Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR
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BATALHAS PELA NAÇÃO: IMAGEM, MEMÓRIA E POLÍTICA
Paulo Monteiro Nunes1
Resumo: O recurso às imagens, especialmente as oriundas da arte, tem sido um dos mais freqüentes expedientes usados pelo poder em busca de legitimação. Este texto explora um dos seus usos mais comuns na história política brasileira: a construção de uma memória imagética. Tendo as pinturas históricas de batalha, expressão máxima da arte acadêmica brasileira, como fio condutor, este trabalho propõe através de uma metodologia comparativa e uma crítica às idéias de realismo e arte documental, a apreensão dos usos destas imagens em duas direções, memória do passado e memória para o futuro, a fim de reconstruir alguns aspectos da história política brasileira e levantar questões sobre a categoria de legitimação. Palavras-chave: Imagem, Política, Legitimação Abstract: The political power has always used images, specially those from the arts, as a main tool in its search for legitimation. This essay exposes one of main usages in Brazilian political history: the building of a image memory. Through the comparative study of historical battle paintings – the most important artistic expression in Brazil's academic art – this work proposes a critical apprehension of the ideas of realism and documentary art, leading to the construction of the national memories in two directions: to the past and towards the future. In doing so, it also rises questions about Brazil's political history and the concept of legitimation. Keywords: Image studies, Politics, Legitimation
Na história da arte, o termo “realismo” apresenta, conforme o contexto no qual se
insere, significados diferentes, até mesmo antagônicos. No início do século XIX, por exemplo,
elogiar o realismo de uma obra, era referir-se à habilidade do pintor em emular a realidade
visível, isto é, sua capacidade de compôr uma obra bem proporcionada, com um colorido
acertado, indumentárias historicamente coerentes e, é claro, figuras humanas anatomicamente
corretas. Em um segundo sentido, mais comum a partir da segunda metade do século XIX, o
realismo se refere a obras feitas para ser um registro documental do mundo, uma forma de
mostrar as coisas como elas realmente são, sem idealização (é esta segunda forma que depois
irá evoluir para a maneira como hoje tendemos a entender o realismo, a saber, como denúncia
de uma realidade social).
Como exemplo da primeira idéia, é possível citar a pintura de orientação acadêmica
durante o Segundo Reinado. Por um lado, trata-se da herdeira dos avanços técnicos acumulados
na arte pictórica desde a Renascença, que permitiam ao artista do final do século XIX retratar
virtualmente quaisquer fenômenos visuais. Por outro, este cuidado com a veracidade dos
aspectos visíveis não encontrava reflexo em relação aos fatos retratados. Na verdade, o cânone
acadêmico, por uma série de razões ligadas tanto à sua filosofia estética como ao contexto
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histórico de seu nascimento durante a Revolução Francesa, acabava por privilegiar o belo
idealizado como seu principal objeto. Destarte, situações eticamente engrandecedoras,
personagens heróicos e exemplares (de acordo com a moral da época, é claro) eram a primeira
escolha dentre os assuntos passíveis de serem tematizados.
Neste sentido, as imagens que pudessem ser percebidas como verossímeis (por sua
aproximação do sensível visual), mas que expressassem os valores cívicos da nação eram as mais
valorizadas, tanto pelos critérios artístico-estéticos da Academia, como pela ideologia política
do Império. Este último, aliás, agindo não apenas como mantenedor daquela instituição de
ensino, mas também como principal comprador de obras e mecenas de artistas. Assim, a pintura
histórica de batalhas acabou por se tornar a principal manifestação artística no segundo
Reinado, tendo como tema, a princípio, eventos do passado, como as lutas no Brasil sob
ocupação holandesa, registradas na Batalha de Guararapes, de Victor Meirelles. Mas, foi após a
Guerra do Paraguai, quando incidentes contemporâneos começaram a invadir as telas dos mais
célebres artistas da época, que este gênero pictórico alcançou o auge de seu desenvolvimento e
prestígio.
A idealização nas obras daquele contexto salta aos olhos tanto quanto sua qualidade
técnica (a se julgar pelos critérios acadêmicos): a guerra é bela. Um quadro como A batalha
naval do Riachuelo, também composto por Meirelles demonstra bem as afinidade entre estética
e política evidenciadas na idealização. O momento escolhido para ser retratado é o da vitória,
quando o Almirante Barroso, comandante das forças navais brasileiras aparece à frente do
encouraçado “Amazonas” para saudar as demais embarcações, ao mesmo tempo em que são
hasteadas bandeiras lidas como “Sustentar o fogo que a vitória é nossa” e “O Brasil espera que
cada um cumpra o seu dever”.
