criticas ao sistema o abolicionismo penal

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    Crticas Ao Sistema : O Abolicionismo Penal.Priscila Formigheri Feldens

    INTRODUO

    O presente trabalho se constitui em uma monografia jurdica, destinada a servir comorequisito parcial para a obteno do ttulo de bacharel em Direito. O tema escolhido versa

    sobre o sistema penal brasileiro e a teoria do abolicionismo penal. O estudo em anlise

    bastante oportuno porque seus contedos fazem parte da cincia criminolgica contempornea

    e vm sendo estudados em vrios pases do mundo. Ademais, questes como a fragilidade das

    teorias da pena, impunidade pelas autoridades, a estigmatizao gerada por um processo

    criminal, a seletividade dos delitos, a corrupo dentro dos rgos controladores, so

    argumentos abordados pela teoria abolicionista e que possibilitam a indagao sobre o nmerode benefcios e nus do direito penal.

    Essa pesquisa analisa as idias abolicionistas do direito penal, atravs de seu conceito,

    origem e desenvolvimento, seus principais defensores e opressores e respectivas sustentaes.

    Com esse enfoque, disserta sobre os pontos positivos e negativos de seus fundamentos para,

    ento, concluir se a teoria abolicionista se ajusta a realidade atual brasileira, ou se h outra

    poltica criminal mais adequada e o que esta sustenta. Ademais, a cincia penal colocada em

    discusso atravs do movimento abolicionista, o qual defende algumas solues extremas, oque propicia expor a todos que o direito penal no atinge a maioria de seus objetivos e, assim,

    estimular um senso crtico social que minimize a inclinao vingana punitiva arraigada na

    conscincia popular.

    Nessa esteira, a resposta sobre a possibilidade de aplicao das propostas

    abolicionistas, ou de outra mais adequada, revelada no transcorrer do trabalho, em seus trs

    captulos. Inicialmente, apresenta-se o surgimento do controle social, desde o perodo do

    contrato social, em que se ergueu o ius puniendi, at os dias de hoje, manifestado peloexerccio do sistema penal. Destarte, so analisadas a definio, a estrutura e a funo da

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    justia criminal, sem perder de vista a abordagem do direito penal, o qual considerado seu

    ncleo central.

    Posteriormente, num segundo captulo, exposto o iderio do abolicionismo penal nosvieses de seus diferentes sustentadores e de seu mais conhecido crtico, Luigi Ferrajoli. Por

    derradeiro, verifica-se a adequao da teoria em questo realidade social do Brasil, bem

    como a possvel existncia de outra doutrina mais ajustada.

    O marco terico deste estudo centra-se, principalmente, no pensamento de Louk

    Hulsman, Eugenio Ral Zaffaroni e Luigi Ferrajoli. Outrossim, o mtodo de abordagem

    utilizado para o desenvolvimento desta pesquisa o mtodo dialtico, o qual analisa um

    objeto (o sistema penal) em sua atividade contnua, tentando demonstrar o que falso everdadeiro, atravs de debates, questionamentos e argumentos.

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    1 O CONTROLE SOCIAL PENAL

    Desde os tempos primitivos, no perodo paleoltico da pr-histria1

    , havia conflitosentre os seres humanos que viviam isolados e com o intuito nico de sobrevivncia. Tais

    conflitos eram resolvidos diretamente entre as partes, de acordo com suas intuies, visto que

    no possuam regra alguma que regulasse suas relaes. Assim, cabia s pessoas daquele

    tempo a legitimidade para solucionar tais questes.

    Como explica Chau, para Thomas Hobbes (sculo XVII) e Jacques Rousseau (sculo

    XVIII), essas condies configuravam o chamado estado de natureza, o qual era visto de

    maneira um pouco distinta entre os dois pensadores. Hobbes defendia que o estado denatureza era a maneira de viver isoladamente numa situao permanente de guerra, onde

    predominava o medo da morte violenta. Dessa forma, como meio de defesa surgiram as armas

    e iniciou-se a demarcao de territrios. Entretanto, tal atitude era intil, pois no havia

    garantias, e a nica segurana era que o mais forte sempre vencia. 2 J Rousseau aduzia que

    [...] em Estado de Natureza, os indivduos vivem isolados pelas florestas,sobrevivendo com o que a Natureza lhes d, desconhecendo lutas e

    comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa lngua generosa ebenevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existemsob a forma do bom selvagem inocente, termina quando algum cerca umterreno e diz: meu. A diviso entre o meu e o teu, isto , a propriedadeprivada, d origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, aoEstado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos. 3

    Com o passar dos sculos, e a evoluo humana, as pessoas comearam a sentir a

    necessidade de acabar com essa exposio contnua ameaas, como tambm, de melhor se

    1 COTRIM, Gilberto. Histria global: Brasil e geral. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 1998, p. 13.2 CHAU, Marilena. Filosofia. 6 ed. So Paulo: tica, 1997, p. 399.3 Idem.

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    coordenarem entre si, diante da desagregao e da desorganizao em que viviam, pois esses

    fatores retardavam o seu desenvolvimento.

    1.1Controle Social

    Foi a partir da idade dos metais4, ainda na poca pr-histrica, que surgiu a civilizao

    como conseqncia de uma organizao social de homens que fatigados

    [...] de s viverem em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte,cansados de uma liberdade cuja incerteza de conserv-la tornava intil,sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurana. Asoma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiua soberania da nao; e aquele que ficou encarregado pelas leis comodepositrio dessas liberdades e dos trabalhos da administrao foiproclamado o soberano do povo. 5

    Nesse magistrio, Rousseau e outros pensadores, no sculo XVIII, desenvolveram a

    teoria do contrato social, sustentando que todos os cidados realizam um acordo com um

    poder maior, o Estado, limitando parcela de suas liberdades e obedecendo a determinadas

    normas estabelecidas em funo do alcance de um escopo: o bem comum. Desse modo, a

    concesso voluntria de parte da liberdade por cidados em situao de igualdade legitima o

    contrato social e forma a chamada vontade geral, que dever ser seguida e respeitada por

    todos. A respeito disso, Foucault manifesta:

    Ao nvel dos princpios, essa nova estratgia facilmente formulada na

    teoria geral do contrato. Supe-se que o cidado tenha aceito de uma vez portodas, com leis as da sociedade, tambm aquela que poder puni-lo. Ocriminoso aparece ento como um ser juridicamente paradoxal.Ele rompeu opacto, portanto inimigo da sociedade inteira, [...].

    Efetivamente a infrao lana o indivduo contra todo o corpo social; asociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele, para pun-lo. Lutadesigual: de um s lado todas as foras, todo o poder, todos os direitos. Etem mesmo que ser assim, pois a est representada a defesa de cada um. 6

    4 COTRIM, Gilberto, op. cit. p. 16.5 BECCARIA, Cesare.Dos delitos e das penas. So Paulo: Editora Martin Claret, 2003, p. 19.6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. 19 ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 76.

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    Todavia, o exerccio da punio daqueles que descumprem o contrato social

    delegado ao Estado, que o representante do povo e possui a responsabilidade de criar as leis,

    de acordo com os anseios e com os princpios gerais da coletividade e, conseqentemente, de

    observar seu cumprimento, exercendo o chamado controle social.

    Dentro de um paradigma sociolgico, Lakatos afirma que o controle social conceitua-

    se como a reao a uma conduta desviada atravs de suas sanes, que objetivam punir tal

    desvio, impedir sua repetio e modificar as condies que o propiciaram.7 Essa reao se

    intensifica na medida dos valores e dos princpios da coletividade controlada, sempre

    direcionada busca da solidariedade e do bem estar de seus componentes. Seguindo essa

    linha, o jurista Sica afirma que

    [...] pode-se dizer que existem dois fatores determinantes para a disciplinado controle social. O primeiro, a fixao de valores tidos como consensuais,que se sobrepe vontade individual, concretizando uma presso sobre oindivduo para que tenha certos comportamentos e, principalmente, seabstenha de outros. Essa determinao a base do conceito de bem-estarcomum. O segundo, consectrio do primeiro: a necessidade de garantir aordem contra os comportamentos desviantes.8

    O controle possui total vinculao com a existncia da vida social, pois ele surge a

    partir da sociedade e para ela. Lakatos referencia que, na concepo do socilogo Edward

    Ross (autor da primeira obra sobre controle social), o homem j nasce com os instintos da

    simpatia, da sociabilidade, do senso de justia e do ressentimento aos maus tratos, o que o

    torna apto a estabelecer um convvio equilibrado com os demais. Se no houvesse as

    alteraes complexas das sociedades, essa harmonia se tornaria mais fcil de ser conquistada.

    Portanto, nesse ponto que o controle social mostra-se necessrio, e os recursos ntimos do

    controle humano passam a ser substitudos por mecanismos artificiais como a lei, a opinio

    pblica, a crena, a religio, a sugesto social (tradio, convenes) a influncia de certas

    personalidades marcantes, a iluso e a avaliao social.9

    Nesse diapaso, verifica-se que os meios de controle social so plrimos, no bastando

    somente o seu exerccio atravs do Estado. Assim, podem ser informais (internos), como o

    exerccio da prpria conscincia atravs de valores e de princpios pessoais desenvolvidos

    7

    LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 5 ed. So Paulo: Atlas, 1986, p. 239.8 SICA. Leonardo.Direito penal de emergncia e alternativas priso . So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,p. 28.9 LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 247.

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    durante toda a vida, ou formais (externos), estabelecidos para a convivncia social. Mais

    especificamente, pode-se dizer que os

    [...] primeiros so os processos pelos quais a sociedade busca educar oindivduo, desde a infncia (famlia, escola, igreja etc.), interiorizandovalores e, em suma, formando uma conscincia que impea ou reprove aprtica de condutas que se desviem do padro tico-social decomportamentos. J os externos so os mecanismos, em regra punitivos,estabelecidos institucionalmente para reprimir e, em tese, prevenir e reprimiratos atentrios s normas. Aqui se corporificam as instncias formais decontrole, dentre as quais o sistema penal.

    As instncias formais atuam sempre a posteriori, ou seja, como reao

    desviao. Por isso o recuso quelas (informais) h que ser valorizado,devendo ter preferncia de atuao, pois pela sua atuao -nica eexclusivamente- podem ser definidas as bases de consenso as quais deveoperar o sistema penal.10

    Dentre as formas de sua efetivao, o controle social desenvolve-se com vis

    orientador (positivo), quando demonstrado como determinados cidados devem se portar, e

    com intuito repressor (negativo), quando esses so censurados pelo descumprimento de

    determinada instruo.

