ABOLICIONISMO EM PARANAGUÁ: APONTAMENTOS A PARTIR DA
TRAJETÓRIA DE UM PROFESSOR PÚBLICO
Noemi Santos da Silva
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná)
Resumo
Este trabalho tem como finalidade discutir o movimento abolicionista em Paranaguá,
cidade litorânea da província paranaense, com base em fragmentos da trajetória do
professor José Cleto Silva. A escolha desse personagem serve de pretexto para
conhecer a pluralidade do movimento disseminado na cidade a partir da década de
1870 e intensificado na década de 1880. O “professor Cleto”, como era conhecido,
foi responsável pela abertura de uma escola para escravos em 1871, sendo também
sócio fundador de um jornal republicano e abolicionista. Deu ainda acessoria jurídica
a escravos em embates judiciais, era sócio de entidades abolicionistas da cidade e
passou por públicas perseguições em sua carreira devido à sua militância. Sua
história suscita discussões acerca do abolicionismo enquanto movimento social, do
papel da instrução pública no ideário de abolição defendido e de como essas ideias
circularam em uma região distante dos grandes centros de dinamismo
socioeconômico do Império. Para o cumprimento de nossas propostas, foram
consultados os periódicos de Paranaguá disponíveis no acervo virtual da Biblioteca
Nacional, além da documentação oficial de cunho escolar disponível Arquivo Público
do Paraná.
Palavras-chave: Abolicionismo; Paraná; Paranaguá; professor José Cleto Silva
Esse trabalho enfoca em excertos da trajetória de José Cleto Silva, professor
público da cidade de Paranaguá que viveu entre 1843 e 1912, e atualmente compõe
a memória da cidade como um cidadão ilustre. A escolha de José Cleto como
personagem dessa narrativa deve-se ao seu envolvimento com o movimento
abolicionista da década de 1870 e 1880, o qual, se delineou através da participação
na vida associativa, na fundação de um periódico abolicionista e republicano, na
representação de escravos em embates judiciais e ainda nas perseguições políticas
evidentemente causadas por seu ativismo. A vida do professor permite, assim, o
conhecimento de algumas das faces do abolicionismo surgido no litoral, e depois
estendido à capital e demais regiões da província do Paraná. O texto será dividido
em três momentos: primeiro, abordaremos aspectos da vida do professor que
salientam sua inserção no movimento abolicionista, enfocaremos depois seu
envolvimento com as disputas políticas na cidade, que fizeram com que enfrentasse
oposições dos conservadores e, por último, através do desfecho de sua trajetória,
buscaremos conduzir essa análise à fase conclusiva.
Um professor militante
O encontro com esse personagem deu-se através da pesquisa nos
documentos escolares do Paraná, por ocasião do início de um trabalho sobre a
escolarização de escravos, libertos e negros livres na província (SILVA, 2010;
SILVA, 2014). O professor enviava à autoridade competente um pedido de
autorização para abertura de uma escola noturna destinada aos escravos, afirmando
ter a intenção de difundir “os rudimentos da instrução àqueles de nossos irmãos que
infelizmente trazem na fronte o aviltante selo da escravidão e cujos senhores nisso
consentirão”1. Era uma ação atípica, tanto pelo fato de escravos não estarem
permitidos de frequentarem o ensino público2, tanto por José Cleto ter denominado
de “aviltante” a instituição escravista em uma correspondência oficial, em plena
década de 1870, quando os assuntos de abolição ainda encontravam grande
resistência nos setores escravistas, dentro e fora da província.