Os vencedores (sempre brasileiros na pintura acadêmica imperial), mostram sua coragem,
altivez, generosidade e, principalmente, poder, tudo fruto de um maior avanço no progresso e
na civilização. São invulneráveis e intrépidos, como o próprio Barroso que se apresenta à proa de
sua embarcação. Em contraste, os inimigos, inferiores e humilhados, são também covardes e
rapinos, em uma palavra, selvagens, tanto quanto a paisagem à qual se fundem (aliás, bem à
semelhança do papel reservado aos não-europeus nas representações da fundação do Brasil,
como nas imagens da Primeira Missa).
Assim os registros artísticos brasileiros da guerra se afinam com o projeto de nação
imperial. A idéia de uma civilização redentora que se manifesta nos costumes da elite, nas
símbolos nacionais e na literatura também era vista na arte. Em quase todos os aspectos da vida
social havia a tentativa de aproximar o Império da Europa e, neste sentido, legitimar pelo mones
três posições. A primeira é a do próprio regime monárquico no meio das repúblicas americanas; a
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segunda era a manutenção da nação brasileira tanto em termos territoriais como políticos; e,
por fim, do projeto civilizador cuja pertença o Império reivindicava e que está implícito na
pintura acadêmica. Como em poucos momentos, a relação de afinidades entre a arte e o poder
se torna visível, não só pela produção acadêmica em si, mas também pelo contraste que há,
especialmente em termos de idealização, quando comparada com outros registros imagéticos do
conflito, como fotografias, caricaturas ou, mais ainda, pinturas estrangeiras.
Com efeito, os outros países envolvidos na Guerra também criaram suas próprias imagens
do embate. Mas, diversamente do Brasil, nenhum contava então com uma Academia oficial de
ensino de artes, e, conseqüentemente, um cânone tão alinhado a seus projetos nacionais. O
resultado são obras extremamente realistas, mas em um sentido completamente diverso daquele
do academicismo brasileiro: no lugar da acuidade visual, e de uma temática que reforçava a
formação de valores cívicos, encontramos uma busca pelo registro documental dos eventos da
guerra. Não apenas as derrotas, mas mesmo as vitórias contam-nos dos horrores cotidianos e dão
notícia do terrível sacrifício carente de sentido que em geral são as guerras para todos os
envolvidos.
É o que pode ser observado na obra do argentino Candido Lopez. Não tendo acesso ao
ensino formal em pintura, Lopez tomou aquele que era o habitual caminho de um artista
argentino: procurou um mestre a quem servia de aprendiz. Seguiu carreira especialmente como
retratista e pintor de naturezas-mortas até o início das hostilidades na região platina, quando se
voluntariou. É verdade que Meirelles também esteve no teatro de operações, mas, como
convidado, protegido e contratado do Império, em uma situação completamente diversa daquela
de Lopez, que chegou a perder um braço na batalha de Curupaiti. Voltando a Buenos Aires já na
fase final do conflito, Lopez utilizou o grande número de esboços e anotações realizadas durante
as campanhas bélicas para realizar seus hoje célebres quadros, na esperança (que em pouco se
mostrou frustrada) de que o interesse suscitado por elas lhe rendesse uma vida tranquila.
Apesar de não contar com um domínio completo das técnicas de pintura, o que torna
estas obras mais estilizadas e mais semelhantes a esboços, não há dúvida que são expressão
sincera da real percepção do seu autor dos acontecimentos do conflito no prata, despidos da
idealização moralizante tão presente na arte oitocentista. As imagens mostram principalmente o
cotidiano das tropas em preparação para o combate e o calor da batalha, rico em detalhes
aterrorizantes como corpos mutilados, caos e confusão. O momento da vitória quase não
aparece. Pelo contrário, parece que o apelo dramático da derrota tocou de forma mais profunda
a sensibilidade de Lopez. Nada mais distante da idealização encontrada na acadêmica brasileira.
Esta idealização, impacto do binômio Academia/Império sobre a produção pictórica se
torna ainda mais explícita se comparada às de outros contextos históricos. Por exemplo, antes
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da Academia, e, aliás, até antes mesmo do Império, as imagens de batalhas tinham um caráter
extremamente idealizado, mas de uma forma diferente. Em vez da ênfase na formação cívica e
moral em bases nacionais, o que encontra-se são invocações místicas da intervenção da
providência em favor dos vencedores. Um exemplo marcante disto são os ex-votos da Igreja da
Nossa Senhora da Conceição dos Militares, em Recife, encomendados a João de Deuas Sepúlveda
para comemorar a vitória da segunda batalha de Guararapes. Tudo nesta obra é diferente da
composição homônima de Victor Meirelles: a natureza das pinturas, o suporte, o realismo e o
idealismo.