    11

    Ele tambm ocorre de maneira institucional, atravs do Estado, coma exigncia do cumprimento das normas, e no-institucional, com os ensinamentos recebidos

    diante da proliferao de princpios e de valores resultantes do simples convvio grupal. Como

    agentes deste ltimo se incluem a famlia, a escola, a igreja, o clube, os grupos econmicos,

    polticos e qualquer outro agrupamento de pessoas que possuem ideais prprios a serem

    seguidos.12 Assim, o controle social se efetua de acordo com o tamanho de cada grupo, com

    as pessoas que nele se encontram, com os objetivos e com a intensidade de inter-relao das

    mesmas. Alm disso, varia conforme os instrumentos utilizados para seu exerccio.

    Ainda, cabe dizer que algumas classes privilegiadas, tanto econmica quanto

    intelectualmente, utilizam-se de interesses e de discursos prprios para desenvolver um maior

    controle sobre outras com menos privilgios. Uma amostra exorbitante disso o poder

    influenciador da mdia que, atravs da maneira pela qual transmite uma informao, consegue

    induzir concluses e modificar pensamentos. Neste sentido, os

    10 SICA, Leonardo, op. cit. p. 29.11 LAKATOS, Eva Maria, op. cit. p. 249.12 Ibidem, p. 150.

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    [...] habitantes do mundo ps-moderno j se acostumaram a apreender o realatravs da intermediao miditica, j se acostumaram a trocar asexperincias direitas da realidade pelas experincias do espetculo darealidade, a trocar at mesmo sua identificao, sua comunicao e muitos de

    seus afetos por vivncias transmitidas e emoes formadas pela televiso,pelas revistas e pelos jornais. 13

    por intermdio desse controle realizado pelos meios de comunicao que se

    intensificam as exigncias de outra instncia de controle, a do sistema penal. Essa esfera ,

    segundo Zaffaroni, a parte do controle social que resulta institucionalizado em forma

    punitiva e com discurso punitivo [...]14

    Com fulcro nesse discurso punitivo, a mdia promove a divulgao dos conflitospenais repetidamente, de modo exacerbado e com fundo emocional, intensificando o terror e a

    insegurana gerada pela violncia com o intuito de elevar a audincia popular. Desse modo, a

    [...] fora ideolgica da enganosa publicidade do sistema penal cria a falsa crena que faz

    com que o controle social, fundado na interveno do sistema penal, aparea como nica

    forma de enfrentamento de situaes negativas ou condutas conflituosas.15

    O sistema penal estabelece um controle sobre a sociedade atravs do Estado, que o

    responsvel pela mantena da ordem em prol do bem-estar social. Quando as leis impostaspelo Estado so violadas, cabe-lhe aplicar uma sano, a pena, que, alm de punir, objetiva

    prevenir a prtica de novos crimes pelo acusado e servir de exemplo aos outros cidados para

    que tambm no o faam. nessa seara que a mdia interfere com seu discurso emocional,

    provocando a comoo social e apelando para o rigorismo das sanes com um controle mais

    rgido pelos rgos estatais, alm de estimular estes a tomarem providncias em que diversas

    vezes no cabem a eles.

    Nesse sentido, so as outras esferas de controle que devem se consolidar. Conforme

    Queiroz o Sistema Penal tem, dentro do controle social global, um papel secundrio,

    puramente confirmador de outras instncias,16 ou seja, caso a famlia, a escola, e as outras

    13 KARAM, Maria Lcia.Pela Abolio do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso livre deabolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77,78.14 ZAFFARONI, Jos Henrique Pierangeli; Eugenio Ral. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4 ed.

    So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 69.15 KARAM, Maria Lcia, op. cit. p 103.16 QUEIROZ, Paulo. Eficientizao do controle social no-penal ,IBCCRIM. Disponvel na internet: Acesso em: 08 ago. 2005.

    http://www.ibccrim.org.br/http://www.ibccrim.org.br/http://www.ibccrim.org.br/http://www.ibccrim.org.br/
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    instituies sociais falharem ou no forem totalmente exploradas, o controle penal deve agir.

    Nessa mesma direo, Queiroz defende que fundamental

    [...] privilegiar outras instncias de controle social (famlia, escola,informao, etc.), por meio sobretudo da democratizao da preveno e daeficientizao do controle administrativo, reservando a interveno penalpara situaes absolutamente irrenunciveis, segundo os princpios deadequao, lesividade, proporcionalidade, porque, definitivamente, ocontrole da criminalidade tem, em verdade, pouco a ver com o controlepenal.17

    Entretanto, flagrante que o controle social no ocorre desse modo, porque se realiza

    por diversos mbitos e em diferentes intensidades, tendo em vista a preferncia de interesses e

    a urgncia do controle. Em conformidade, Zaffaroni e Pierangeli ressaltam que o

    [...] controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos difusos eencobertos at meios especficos, como o sistema penal (polcia, juzes,agentes penitencirios, etc.). A enorme extenso e complexidade do

    fenmeno do controle social demonstra que uma sociedade mais ou menosautoritria ou mais ou menos democrtica, segundo se oriente em um ououtro sentido a totalidade do fenmeno e no unicamente a parte do controlesocial institucionalizado ou explcito. 18

    Enfim, possvel dizer que o controle social se manifesta atravs de diversas facetas

    no cotidiano de todos os cidados, tanto por estmulos internos, como por instrumentos

    externos, os quais muitas vezes inobservados, ocasionam determinadas punies aos membros

    da sociedade. O controle social se demonstra mais eficiente e til na medida em que se

    valoriza o conjunto de suas esferas, priorizando aquelas com menos prejuzos s pessoas. Para

    tanto, cabe aos cidados uma maior conscientizao sobre as intenes de controle, bem como

    uma mobilizao a favor de polticas pblicas para um maior direcionamento ao controle

    informal, atravs de implementao de programas de apoio e de desenvolvimento para a

    17QUEIROZ, Paulo. Eficientizao do controle social no-penal ,IBCCRIM. Disponvel na internet: Acesso em: 08 ago. 2005.18 ZAFFARONI, Eugenio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique, op. cit. p. 61,62.

    http://www.ibccrim.org.br/http://www.ibccrim.org.br/http://www.ibccrim.org.br/http://www.ibccrim.org.br/
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    famlia, a escola, a igreja e outras instituies, assim se mostrar desnecessria a interveno

    formal em diversos casos.

    1.2Ius puniendi

    Como explicado anteriormente, em certo momento de progresso da sociedade foi

    concedido ao Estado, como manifestao de sua soberania, o encargo de exercer determinado

    controle social. Para isso, criou normas com o propsito de proteger os interesses dos

    cidados.

    No entanto, verificada a possibilidade de a proteo normativa falhar, ou constatada a

    no observncia dos mandamentos legais por todos os integrantes da sociedade, foi outorgado

    unicamente ao Estado o exerccio de um poder-dever denominado ius puniendi. Este, ao

    mesmo tempo em que entendido como um direito, demonstra uma obrigao estatal de punir

    o indivduo que perturba a harmonia social ao no considerar o preceito das normas. Dessa

    maneira, o direito de punir se exibe abstratamente com a instituio das leis ao prever uma

    possvel pena a ser empregada queles que as infrinjam. Entretanto, quando essa violao

    legal se concretiza, cabe ao Estado o dever efetivo de aplicar a punio adequada ao

    responsvel transgressor.19

    Conforme Mossin, o dever concreto de punir do Estado decorre de sua prpria

    atividade poltica voltada ao interesse coletivo, ao equilbrio societrio que deve haver entre

    os cidados. 20 nesse supedneo que se alicera a legitimao do poder estatal em limitar o

    jus libertatis dos cidados, medida que isso seja necessrio para conservar o bem estar

    social. Desse modo, o estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punvel emconservar a sua liberdade se subordine ao seu, que o de restringi- la com inflio de pena. 21

    importante acentuar, entretanto, que o dever-poder do Estado de diminuir a liberdade

    de agir das pessoas tambm possui suas restries. Foi a partir do desenvolvimento das

    doutrinas liberais do iluminismo no sculo XVIII, resultante na queda dos governos

    absolutistas, que passaram a ser desenvolvidas idias de conteno do poder estatal, como

    explica Zeidan:

    19 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.Manual de processo penal. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 6.20 MOSSIN, Herclito Antnio. Curso de processo penal. vol. 1. So Paulo: Atlas, 1998, p. 75.21 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, op.cit. p. 6.

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    [...] reiterar na Constituio de 1988 o postulado da Reserva Legal, o

    constituinte brasileiro no somente manteve um princpio j secularmenteincorporado ao direito ptrio, mas se aliou s Constituies e ao CdigoPenais de quase totalidade das Naes j que o mencionado princpio umaessencial garantia a liberdade e de objetiva justia.25

    Quanto concepo da taxatividade derivada do princpio da legalidade, pode-se

    entend-la como a necessidade de a lei ser clara e determinada, no passvel de ambigidades,

    de compreenso ampla, ou ento, de espao aberto para vastas interpretaes. Diante disso,

    Toledo explica que

    A exigncia da lei certa diz com a clareza dos tipos, que no devem deixarmargens a dvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tiposincriminadores genricos, vazios. Para que a lei penal possa desempenharfuno pedaggica e motivar o comportamento humano, necessita serfacilmente acessvel a todos, no s aos juristas.26

    Por sua vez, o postulado da irretroatividade legal, capitulado no artigo 5 inciso XL da

    Constituio Federal, exprime a impossibilidade de a lei retroagir no tempo, exceto para

    beneficiar o ru. Dessa maneira, se a lei que vier a viger for mais benfica ao acusado, esta

    ser aplicada ao caso, mesmo que tenha sido anterior lei. Entretanto, se a nova lei puder

    causar algum dano ao agente delitivo, no ser empregada. possvel, portanto, afirmar que a

    [...] regra da retroatividade benigna, ao projetar seus efeitos para o passado,acaba atuando como fator de equalizao das diferenas, de tal modo que oindivduo condenado sob o imprio da lei mais gravosa possa vir tambm ase beneficiar dos efeitos da lei posterior, instrumentalizadora da nova visoda sociedade sobre o mesmo fato.27

    25

    LUISI, Luiz. Os princpios constitucionais penais. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 23, 24.26 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal. 5 ed. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 29.27 BOSCHI, Jos Antonio Paganella.Das penas e seus critrios de aplicao. Porto Alegre: Livraria dosAdvogados, 2000, p. 45.