José Cleto Silva era natural de Paranaguá, nascido em 1843. De origem
pobre, passou a infância envolvido com o trabalho, carregando água e lenha ou
1 Arquivo Público do Paraná. Ofício. José Cleto Silva, 10/08/1871. Ref: BRAPPR 385, p. 123. 2 A legislação vigente proibia a matrícula e frequência de escravos nas aulas públicas, pelo fato de não serem considerados cidadãos constitucionalmente. A mesma proibição, porém, não foi reforçada nos decretos de 1878 e 1879, como ocorreu com o decreto de 1854. Para uma discussão mais aprofundada do assunto Cf (SILVA, 2014: 86-97).
vendendo tripas e miúdos de boi (VITOR, 1946: 72). As fontes são raras para
informações relativas à sua formação, mas asseguram sua total inserção no mundo
das letras, não apenas pela carreira de professor, na qual ingressou em 1867, mas
também pelas outras funções executadas ao longo de sua juventude, quando
trabalhou na Alfândega como tradutor-intérprete de comércio e pelos serviços de
jurídicos prestados por ele eventualmente.
O “professor Cleto”, como era conhecido, lecionou para indivíduos de renome
como Leôncio Correia, Nestor Vitor e Generoso Marques. Os primeiros se tornaram
literatos, e o último, um político liberal e abolicionista da província. Isso torna as
memórias escritas por estes sujeitos importantes vias de acesso a aspectos da
biografia do professor; assim como a documentação da instrução pública, rica em
narrativas que denotam o cotidiano escolar. Esses documentos mostram José Cleto
como um reclamante assíduo das duras condições de trabalho impostas para
docentes do ensino público da época: solicitava móveis para sua escola, cobrava o
pagamento de seus vencimentos, pedia aumento salarial e vitaliciedade, tudo isso
em extensas cartas que demonstravam riqueza retórica e conhecimento dos parcos
direitos de sua profissão.
Pouco se sabe sobre a continuidade de sua escola de escravos aberta em
1871 que foi, provavelmente, uma das primeiras iniciativas de instrução de adultos
da província, já que a lei de autorização de abertura de escolas noturnas foi
sancionada em 1872, ano seguinte3. José Cleto se envolveu com a criação de outra
escola noturna em 1874, a qual contava com 30 alunos no ano de abertura: eram
homens, trabalhadores de ofícios especializados e alguns criados, distribuídos entre
adultos e crianças (SILVA, 2013: 108-109). Os alunos menores foram alvo de
tentativas de recrutamento forçado na Companhia de Menores da Marinha,
instituição que priorizava crianças pobres e órfãs para a composição de seu quadro
de aprendizes. Os fatos despertaram a fúria de José Cleto, que enfrentou as
autoridades responsáveis denunciando-as ao governo provincial, dizendo estarem
3 Lei n.º 330 de 12 de Abril de 1872. In: MIGUEL, M. E.B.;MARTIN, S. D. (orgs). 2004. Coletânea da Documentação Educacional Paranaense. Brasília: INEP – SBHE, 2004.
atrapalhando seu esforço de difusão da instrução para todas as “classes sociais” e
despertando o temor das famílias pobres4.
Ainda na década de 1870, o professor iniciou a vida associativa em
Paranaguá ingressando no Clube Literário, entidade criada em 1872 com fins de
promoção cultural e auxílio mútuo, além de atuante do movimento abolicionista
através da “Caixa Emancipadora Visconde do Rio Branco”, uma forma dos clubes
associativos angariarem recursos para a compra e alforria de escravos. Os fundos
eram arrecadados pela doação voluntária dos sócios ou por meio de espetáculos
cênicos ou festivos, como é possível conferir em anúncio publicado no jornal Livre
Paraná:
Deve subir à cena no dia 19 do corrente, no teatro Santa Celina o drama Bohemia em benefício da Caixa Emancipadora “Visconde do Rio Branco”. O Grupo particular “Melpomene”, sempre pronto a prestar seu auxílio a todos os cometimentos nobres, ainda uma vez patenteia a sua elevação de ideias,
coadjuvando para multiplicar os fundos da caixa emancipadora5.
.
