Agathoss Daimon and Ptolemy: The Alexandrian Foundation

Myth in Dialogue. In: SWEENEY, Naoíse Mac (ed). Foundation Myths in Ancient Societies:

Dialogues and Discourses. Philadelphia: University of Pennsilvania Press, 2015. p. 129-150.

PANOFSKY, Erwin. O significado das artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.

PEARSON, Michael Parker; RICHARDS, Colin. Architecture and Order: Approaches to

Social Space. London: Routledge, 1997.

POLITT, J. J. Art in the Hellenistic Age. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.

RAJA, Rubina; RÜPKE, Jörg (org). A companion to the archaeology of religion in the

Ancient World. Oxford: Willey Blackwell Publishing, 2015.

RAPOPORT, Amos. The Meaning of the Built Environment – a nonverbal communication

approach. Arizona: The University of Arizona Press, 1990.

138

REDE, Marcelo. Iconografia, História e Antiguidade Grega: tendências gerais. Anais do

Museu Paulista, São Paulo, n. 01, p. 263-285, 1993.

RENFREW, Colin; ZUBROW, Ezra B. W. The ancient mind: Elements of cognitive

archaeology. Cambridge: University Press, 1994.

RIGGS, Chistina. The Beautiful Burial in Roman Egypt: Art, Identity, and Funerary

Religion. Oxford: Oxford University Press, 2005.

RIGGS, Christina (ed). The Oxford Handbook of Roman Egypt. New York: Oxford

University Press, 2017.

RIGGS, Chistina. Tradition and Innovation in the Burial Practices in Roman Egypt. In:

LEMBKE, K.; MINAS-NERPEL, M.; PFEIFFER, S. Tradition and Transformation: Egypt

under Roman Rule. Proceedings of the International Conference, Hildesheim, Roemer- and

Pelizaeus-Museum, 3–6 July 2008. Leiden: Brill Publications, 2010.

RIGGS, Chistina. Ancient Egyptian Art and Architecture: A Very Short Introduction.

Nova York: Oxford University Press, 2014.

ROMAN, Monica; ROMAN, Luke. Encyclopedia of Greek and Roman Mythology. New

York: Facts on File Publishing, 2010.

SARIAN, H. Arqueologia da Imagem: aspectos teóricos e metodológicos na iconografia de

Héstia, Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, p. 69-84, 1999.

Suplemento 3.

SAVVOPOULOS, Kyriakos. Alexandrea in Aegypto. The role of the egyptian tradition in the

hellenitic and roman periods. Ideology, Culture, Identitiy and Public Life. 2011. 366 p. Tese

(Doutorado em Arqueologia), Universidade de Leiden, Leiden, 2011.

SAVVOPOULOS, Kyriakos. The Polyvalent Nature of the Alexandrian Elite Hypogea: a Case

Study in the Greco-Egyptian Cultural Interaction in the Hellenistic and Roman Periods. In:

SOUSA, Rogério; FIALHO, Maria do Céu; HAGGAG, Mona; RODRIGUES, Nuno Simões

(org). Alexandrea ad Aegyptvm: The Legacy of Multiculturalism in Antiquity. Porto:

Edições Afrontamento, 2011. (ebook).

SCHULZ, Regine; SIEDEL, Matthias. Egipto – Arte e Arquitectura. Lisboa: Editora

Dinalivro/Könnelman, 2006.

139

SEVERI, Carlo. A palavra emprestada ou como falam as imagens. Revista de Antropologia,

São Paulo, v. 52, n. 2, p. 459-506, jan. 2009.

SHANKS, M. Photography and Archaeology. In: MOLYNEAUX, Brian Leigh. (ed.) The

Cultural Life of Images – cultural representation in archaeology. London: Routledge, 1997.

p. 73- 107.

SILVA, Ruan Kleberson Pereira Da. Guerra, Soberania, Ordem e Equilíbrio Cósmico:

Representações sociais em relevos Neoassírios (884-727 a.C). 2016. 353f. Dissertação

(Mestrado em História), Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

SMITH, Mark. Traversing Eternity: Texts for the Afterlife from Ptolemaic and Roman Egypt.

Nova York: Oxford University Press, 2009.

SMITH, Tyler Jo; PLANTZOS, Dimitris. A companion to Greek Art. Oxford: Willey

Blackwell Publishing, 2012.

SOUSA, Rogério; FIALHO, Maria do Céu; HAGGAG, Mona; RODRIGUES, Nuno Simões.