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    Diante dos trs preceitos expostos, vale salientar que o princpio da legalidade se

    realiza ao determinar a fixao normativa do contedo penal, a forma e o tempo em que ele

    atua. Nesse proceder, atravs da lei que cabe ao Estado o poder de instituir as condutas

    consideradas como proibidas e prejudiciais vida social e as suas respectivas penas. No

    entanto, isso se faz com devidas restries de como tais normas devem funcionar, para

    garantir proteo queles que se subjugam a elas.

    Como o princpio da legalidade, h outros princpios expressos ou implcitos na

    Constituio Federal que servem como limitadores do ius puniendi e que devem ser

    examinados. Entre esses, primeiramente, oportuno destacar o princpio da interveno

    mnima, o qual defende que a atividade penal deve proceder somente subsidiariamente, ou

    seja, ser utilizada em ltima hiptese para a resoluo dos conflitos e no protegendo de forma

    absoluta os interesses sociais. Destarte, deve-se dar preferncia legislativa a outras esferas de

    controle, que no sejam a penal, com o intuito de se precaver dos possveis prejuzos que a

    interferncia rgida do sistema criminal possa causar.28 No obstante, tal atuao, entendida

    como rgida ou severa, no descartada, pois utilizada na ocorrncia de leses graves a bens

    jurdicos de grande relevncia sociedade. Ainda, Boschi destaca:

    O princpio da interveno mnima e fragmentria do direito penal, naconcepo garantista, traduz, portanto, proposio substitutiva do EstadoPenal por um Estado (mais) Social, de modo a que o direito penal, comosoldado de reserva, s seja convocado a atuar como derradeira alternativa. 29

    O princpio da humanidade, encontrado em vrios artigos da Constituio Federal,

    tambm se apresenta como princpio constitucional limitador e delimita, no plano penal, a

    aplicao desmedida da pena sem considerar os valores basilares da dignidade humana. At

    porque, como expressa Zeidan,

    [...] inadmissvel que, num Estado Democrtico de Direito, ao exercitar apotestade punitiva, submeta as pessoas a tratamento desumano oudegradante. Se o Estado consagra o princpio da humanizao como DireitoFundamental, no o pode, mesmo no exerccio do ius puniendi, transgredi-loem desfavor de seu povo.30

    28 ZEIDAN, Rogrio, op. cit. p. 64.29 BOSCHI, Jos Antonio Paganella, op.cit p. 50.30 ZEIDAN, Rogrio, op. cit. p. 71.

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    O princpio da culpabilidade outro que deve ser mencionado, pois aduz que ningum

    ser incriminado sem ser culpado. Desse modo, a apurao da culpa na conduta do agente da

    conduta danosa pressuposto indisponvel para penalizao daquele. Nesse propsito, o

    [...] princpio da culpabilidade deve ser entendido, em primeiro lugar, comorepdio a qualquer espcie de responsabilidade pelo resultado, ouresponsabilidade objetiva. Mas deve igualmente ser entendido comoexigncia de que a pena no seja infligida seno quando a conduta do sujeito,mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovvel.31

    Por sua vez, o princpio da proporcionalidade, apesar de ser utilizado em diversas reas

    legais, cabvel de destaque na esfera penal. A partir dele, exige-se a existncia de equilbrio

    entre a gravidade do delito praticado pelo delinqente e a pena a ele aplicada. De acordo com

    Crrea Jnior e Shecaira, para uma sano ser determinada devem ser observados o bem

    jurdico protegido, os meios utilizados para a penalizao e os fins alcanados ou

    objetivados.32 Mais especificadamente, os autores argumentam:

    Em matria penal, o princpio da proporcionalidade deve ser observado emtrs momentos distintos, ou seja, no momento legislativo de cominao dasano penal, no momento judicial de aplicao da pena em concreto etambm no momento da execuo da pena. No primeiro momento, olegislador deve considerar a conduta que est tipificando e cominar umapena proporcional gravidade do delito. Por outro lado, no segundomomento, o juiz deve considerar a conduta efetivamente praticada peloagente e aplicar uma pena proporcional gravidade objetiva do fatopraticado. 33

    Com outra orientao, o princpio do fato contemplado implicitamente em alguns

    dispositivos constitucionais, ao determinar que qualquer indivduo se sujeita a uma punio

    conforme o crime cometido, no por fatores pessoais e ntimos, como a maneira de pensar ou

    viver. Na posio de Zeidan, o [...] princpio do fato pode ser violado atravs de duas formas:

    31 BATISTA, Nilo.Introduo crtica ao direito penal brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 103.32

    CORRA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Srgio Salomo. Teorias da pena: finalidades, direito positivo,jurisprudncia e outros estudos de cincia criminal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 89.p. 89.

    33 Idem.

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    pela incriminao direta de atitudes internas ou pela punio de fatos carentes de lesividade,

    utilizados como mero sintoma de nimo.34

    Por fim, compete atentar-se ao princpio da exclusiva proteo de bens jurdicos,segundo o qual, como a prpria denominao demonstra, o sistema penal deve ser acionado

    somente para o amparo de bens jurdicos protegidos legalmente e, quando atingidos, causem

    srios danos aos cidados. Esse princpio impede que o Direito Penal sirva proteo de todo

    e qualquer tipo de interesse, de estratgias ou de convices morais, cuja leso careceria de

    uma autntica repercusso negativa na sociedade.35

    Diante do exposto, cabe notar que o Estado detm soberanamente o poder-dever de

    punir os integrantes da vida social, desfrutando dos instrumentos normativos para talfinalidade. Todavia, mais evidente ainda o fato de que das prprias normas que emergem

    os limites do ius puniendi, o que revela a existncia de garantias aos cidados perante o Estado

    e que [...] o poder de um Estado social e democrtico de Direito no um poder absoluto,

    mas submetido a limites. 36

    1.3Sistema penal

    A palavra sistema pode ser conceituada como um complexo de instrumentos

    interligados e ordenados, que se dirigem a um determinado fim, ou como melhor explica

    Dotti:

    O vocbulo sistema tem origem grega (systema) e significa reunio,conjunto, mtodo, organizao, totalidade. Pode-se definir sistema como umconjunto de dois ou mais elementos que satisfazem trs condies: a) ocomportamento de cada elemento afeta o comportamento do todo; b) ocomportamento dos elementos e dos seus efeitos no todo sointerdependentes; c) nenhum dos elementos tem um efeito autnomo. possvel, ento, falar-se em sistema de Governo, sistema econmico, sistemamonetrio, sistema de trabalho, sistema mtrico, etc., bem como de umsistema jurdico que institudo para regular as atividades dos indivduos, dasociedade e do Estado em suas relaes determinadas pelo Direito. Dentro dosistema jurdico se estabelecem os vrios regimes jurdicos e se fundamvrias instituies legais. 37

    34

    ZEIDAN, Rogrio, op. cit. p. 60.35 Ibidem, p. 61.36 Ibidem, p. 55.37 DOTTI, Ren Ariel. Curso de direito penal: parte geral.Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 4.

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    Dentre os sistemas jurdicos, faz-se presente o sistema penal, que se diferencia dos

    demais por fazer uso do ius puniendi para atuar e ser entendido como um conjunto de meios

    relacionados, inclinados anlise do fenmeno delitivo e de seus agentes, criao de normas

    penais e ao cumprimento destas. Outrossim, atua atravs de seus elementos punitivos impondo

    normas de conduta. Se as mesmas no so obedecidas, configura-se a existncia de um delito,

    com o que se inicia o chamado processo de criminalizao. Nessa linha de raciocnio,

    Zaffaroni e Pierangeli referem que

    [...] chamamos de sistema penal ao controle social punitivo

    institucionalizado, que na prtica abarca a partir de quando se detecta ousupe detectar-se uma suspeita de delito at que se impe e executa uma

    pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei, queinstitucionaliza o procedimento, a atuao dos funcionrios e define oscasos e condies para esta atuao.38

    Dessa forma, o sistema penal utiliza diferentes setores para exercer suas atividades e,

    como explica Bianchini, abrangido por agentes de criao (Legislativo), de aplicao

    (Judicirio e aparelhos policiais) e de execuo, alm dos cidados, que tambm so partes

    atuantes e interferem nos demais agentes citados.39 Sabe-se que as [...] funes tpicas do

    Poder Legislativo so legislarefiscalizar,40 mas, especificadamente no direito penal, cabe-

    lhe a elaborao de normas tipificadoras das condutas delitivas, como tambm daquelas

    responsveis pela sua preveno, pela sua punio e pela sua persecuo. No concernente aos

    agentes de aplicao, cabem aos rgos policiais impor as devidas limitaes aos bens

    jurdicos individuais (polcia administrativa), prevenir a prtica delitiva (polcia de segurana)

    e investigar e apurar os delitos buscando seus responsveis (polcia civil).41 De outro modo,

    [...] cumpre aos juzes e tribunais declarar o delito e determinar a pena proporcional aplicvel

    [...].42 Ainda nessa mesma categoria, deve-se salientar a participao do Ministrio Pblico,

    o qual defende os interesses da sociedade, sendo fiscal da lei e plo ativo em vrias aes

    38 ZAFFARONI, Eugenio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique, op.cit. p. 70.39 BIANCHINI, Alice. A seletividade do controle penal.Revista IBCCRIM, So Paulo, ano 8, n. 30, abr/jun,2000 , p. 60.40

    MORAES, Alexandre.Direito Constitucional. 7 ed. So Paulo: Atlas, 2000, p. 361.41 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. op.cit. p. 58,59.42 LOPES JNIOR, Aury. Sistemas de Investigao Preliminar no Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: LumenJris, 2003, p. 7.

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    penais.43 Finalmente, aos rgos de execuo toca o cumprimento da deciso judicial. Esse

    setor constitui-se por meio das instituies carcerrias e do Judicirio, que fiscaliza o

    cumprimento das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos.