Na década de 1880, o Clube Literário passou a ceder seu espaço para os
ensaios do clube carnavalesco “Bilontras”, que dividia as apresentações de carnaval
com os grupos “Zoroastro” e “Aurora Abolicionista”. Este, de acordo com o jornal
Commercial, era composto, sobretudo, por “pretos libertos”6. Os “Bilontras” e os
membros da “Aurora Abolicionista” homenageavam a abolição e a liberdade em
músicas, blocos e representações. No ano da Abolição, anteriormente ao 13 de
Maio, os Bilontras escolheram a libertação dos escravos como temática especial do
desfile, fazendo crer que havia ampla circulação das ideias abolicionistas nesses
eventos populares.
À parte do Carnaval, consta que uma das festividades promovidas pelo Clube
Literário e os dirigentes da “Caixa Emancipadora”, foi denominada de “festival
abolicionista”, no qual um espetáculo cênico seguido de festa angariou fundos pela
4 Arquivo Público do Paraná. Ofício encaminhado ao inspetor geral da instrução pública Illmo. Sr João Manoel da Cunha, pelo professor da escola noturna de Paranaguá José Cleto da Silva. 10/02/1875. Ref. BR APPR 458, pp. 135-137.
5 Biblioteca Nacional. Livre Paraná, 18/10/1884, p. 3. 6 Biblioteca Nacional. Commercial, 13/03/1886, p.2.
causa e foi seguido de uma grande passeata cívica pelas ruas da cidade em favor
da abolição (RIBEIRO FILHO, s/d: 97). Na mesma ocasião, os abolicionistas mais
engajados do Clube fundaram a “Sociedade Redentora Parnaguense”, da qual José
Cleto Silva compunha a diretoria, juntamente com um empresário, um médico, um
funcionário público, um comerciante e um negociante, alguns deles, membros da
Loja Maçônica Perseverança. Embora sem perder o caráter elitista também
verificado no Clube Literário, a Sociedade foi mais além no ativismo abolicionista,
não apenas arrecadando recursos para a compra e alforria de escravos, mas
também se envolvendo com a fuga de cativos.
A fama do movimento de Paranaguá chegou até o movimento da Corte, que
em setembro de 1884, elogiou a propaganda abolicionista na cidade, com uma nota
no Jornal do Comércio (GRAF, 1981: 101). Nessa época, ainda não havia
sociedades emancipadoras na capital da província, sendo a primeira delas, a
“Ultimatum”, fundada apenas em 1887 e de caráter secreto. Prontamente, contudo,
seus membros estabeleceram contato com os militantes da Sociedade Redentora a
fim de apoiarem fuga de cativos, cujos proprietários se negassem a conceder
alforria. Era um apoio determinante já que a proximidade do Porto facilitava o
embarque dos cativos que, em geral, navegavam rumo à Montevidéu. A carta
abaixo, escrita por um dos membros da Ultimatum, evidencia a proximidade entre as
duas agremiações nos tempos finais da escravidão:
Fui á Paranaguá, entendi-me com o Bento Munhoz da Rocha entregando a ele a carta de Idelfonso Correia. Embarquei nossos protegidos, sem custo. Nada quiseram receber pelas passagens [...] Amanhã devem embarcar os dois protegidos em navio de vela para Montevidéu. Nada aceitaram para despesas a fazer com passagens. Dei a cada um, duas libras. Priscilliano [Correia] nos ajuda. Devem embarcar também um escravo Nacar e um escravo de Antonina. Curitiba, 22 de junho de 1887 (apud RIBEIRO FILHO, s/d: 97)
O Uruguai era uma terra de solo livre, pra onde fugiram centenas de cativos
brasileiros (GRINBERG, 2013). Essa prática ocorria de forma similar na província
paulista, onde os chamados “caifazes” – indivíduos das mais variadas origens
sociais - se envolviam com as fugas de cativos, seja invadindo as fazendas ou
facilitando o transporte e a acolhida dos fugidos geralmente levados ao Quilombo do
Jabaquara em Santos, às linhas férreas ou ao porto (MACHADO, 2010: 138-141). A
prática era, no entanto, condenada pelos grupos abolicionistas mais moderados e,
