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9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

24 DE MARÇODE 2012

poesias

RASTROPRATEADO(CLAIR DELUNE)A SÉRGIO BLANK

ANA CRISTINACOSTA SIQUEIRADaquela tarde com Allan Poe,que desfiaste ao acaso,fez-se a inquietude dos versos quebatem com força, agora,contra tuas janelas, abrindo fendas –prenúncios de Bodega Bay.Oníricas imagens, sobrepostas, emmeio aos lençóis desfeitos,tuas manhãs confusas e sombrias sãoretranca em que escondes os poemas,tece-os com fios de caracóis em céuscinzentos;essências de absinto ( e de amores?)talvez te lembremde alguns raros aconchegos matinais.Ao som de blues, quem sabe secomponham teus ais!Quem sabe se, em azuis, mergulhaste,soturno,procurando em solo anímicoimpensáveis sonhos?Imagino-te menino anjo comendoamendoins torrados,olhar encharcado de casuarinasaté que se perca, dos tímpanos, overaneio das aves.E, quando dormitas sobre livros,espaços há onde mergulhares, nobranco, tua alma franca:escreves na pele o teu livro, em dias enoites de silenciosa urdidura.Acaso revestes tuas paredes, gastas,de sonho e incendiados dias?Talvez goste de jambos no odor dasrosas que nunca são lembradas:Cá estou, urdindo os tons de uminventário, e aromas de delicadoslírios,enquanto passeio em teus olharesvestidos em tons de opala;mas ao fundo, azul, a tarde é poeiraem que Fauno descansa (e arde) -ouves a música?Extremamente sedutora é a poesia,e agrada-me o poema transparenteem que te escondes.Teu silêncio são rochas vulcânicas,seculares,mas o que te move é a voz humana, atrilha insana de vazios lares.És, nesta tarde, meu acalanto – aoamanhecer, já outro poema existe.Teus dias ímpares talvez sejam osmeus pares.

crônicas

SAUDADE, MEDOE MUITO HUMOR!por SÔNIA RITA SANCIO LÓRADesenvolvemos um jeito de conversarcom o papai, que nos deixou há algumtempo, muito a contragosto – dele e denós. Visitamos seu túmulo no alto dacolina, um lugar que tem mangueiras,quaresmeiras, eucaliptos e muitas flo-res. Mesmo na altitude de Santa Teresa,o calor tem sido intenso. Usamos o filtrosolar, mamãe pegou sua sombrinha e euo meu inseparável chapéu branco. Cum-primentamos avôs, tios e primos queestão fazendo festa no céu, honrando anossa espalhafatosa maneira italiana deser e seguimos até onde papai, a NonaCecília e o Nono Ú (apelido que euadorava – Eu chamava o Nono e elerespondia “ÚUUUU”) descansam destavida. Com saudade, contei as novidadese lágrimas escorriam livres.

– Pois é, pai, hoje é o aniversário do

Dante, seu bisneto. Ele tem olhos azuise é brabo como um italiano que sepreza! Lara está uma menina linda e oDavi, o Gabriel e a Olivia são figurasincríveis! A Ana Clara vai chegar no dia5. Que pena, né, pai, que o senhor nãovai poder estar com a gente...

Sou desligada e sei que preciso mudarisso. Nesse dia, por sexto sentido talvez,resolvi olhar à minha volta, enquantomamãe abraçava nosso pai em pensa-mentos. Minhas pernas tremeram quandoolhei pela primeira vez. Espírito não era,pois não tinha aura! Era de carne e osso!Apenas sua cabeça aparecia, de pé, dentrode um túmulo vazio. No sopé do morro,outro homem, de bermuda cinza e blusapreta. O medo tomou conta de mim.

– Estes filhos da mãe vão nos assaltar.Temos a sombrinha e as duas alianças da

mamãe, o meu chapéu, a minha câmerafotográfica adorada e o meu velho anel decinco aros. Não, estes filhos da mãe vãoestuprar a gente, vão bater na minhamãe... Eu juro que mato estes caras!Pensando bem, vou matar só o que estádentro do túmulo. Eu vi primeiro!