    Cada uma dessas agncias penais parcela indisponvel para o funcionamento

    coordenado do sistema penal, as quais pressupem uma organizao entre si de forma

    ordenada e interligada, com auxlio recproco para todas atingirem seus fins. Em

    contrapartida, Zaffaroni e Pierangeli declaram:

    O complicado jogo de identidades artificiais, criadas pelo prprio exerccio

    do poder do sistema penal, introduz antagonismos entre os operadores dasdiferentes agncias do poder. Estes antagonismos provocam a imputaorecproca de que aquilo que se considera falhas conjunturais do sistemapenal, na realidade so caractersticas estruturais dos mesmos.Estas imputaes recprocas provocam uma compartimentalizao dasagncias do sistema penal, j que cada um deve defender seu prprioexerccio de poder frente s outras. Ao encastelar-se para defender seu poder,cada agncia o exerce com absoluta indiferena - e at desconhecimento ouignorncia - em relao s restantes e, muito mais ainda, em relao aoresultado final da operacionalidade do conjunto, sobre o qual no tem sequera possibilidade de se informar.

    Desta forma, no correto referir-se a um sistema penal quando, emrealidade, trata-se de um conjunto heterogneo de agnciascompartimentalizadas, razo pela qual usamos a expresso apenas por suaconsagrao tcnica. Na realidade, por sistema penal entendemossimplesmente a soma dos exerccios de poder de todas as agncias queoperam independentemente e, de modo algum, aquilo que a palavrasistema quer assinalar no terreno da biologia ou em outros anlogos. 44

    De qualquer modo, presente ou no uma interdependncia entre os setores penais,

    todos se consolidam por meio de um mesmo ncleo denominado direito penal, refletidocomo um sistema normativo45 que se insere dentro do sistema penal como base indissolvel.

    43 Ver artigo 129 da Constituio Federal Brasileira.44 ZAFFARONI, Eugenio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique, op. cit. p. 144.45 Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do ordenamento jurdico (p.77/80, 1999) explica trs diversosfundamentos histricos e filosficos para um conjunto de normas ser denominado como sistema. No primeiro,defende-se que a organizao sistmica das normas deve-se constatao que todas elas resultam de princpiosgerais, os quais so postulados de derivao.O segundo fundamento sustentado atravs de um processo

    indutivo, em que se constroem conceitos sempre mais gerais a partir do contedo de simples normas e, assimocorrendo, o ordenamento do material jurdico.Por fim, a terceira argumentao apia-se na incompatibilidadedas normas, ou seja, devem ser compatveis, demonstrando, assim, um certo relacionamento entre elas, o qualno possibilitar qualquer norma desarmnica.

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    Tal importncia se explica diante da anlise de que inexistindo o crime, o qual oriundo do

    direito penal, no subsiste o sistema penal, pois este perde sua razo de ser.

    O delito existe a partir do momento em que determinado ato cometido em desacordocom ordenamento penal, produzindo a realizao de um tipo penal, que consiste na [...]

    descrio abstrata de um fato real que a lei probe [...].46 O intuito de tal vedao a proteo

    de bens de intensa proeminncia individual e social, como a vida, a liberdade, a intimidade, a

    integridade fsica e vrios outros.

    Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli o [...] tipo penal um instrumento legal,

    logicamente necessrio e de natureza predominantemente descritiva, que tem por funo a

    individualizao de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem penalmenteproibidas).47 Nesse sentido, os tipos penais so constitudos atravs da atividade legislativa

    por meio de normas incriminadoras, originando, assim, junto a outras categorias de leis, o

    direito penal. Nessa linha, Bitencourt acrescenta que o

    [...] Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurdicas quetem por objeto a determinao de infraes de natureza penal e suas

    sanes correspondentes - penas e medidas de segurana. Esse conjunto denormas e princpios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornarpossvel a convivncia humana, ganhando aplicao prtica nos casosocorrentes, observando rigorosos princpios de justia.48

    J, no entendimento de Dotti, o direito penal um complexo de leis que, por meio de

    interpretao do Estado, expressa o interesse pblico ao prever e ao estabelecer as condutas

    proibidas e suas sanes e ao empregar normas para manter o convvio em sociedade e bens

    jurdicos fundamentais resguardados.49

    Ademais, o direito penal pode ser percebido por duasdirees. Objetivamente, reputa-se como a totalidade de regras e de princpios de direito

    pblico, responsveis pela regulao dos comportamentos delituosos. Por um vis subjetivo,

    pode ser verificado como o prprio direito de punir (ius puniendi). 50

    46 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro:parte geral. vol. 1. 3 ed. So Paulo: Revista dosTribunais, 2002, p. 289.47 ZAFFARONI, Eugenio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique, op. cit. 443.48

    BITENCOURT, Csar Roberto. Manual de direito penal: parte geral . vol. 1. 6 ed. So Paulo: Saraiva, 2000,p. 2.49 DOTTI, Ren Ariel, op. cit. p. 48.50 ZEIDAN, Rogrio, op cit. p. 51.

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    O direito penal possui caractersticas peculiares e devidas ao seu objeto, funo,

    mbito de atuao, entre outros fatores. Explicitamente, considerado normativo por utilizar

    normas para realizar suas atividades e atravs daquelas, existir. Tambm, [...] direito

    pblico por excelncia, posto que os objetos da tutela jurdica so os bens que dizem respeito

    comunidade organizada em Estado. A sano penal aplicada pelos rgos estatais e sempre

    no interesse coletivo.51 Mostra-se autnomo dos demais ramos jurdicos ao reger-se por

    princpios e por normas prprias.

    Quanto a um trao constitutivo, Zaffaroni explica que tal caracterstica excepcional

    no direito penal, que contribui para a criao da antijuridicidade somente em alguns casos,

    tendo manifestado, em sua maior parte, seu carter sancionador.52 Em contraponto, Bitencourt

    defende que

    [...] preciso reconhecer a naturezaprimria e constitutiva do Direito Penal-e no simplesmente acessria-, pois protege bens e interesses no protegidospor outros ramos do Direito, e, mesmo, quando tutela bens j cobertos pelaproteo de outras reas do ordenamento jurdico, ainda assim, o faz deforma peculiar, dando-lhes nova feio e com distinta valorao. 53

    As feies sancionadora e coercitiva do direito Penal manifestam-se pelo emprego desanes (penas e medidas de segurana) para a preveno e represso de atos que

    desobedeam s leis penais. Outrossim, Zaffaroni e Pierangeli destacam que a forma pela qual

    o direito penal prov a segurana jurdica, atravs da coero penal, diferencia dos demais

    ramos.54 nesse sentido, da sano e da coero, que o carter preventivo do direito penal

    apresenta-se, pois [...] antes de punir o infrator da ordem jurdico-penal, procura motiv-lo

    para que dela no se afaste, estabelecendo normas proibitivas e cominando as sanes

    respectivas, visando evitar a prtica do crime.55

    Por meio dessas ltimas caractersticas, referencia-se a grande valia atribuda pena

    para a realizao dos encargos penais. Tal importncia se evidencia tambm na constatao de

    51 DOTTI, Ren Ariel, op. cit. p. 50.52

    ZAFFARONI, Eugenio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique, op. cit. p. 102.53 BITENCOURT, Csar Roberto, op. cit. p. 62.54 ZAFFARONI, Eugenio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique, op. cit p. 100.55 BITENCOURT, Csar Roberto, op. cit. p. 4.

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    que [...] todos os mecanismos de atuao do sistema penal confluem para a imposio da

    pena, meio pelo qual o sistema efetivamente se concretiza.56

    A pena um instrumento peculiar do sistema penal utilizada para o controle social, oque se realiza por meio das funes conferidas quela. Na legislao brasileira, tais funes

    podem ser verificadas no artigo 59 do Cdigo Penal 57, ao estabelecer que a pena, sua

    quantidade, seu regime e possvel substituio por outra espcie, sero aplicadas conforme

    seja necessrio e suficiente para a reprovao e a preveno do crime.

    Os encargos atribudos pena de reprovar e de prevenir o delito se originaram de

    diferentes teorias. A primeira a chamada teoria absoluta ou retribucionista, que teve como

    propulsor o filsofo Emmanuel Kant, o qual sustentava

    [...] que a aplicao da pena constitua-se em um imperativo categrico,resumindo sua posio retribucionista (retribuio moral) da seguinte forma:caso um Estado fosse dissolvido voluntariamente, dever-se-ia antes executar oltimo assassino que estivesse no crcere, a fim de que sua culpabilidade norecasse sobre todo o povo que deixou de exigir a sano. Se assim noprocedesse o povo, poderia ento ser considerado partcipe da leso pblicada justia.58

    Seguindo a mesma linha, Hegel posiciona-se afirmando que a pena resultado jurdico

    e necessrio do crime, e dialeticamente a negao da negao do direito, como instrumento

    restaurador da ordem atingida.59 Desse modo, a partir desses posicionamentos que a teoria

    absoluta passa a ser desenvolvida e, assim, entendida como aquela que

    56 SICA, Leonardo, op. cit. p. 32.57Art. 59. O juiz, atendendo culpabilidade, aos antecedentes, conduta social, personalidade do agente, aosmotivos, s circunstncias e conseqncias do crime, bem como ao comportamento da vtima, estabelecer,conforme seja necessrio e suficiente para reprovao e preveno do crime: I- as penas aplicveis dentre ascominadas; II- a quantidade da pena aplicvel, dentro dos limites previstos; III- o regime inicial de cumprimento

    da pena privativa de liberdade; IV- a substituio da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espcie depena se cabvel.58 CORRA JUNIOR, Alceu . SHECAIRA, Srgio Salomo, op. cit. p.130.59 SICA, Leonardo, op. cit. p. 57.