evidentemente, os mais conservadores, que viam nessas ações, uma afronta aos
proprietários. O órgão O Futuro, de Paranaguá, por exemplo, lançou uma nota
comentando o flagrante de um abolicionista ao se envolver em ação semelhante:
Sabemos que o honrado Dr. Chefe de Polícia ordenou que fosse impedido o embarque de uma pobre escrava, que um “abolicionista” pretendia separar de seu
filho menor. Um bravo a S. Ex. Olha esse abolicionista que saia! 7
Podemos considerar a estratégia de participação em fugas como um aspecto
demonstrativo da aproximação que sujeitos engajados com o abolicionismo tiveram
com os escravizados. Esse aspecto vem sendo salientado pela historiografia mais
recente (MACHADO, 1994; ALONSO, 2015) como um indicativo do caráter misto do
movimento abolicionista, que não se configurou como ação intraelites, e ao mesmo
tempo não se ateve às ações escravas, mas se caracterizou por estreitas conexões
entre esses setores e as redes de militância então construídas.
Nosso personagem José Cleto Silva ainda esteve envolvido em outras formas
de engajamento. Dispunha-se gratuitamente a prestar serviços jurídicos a escravos
que estivessem em condição ilegal de escravidão por terem sido importados depois
da lei de proibição do tráfico, de 1831:
O abaixo assinado incumbe-se das ações de liberdade, gratuitamente, de todos os africanos vindos para o Brasil como escravos depois da Lei de 7 de novembro de 1831, assim como das de seus descendentes legítimos. Para esse fim será encontrado todos os dias das 3 às 6 horas da tarde, na casa de sua residência [...].
José Cleto da Silva8.
Por se tratar de uma cidade portuária, Paranaguá chegou a receber grande
quantidade de africanos livres, sendo que boa parte deles, escravizados ilegalmente,
passaram por processos na justiça para o devido reconhecimento de sua liberdade.
As ações de liberdade foram mobilizadas por diversos advogados e juristas
abolicionistas em todo Império, como Luiz Gama e Antonio Bento, por exemplo,
ícones da luta jurídica pela abolição em São Paulo. Beatriz Mamigonian (2006: 131)
afirma ser em torno de 11 mil os africanos que obtiveram emancipação em
decorrência da Lei de 1831 e de outras relativas ao tráfico. Na capital, nomes como 7 Biblioteca Nacional. O Futuro, 2/4/1885, p. 2 8 Violeta, 16/06/1883: 4 apud GRAF, 1981: 120.
os de Joaquim José Pedrosa, Generoso Marques e José Lourenço de Sá Ribas
estiveram envolvidos com estas e outras ações envolvendo escravos, tomando
partido na luta pela libertação de escravos nos tribunais de justiça (HOSHINO, 2013;
EVANGELISTA, 2013).
Além das várias atividades até aqui relatadas, José Cleto ainda se envolveu
com a criação de um jornal republicano e abolicionista, o Livre Paraná. O órgão
apresentava-se como empresa da tipografia de Fernando Machado de Simas, mas
fortes indícios fazem crer que José Cleto fosse sócio fundador do mesmo jornal e
redator de algumas matérias indiretamente endereçadas aos seus adversários
políticos.
Fernando Machado de Simas, por sua vez, além de jornalista era
farmacêutico, e assim como Cleto, despertava desamores com as elites de
Paranaguá. Para os redatores do Futuro9, órgão de imprensa claramente oponente
político do Livre Paraná, sua farmácia era o ponto de encontro de “Cletos e
Eugênios”. Simas pertencia a um grupo de teatro na cidade e viajava com frequência
para a Corte, de onde possivelmente voltava ainda mais inspirado para redigir suas
críticas à monarquia, à escravidão e à tradicional elite escravocrata de sua época. A
autoria de polêmicas matérias no periódico o tornaram réu no tribunal da cidade, por
crime de calúnia e abuso de liberdade de imprensa, devido uma difamação da
empresa comercial “Visconde de Nácar Filho”, propriedade do Visconde de Nácar.