Ele vinha em nossa direção, quandoeu, com a máxima calma, falei com amama:

– Mãe, seguinte... Tem um caraseguindo a gente. A senhora me dá asua mão e eu seguro na barra da suasaia. Vamos sair daqui agora, bemdepressa, tá?

Os 84 anos de minha mãe mostramclaramente a dificuldade de andar. Mes-mo assim, rezamos uma Ave Maria eagradecemos ao papai por ter nos “afas-tado do mal”. Saímos do campo santotremendo da cabeça aos pés! Dirigi até aparte superior do lugar, onde um rapazalto e magro saía de lá, com as mãos nosbolsos, tranquilamente! Rindo muito, ma-mãe e eu começamos a imaginar o que eleteria ido fazer dentro do túmulo vazio...Rezar é que não foi, né?

POLAROIDES, ALCALOIDES E OUTRAS MANIASpor CAÊ GUIMARÃES

Impreciso, na ausência de um dos sisos,teclo aflito: preciso de você. Nada. Aresposta analgésica deveria vir lépida,impressa nas telas do lap top. Mas so-breveio o silêncio. Toc, toc, toc. Tam-borilo os dedos toda vez que algo surgecom força real para ser dito, toda vez quelembro o palhaço sem circo que insisteem sorrir para a vida, sempre que umaverdade sobe goela acima e, gosmenta,se recusa a ser cuspida ou engolida.Preciso de você, repito como se fossepito, quase aflito, e penso no vinco e noadereço do pensamento, no vazio ab-soluto do siso, no ponto que roço com alíngua e na aspereza da espera. Masnada. Hoje, parece que o serviço de-livery da farmácia não vai funcionar.

Alguém lembra com um poeminhabem bonitinho que o Dia Internacionalda Poesia aconteceu na semana queacaba hoje. Ignoro a informação.

Cancelaram o edital do fim do mun-

do. Quem era raso pode voltar a ser raso.Quem é profundo pode nadar de voltapara o fundo. Quem veio ao mundo apasseio, trate de esquecer o receio.Quem é de extremos caminhe pelomeio. Ainda não se sabe o motivo daimpugnação. Mas fiquem tranquilos,crianças. Vai haver nova convocação noDiário Oficial. Podem montar suas pro-postas, mas sem lacrar a criatividade.Não haverá, até segunda ordem, ondasdescontroladas de radioatividade. Nemmaremotos, terremotos e ignotos acimado normal. Continuaremos a sofrer nomesmo nível, tudo será igual. Quem é dedireita que endireite a gola e limpe asola. Quem é de esquerda que esqueçaa degola alheia. Quem faz fumaça,sorria que disfarça. Quem discute,faça de maneira menos rude. Quemachava que tudo ia acabar, esqueça. Oacabar acabou. E quem perdeu agra-deça a quem ganhou. Cancelaram oedital do fim do mundo. Tente outravez. Mas lembre-se: não existe nadamais antigo do que cowboy que dácem tiros de uma vez.

De novo na tela, sem um molar paraamolar, descubro uma nova palavra naflor do Lácio. Estarte. Um híbrido doportuguês estar (permanecer) com o in-glês start (começar). Tudo agora vemembalado em um tal de “vou estarteligando”, “vou estarte chamando”, ou“vou estarte informando”. Trata-se de umdevir, algo que vai de lugar nenhum alugar nem outro. Nada permanece e co-meça no mesmo movimento. Somos fan-tasmas de todos os próximos segundos. Edos que ficaram para trás. No momentoatomizado de um instante, coloco o es-tarte na estante. Lá no fundo. Acendo umlume no meio da madrugada insone. Olume se consome e vou dormir quase empaz. Com ele, permaneço e começo nomesmo movimento. Mas isso é uma me-táfora. E elas, como os sonhos, não en-velhecem. E podem ser nada demais.

Chega o outono. Observe o vento. Eas folhas e os ramos floridos, que bai-lam antes de despencar.

Documento:AGazeta_24_03_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:22 de Mar de 2012 21:04:37

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