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    [...] atribui pena um carter retributivo, ou seja, a sano penal restaura aordem atingida pelo delito. Essa repristinao, pretendida pelos adeptos dateoria absoluta, ocorre com a imposio de um mal, isto , uma restrio aum bem jurdico daquele que violou a norma. Com efeito, a teoria absoluta

    encontra na retribuio justa no s a justificativa para a pena (legitimaoda interveno penal), mas tambm a garantia de sua existncia e oesgotamento de seu contedo. Assim todos os demais efeitos (intimidao,correo, supresso do meio social) no guardariam qualquer relao com anatureza da pena.60

    Sucintamente, a posio absoluta da pena pretende retribuir o dano causado a bem

    jurdico penalmente protegido, atravs de um castigo. Afinal, como alega Sica, difcil no

    haver o entender de pena como castigo, visto que tal pensamento est arraigado idia da

    correspondncia de um mal por outro, demonstrando uma reao irracional do homem que

    perdura h anos, acompanhando a histria da pena. 61

    Em desconformidade com esse raciocnio, alguns estudiosos passam a analisar

    diversamente as finalidades providas da pena. Ainda como Sica explica, foi atravs de Ferri,

    Lombroso e Garfalo, que compunham a Escola Positiva e se direcionavam mais

    intensamente ao estudo do criminoso do que ao delito em si, que foi impulsionada a idia de

    tratar e de neutralizar os condenados atravs da aplicao da pena.62 Nesta perspectiva, a pena

    passou a ter o encargo de preveno anteriormente citado, originando a teoria relativa ou

    prevencionista da pena, que se ocupa desta para prevenir que os membros da sociedade

    cometam crimes como os delinqentes apenados e que esses, por sua vez, no incidam no

    mesmo erro novamente. Nessa esteira, Toledo traduz as idias relativas afirmando que

    [...] por meio de cominao de penas, para o comportamento tipificadocomo ilcito penal, visa o legislador atingir o sentimento de temor

    (intimidao) ou o sentimento tico das pessoas, a fim de que seja evitada aconduta proibida (preveno geral). Falhando essa ameaa, ou esse apelo,transforma-se a pena abstratamente cominada, com a sentena criminal, emrealidade concreta, e passa, na fase de execuo, atuar sobre a pessoa docondenado, ensejando sua possvel emenda efetiva neutralizao (prevenoespecial).63

    60

    CORRA JUNIOR,Alceu. SHECAIRA, Srgio Salomo, op. cit. p. 130.61 SICA, Leonardo, op. cit. p. 57.62 Ibidem, p. 59.63 TOLEDO, Francisco de Assis, op.cit. p. 3.

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    No concernente primeira espcie de preveno penal, denominada como geral, so

    constatveis duas modalidades prevencionistas: uma negativa e a outra positiva. De um lado, a

    preveno negativa objetiva que as pessoas se omitam de se comportar ilicitamente ao

    conhecerem suas conseqncias, ou como ensina Boschi, a

    [...] punio serviria tambm como bom exemplo para que os outros nosigam os mesmos passos do criminoso. Desse modo, ainda na base da teoria,castiga-se o criminoso para que a sociedade permanea em estado de alerta,reforce o sentimento de confiana no direito e, ao mesmo tempo, tambmdisponha de uma boa defesa contra o criminoso e crime.64

    De outro lado, a concepo positiva ou integradora de preveno geral pretende

    relembrar o dever de obedincia s normas impostas pelo Estado e reforar a possibilidade de

    alcance da justia. Alm disso, possui duas linhas de orientao, conceituadas como

    fundamentadora e limitadora.

    A perspectiva fundamentadora alega que a pena exerce uma funo de amparo a

    valores ticos que devem ser mantidos na vida social. Quando as normas so violadas, tal

    objetivo demonstra-se no atingido. Desse modo, a pena direciona-se ao estmulo das

    condutas em conformidade com as leis e com os princpios. Bitencourt refere em destaque

    Ginter Jakobs65 como um dos representantes dessa linha terica, entretanto explica que em

    sua formulao, Jakobs no acredita que se intente a proteo de valores ou de bens jurdicos

    por meio da preveno penal.66 Em relao funo limitadora da preveno geral positiva,

    defendido que a penalizao deve ocorrer de forma limitada. Tal limite estabelecido por

    princpios protetivos, que devem ser seguidos e servirem como orientao na preveno

    atravs da pena.

    No tocante segunda espcie de preveno, qualificada como especial, menciona-se

    o ensejo de impedir que o agente de um crime reitere tal prtica. Shecaira e Corra Jnior

    ensinam que atualmente, [...] tambm se divide a preveno especial em dois sentidos, ou

    seja, um negativo (neutralizao pela priso) e outro positivo (reinsero social). 67 Nesse

    sentido, tem-se verificado que enquanto os delinqentes so mantidos no crcere, a

    64 BOSCHI, Jos Antonio Paganella, op. cit. p. 113.65 Sobre a linha terica deste autor, vide Um novo sistema de direito penal: consideraes sobre a teoria de

    Ginter Jakobs, escrito por Enrique Pearanda Ramos, Carlos Surez Gonzles e Manuel Cancio Meli,traduzido por Andr Luiz Callegari e Nereu Jos Giacomolli. Barueri. So Paulo: Manole, 2003.66 BITENCOURT, Czar Roberto, op.cit. p. 86.67 CORRA JUNIOR, Alceu. SHECAIRA, Srgio Salomo, op. cit. p. 133.

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    neutralizao destes acontece, pois, nesse perodo no praticam delitos na sociedade e nem

    causam danos a seus membros. Entretanto, inegvel que, por intermdio da pena, deve-se

    reeducar o condenado com a pretenso de reintegr-lo futuramente na vida social, atravs de

    um processo de ressocializao, e, assim, impedi-lo de incidir em novos crimes. Essa posio

    se evidencia na legislao penal brasileira atravs do artigo 1 da Lei de Execuo Penal.68

    Ademais, considervel referir tambm que, diante das teorias expostas, h ainda

    aqueles que abrigam as teses de retribuio e de preveno concomitantemente, as quais so

    nomeadas como eclticas. Em consonncia a isso, Boschi relata que, no vis dessa teoria

    mista, alm desse binmio de retribuir e de prevenir, a pena tem como principal misso

    defender a sociedade e, secundariamente, reinserir o criminoso na sociedade sem danos a

    ele.69

    Em suma, possvel averiguar que o sistema penal existe com a pretenso de amparar

    bens jurdicos de intensa importncia para as relaes em sociedade. Mostra-se como uma

    expresso do controle social ao servir-se do direito de punir do Estado para desempenhar suas

    funes atravs da pena, a qual, fundamentada por diferentes feies de retribuio e

    preveno, atribuda aos indivduos que descumprem os preceitos comportamentais

    impostos pelas normas do direito penal. Este, alm de definir fatos tipificados como crime esuas respectivas penas, integrado por princpios orientadores, que tambm so

    indispensveis vida social e, principalmente, garantia do direito de liberdade dos cidados

    frente ao Estado. Apesar disso, cabe analisar se tais princpios so realmente verificados e se

    as funes de controle penal realmente se efetivam.

    68Art 1. A execuo penal tem por objetivo efetivar as disposies de sentena ou deciso crimina l eproporcionar condies para a harmnica integrao social do condenado e do internado.69 BOSCHI, Jos Antonio Paganella, op. cit. p. 128.

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    2 A TEORIA ABOLICIONISTA

    Como visto no captulo anterior, o sistema penal possui caractersticas peculiares, asquais so definidas pela forma como se organiza, pelos instrumentos que utiliza para suas

    atividades, pelos preceitos que o orientam e pelo fim que pretende atingir. Entretanto, so

    essas mesmas caractersticas que, a partir da ecloso do movimento iluminista (sculo

    XVIII)70, passam a ser o alvo de crticas por vrios pensadores, entre eles Beccaria, que,

    com sua obra Dos delitos e das penas desenvolveu as mais variadas frentes de crtica ao

    sistema penal daquele tempo[...]71. Ao longo dos anos, vrias linhas tericas foram

    desenvolvidas, demonstrando o entendimento de doutrinadores sobre a situao da justiacriminal em diferentes tempos.

    Entretanto, faz-se mister afirmar que duas correntes poltico-criminais destacaram-se

    nas ltimas dcadas ao apontarem a deslegitimao do sistema penal: o direito penal mnimo e

    o abolicionismo penal. O direito penal mnimo recusa a legitimidade do sistema penal atual,

    propondo a sua substituio por outro sistema criminal de interferncia mnima. De outro

    ngulo, a teoria abolicionista sustenta a ilegitimidade do sistema penal hodierno, como

    tambm de qualquer outro futuro, postulando por instncias informais de soluo deconflitos.72 Desse modo, resta evidente que a teoria abolicionista penal se apresenta como a

    proposta de maior radicalismo acerca do sistema penal.

    De acordo com Garcia e Molina, [...] desde o final dos anos 60, surgiram nos pases

    anglo-saxnicos movimentos de opinio favorveis busca de vias alternativas ao sistema

    legal (diversion), isto , instncias no-oficiais e mecanismos informais que possam resolver

    70

    DOTTI, Ren Ariel. op. cit, p. 143.71 Ibidem, p. 144.72 ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed.Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 89.

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    com eficcia e menor custo os conflitos.73 Com esse pensamento, com o passar dos anos, o

    movimento abolicionista firmou-se e [...] organiza duas vezes por ano, desde 1983, uma

    Conferncia internacional, atravs de um organismo especialmente constitudo para tratar do

    assunto: a Conferncia Internacional sobre Abolio Penal74 (ICOPA). Nesse evento, em sua

    sexta edio, em 1993, o doutrinador holands Louk Hulsman apresentou uma sntese de sua

    posio abolicionista, que veio a ser, posteriormente, publicada em seu livro Penas perdidas.75

    2.1 Hulsman e asPenas perdidas

    Atravs do sua obra Penas perdidas76, Louk Hulsman, juntamente com Jacqueline

    Bernat de Celis, expe vrios princpios e fundamentos abolicionistas. Primeiramente, para

    ele, no [...] existe uma realidade ontolgica do crime,77 ou seja, no h uma real existncia

    do delito, pois os fatos que, para o direito penal, so denominados crime, na perspectiva

    abolicionista, so eventos criminalizveis, ou seja, acontecimentos que por meio das leis e da

    justia criminal podem vir a se tornar crimes. Esses mesmos eventos criminalizveis se, por

    um lado, se mostram um problema para algumas pessoas, no so considerados de tal forma

    para outras, tendo como nica semelhana entre eles a atuao do sistema penal, 78 que, por

    seu turno, tambm entendido como justia penal, corresponde, para Hulsman, a um conjunto

    de entes cooperados em que

    73 GARCIA, Antnio. MOLINA, Pablos de. Criminologia. 4 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 524.74 DOTTI, Ren Ariel, op. cit. 28.75 HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em questo. 2 ed. Niteri:Luam, 1997, p. 150.76 No h duvida de que a expresso peines perdues, originalmente grafada por Louk Hulsman e JacquelineBernart de Celis, sugere a lembrana de um clssico da literatura mundial: la recherche du temps perdu (

    procura do tempo perdido) de Marcel Proust (1871-1922). Para o romntico escritor francs, o objeto da obraliterria descrever o universo refletido porm deformado pelo esprito. A vida qual se escoa no mais que

    tempo perdido; o tempo s pode verdadeiramente se reencontrado e salvo sob o aspecto da eternidade, que tambm o da arte. (DOTTI, Ren Ariel, op. cit. p. 29.)77 HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 150.78 Ibidem, p. 150.