Quando se referiu a “Eugenios”, em relação aos sujeitos frequentadores da farmácia
de Fernando Simas, o jornal O Futuro falava de José Eugenio Machado Lima,
promotor público de Paranaguá e também membro da Sociedade Redentora
Parnaguense. Longe de ser coincidência, José Eugênio Lima foi também
transformado em réu na cidade e exonerado do cargo em 1885. Essas condenações
judiciais também afetaram o professor Cleto, inspirando-nos a ingressar em outro
patamar da trajetória de nosso sujeito: o da perseguição política.
De professor a réu: faces da perseguição política
9 Biblioteca Nacional. O Futuro. 20/07/1885, p. 2.
O professor Cleto enfrentou uma fase de turbulências em sua vida pessoal e
profissional durante a década de 1880 devido à multiplicação de conflitos com seus
opositores dentro e fora de Paranaguá. Ocorre que o período concentrou o auge das
campanhas abolicionistas e republicanas, nas quais o professor se envolvia
diretamente, e que o aproximavam do Partido Liberal, no qual se filiou no final da
década de 1870. Esses conflitos são capazes de evidenciar a pluralidade das
perseguições políticas do período, assim como a diversidade das retóricas
antiescravistas próprias ao período, já que muitos adversários políticos do professor
não eram necessariamente contrários à abolição, apenas divergiam em relação à
forma de como ela deveria ser conduzida.
O ingresso de José Cleto na vida partidária e a popularidade em Paranaguá
repercutiram em sua eleição para deputado provincial no pleito de 1879. Naquela
campanha, o partido se ateve a propagandas em favor da instrução popular, sem
passar pela abolição ou outras causas reformistas. Durante atuação na 14ª
Legislatura (1880-1881) foi ganhando espaço no Partido Liberal, maioria na
Assembleia, e acirrando as desavenças com os conservadores.
Começou com os religiosos. Um desentendimento com o padre José Ferreira
da Silva, de Paranaguá foi o suficiente para iniciar um escárnio ao professor nas
páginas do jornal O Paranaense. O assunto se estendeu às reuniões da Assembleia
Provincial, em um discurso no qual Cleto provocou as autoridades religiosas
conservadoras ao defender o ensino laico e o fim das regalias aos homens da Igreja,
despertando extensos comentários no jornal conservador, que acusou Cleto de não
ensinar o suficiente de doutrina religiosa em sua escola, e de incitar a comunidade
de Paranaguá contra o referido padre. Para os inimigos do professor, Cleto era um
“homensinho na Assembleia” e suas ideias “radicais” estariam depreciando a fama
de sua escola e refletindo na perda de seu alunado10.
As elites tradicionais de Paranaguá, representadas pela Câmara Municipal
buscaram ainda sepultar sua carreira política ao levá-lo a responder em justiça por
um estabelecimento comercial registrado no nome de seu filho Constâncio Cleto da
Silva. Para a Câmara, José Cleto buscou ocultar “sua propriedade” ao registrá-la no
10 Biblioteca Nacional. O Paranaense, 1881, p 3.
nome do filho, o que acarretou a infração em alguns pontos das posturas municipais.
O professor recorreu das multas que lhe foram impostas, ganhando a causa em
primeira instância. Os acusadores, no entanto, foram adiante, desta vez, para
exonerar Cleto do cargo de professor público alegando infração no código criminal
por “crime de responsabilidade”, ainda tendo em vista a casa comercial, que o jornal
O Futuro chamou de “bodega”11. A justiça chegou a suspender o professor de seu
cargo, mas o caso enfim não foi suficiente para interromper definitivamente a
carreira no magistério.