Ambas as pinturas são idealistas no sentido optarem por apresentar uma interpretação da
batalha a fim de servir à educação moral dos fruidores. Mas, uma vez que a pintura setecentista
está mais alinhada às mentalidades místico-religiosas dos que às cívico-patrióticas dos
oitocentos, a idealização não se encontra nas posturas heróicas, tampouco na batalha em si, mas
na intervenção da providência que milagrosamente favorece os luso-brasileiros. Além disso,
longe do realismo visual neoclássico, a composição opta por uma representação quase alegórica
dos grupos se encaminhando para a batalha ocasião em que os protagonistas são literalmente
enumerados (os números poderiam a qualquer momento ser conferidos em uma espécie de
legenda no canto inferior direito do último painel para saber exatamente de quem se tratava).
De uma forma geral, as figuras humanas são muito semelhantes e misturam-se em meio aos
grupos de que participam. Diferente de um século mais tarde, afastam-se do retrato,
assemelhando-se mais a alegorias.
E são alegorias também o que encontramos no outro extremo da história, isto é, a após o
fim da influência do academicismo, especialmente depois do advento da fotografia. Com efeito,
a possibilidade de captar in loco e de maneira instantânea a destruição e as mortes causadas
pelos embates tornou obsoleta qualquer idealização da beleza da guerra (Por exemplo na Morte
de um soldado, de Robert Capa ou em Harvest fo death, de Timothy O'Sulivan).
A maneira como as batalhas passaram a ser idealizadas na arte pictórica moderna nada
tem do realismo acadêmico. Muito pelo contrário, aplica o expressionismo e a estilização às suas
figuras, distorce-as e as dilacera. Há, contudo, um discurso em sua forma e seu conteúdo: o
terror representado naquilo que comumente é conhecido como realismo social. Guernica, de
Pablo Picasso, é talvez o mais conhecido exemplo desta nova maneira de pensar os conflitos. Sua
comparação com qualquer batalha pintada no século XIX (à exceção dos Desastres da Guerra de
Goya) faz saltar aos olhos as diferenças tanto na idealização como do realismo.
Estas características da pintura acadêmica de batalhas podem, em parte ser creditadas às
relações desenvolvia entre a arte e a política imperial. Ou, mais precisamente, pela coincidência
dos princípios ideológicos de que ambas partiam, e, conseqüentemente, dos programas que
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defendiam dentro desta visão de mundo. De fato, mais do que apenas registrar, estas imagens
marcam uma posição política, apontando para propostas, diagnósticos e concepções. Mais ainda,
elas estão eivadas de efetividade na legitimação do Império e de sua arte moralizante.
Neste sentido, a realidade, tal como registrada e proposta nas cenas de batalha, age de
várias maneiras e em diversos níveis na própria construção da realidade. Por exemplo, na
constituição de memórias, temporalmente lançadas em dois sentidos. Em primeiro lugar, cria a
memória de um passado glorioso, que reforça a imagem do Brasil como posto avançado da
civilização européia na paisagem selvagem americana: coragem, altivez, superioridade e,
principalmente, civilidade em oposição à inferioridade e covardia animalesca do inimigo
compõem a cena da guerra bela. Esta idealização serve ao triplo propósito de, educar
moralmente rumo à formação cívica os cidadãos, reforçar a idéia de unidade e distinção do
Brasil no contexto Sul-americano, e justificar a Monarquia como forma legítima de condução da
nação (uma vez que cumpre o seu papel histórico).
Em segundo lugar, também é elaborada uma memória para o futuro, que se funda tanto
na expectativa de que as gerações futuras percebam a grandeza do Império de outrora, como,
também no reforço do seu sentido missionário e civilizatório. Com efeito, a identidade nacional
não é fruto somente do compartilhamento de uma história e de uma herança cultural comuns,
localizadas no passado, mas também do compartilhamento de um projeto de futuro. E este foi
expresso nas pinturas acadêmicas com tamanha intensidade que, até hoje servem de parâmetro
na construção das imagens da identidade brasileira. Prova disso são as numerosas peças de
propaganda das forças armadas que, ainda hoje fazem alusão às idéias concebidas na segunda
metade do século dezenove.
Mas não se deve entender que estas afinidades façam parte de uma espécie de plano ou
conspiração consciente. Trata-se, isto sim, do compartilhamento de ideais estéticos, sociais e
políticos, que traçavam entre os diferentes grupos de artistas e políticos relações de afinidade e
competição. Tanto o uso como a sua percepção são, em linhas gerais, muito mais fruto de uma
apropriação ex post facto do que o aplicação de um cuidadoso planejamento na luta pela
conquista de mentes e corações que constitui grande parte do jogo político. Especialmente por
se tratar de uma idéia tão poderosa quanto dependente, para sua efetividade, de legitimação,
como é a de nação, e mais ainda em um contexto de profundas mudança sociais que já se
anuncia nas últimas décadas do Império.
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Bibliografia
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