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    [...] cada rgo ou servio trabalha isoladamente e cada uma das pessoas queintervm no funcionamento da mquina penal desempenha seu papel sem terque se preocupar com o que se passou antes dela ou com o que se passardepois. No h uma correspondncia rigorosa entre o que um determinado

    legislador pretende num momento dadoo que ele procura colocar na lei, noCdigo Penale as diferentes prticas das instituies e dos homens que asfazem funcionar. Tais instituies no tm nada em comum, a no ser umareferncia genrica lei penal e cosmologia repressiva, liameexcessivamente vago para garantir uma ao conjunta e harmnica. Taisinstituies esto, de fato, compartimentalizadas em estruturasindependentes, encerradas em mentalidades voltadas para si mesmas.[...]Cada corpo desenvolve, assim, critrios de ao, ideologias e culturasprprias e no raro entram em choque, em luta aberta uns contra os outros.79

    Alm disso, conforme o pensamento hulsmaniano, a justia criminal limita-se ao

    condo de culpar algum e, junto com a dramatizao repetida da mdia, d origem a

    personagens do mal, as quais, desse modo, se diferenciam das demais.80 Karam explica essa

    idia, sustentando que por meio da publicidade miditica enganosa divulga-se a noo de que

    a maioria dos delitos provm de agentes e aes individualizadas, que aumentariam cada vez

    mais de forma descontrolada. Assim, conduzem todos a acreditarem que a punio desses

    criminosos especficos seria a nica forma de resoluo de toda a violncia, dos perigos e das

    ameaas existentes atualmente.81

    Com essa acepo, Hulsman se posiciona sobre poltica criminal, definindo-a como

    aquela correspondente to-somente aos crimes e criminosos, quando deveria ser mais ampla e

    multifocal, voltada ao desenvolvimento de seus rgos, anlise dos fatos que devem se

    submeter ao sistema penal e forma como os membros da sociedade podem agir diante das

    situaes problemticas.82 Nessa linha, Vitorino Prata observa que a melhor poltica criminal

    no aquela que privilegia a represso criminal como forma de solucionar o problema da

    violncia e da criminalidade na sociedade, mas aquela que, antes de tudo, realiza umapreveno efetiva, constante e diuturna,83 o que impediria, assim, a ocorrncia dos fatos

    punveis e a imerso de seus responsveis no sistema penal. Outrossim, o pensamento

    abolicionista hulsmaniano alude ainda vrias outras consideraes sobre o funcionamento do

    79 Ibidem, p. 59.80 Ibidem, p. 56.81

    KARAM, Maria Lcia.Pela Abolio do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p.78.82 HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de,op. cit. p. 156.83 PRATA, Vitorino. Apud FERNANDES, Newton. FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2 ed. SoPaulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.466, 467.

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    sistema penal. Diante dele, inicialmente, reala a necessidade de valorizar os reais interesses e

    condies da vtima, visto que ela

    [...] no pode mais fazer parar a ao pblica, uma vez que esta se ps emmovimento; no lhe permitido oferecer ou aceitar um procedimento deconciliao que poderia lhe assegurar uma reparao aceitvel, ou o que,muitas vezes, mais importante lhe dar a oportunidade de compreender eassimilar o que realmente se passou; ela no participa de nenhuma forma dabusca da medida que ser tomada a respeito do autor; ela no sabe em quecondies a famlia dela estar sobrevivendo; no faz nenhuma idia dasconseqncias reais que a experincia negativa da priso trar para a vidadeste homem; ela ignora as rejeies que ele ter que enfrentar ao sair dapriso.84

    Nessa seara, o sistema penal pretende a resoluo do conflito das pessoas, ao mesmo

    tempo em que atribui etiquetas s pessoas envolvidas, como vtimas ou criminosos.85 Salienta-

    se, na obra em anlise, que o rtulo de criminoso incutido nos cidados atravs do processo

    judicial e da vida no crcere, pois, em

    [...] inmeros casos, a experincia do processo e do encarceramento produznos condenados um estigma que pode se tornar profundo. H estudoscientficos srios e reiterados, mostrando que as definies legais e a rejeiosocial por elas produzida podem determinar a percepo do eu comorealmente desviante e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme estaimagem, marginalmente.86

    Assim, percebe-se que Hulsman descreve as funes de seletividade, etiquetamento eestigmatizao operada pela incidncia arbitrria, e no-paritria como quer a tradicional

    doutrina liberal, do modelo nos diferentes estratos sociais.87 Ainda, o encarceramento gera

    vrios outros malefcios pessoa do condenado ao submet-lo ao degradante cotidiano das

    prises e ao priv-lo de vrios benesses do exterior. Com esse entendimento, Hulsman

    expressa que

    84 HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de,op. cit. p. 82,83.85

    Ibidem, p. 82.86 Ibidem, p. 69.87 CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Teoria Agnstica da Pena: o modelo garantista delimitao do poder punitivo. Criticas Execuo Penal. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2002, p. 15.

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    [...] o condenado priso penetra num universo alienante, onde todas as

    relaes so deformadas. A priso representa muito mais do que a privaode liberdade com todas as suas seqelas. Ela no apenas a retirada domundo normal da atividade e do afeto; a priso , tambm e principalmente,a entrada num universo artificial onde tudo negativo. Eis o que faz dapriso um mal social especfico: ela um sofrimento estril.88

    Com esse pensar, Dotti assinala que a priso o monocrdio imposto para executar a

    grande sinfonia do bem e do mal. Por fora desse fenmeno, os problemas sociais e culturais

    que vertem no crime e na conduta de seu agente esto imersos no espectro da desgraa e damaldio.89 Diante disso, percebe-se que os direitos humanos de alguns cidados so

    derrogados quando conveniente para o sistema penal para a proteo do direito de outros.

    Nessa esteira, evidencia-se a incompatibilidade de muitos preceitos fundamentais com as

    facetas do sistema penal.90

    Nesse contexto, a pena, instrumento basilar da justia penal, passa a ser vista como

    ilegtima diante da imposio de castigos de intensa danosidade aos agentes delitivos e por

    mera relao de poder, pois, na maioria das vezes, no aceita pelo condenado, o quedemonstra a inexistncia de concordncia entre as partes da relao jurdica: Estado e ru.

    Da que, no havendo uma relao entre aquele que pune e aquele que punido, ou ausente o reconhecimento da autoridade, estaremos diante desituaes em que se torna extremamente difcil falar de legitimidade da pena.Se a autoridade for plenamente aceita, poderemos falar de uma pena justa.Se, ao contrrio, houver uma total contestao da autoridade, no teremos

    mais uma pena verdadeira, mas pura violncia.91

    Ademais, Hulsman assinala que tal penalizao no aplicada a todos que realizam

    condutas tipificadas como crime, sendo evidente que irrisrio o nmero de criminosos que

    so descobertos pelas autoridades policiais, originando, assim, a chamada cifra-negra.

    88 HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de,op. cit. p. 62.89

    DOTTI, Ren Ariel.Bases e alternativas para o sistema de penas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.28.90 HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p. 159,160.91 Ibidem, p. 87.

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    Alm disso, h um nmero menor ainda daqueles que so processados penalmente, como

    tambm h uma minoria absoluta daqueles que so condenados e submetidos a uma pena. 92

    Com esse mesmo enfoque Karam se posiciona:

    A impunidade no acontece apenas por questes conjunturais ou pordeficincias operacionais. As estatsticas indicadoras do nmero reduzido deocorrncias que chegam a resultar em processos e, nestes, em condenaes,sempre divulgadas como se fossem um retrato aberrante de um quadroexcepcional a ser enfrentado com mais represso, com maior aparelhamentodas agncias policiais ou da justia criminal, com novas leis penais ouprocessuais penais, ou com investigaes conduzidas por anunciadascomisses internas ou externas, na verdade, apenas refletem a realidade

    global de que o sistema penal somente se sustenta na medida de suaseletividade, incerteza e ausncia de efetividade, a seleo de apenas algunsdos responsveis por condutas criminalizadas, para que, processados econdenados, sejam exemplarmente identificados como criminosos,constituindo-se em uma caracterstica inseparvel do funcionamento penal. 93

    Seguindo esse vis, conforme o pensar hulsmaniano, o prprio conceito de crime

    atingido no momento em que vrios fatos considerados como delituosos pelo sistema penal

    no so constatados por este, tampouco avaliados pelos atingidos, mostrando-se de diferentenatureza daqueles que foram verificados pela justia criminal.94 Por conseguinte, essa posio

    [...] constitui um ponto de partida extraordinariamente importante, dentro deuma reflexo global sobre o sistema penal. Como achar normal um sistemaque s intervm na vida social de maneira marginal, estatisticamente todesprezvel? Todos os princpios ou valores sobre os quais tal sistema seapia (a igualdade dos cidados, a segurana, o direito justia, etc...) soradicalmente deturpados, na medida em que s se aplicam quele nmeronfimo de situaes que so os casos registrados. O enfoque tradicional semostra, de alguma forma, s avessas. A cifra negra deixa de ser umaanomalia para se constituir na prova tangvel do absurdo de um sistema pornatureza estranho vida das pessoas. Os dados das cincias sociaisconduzem a uma contestao fundamental do sistema existente. E longe deparecer utpica, a perspectiva abolicionista se revela uma necessidade lgica,uma atitude realista, uma exigncia de equidade.95

    92

    HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 65.93 KARAM, Maria Lcia. Pela Abolio do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.) op. cit. p. 91.94 HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op. cit. p. 65,66.95 Ibidem, p. 66.