A pior e mais extensa desavença envolveu a inspetoria paroquial das
escolas, na época chefiada pelo médico Dr. Leocádio José Correia. Teve origem nas
publicações republicanas do jornal Livre Paraná, reprovadas pelo posicionamento
monarquista do então inspetor, que denunciou o professor Cleto às autoridades,
reforçando que ele era proprietário “ilegal e abusivo” do mesmo periódico e
divulgava injúrias à majestade imperial. A dedicação ao jornal estaria “distraindo”
José Cleto de suas aulas, das quais também se ausentava para auxiliar cativos a
demandarem contra os seus senhores: “Apresentou-se como curador de escravos,
perseguindo politicamente os senhores daqueles”, afirmava o médico12.
Leocádio Correia também era originário de Paranaguá. Embora tivesse
passado muitos anos na Corte para concluir sua formação, quando retornou à
cidade obtinha a mesma popularidade que José Cleto, com a diferença das
convicções políticas monarquistas e conservadoras. Ele não nutria posições
nitidamente escravocratas, pelo contrário, considerava-se um emancipador, ao
defender a libertação dos escravos sem o prejuízo da classe senhorial. O médico
considerava “abusivas” as práticas abolicionistas do professor, alegando que Cleto
estivesse perseguindo os proprietários de escravos. Ele próprio era senhor de
alguns cativos e, periodicamente, elegia algum entre eles para conceder alforrias em
ocasiões especiais. Em seus registros pessoais, trabalhados por seu biógrafo
Valério Hoerner (2007), aponta-se a proximidade e dedicação que tinha para com os
escravos, até mesmo dando a eles aulas particulares. Para ele, “A abolição da
11 Biblioteca Nacional. O Futuro. 20/07/1885, p. 2 12 Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá - IHGP.Relatório da Inspetoria Paroquial das Escolas, 1886. IHGP, s/n.
escravatura poderia vir naturalmente, não havia necessidade alguma de mudar-se o
regime político como condição para que se configurasse a libertação” (HOERNER,
2007: 189; 191). Totalmente o contrário de Cleto, para quem a abolição era uma
questão de urgência e independente da vontade senhorial e atrelada a mudanças
nas questões políticas.
Os conflitos se acirraram em 1885, quando o Dr. Leocádio, por intermédio do
diretor de instrução João Pereira Lagos, entrou em juízo contra o professor alegando
sua “incompatibilidade para o magistério” devido à firma mantida com Fernando
Simas e as “calúnias” publicadas contra a majestade imperial no Livre Paraná, o que
feria o artigo 102, ¬§1.1 do Regulamento de Instrução vigente. Ao atacar o
republicanismo de José Cleto, o autor das denúncias considerava inadmissível que
um funcionário público da Coroa se colocasse contra ela.
Passado este assunto, Cleto foi acusado por Leocádio de comparecer à
Alfândega, em seus horários de aula, para colher informações necessárias à
difamação do Visconde de Nácar - sujeito monarquista e proprietário de escravos -
nas páginas do jornal de sua propriedade. Da Alfândega ao Fórum, Dr. Leocádio
buscou esclarecer-se ainda junto ao juiz municipal sobre os serviços jurídicos
prestados por José Cleto em favor de escravos. Esta seria mais uma forma de
ratificar as infrações cometidas. Em resposta, a autoridade judicial confirmava as
acusações:
Certifico que [...] José Cleto apresentou sete petições propondo ações de liberdade, das quais desistiu de uma, sendo que nas outras funcionou na qualidade de curador dos escravos, tendo comparecido nove vezes em audiência, sendo algumas às onze horas e outras ao meio dia [...]13.