(org). Alexandrea ad Aegyptvm: The Legacy of Multiculturalism in Antiquity. Porto:

Edições Afrontamento, 2011. (ebook). Disponível em:

https://www.academia.edu/29249239/Alexandrea_ad_aegyptvm_the_legacy_of_multicultural

ism_in_antiquity. Acesso em 15 jan. 2018.

STOCKHAMMER, Philipp W. Conceptualizing Cultural Hybriditazion in Archaeology. In:

STOCKHAMMER, Philipp W (ed.). Conceptualizing Cultural Hybridization: a

transdisciplinary approach. Heidelberg: Springer, 2012a.

STOCKHAMMER, Phillip W. Entangled pottery: phenomena of appropriation in the Late

Bronze Age Eastern Mediterranean. In: MARAN, Joseph; STOCKHAMMER, Phillip W. (ed).

Materiality and Social Practice: Transformative Capacities of Intercultural Encounters.

Oxford: Oxbow Books, 2012b.

STOCKHAMMER, Phillip W. From Hybridity to Entanglement, From Essentialism to

Practice. In: VAN PELT, W. Paul (ed). Archaeology and Cultural Mixture. The

Archaeological Review of Cambridge, Cambridge, v. 28.1, p. 11-29, 2013.

TALLET, Gaëlle; ZIVIE-COCHE, Christiane. Imported Cults. In: RIGGS, Christina (ed). The

Oxford Handbook of Roman Egypt. New York: Oxford University Press, 2017.

140

TOMLINSON, R. A. The Architectural Context of the Macedonian Vaulted Tombs. The

Annual of the British School at Athens, 1987. v. 82, p. 305–312.

TÖRÖK, László. Hellenizing Art in Ancient Nubia – 300 BC/AD 250 and its Egyptian

Models: a study in “acculturation”. Leiden/Boston: BRILL Publishers, 2011.

TOYNBEE, J.M.C. Death and Burial in the Roman World. Baltimore: John Hopkins

University Press, 1996.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. Londrina: Eduel, 2013.

VASQUES, M. S. Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo,

religião e identidade. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n.18, p. 37-

48, 2014. Suplemento.

VASQUES, Marcia Severina. Crenças funerárias e identidade cultural no Egito Romano:

máscaras de múmia. 2005. Tese (Doutorado em Arqueologia) - Museu de Arqueologia e

Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

VENIT, Marjorie Susan. Alexandria. In: RIGGS, Christina (ed). The Oxford Handbook of

Roman Egypt. New York: Oxford University Press, 2017. p. 103-121.

VENIT, Marjorie Susan. Monumental Tombs of Ancient Alexandria: the Theater of the

Dead. Cambridge: University Press, 2002.

VENIT, Marjorie Susan. Egypt as Metaphor: Decoration and Eschatology in the Monumental

Tombs of Ancient Alexandria. In: ROBINSON, Damian ; WILSON, Andrew (ed.). City and

Harbour: The Archaeology of Ancient Alexandria and the North-Western Delta. Oxford:

Oxford Centre for Maritime Archaeology, University of Oxford, School of Archaeology, 2010.

p. 243–257. (Monograph 5).

VENIT, Marjorie Susan. Visualizing the Afterlife in the Tombs of Graeco-Roman Egypt.

Cambridge: University Press, 2015.

VERBOVSEK, Alexandra. Reception and Perception. In: HARTWIG, Melinda K (org.) A

companion to Ancient Egyptian Art. Oxford: Willey Blackwell Publishing, 2015. p. 142-151.

VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo. 2001.

141

WESCOAT, Bonna D.; OUSTERHOUT, Robert G. (org). Architecture of the sacred: Space,

Ritual and Experience from Classical Greece to Byzantium. Nova York: Cambridge

University Press, 2012.

WILKINSON, H. Richard. Reading Egyptian Art. A hieroglyphic guide to Ancient Egyptian

Painting and Sculpture. London: Thames&Hudson Press, 2011.

WILKINSON, H. Richard. The Complet Gods and Goddesses of Ancient Egypt. London:

Thames&Hudson Press, 2003.

WITT, R. E. Isis in the Ancient World. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1997.

WOODS, Alexandra. Relief. In: HARTWIG, Melinda K (org.). A companion to Ancient

Egyptian Art. Oxford: Willey Blackwell Publishing, 2015. p. 219-240.