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    Diante de todos esses fatores e evidenciando-se que o discurso oficial da justia penal

    mostra-se diverso do que realmente acontece na prtica, passa a ser visto como

    deslegitimado, atribuindo essa caracterstica ao sistema penal como um todo. Desse modo,

    Hulsman prope um processo de mudana atravs de uma converso coletiva da linguagem

    penal por outra mais benfica realidade atual e do modo pelo qual as pessoas encaram os

    fatos considerados criminosos,96 visto que a limitao das situaes problemticas

    terminologia utilizada pela justia penal (crime) uma forma diversa de compreenso dos

    fatos e de providenciar resolues.97 Dessa forma, possvel privilegiar os procedimentos

    no penais de controle e a maior participao dos envolvidos. Assim,

    [...] seria preciso devolver s pessoas envolvidas o domnio sobre seusconflitos. A anlise que elas fazem do ato indesejvel e de seus verdadeirosinteresses deveria ser o ponto de partida necessrio para a soluo a serprocurada. O encontro cara-a-cara deveria ser sempre possvel, pois asexplicaes mtuas, a troca das experincias vividas e, eventualmente, apresena ativa de pessoas psicologicamente prximas, podem conduzir, numencontro desta natureza, a solues realistas para o futuro.98

    Destarte, a algumas relaes pessoais poderiam ser aplicadas medidas acordadas entre

    as prprias partes e que melhor se ajustassem s suas necessidades. J, em outros, nos quais

    se mostra necessria a interveno de um ente estatal, as pessoas poderiam servir-se da justia

    cvel para a resoluo de seus conflitos.99 Com essa tica, Hulsman fundamenta:

    No h qualquer razo para se acrescentar um poder de punir a tribunais

    repressores, a fim de que, em determinados conflitos, escolhidos demaneira discutvel, algumas pessoas sejam tratadas como culpados quedevem ser castigados. Se repensarmos as diferentes linhas de aproximaopossveis diante de uma situao conflituosa, veremos claramente que oenfoque cvelnos limites postos pelo campo institucional - sempre poderser uma linha adequada, qualquer que seja o conflito. Todos os tribunaischamados de cveis, com algumas modificaes que teramos queconsiderar, podem ou deveriam poder intervir de maneira mais til para osinteressados do que o atual sistema penal.100

    96 HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de, op.cit, p. 96.97

    CARVALHO, Salo de. In: CARVALHO, Salo de (Org.), op. cit. p. 15.98 HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de,op. cit. p. 102.99 Ibidem, p. 120.100 Ibidem, p. 131.

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    Nessa perspectiva, os juzes passariam a atuar somente no mbito cvel quando fossenecessrio para garantir os direitos dos homens no defendidos por outras formas de controle.

    J os rgos policiais seriam agentes de paz, procurando evitar que as questes chegassem ao

    Judicirio.101 Nesse diapaso, Hulsman entende tais rgos como mecanismos de urgncia e

    afirma:

    Estou convencido de que a abolio do sistema penal num pas determinadono aumentaria ali os riscos reais de graves enfrentamentos ou violncias. Deum lado, porque as situaes em questo passariam a ser examinadas a partirde uma aproximao humana. Por outro lado, porque a perspectivaabolicionista reconhece a necessidade de manuteno de mecanismos deurgncia a que se deve recorrer em tempos, ou intervalos, de crise.102

    Dessa forma, o autor no retira a importncia da atividade judiciria e policial para o

    exerccio da coero, no entanto defende um modo diferenciado de atuarem e interferirem na

    vida dos cidados. Para isso, h necessidade de solidariedade e inteno de mudana entre as

    pessoas com o intento de abrangncia das relaes comunitrias e informais. Com essa

    perspectiva, Hulsman afirma que seria possvel abolir o sistema penal e

    [...] romper os laos que, de maneira incontrolada e irresponsvel, emdetrimento das pessoas diretamente envolvidas, sob uma ideologia de outraera e se apoiando em um falso consenso, unem os rgos de uma mquinacega cujo objeto mesmo a produo de um sofrimento estril.103

    possvel perceber, ento, que, com sua obra Penas perdidas, Hulsman expressa seu

    modo de entender as situaes que, atualmente, na justia penal so vistas como crimes.

    Demonstra a forma danosa como tal justia exerce suas atividades e afirma que os prejuzos

    resultantes dessas so responsveis pela perda das penas, ou seja, pelo no alcance dos fins

    penais e, conseqentemente, pela perda de todo o sistema penal. Diante disso, propugna outros

    101 HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op.cit, p.113.102 Idem.103 HULSMAN,Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. op. cit. p. 91.

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    meios para a resoluo de tais situaes, os quais sejam mais adequados aos interesses de

    ambas as partes e originem menores prejuzos as essas. Para esse fim, seria necessrio uma

    mudana da linguagem penal para outra, no punitiva, ocasionando, conseqentemente, a

    abolio dos instrumentos penais de controle e a oportunizao de utilizao de outros meios,

    menos prejudiciais e desumanos.

    2.2 Zaffaroni e sua busca pelas penas perdidas

    Com fulcro na teoria abolicionista exposta por Louk Hulsman em seu livro Penas

    perdidas, o doutrinador penalista argentino Eugenio Ral Zaffaroni realiza um ensaio crtico

    atravs de sua obra Em busca das penas perdidas, escrita em 1989, na qual explana sua

    posio sobre o sistema penal e sobre sua deslegitimao na atualidade. Alm disso, traz a

    lume fundamentos prprios e peculiares dos pases da Amrica Latina, aos quais denomina

    como regies marginais.

    Inicialmente, em sua obra, o pensador reprova vigorosamente o discurso jurdico-

    penal, averbando-o de perverso e falso porque procura contornar, com inteligncia, as mazelas

    da realidade operacional do sistema.104 Isso facilmente visualizado na medida em que

    [...] tornou-se comum a descrio da operacionalidade real dos sistemaspenais em termos que nada tm a ver com a forma pela qual os discursos

    jurdico-penais supe que eles atuem. Entre outros termos, a programaonormativa baseia-se em uma realidade que no existe e o conjunto dergos que deveria levar a termo essa programao atua de formacompletamente diferente.105

    Na compreenso de Andrade, impossvel que a operacionalidade de um sistema penalse adeque a sua programao, pois isso constitui uma marca estrutural do exerccio do poder

    que no pode ser eliminada sem, conseqentemente, suprimir totalmente o referido

    sistema106. Apesar disso, no entender de Zaffaroni, o discurso penal poderia ser socialmente

    verdadeiro, se obedecesse a dois nveis de verdade social:

    104

    DOTTI. Ren Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29.105 ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit, p. 12.106ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A iluso da segurana jurdica: do controle da violncia violncia docontrole penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 312.

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    a) um abstrato, valorizando em funo da experincia social, de acordo com oqual a planificao criminalizante pode ser considerada como o meioadequado para a obteno dos fins propostos [...].

    b)outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que integram osistema penal operem sobre a realidade de acordo com as pautasplanificadoras assinaladas pelo discurso jurdico-penal.107

    Como isso no ocorre, Zaffaroni constata o descompasso do discurso penal com a

    realidade atual, o que acarreta a perda de racionalidade do sistema penal, elemento

    indispensvel para legitim-lo. Ademais, tal racionalidade depende tambm de uma coerncia

    interna, na qual seus preceitos no se contradigam. Isso essencial visto que a mera legalidade

    no legitima o sistema penal, pois evidente que seus rgos no exercem o seu poder de

    acordo com a programao legislativa tal qual como expressa o discurso jurdico penal.108

    Para Zaffaroni, os rgos penais atuam de maneira militarizada e verticalizadora,

    demonstrando uma face configuradora do poder da justia penal, no simplesmente repressiva,

    visto que interioriza a presena de uma autoridade centralizadora que disciplina a vida dos

    cidados atravs de uma vigilncia constante. Ademais, muitas vezes, alm de o poder penal

    agir fora da legalidade, atua contrariamente a ela, mostrando-se intensamente violento. Nesse

    sentido, o autor enfatiza que a

    [...] estas violaes devem ser acrescentadas a corrupo, as atividadesextorsivas e a participao nos benefcios decorrentes de atividades como o

    jogo, a prostituio, o contrabando, o trfico de drogas proibidas, dadosgeralmente no registrados nos informes dos organismos de direitoshumanos, apesar de pertencerem inquestionvel realidade de nossossistemas penais marginais.109

    Com esse enfoque, Passetti salienta que as corrupes e acordos entre agentes da lei e

    infrator provocam a filtragem e seleo daqueles que sero os criminosos da justia criminal.

    Assim, demonstra-se que o sustentado lema de defesa da sociedade no ocorre, prevalecendo a

    defesa dos interesses dominantes.110

    107 ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 18.108

    Ibidem, p. 21.109 Ibidem, p. 29.110 PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETI, Edson (Org.). Curso deabolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.

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    Em que pese a tudo isso, Zaffaroni justifica que o sistema penal ainda se mantm por

    ser considerado uma forma de segurana para muitas pessoas que se deixam influenciar pelas

    ideologias dos meios de comunicao de massa, que ocupam-se da precoce introjeo do

    modelo penal como pretenso modelo de soluo dos conflitos111e tm a funo de gerar a

    iluso de eficcia do sistema112. Isso ocorre atravs da falsa publicidade, que propaga a idia

    de que, nos dias de hoje, predomina uma intensa violncia na vida social. Logo, o autor

    conclui:

    Sem os meios de comunicao de massa, a experincia direta da realidade

    social permitiria que a populao se desse conta da falcia dos discursosjustificadores; no seria, assim, possvel induzir os medos no sentidodesejado, nem reproduzir os fatos conflitivos interessantes de seremreproduzidos em cada conjuntura, ou seja, no momento em que sofavorveis ao poder das agncias do sistema penal.113

    Outrossim, no pensar Zaffaroniano, so esses mesmos meios de comunicao que

    criam o estereotipo de criminoso a determinadas pessoas, selecionando-as como aquelas

    que sofrem os efeitos negativos do sistema penal, o que ocorre, muitas vezes, por terem tidoum mero contato com ele atravs de alguma de suas agncias. Estes esteritipos permitem a

    catalogao dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde descrio

    fabricada, deixando de fora outros tipos de delinqentes (delinqncia de colarinho branco,

    dourada, de trnsito, etc).114 Tais status se afirmam, ainda, atravs da forte carga estigmtica

    que a punio penal acarreta com a pena prisional, que insere na vida nos detentos um vasto

    nmero de malefcios, os quais acompanham e prejudicam alm do cumprimento da pena.

    Nessa mesma tica, o doutrinador salienta:

    111

    ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 128.112 Ibidem, p. 129.113 Ibidem, p. 128.114 Ibidem, p. 130.