Esse ponto esclarece em parte as divergências ideológicas entre Cleto e
Leocádio. Ambos defendiam a libertação dos escravos e frequentavam os mesmos
espaços associativos que promoviam a emancipação de cativos, embora o médico
rejeitasse quaisquer violações ao direito de propriedade e “perseguições aos
senhores”. As condenações ao professor Cleto tinham o aditivo da disputa política
contra o republicanismo, fazendo dos ataques às atitudes emancipacionistas do
professor um aspecto tangencial ao embate deste inspetor contra os liberais, já que 13 Biblioteca Nacional. Comercial, 13/03/1886, p. 2.
não há indícios que sustentem que Leocádio fosse um escravocrata. Isso reforça o
caráter difuso do abolicionismo, especialmente quando se leva em consideração que
ambos os sujeitos compunham o que é possível chamar de “movimento
abolicionista”14. Nesse ponto, a clássica categoria analítica pautada na oposição
entre abolicionistas e emancipacionistas (GRAF, 1981: 136) se faz insuficiente, na
medida em que a situação narrada é uma das muitas evidências de que
emancipacionistas e abolicionistas não formavam grupos homogêneos.
Os fatos culminaram em um inquérito administrativo contra o professor Cleto
que comprovou sua dedicação a alguns serviços “extra-magistério” – de proprietário
de jornal, curador de escravos e até delegado de polícia. Determinou-se que ele
pagasse multa de 450$000 réis e fosse removido para a 2ª Cadeira de Curitiba,
deixando em definitivo a carreira em Paranaguá.
Considerações finais: a vida na capital e o desfecho de uma trajetória de lutas
José Cleto Silva foi removido para a 2º Cadeira de Curitiba em março de 1886
como punição pelos “desvios de carreira” durante o auge de seu ativismo
abolicionista. O jornal Dezenove de Dezembro emprestou um texto publicado no
Livre Paraná, o qual narrava emotivamente a partida do professor na estação
ferroviária:
Grande foi o número de pessoas de todas as classes que na grade da estrada de ferro o esperava [o professor Cleto], na hora da partida para dizer-lhe adeus. Os alunos de sua escola em número superior a 80, ali se achando postados, ao dar o abraço de despedida em seu dedicado amigo e mestre romperam em seus afetivos prantos, comovendo a todos os circunstantes. Libertos e escravos que ao abolicionista devem em seu benefício, um favor, ou uma palavra de consolação e esperança, ali se achavam também com semblantes anuviados e olhos marejados de
lágrimas15.
Com os artifícios da narrativa jornalística, os redatores do periódico
abolicionista e republicano, citados no Dezenove de Dezembro, deram entonação
trágica ao desfecho do embate entre o professor e o conservador Leocádio Correia.
14 Angela Alonso (2015) propõe a distinção entre retórica antiescravista e movimento abolicionista partindo do princípio de que os movimentos sociais se fundamentam em ações, por sua vez, multifacetárias: fundação de associações, caixas emancipadoras, eventos públicos, etc, materializando-se assim como mobilizações coletivas concretas (ALONSO, 2015: 17). 15 Biblioteca Nacional. Dezenove de Dezembro. 04/01/1886, p. 1.
O inspetor paroquial de Paranaguá, entretanto, veio a falecer menos de um mês
após a remoção do professor, encerrando definitivamente aquela disputa política.
Cleto continuou exercendo o magistério na capital sem abandonar a militância
abolicionista. Filiou-se no Clube Curytibano e em Abril de 1888 foi nomeado pela
Confederação Abolicionista Paranaense para, juntamente com seus membros,
elaborar um plano para a erradicação do escravismo na província através de compra
de alforrias em massa16, pretensões obviamente interrompidas com a promulgação
da Lei Áurea, dias depois.
Sua escola na capital era bem frequentada e até mesmo premiada nos
eventos comemorativos, mas o professor optou pela aposentadoria logo após sua
transferência para a nova cidade:
Sumariamente penhorado para com os senhores pais de família que me honraram com a sua confiança, incumbindo-me da instrução e da educação de seus diletos filhinhos lastimo ao deixar o magistério [...] Aos meus alunos e alunas [...] nada mais lhes poderei dizer [...] além do que lhes disseram as lágrimas que me embargaram a
voz, por ocasião do encerramento das escolas [...] Curitiba, 1º de julho de 1889 17.