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    O efeito da priso, que se denomina prisionizao, sem dvida deteriorantee submerge a pessoa numa cultura de cadeia, distinta da vida do adulto emliberdade.Esta imerso cultural no pode ser interpretada como uma tentativa de

    reeducao ou algo parecido ou sequer aproxima-se do postulado daideologia de tratamento; suas formas de realizao so totalmente opostasa este discurso, cujo carter escamoteador percebido at pelo menosavisados.115

    Nessa percepo, Cervini ensina que os internos aprendem uma nova forma de viver,

    com novos hbitos, linguagens, usos e costumes porque no tm outra alternativa. Esse

    aprendizado evidencia os efeitos negativos do aprisionamento a qualquer ressocializao, pois

    na priso os detentos no aprendem a viver em sociedade, pelo contrrio, se integram com

    mais intensidade vida criminosa, mudando para pior e captando valores negativos para

    futura vida social livre.116

    Diante disso, na obra de Zaffaroni, expe-se a ocorrncia da deteriorizao dos direitos

    humanos, tanto na vida dos criminosos como dos prprios agentes do sistema penal, que

    sofrem uma crise de identidade pela incongruncia existente entre a forma como atuam e o

    que o discurso oficial prev. No obstante, h outra parte tambm prejudicada pela justia

    penal, a vtima, pois aquela, com intuito centralizador, provoca o desaparecimento dos velhos

    mecanismos de soluo entre partes em confronto, produzindo-se a expropriao dos conflitos

    (dos direitos da vtima), assumindo o soberano o lugar da nica vtima[...].117

    Diante desse pensamento, o doutrinador considera:

    Enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador deigualdades de direitos de longo alcance, os sistemas penais so instrumentos

    de consagrao ou cristalizao da desigualdade de direitos em todas associedades. No por acaso que os dispositivos dos instrumentos de direitoshumanos referentes aos sistemas penais sempre sejam limitadores,demarcadores de fronteiras mais ou menos estritas do seu exerccio de poder:fica claro que os direitos humanos se defrontam ali com fatos que desejamlimitar ou conter.118

    115

    ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 149.116 CERVINI, Ral. Os processos de descriminalizao. 2 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 41.117 ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 152.118 Ibidem, p. 149.

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    Nesse passo, para Zaffaroni, constatada a fraqueza de contedo das teorias da pena

    perante a situao atual da justia penal, visto que no sustentam a legitimao desta. Nesta

    esteira, Andrade acrescenta que,

    [...] comparando-se a programao teleolgica do sistema penal, isto , asfunes instrumentais e socialmente teis declaradas pelo seu saber oficialcom as funes reais da pena e do sistema pode-se concluir que estas noapenas tm descumprido, mas sido opostas s declaradas.Enquanto a funo de proteo de bens jurdicos universais atribuda aoDireito Penal revela-se como proteo seletiva de bens jurdicos; a pretensode que a pena possa cumprir uma funo instrumental de efetivo controle (ereduo) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias dapena deve, atravs de pesquisas empricas nas quais a reincidncia umaconstante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor dashipteses, no verificadas nem verificveis empiricamente. 119

    Alm disso, Zaffaroni alude irracionalidade da pena por ser mera manifestao do

    poder. Ainda, por todo esse entendimento, conceitua-a como qualquer sofrimento ou

    privao de algum bem ou direito que no resulte racionalmente adequado a algum dos

    modelos de soluo de conflitos dos demais ramos do direito.120

    Enfim, o pensador explica que todos esses apontamentos negativos sobre a justia penal

    so decorrentes do processo histrico da Amrica Latina, o qual, englobado pelo perodo

    colonialista e neocolonialista, incorporou uma espcie de controle social punitivo

    transculturado121 em vrios pases latinos, ocasionando a desigualdade, a dependncia e a

    fragilidade econmica, geradoras do grande grupo populacional pobre existente nessas regies

    e principal alvo do sistema penal. A partir disso, o autor prope a busca das penas perdidas

    atravs um marco terico que, inspirado nas referncias tericas centrais (como o

    abolicionismo), adapte-se realidade das chamadas regies marginais. Destarte, sugere uma

    reinterpretao do direito penal122 atravs de uma viso tica e otimista do mesmo. Para esse

    escopo, primeiramente, o direito penal deve ser recebido como uma

    119

    ANDRADE, Vera Regina de, op. cit. p. 291.120ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 204.121 Ibidem, p. 119.122 DOTTI, Ren Ariel. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29.

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    [...] reconstruo discursiva que interpreta as leis de contedo punitivo (leispenais) para dotar a jurisdio dos limites exatos para o exerccio de seupoder decisrio e de modelos ou opinies no contraditrios para osconflitos que o poder das demais agncias seleciona a fim de submet-los

    sua deciso, de modo a proceder de forma socialmente menos violenta.123

    Necessita-se, assim, que o direito penal assuma a funo de um direito humanitrio

    que se empenhe na defesa de lugares ou espaos de poder comunitrio, controle e limitao

    de poder verticalizador e, finalmente, enfraquecimento do instrumental de dependncia.124

    Destarte, as idias de Zaffaroni do enfoque aos princpios limitadores da justia criminal

    como direitos humanos e necessidade da sua real efetivao, visto que a desmedida

    ampliao do poder do Estado de punir produz leis de exceo que, vulnerando princpios e

    garantias essenciais ao funcionamento do Estado Democrtico de Direito, ameaam a sua

    prpria subsistncia [...].125 Nessa perspectiva, o doutrinador assinala:

    absurdo pretender que os sistemas penais respeitem o princpio dalegalidade, de reserva, de culpabilidade, de humanidade e, sobretudo, deigualdade, quando sabemos que, estruturalmente, esto preparados para os

    violar a todos. O que se pode pretender - e fazer - que a agncia judicialempregue todos os seus esforos de forma a reduzir cada vez mais, at ondeo seu poder permitir, o nmero e a intensidade dessas violaes, operandointernamente a nvel de contradio com o prprio sistema, a fim de obter,desse modo, uma constante elevao dos nveis reais de realizao operativadesses princpios.126

    Isso no deve se suceder bruscamente, de um momento para outro, mas desenvolver-

    se de modo progressivo e atingindo gradualmente determinadas padronizaes capazes de

    serem observadas pelos operadores do sistema penal em seus diferentes tempos. Porm, a

    123

    ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 206.124 Ibidem, p. 201.125 KARAM, Maria Lcia. Pela Abolio do Sistema Penal. In: PASSETI, Edson (Org.), op. cit. p. 72.126ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 235.

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    [...] nica forma de se manter esta progressividade da limitao repressiva ede fazer com que os princpios penais permaneam sempre abertos ouinacabados consiste em sustentar um certo grau de contradio entre odiscurso jurdico-penal da agncia de reproduo ideolgica e o padroobtido pelas agncias judiciais.127

    De tal sorte, possvel verificar se o contedo do discurso jurdico do sistema criminal

    est de acordo com a forma como seus rgos verdadeiramente atuam e se estes acatam os

    preceitos garantidores previstos e indispensveis para alcanar o trmino dos conflitos de

    maneira mais humanista. Com essa acepo, Zaffaroni pretende o resgate gradativo dos

    instrumentos no penais para solucionar os dissdios entre os cidados, reduzindo, cada vez

    mais, a interferncia violenta das agncias criminais nas relaes sociais. Para esse fim, o

    direito penal mnimo, interferncia mnima e em ltima esfera do sistema penal, exposto

    como uma alternativa e [...] de maneira inquestionvel, uma proposta a ser apoiada por

    todos os que deslegitimam o sistema penal, no como meta insupervel e, sim, como

    passagem ou trnsito para o abolicionismo, por mais inalcanvel que este hoje parea;

    [...].128

    Em sntese, pode-se analisar que Zaffaroni concorda com vrios aspectos da teoria

    abolicionista explanada por Hulsman, tanto no tocante s objees feitas ao sistema penal

    como s possveis medidas a serem tomadas diante dos efeitos negativos dele. Porm, tambm

    se verifica que, ao inclinar-se situao atual dos pases da Amrica Latina, Zaffaroni prope

    uma soluo mais ajustada realidade subdesenvolvida em que se encontram. Sugere que, no

    momento atual, o sistema penal ainda seja utilizado para a resoluo de um pequeno

    quantidade de conflitos, restringindo em etapas a sua atuao e, assim, se possa, futuramente,

    abolir a justia penal em sua completude.

    2.3. Outros pensadores e suas correntes

    Alm de Hulsman e Zaffaroni, outros pensadores construram uma posio crtica

    acerca do abolicionismo penal, entre os quais se pode referir, primeiramente, o ingls Thomas

    127 ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 237.128 Ibidem, p. 106.

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    Mathiesen, o qual segue uma linha de pensamento muito prxima do marxismo, que, como

    ensina Chau, sustenta que o

    [...] poder poltico sempre foi de maneira legal e jurdica pela qual a classeeconomicamente dominante de uma sociedade manteve seu domnio. Oaparato legal e jurdico apenas dissimula o essencial: que o poder polticoexiste como poderio dos economicamente poderosos, para servir seusinteresses e privilgios e garantir-lhes a dominao social. 129

    Nesse sentido, Mathiesen faz uma ligao entre a atual sociedade capitalista de

    dominao e o sistema penal, outra forma prejudicial de poder. A partir disso, sugere que nos o sistema penal seja abolido como tambm qualquer outra forma de poder opressivo,130

    sendo necessrio, para isso, que o abolicionismo tenha permanente relao de oposio e

    competio com o sistema que deseja abolir.131

    Outrossim, defende que toda construo terica deve se mostrar inacabada e em

    constante superao de limites, possibilitando o verdadeiro retrocesso de poder, no parciais

    retrocessos, como as descriminalizaes e as penas alternativas de prises, que so utilizadas

    como tticas para neutralizar as teorias contrrias ao poder. Tais tticas intentam definir o queest dentro e fora dele, para, conseqentemente, conseguir englobar o que est fora

    atravs do referido retrocesso estratgico.132

    Alternando um pouco a linha de pensamento, outro doutrinador que no deve ser

    olvidado o escritor noruegus Nils Christie. Apesar de apresentar vrios entendimentos

    comuns ao pensamento de Hulsman, cabe realar que Christie possui uma caracterstica

    peculiar: dar nfase s suas experincias histricas.133 Alm disso, o autor posiciona-se como

    um abolicionista-minimalista, afirmando contrariar Hulsman ao defender a necessidade demanter algumas garantias legais, visto que o sistema penal, com fulcro nas leis penais, o

    melhor limitador de alguns comportamentos absolutamente inaceitveis numa sociedade em

    129 CHAU, Marilena, op cit. p. 409.130

    ZAFFARONI, Eugenio Ral, op. cit. p. 99.131 Ibidem, p. 100.132 Idem.133 Idem.

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    que nada importa e onde o freio da vergonha no existe. 134 Nessa linha de raciocnio, Christie

    justi