A limitação das fontes impede que saibamos as motivações da aposentadoria,
o fato é que José Cleto tomou posse em outro cargo público imediatamente após o
afastamento do magistério. Porém, com o falecimento de sua esposa, passou a
dedicar-se novamente às salas de aula. Abriu uma escola particular na Rua Direita
em Curitiba, atual Rua 13 de Maio, a qual passou a administrar juntamente com
suas filhas. Deram o nome de “Escola dos bons meninos” e publicaram propaganda
em jornal: “Não se usam prêmios, nem castigos”18. Ao que tudo indica a escola da
família obteve sucesso e o professor Cleto optou por ampliá-la para o público adulto
voltando a viver a experiência das escolas noturnas. A escola foi reinaugurada na
Rua Aquidaban, atual Emiliano Perneta, chamando-a de “Colégio Cleto – escola
mista”, novamente em parceria com as filhas19. A última notícia que temos da escola
vem dos anúncios em jornal até 1910.
16 Biblioteca Nacional. Gazeta Paranaense, 3/4/1888, p.2. 17 Biblioteca Nacional. Dezenove de Dezembro, 2/7/1889, p. 3. 18 Biblioteca Nacional. Dezenove de Dezembro, 11/12/1889, p.3. 19 Biblioteca Nacional. A República, 4/5/1905, p. 4.
Por ocasião do falecimento de José Cleto em 1912, e mesmo anos depois,
foram expressivas as homenagens dedicadas a enaltecer papel do professor no
abolicionismo do Paraná. Atendendo ao pedido de amigos e antigos alunos de
Paranaguá, o governo doou um busto de bronze inaugurado em uma praça
parnanguara que recebeu o seu nome, em 1914, que foi dado também a uma rua
central da cidade natal do professor, a antiga Rua do Rosário, que ironicamente
cruza com a rua Dr. Leocádio e a uma escola pública da capital, também
ironicamente, situada na Rua Visconde de Nácar. Quase 80 anos após sua morte,
um de seus biógrafos, assim descreveu sua militância política:
Também, aquela República de cartolas e fraques, arejando em carruagens dignas do Império, não era a República de seus sonhos. A sua era a pátria dos negrinhos enjeitados de Paranaguá, que ele salvara da chibata, das centenas de jovens que, letra a letra, guiara para a vida paranaense. (TREVISAN, in: Gazeta do Povo, 19/3/1991: 51)
Mesmo após tantos anos, as homenagens ao professor criaram uma memória
que ressalta seu envolvimento com o abolicionismo e seu papel na inserção
educacional dos negros. Sua trajetória faz olhar de perto o complexo contexto de
crise de mão de obra e do regime monárquico, com os conflitos e as diversas
opções lançadas a ativistas empenhados na derrocada do escravismo e do
monarquismo. Talvez o elemento mais atrativo de José Cleto enquanto sujeito
dessas mobilizações esteja em sua própria identidade: afastada do elitismo
característico do ativismo abolicionista nos anos finais da escravidão, mas também
não pertencente às lutas encabeçadas pelos cativos e seus descendentes. A
especificidade de sua escola, nesse sentido, pode ter servido como ponte para a
ligação desses elos de militância, ao ter recebido escravos, libertos e outros grupos
populares para aulas ministradas por um indivíduo ligado ao governo, ao
associativismo das elites e às notícias do mundo chegadas pela Alfândega de
Paranaguá. José Cleto esteve nos entremeios das redes que caracterizaram o
movimento abolicionista nacional articulando essa realidade às salas de aula. Um
verdadeiro “revolucionário na pedagogia”, como diria Nestor Vitor (VITOR, 1943: 73)
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